You are on page 1of 270

E-book digitalizado com exclusividade para o

site:
www.bibliotecacrista.com.br
e
www.ebooksgospel.com.br

Digitalização e Revisão: Levita Digital


11/09/2009

Por gentileza e por consideração não


alterem esta página.

Aviso:
Os e-books disponiveis em nossa página, são
distribuidos gratuitamente, não havendo
custo algum.
Caso você tenha condições financeiras para
comprar, pedimos que abençoe o autor
adquirindo a versão impressa.
Título do original em inglês:
Chasing the Dragon
Copyright © 1980, Jackie Pullinger.
Publicado na Inglaterra por Hodder
and Stoughton, Londres.

Tradução de Myrian Talitha Lins

Primeira edição, 1982

Todos os direitos reservados pela


Editora Betânia S/C
Caixa Postal
5010 30.000 Venda Nova, MG

Composto e impresso nas oficinas da


Editora Betânia S/C
Rua Padre Pedro Pinto, 2435
Belo Horizonte (Venda NovaX MG

Printed in Brazil
Índice
Prefácio
Glossário
1. Rastros de Sangue
2. Para a China de "Canoa"
3. Uma Cidade Chamada Trevas
4. O Clubinho
5. Luz nas Trevas
6. As Quadrilhas
7. O "Irmão Maior" Está Olhando por Você
8. Perseguindo o Dragão
9. "Doenças" da Infância
10. É Jesus Mesmo
11. As Casas de Estêvão
12. Acolhendo Anjos
13. Testemunhos
14. E Por em Liberdade os Cativos
15. Andar no Espírito
Para minha família, especialmente
meu Pai.

"E foi expulso o grande dragão, a


antiga serpente, que se chama diabo
e Satanás, o sedutor de todo o
mundo, sim, foi atirado para a terra e,
com ele, os seus anjos... Agora veio a
salvação, o poder, o reino do nosso
Deus e a autoridade do seu Cristo,
pois foi expulso o acusador de nossos
irmãos..."
Ap 12.9,10.

Prefácio
Fiquei conhecendo Jackie Pullinger em
1968, quando fui a Hong Kong para fazer uma
filmagem. Um amigo nos apresentou, e ela me
falou de seu trabalho na Cidade Murada. Fiquei
fascinado pelo que me narrou, e fui visitar o
lugar em sua companhia. Era exatamente
como ela o descrevera.
Nos anos que se seguiram continuei a
manter contato com ela, vendo seu trabalho
desenvolver-se mais. O jornal Sunday Times
publicou um relato de sua obra em 1974. Em
1978, ela foi à Inglaterra para falar sobre seu
trabalho e, nessa ocasião, consultei-a sobre a
possibilidade de, juntos, escrevermos um livro,
dando um relato mais completo de tudo
quanto lhe acontecera. Concordou, mas não
sem certa relutância, e em 1979 voltei a Hong
Kong.
Alguns nomes e lugares citados no livro
tiveram que ser modificados, para que as
pessoas implicadas não sofressem nenhum
tipo de prejuízo, a maioria das quais ainda vive
naquela cidade. Excetuando-se esse detalhe,
tudo o mais foi narrado da forma como
ocorreu. Muitos dos eventos aqui narrados
podem ser comprovados em outras fontes.
Tenho que agradecer a muitas pessoas
que nos ajudaram na feitura deste livro. Entre
elas gostaria de mencionar Marjorie Witcombe
e Mary Stack, de Hong Kong, que nos
emprestaram sua casa, a Susan Soloman, da
Califórnia, a meu irmão Edward e a seus
colegas do Banco Mundial, em Washington,
onde o manuscrito foi terminado, e sobretudo
à minha esposa Juliet, que fez uma excelente
revisão e deu sua contribuição durante toda a
produção do livro. Estamos narrando aqui
incidentes ocorridos até 1976 apenas. O que
aconteceu de lá para cá terá de aguardar um
novo livro.
Andrew Quicke
Londres
Abril de 1980

Glossário
Amah: empregado (a).
Congee: um mingau de arroz que se
come no café da manhã.
Daih lo: Irmão Maior.
Daih ma: Mãe Maior, a esposa mais velha
de um chinês.
Daih pai dong: barraca de rua.
For-gei: garçom ou operário.
Fui-goih: arrepender-se.
Gong-sou: conversações entre quadrilhas
inimigas, como tentativa de solucionar
diferenças.
"Hai bin do ah?": De onde você é?
Hak Nam: Trevas (Nome que muitas
vezes é empregado para identificar a Cidade
Murada de Hong Kong.)
Hawh-fui: sentir muito um erro cometido.
Kai na: madrinha
Kai neui: afilhada (Estes dois termos são
empregados para designar o relacionamento de uma
mulher com uma criança que ela toma para criar.)
Kung-fu: um tipo de arte marcial chinesa.
Lap-sap: lixo.
Mama-san: mulher que tem a seu
encargo várias
prostitutas jovens ou bar-girls.
"M'gong?": Não quer falar?
Mintoi: edredom.
"Moe yeh": Nada.
Pahng-jue: chefe de um salão onde se
vende ou toma drogas.
"Pa mafan": medo de complicações.
Pin-mun: comércio ilegal.
Poon Siu Jeh: Pullinger em chinês.
Sai lo: Irmão Menor.
Sai ma: Mãe Menor, esposa mais nova ou
concubina de um chinês.
Seui Fong
14 K Nome das diversas quadrilhas tríades
que
são ilegais em Hong Kong.
Ging Yu
Wo Shing Wo

Siu yeh: lanche, merenda.


Tin-man-toi: literalmente meteorologista;
significa pessoa que vigia ou guarda.
Wunton: espécie de pastel de camarão
ou carne de porco.
"Yau moe gau chor." Você deve estar
louco!
"Yaunk": Estou aqui.
"Yeh sou ngoi nei." Jesus te ama!
1
Rastros de Sangue

O guarda da porta soltou uma cusparada


no chão do beco, mas fez um aceno de cabeça
dando-me permissão para passar. Deixei-o ali
agachado, e me espremi no pequeno vão entre
duas construções escuras, para entrar nessa
estranha "cidade" chinesa, tão temida pelo
povo de Hong Kong.
Por um instante, a escuridão do interior
dela me deixou meio cega, e embora a essa
altura já conhecesse o caminho muito bem,
segui em frente, pisando cautelosamente na
estreita ruela. Mantinha os olhos voltados para
o chão por duas razões: para não pisar nas
porcarias que escorriam para o rego aberto e
para não receber em pleno rosto o lixo que era
atirado das janelas à rua embaixo. Bati palmas
a fim de espantar os ratos; foi preciso bater
várias vezes, com força, para afastá-los.
Foi então que avistei uma pequena
mancha vermelha, e logo depois várias gotas.
Não havia dúvida de que era sangue. Senti a
tensão no estômago, pois cria que sabia de
quem era aquele sangue. O juiz me confiara a
guarda de Ah Sor, pelo período de um ano. Mas
uma quadrilha estava atrás dele para castigá-
lo, devido a casos não solucionados. Ao que
parecia, haviam-no encontrado. Avistei outras
daquelas manchas lustrosas, e passei por mais
dois tin-man-toi, os vigilantes das quadrilhas
que controlavam a Cidade Murada.
Virei uma esquina e entrei na rua onde
estavam situados os principais salões de
jogatina, administrados pelos "irmãos" da
quadrilha 14K. Passei pelos terríveis antros de
ópio, onde se achavam outros vigias.
Na rua seguinte, as manchas de sangue
já se apresentavam mais numerosas. Estava
impaciente para descobrir de quem era aquele
sangue. Mas, ao mesmo tempo, a idéia me
apavorava.
Cheguei à rua principal, uma das poucas
que possuía iluminação na Cidade Murada.
Tive que andar com mais cuidado ainda, ao
passar por outro salão de jogo. As prostitutas
me reconheceram e gritaram de lá de seus
compartimentos, junto ao cinema de filmes
pornográficos:
— Sr.ta Poon! Poon Siu Jeh, quer nos dar
um auxílio?
E estendiam as mãos cujos dorsos
estavam marcados de pontas de agulha. Em
seguida, entrei em minha ruela, onde ficava o
salão que alugara e que abria todas as noites
para os rapazes das quadrilhas.
A porta avistei uma poça de sangue
maior. As pessoas que por ali se encontravam
pareciam totalmente indiferentes.
— O que aconteceu? indaguei temerosa.
Um velho cantonês abanou a cabeça e
resmungou:
— Nada, nada!
Num lugar controlado pelas quadrilhas
tem que se viver com as mãos sobre os olhos,
se quiser sobreviver. É mais seguro não ver
nada, não se envolver com nada.
Ali perto, brincavam várias crianças, com
bebezinhos amarrados às costas,
despreocupadas, como se nada tivesse
acontecido.
Temendo por Ah Sor, destranquei o
portão de ferro, e entrei em nosso "clubinho".
Estava escuro, úmido e malcheiroso. Era muito
difícil conservá-lo limpo, pois não havia água
encanada. Toda sorte de insetos e bichinhos
saíam dos esgotos e andavam pelas paredes
do salão. Eu tinha mais medo das aranhas que
vinham das fossas, do que dos quadrilheiros.
Naquela noite, porém, toda a minha atenção
estava concentrada em Ah Sor.
Sua mãe o tinha vendido, quando ainda
era bebê, para um homem viciado em ópio,
que não tinha filhos e temia morrer e ir para o
inferno sem um filho para adorar seu espírito.
Por isso, Ah Sor crescera com grande carência
afetiva, mas, ao mesmo tempo, não sabia
reconhecer um afeto sincero, quando lhe era
oferecido. A fim de equilibrar essa forte
sensação de rejeição, ele se agregou a uma
quadrilha. Cresceu brigando nas ruas e
recebeu sua primeira sentença de detenção na
prisão juvenil aos treze anos. Durante os
últimos anos, eu tinha tido conhecimento da
história de sua vida e dos seus problemas e
procurara ajudá-lo, mas ele continuava na
mesma, sendo preso várias e várias vezes.
Além disso, era viciado em drogas, como seu
pai adotivo. Sentei-me num de nossos toscos
bancos do clubinho e fiz a única coisa que po-
dia — orei. Cinco minutos depois uma menina
entrou ali correndo, arfando pelo esforço.
— Sr.ta Poon, a senhora deve ir
imediatamente ao Hospital Elizabeth. Estão
chamando a senhora.
— Quem está lá? É Ah Sor?
— Só tenho que dizer-lhe para ir
depressa. É alguém que está morrendo,
concluiu e logo desapareceu.
Tranquei tudo e saí. No caminho fui
arrebanhando alguns rapazes que conhecia.
Fora da Cidade Murada; pegamos um táxi.
— Para o Hospital Elizabeth, depressa!
Nosso amigo pode morrer.
Os motoristas de táxi de Hong Kong não
precisam de muito incentivo para correr, e o
nosso ia zigue-zagueando entre uma pista e
outra, com apenas uma das mãos no volante.
Eu ia orando pelo caminho, as mãos apertadas
uma contra a outra.
"Talvez meu amigo morra", pensei em
cantonês.
Ele tinha tido uma vida tão miserável,
que nem era vida, e cu desejava proporcionar-
lhe coisa melhor.
"Salva-o, Senhor!", orei baixinho. "Faz
com que ele se salve."
Então, o carro parou abruptamente com
um guincho agudo dos pneus, e nós saltamos
do veículo desejando ver Ah Sor antes que
morresse.
Mas não era Ah Sor. Fora Ah Tong quem
deixara aquele sinistro rastro pelas ruas da
cidade. Eu o conhecia apenas pela sua fama de
ser um dos mais depravados chefes de
quadrilha. Até mesmo seus colegas o
desprezavam, pois ele costumava ir a festas,
seduzia mocinhas e depois as vendia, com a
vida assim arruinada, para o comércio do
meretrício.
Ao que parecia, a quadrilha Seui Fong
havia-se emboscado num beco escuro,
próximo ao nosso salão, armada de facões e
canos. Isso era parte de uma guerra de
quadrilhas por causa de um dos "irmãos" que
fora prejudicado havia alguns anos. O alvo
deles era Ah Sor. Quando este ia subindo a rua
em companhia de Ah Tong e de outro "irmão",
não se apercebeu da emboscada. Então a
quadrilha os atacou, procurando atingir sua
vítima. Mas Ah Tong viu-os logo e atirou-se à
frente do outro, para protegê-lo. Alguém
atingiu seu braço, que foi quase seccionado, e
os agressores o deixaram ali caído numa poça
de sangue. Ah Sor e o outro rapaz o
ampararam e saíram com ele aos trambolhões
até chegarem a uma das saídas da cidade,
onde pegaram um táxi. Deixando o colega no
hospital, fugiram imediatamente. (Há sempre
policiais postados nos hospitais, que os interro-
gam sobre as brigas das quadrilhas.)
A única informação que consegui extrair
da enfermeira foi que o paciente
provavelmente perderia o braço, se não a vida.
Sentada ali no hospital, pensei no que
ouvira e fiquei impressionada com o gesto do
rapaz. Ele era mau, e levava uma vida terrível,
mas revelara um amor muito raro. Jesus já
havia dito: "Ninguém tem maior amor do que
este: de dar alguém a própria vida em favor de
seus amigos."
Telefonei para alguns amigos e pedi-lhes
que fossem ao hospital. Passamos a noite toda
ali, orando. Quando a família apareceu, ficaram
grandemente espantados com nossa atitude,
para eles, incompreensível. O que fazíamos
nós, pessoas direitas, cristãs, orando pelo seu
filho? Ele era mau e só merecia mesmo morrer.
Afinal, a irmã nos deu permissão para
entrar na enfermaria onde ele se encontrava.
Postei-me ao lado do leito e olhei para Ah Tong.
Estava terrivelmente pálido, devido à perda de
sangue, e inconsciente. Com muito cuidado,
impusemos as mãos sobre ele e oramos em
nome de Jesus. E enquanto estivemos lá, ele
não recobrou os sentidos. Os boletins médicos
do hospital, porém, eram cada dia mais
animadores. Parecia que ele estava
melhorando incrivelmente. Afinal, cinco dias
depois de ter sido atacado, ele recebeu alta.
Fora milagrosamente curado, e não apenas
sobrevivera, mas também conservara o braço
em perfeitas condições.
Alguém poderia pensar que, depois de
haver experimentado um milagre como esse,
Ah Tong teria muito prazer em falar com um
dos intercessores, mas, nos meses que se
seguiram, mal ele me avistava, saía correndo.
Estava com medo de mim. Contudo, recebi
algumas palavras de agradecimento;
— Ele sabe que foram suas orações que o
salvaram, disse um dos muitos mensageiros
com recados de agradecimento.
Se ele pensava assim, então por que me
evitava? Meses depois vim a saber a razão. Era
viciado em heroína, e precisava de várias
doses diárias. Todo o tempo em que estivera
no hospital, sua namorada lhe levara drogas.
Sabia que eu era crente e que os crentes eram
pessoas direitas, ao passo que os viciados
eram depravados. Por isso, não lhe parecia
correto vir ele mesmo expressar sua gratidão.
Sentia-se por demais impuro, para se
aproximar de um cristão.
Alguns anos depois, Ah Tong entrou pela
nossa porta no meio da noite. Fitou-me com
uma expressão angustiada e disse
abruptamente:
— Poon Siu Jeh, estou desesperado. Já
tentei largar o vício muitas vezes, mas não
consegui. Será que pode me ajudar?
— Eu, não, respondi, mas Jesus pode. E
creio que há um fato a respeito de Jesus que
você poderá entender perfeitamente. Faz
alguns anos, você se dispôs a morrer por seu
irmão, Ah Sor. Foi um gesto maravilhoso.
Ah Tong tinha o cenho franzido, ouvindo
com atenção.
— Mas o que você diria de morrer por um
rapaz de outra quadrilha?
— Aaahhh! fez ele e soltou uma
cusparada. Morrer por um "irmão" é uma coisa,
mas ninguém morre por um inimigo.
— No entanto, foi exatamente isso que
Jesus fez. Ele morreu não somente para os de
sua quadrilha, mas por todas as pessoas de
todas as outras quadrilhas. Ele era o Filho de
Deus e nunca fez nada errado. Pelo contrário,
ele curava os doentes. Se crermos nele, ele
nos dará sua vida.
Não creio que a mente cheia de drogas
de Ah Tong pudesse absorver todos os detalhes
da doutrina da redenção, mas pude perceber
claramente que alguma coisa havia
acontecido. Ele se mostrou completamente
atônito pela idéia de que Jesus pudesse amar
uma pessoa como ele, e sentiu-se bastante
tocado.
Saí depressa com ele, e levei-o para o
pequeno apartamento que tínhamos na ilha de
Hong Kong. Era um apartamento bem
pequeno, segundo os padrões ocidentais. Ah
Tong se viu na sala, que também era sala de
jantar. Tudo era muito limpo e bem arranjado.
Era mais um lar, e não uma igreja. Mas o mais
extraordinário ali eram as pessoas presentes,
todas sorrindo. Havia vários ocidentais e
muitos rapazes chineses, muitos dos quais ele
reconheceu. Havia ali homens que ele tinha
conhecido na cadeia, e outros que tinham sido
seus companheiros de drogas. Porém, estavam
todos belos e felizes, mais fortes e saudáveis.
Eles se puseram a falar-lhe sobre o poder
de Jesus que lhes havia transformado a vida.
— Você nos conhece, disseram eles. Sabe
que nunca empregaríamos essa linguagem
santa, se de fato não crêssemos nisso. Quero
dizer, a Sr.ta Poon e esses pastores aqui nunca
tiveram de largar as drogas, e não sabem
como é. Eu senti muitas dores, mas orei a
Jesus, como me disseram, e deu certo. A dor
desapareceu e me senti outro. Recebi novas
energias: chama-se Espírito Santo. Falei em
língua estranha, e não senti mais dor
nenhuma.
Logicamente, Ah Tong deve ter pensado:
"Se eles podem, também posso. Se Jesus
fez isso por eles, pode fazer por mim também."
Então nos disse que queria crer que Jesus
era Deus e pedir-lhe que modificasse sua vida.
Em seguida, orou e logo seu rosto magro e
sulcado de rugas se relaxou, e ele sorriu.
Os outros ex-marginais ali presentes se
entreolharam felizes, participando daquele
milagre. Ah Tong recebeu o dom de línguas.
Quando se deitou naquela noite, seus olhos
tinham uma expressão de grande alegria, e ele
foi-se aquietando mais e mais, até cair num
profundo sono.
O rapaz permaneceu na casa. Não houve
necessidade de passar por uma desintoxicação
dolorosa, que constitui uma tortura tão grande
para o viciado, que pode causar-lhe a morte.
Não lhe demos nenhum remédio, nem mesmo
uma simples aspirina. Todas as vezes que
sentia a primeira pontada de dor, começava a
orar na sua nova língua. Sua desintoxicação
processou-se sem nenhum sofrimento. Não
houve vômitos, nem cãibra, nem diarréia, nem
calafrios. Ah Tong começou uma nova vida.

2
Para a China de "Canoa"
Os agentes da imigração subiram a bordo
do navio, e eu era a primeira da fila, ansiosa
que estava para desembarcar. Cedo, de
manhã, eu me aprontara e subira para o
convés. A vista que se tinha dali era de cair o
queixo. Lá estavam as montanhas de cumes
brilhantes, sumindo-se à distância, em meio à
bruma, como num quadro oriental. Percebi que
meu coração estava inundado de grande paz,
e ao reconhecer que aquele era o lugar que
Deus havia escolhido para mim, agradeci-lhe.
Eu me achava ali, esperando e
contemplando o mar da China, na "Pérola do
Oriente", Hong Kong. Cercava-nos a enseada,
que separava a Ilha Victoria da Península de
Kowloon. Ela estava pontilhada de barquinhos.
Balsas se moviam entre as diversas ilhas
adjacentes, levando operários, e nos
ancoradouros viam-se muitos dos
antiquíssimos juncos, que traziam toda sorte
de alimentos da China territorial para a
Colônia. Pareciam estranhamente antiquados
em comparação com os modernos arranha-
céus que se erguiam logo atrás, nas encostas
dos morros, na Ilha de Hong Kong.
Um pouco mais perto, após as docas,
entreviam-se nesgas de ruas chinesas, tão
singulares, encantadoras, com o exotismo
próprio do Oriente. Erguendo os olhos, vi à
distância ás colinas dos Nove Dragões, nos
Novos Territórios, que se estendiam até a
fronteira da
China de Mao. Vista do mar, numa manhã
ensolarada, Hong Kong era belíssima.
O agente da imigração não demonstrava
o mesmo entusiasmo que eu. Pegou os
formulários preenchidos, nos quais eu
declarava que tinha vindo à Colônia para
trabalhar.
— Onde mora? indagou.
— Na verdade, ainda não tenho onde
morar.
— Endereço de amigos?
— Ainda não tenho conhecidos aqui.
— Onde trabalha?
— Bem, não... ainda não tenho emprego.
Ele me fitou com uma expressão de
desalento. Até esse ponto conseguira levar
bem a entrevista, mas minhas respostas não
se achavam muito de acordo com o "figurino".
Tentou fazer mais algumas indagações
suplementares.
— Onde está sua mãe?
— Na Inglaterra.
— E sua passagem de volta?
— Ainda não tenho.
Não estava nem um pouco preocupada
por não ter passagem de volta, e não
compreendia por que ele tinha que estar.
Afinal, seu rosto se iluminou oomo se
encontrando a solução.
— Quanto tem em dinheiro?
Também fiquei satisfeita, pois pensava
estar muito bem financeiramente. Chegara ali
quase que com a mesma quantia que tinha ao
embarcar.
— Mais ou menos HKS100 dólares,
respondi orgulhosa.
— É pouco, replicou ele rispidamente.
Hong Kong é um lugar de vida muito cara. Não
dá nem para três dias, concluiu, e saiu
apressado, à procura de seu chefe.
Os dois confabularam por alguns
instantes, depois voltaram para onde me
encontrava.
— Embora a senhora seja britânica, falou
o chefe, vamos negar-lhe permissão para
desembarcar. Espere aqui.
Fiquei ali parada, me perguntando o que
iriam fazer comigo. Na imaginação, já os via
trancando-me num camarote, obrigando-me a
voltar para a Inglaterra. Meus amigos iriam
dizer:
— Não falei? Onde já se viu, sair pelo
mundo fora, seguindo a orientação de Deus!
Que atitude mais irresponsável!
O que eu faria? E como viera parar aqui?
Quando minha mãe ficou grávida de
mim, pensou que estava esperando uma
criança só, mas deu à luz gêmeas, o que deve
ter sido uma grande decepção para meu pai,
que tinha esperanças de fundar um time de
rugby* e acabou com quatro filhas. Então
procurei compensar o fato comportando-me
como um garoto. Subia em árvores e corria
muito, gostava de brinquedos masculinos e
bicicletas.
Uma das recordações mais antigas que
tenho, foi de quando estava com quatro anos.
Lembro-me de que estava encostada ao
aquecedor, em nossa casa, e pensava:
"Será que vale a pena ser bom neste
mundo?"
Acabei-me decidindo que, fosse lá o que
eu escolhesse fazer na vida, um dia seria
conhecida e famosa. Mais ou menos um ano
depois, eu e minha irmã gêmea estávamos na
escola dominical, e uma missionária fez uma
palestra. Estendendo o dedo para cada uma de
nós, ela disse:
— Será que Deus quer vocês no campo
missionário?
Recordo-me de que logo pensei que a
resposta dessa pergunta nunca poderia ser
"não", pois, logicamente, Deus quer que todos
vão para os campos. Mas não tinha a mínima
idéia do que fosse um campo missionário. Eu
me via a mim mesma sentada à porta de uma
choupana, num lugar qualquer da Africa,
sentindo-me muito nobre e digna.
Contei a uma amiga da escola que
desejava ser missionária. Foi um grande erro.
Logo percebi que todos esperavam que eu
fosse melhor do que os outros.
__________________
* Esporte semelhante ao futebol
americano e ao nosso futebol militar.

— Mas você vai ser missionária! diziam


em tom acusador, quando eu me comportava
mal.
Então inventei uma porção de outras
carreiras para desviar a atenção dos outros:
regente de orquestra; a primeira mulher a
escalar o pico do Everest; artista de circo.
Contudo, interiormente, algumas coisas
ainda me incomodavam. Certo dia, estava
passeando na ponte do trem de ferro com
Gilly, minha irmã gêmea. Como sempre,
havíamos conseguido que nossa boa amiga
Nellie nos desse pirulitos sabor limão, e pouco
depois de começar a saboreá-los ocorreu-me
um pensamento terrível: "Afinal, o que
estamos fazendo aqui na terra? Para que serve
a vida?" Parecia que me encontrava presa
numa armadilha. Não podia viver da maneira
que me agradasse, pois caso Deus existisse
mesmo, um dia teria que dar satisfações a ele.
E havia também o problema do pecado.
Deitada no gramado, pus-me a olhar para o
céu e a imaginar que Deus estava lá, com um
livro bem grande, no qual estava o nome de
todas as pessoas. Toda vez que alguém
praticava um ato errado, ele colocava uma
marquinha ao lado dele. Dei uma espiada na
linha correspondente ao meu nome e a fila de
marcas estava bastante comprida. Pois bem,
não havia nada que eu pudesse fazer para
sanar o mal. Afinal, encontrei a solução. Os
anos estavam a meu favor, e então resolvi:
— Se eu nunca mais fizer nada errado,
nunca, nunca, talvez algum dia eu ainda pegue
*Winston Churchill e fique igual a ele. Ele é a
melhor pessoa que existe na terra, mas já é
muito velho. Então, se eu parar de pecar
agora, talvez eu termine mais ou menos igual
a ele.
No primeiro ano do curso ginasial cometi
outro erro.

_____________________
*O grande líder da Inglaterra na II
Guerra Mundial, muito querido e
respeitado por todo o povo.
Eu e minha irmã estávamos sentadas à
mesa do internato tomando chá com o
inevitável pão preto. A cabeceira encontrava-
se uma garota maior de nome Mirissa. Pensei
em iniciar educadamente uma conversa, mas,
infelizmente, escolhi o assunto errado. Tendo
ouvido a primeira transmissão radiofônica de
um programa de Billy Graham, mencionei
como ficara impressionada com o evangelista.
— Puro emocionalismo de massa!
exclamou a moça desdenhosa.
Eu tinha tanto respeito pela opinião das
pessoas mais velhas, que depois, todas as
vezes que se conversava sobre isso na escola,
eu dizia com ironia:
— Puro emocionalismo de massa!
Chegou a época de nossa "confirmação"
na igreja. Eu estava levando tudo muito a
sério, mas sentia que os outros só estavam
interessados nas roupas novas e no "chá de
confirmação", que teríamos depois da
cerimônia. Meu medo era que o ministro nos
perguntasse, individualmente, em que
críamos. Mas ele não o fez. Contudo, resolvi
fazer-lhe uma pergunta.
— Em que devo pensar, no momento em
que o Bispo impuser as mãos sobre mim?
— Ah, bem... é... ore! disse ele afinal.
Eu e Gilly fomos até a frente e nos
ajoelhamos, e o Bispo impôs as mãos sobre
nós. Só me recordo de que, ao voltar para meu
lugar, estava sentindo uma grande alegria.
Minha vontade era rir de felicidade. Que
atitude mais imprópria! Afinal, era um culto de
confirmação espiritual, e aquele era o
momento mais solene. O riso seria depois, na
hora do chá. Eu tinha pensado antes que
gostaria de me comportar de maneira bastante
reverente e elegante nesse culto, e não
parecia haver nenhuma associação entre ele e
aquela alegria tão despropositada. Eu estava
entregando minha vida a Deus, e não esperava
receber nada em troca.
A primeira coisa que fiz depois disso foi
pegar a lista telefônica e procurar endereços
de missões.
— Desejo ser missionária, escrevi para
elas, e creio que deveria começar a preparar-
me desde já. Quais os cursos que devo fazer?
Em resposta, eles me mandaram dizer
que haviam colocado meu nome no seu rol de
associados jovens.
Nas férias, geralmente, eu trabalhava na
fábrica de papai, ou então dava aulas
particulares, ou funcionava como "carteiro"
para o Correio, na época do Natal. Já me
considerava uma pessoa integrada à
sociedade.
Depois, fui para o Real Conservatório de
Música, onde descobri que os músicos
achavam que o amor era o grande inspirador
da música, e tive muito trabalho para me livrar
de um pistonista.
Vez por outra, eu passava pela sala da
União Cristã e via lá o quadro de avisos. Sentia
um aperto na consciência. Mas aqueles jovens
ali me pareciam tão desinteressantes e sem
graça, e, além disso, na sua maioria, eram
organistas. Na cantina da escola, assentavam-
se sempre juntos, parecendo muito santos; não
me atraíam em nada. Não sabia sobre o que
conversavam e nem me interessava saber.
Davam a impressão de serem muito solenes e
tristes, e embora me garantissem que minha
vida mudaria depois que eu viesse a "conhecer
Jesus", eu não queria mudar para ficar igual a
eles.
Nesse tempo, eu gostava de freqüentar
festinhas, mas a principal forma de
divertimento ali ou era imoral ou
desinteressante. Contudo, eu sempre ia
esperando encontrar ali o homem dos meus
sonhos. Foi só depois de muito tempo que
compreendi que ele nunca poderia estar
presente numa daquelas festas.
Certo dia, eu estava no trem, voltando da
escola para casa, quando encontrei duas ex-
colegas de escola. Elas me convidaram para ir
a uma reunião em uma casa, onde um
pregador maravilhoso faria palestras sobre a
Bíblia. E eu fui. Ele era realmente fabuloso.
Mas todas as outras pessoas também o eram.
E o que mais me impressionou foi que eram
todos gente normal, como eu. As moças
usavam maquilagem. Os rapazes conversavam
sobre corrida de automóvel — no entanto
estavam ali porque desejavam estudar a Bíblia.
Naquele ambiente foi muito fácil falar sobre
Deus.
Contudo, eu ainda ficava incomodada
quando ouvia falar em céu e inferno. Mas o
que mais me transtornava era a idéia de que
ninguém podia chegar a Deus, a não ser por
intermédio de Jesus. Compreendi que ou eu
tinha que aceitar tudo que Jesus dissera a
respeito de si próprio, ou abandonar de vez a
fé cristã. E não foi sem relutância que orei a
ele dizendo que acreditava em tudo que ele
dissera. E assim me converti.
Passei a ter uma vida ainda mais cheia do
que antes. Pouco depois disso, um homem me
perguntou se eu acreditava em Deus.
— Não, respondi. Eu o conheço. É
diferente. Tenho paz e sei para onde estou
indo.
Mas essa nova vida também me trouxe
alguns problemas. Certo dia, após o estudo
bíblico, as moças tiveram um momento de
oração. Abri os olhos para dar uma espiada.
Sorriam parecendo muito felizes. Fiquei
abismada, pois se críamos que iríamos para o
céu por causa de Jesus, a recíproca também
era verdadeira — quem não cresse nele não
iria. "Como essas pessoas podem ficar
sentadas aí sabendo disso?" pensei. "E as
pessoas que ainda não ouviram as boas-
novas?"
Em conseqüência disso, passei a tomar
parte numa cena que teria abominado, antes
de minha conversão. Estava tocando piano
numa reunião de jovens evangélicos em
Waddon, cantando hinos sobre a salvação. Foi
aí que tive certeza de que minha vida havia-se
modificado mesmo.
Depois que me formei, comecei a dar
aulas de música. Mas eu queria dedicar toda a
minha vida a uma obra qualquer, em algum
lugar. E não havia nada que me impedisse de
fazê-lo. Voltou-me a idéia de ser missionária. '
Então escrevi para missões, escolas e
companhias radiofónicas da Africa. E todos
responderam da mesma forma — não queriam
meus préstimos.
— Ainda não podemos dar-nos o luxo de
ter músicos por aqui, diziam.
Não me deixei abater, e tratei de pedir
conselhos às pessoas que melhor pudessem
me orientar.
— O que você acha que devo fazer de
minha vida? indagava.
— Já orou pedindo a orientação de Deus?
replicavam.
Já havia orado, mas Deus ainda não tinha
me dado uma resposta clara. A Bíblia ensinava
que eu deveria crer e ele me orientaria. Uma
noite, sonhei que nossa família estava reunida
à mesa da sala de jantar, olhando um mapa
colorido da Africa. Entre os diversos países
daquele continente havia um que estava
colorido de cor-de-rosa. Inclinei-me mais para
ver qual era. Estava escrito "Hong Kong".
Quando acordei, escrevi para o governo
de Hong Kong explicando que era professora
de música, formada, e gostaria de lecionar
nesse país. Responderam dizendo que não
havia vagas para músicos. Recorri então à
minha sociedade missionária. Impossível,
responderam. Não aceitavam candidatos a
missionário com menos de vinte e cinco anos.
Eu teria que aguardar um pouco mais.
Ao que parecia, havia interpretado
erradamente o meu sonho.
Certa vez fui orar em uma pequena igreja
de um povoado, um lugar muito calmo. Ali tive
uma visão de uma mulher de braços
estendidos, como se estivesse implorando
ajuda. Fiquei a me indagar o que ela queria.
Parecia desejar alguma coisa desesperada-
mente. Seria auxílios do Fundo Cristão? Depois,
foram surgindo umas palavras que iam
passando à minha frente, como se fossem a
ficha técnica de um programa de televisão: "O
que você pode nos dar?" O que, em verdade,
eu poderia dar a ela? Se fosse missionária, o
que iria dar às pessoas? Daria o que aprendera
em meus estudos? Deveria talvez atuar como
intermediária para conseguir-lhes alimentos,
dinheiro ou roupas? Se eu lhes desse apenas
essas coisas, quando saísse de lá, voltariam a
ter fome. Mas a mulher da visão estava com
fome de um alimento que ela não conhecia.
Ocorreu-me, então, que o de que ela
precisava era o amor de Jesus. Se ela o
recebesse, quando eu saísse de lá, ela ainda
estaria satisfeita, e poderia até transmiti-lo a
outros. Finalmente sabia o que tinha a fazer —
só não sabia onde.
Pouco depois disso, encontrei um amigo
que morava em West Croydon, que sabia que
eu estava orando sobre meu futuro.
— Já recebeu a resposta? indagou.
— Não, respondi.
— Gostaria de assistir às nossas
reuniões? indagou. Lá estamos sempre
recebendo respostas.
Será que aquela gente de West Croydon
pensava que tinha uma espécie de monopólio
de Deus? Fiquei curiosa para saber o que
acontecia nas reuniões.
— Logo que cheguei, alguém me disse
que não ficasse espantada se acontecesse algo
de extraordinário. Sentei-me perto da porta. Ao
que parecia, iriam exercitar os dons espirituais,
e eu queria ter facilidade de escapulir, caso
fosse necessário.
Não estava muito certa sobre o que iria
haver ali. Pensava que talvez alguém fosse
profetizar em voz alta. Mas a reunião foi muito
ordeira e calma, com orações normais e os
hinos de sempre. Um ou dois dos presentes
realmente falaram numa língua que eu não
compreendia, mas até certo momento não
houve nenhuma profecia estrondosa, nem voz
estridente de Deus falando comigo.
Mas depois ela veio.
Uma pessoa começou a falar em voz
tranqüila, e logo tive plena certeza de que
aquilo era para mim.
"Vá. Confie em mim e eu a guiarei. Eu a
instruirei sobre o caminho em que deve andar.
Eu a guiarei com meus olhos."
Tive certeza de que Deus estava com
minha vida em suas mãos, e que muito breve
iria conduzir-me a algum lugar.
Não havia dúvida de que o povo de West
Croydon recebia respostas de Deus. Voltei para
casa, e pus-me a aguardar maiores
orientações. Ainda não sabia para onde
deveria ir. Dei aviso prévio em todos os empre-
gos, de modo que estivesse livre para partir
logo após o encerramento das aulas.
Durante os feriados da Páscoa, trabalhei
durante uma semana na igreja de Richard
Thompson. Ele me conhecia havia bastante
tempo, e eu sentia que poderia ajudar-me.
Disse-lhe que eu e Deus nos achávamos numa
encruzilhada. Ele me ordenara claramente que
fosse, mas não me dissera para onde.
— Se Deus está ordenando que và, é
melhor você ir, replicou ele.
— Mas como, se não sei para onde ir.
Todos os meus pedidos de trabalho estão
sendo rejeitados.
— Bem, se você já tentou todas as
formas convencionais de trabalho missionário
e Deus continua dizendo para você ir, é melhor
você começar a mexer-se. Se já tivesse um
emprego, a passagem, o lugar para ficar, a
aposentadoria e pensão, não precisaria confiar
nele, continuou Richard. Desse modo, qualquer
um pode ser missionário. Se eu fosse você,
compraria passagem num navio com destino
ao ponto mais distante possível, embarcaria
nele, e depois iria orando todo o tempo,
perguntando a Deus onde deveria descer.
Depois de vários meses, era a primeira
vez que eu recebia uma resposta definida.
— É uma idéia maravilhosa, respondi.
Mas me parece errada, pois eu adoraria fazer
isso.
Eu ainda pensava que tudo que o crente
fizesse tinha que implicar em sofrimento, e que
não podia ter nenhuma satisfação em sua fé.
Mas Richard afirmou que esse plano era
bíblico. Abrão, por exemplo, deixara sua terra
e, obedecendo a uma ordem de Deus, seguira
para a terra prometida sem saber para onde ia,
pois confiava em Deus.
— Não há o que temer, se você se
colocar inteiramente nas mãos de Deus, disse
Richard com muita seriedade. Se ele não
quiser que você tome esse navio, ele a deterá,
ou poderá levar a embarcação para qualquer
lugar do mundo.
A idéia me pareceu fascinante.
O conselho de Richard era um pouco
incomum, mas muito sábio. Em nenhum
momento, ele me deu a impressão de que eu
entraria no navio como uma pessoa comum, e
sairia dele transformada em missionária,
pronta para trabalhar. O que eu tinha de fazer
era simplesmente seguir a Deus, aonde ele me
mandasse. Assim compreendi que não tinha
nada a temer nessa aventura.
Então fiz o que ele dissera. Procurei o
navio mais barato, com o percurso mais longo
possível, que passava por muitos países. Ia da
França ao Japão. Comprei a passagem, e tudo
estava resolvido.
Naturalmente, eu teria que enfrentar
meus pais e amigos. Alguns se mostraram
descrentes. Meu pai, com muito bom-senso,
insistia em que eu pensasse muito, em minha
"viagem de canoa para a China". Meus pais
estavam satisfeitos com a minha ida, mas um
se preocupava com o outro. Orei pelo
problema, e uma noite escutei os dois
discutindo, cada um tentando convencer o
outro de que estava tudo certo.
O pessoal da minha sociedade
missionária já não se mostrou tão
entusiasmado.
— Que conselho mais irresponsável para
um pastor dar a uma jovem, disseram. E
suponhamos que não tenha sido o Espírito
Santo quem ditou as palavras para Richard
Thompson?
O dia em que parti foi um desses dias em
que tudo dá errado. O táxi que havíamos
contratado para nos levar a Londres apareceu
com uma hora de atraso. Mas afinal vi-me
acomodada no vagão do trem com minha
bagagem. Richard Thompson surgiu correndo
pela plataforma, gritando:
— Glória a Deus!
E daí a pouco o trem arrancou.
O agente da imigração voltou-se para
mim muito transtornado. Por um instante
pensei que eu tinha vindo de tão longe até a
Ásia, apenas para ser repatriada. Mas de
repente lembrei-me do texto que lera pela
manhã: "Eis que nas palmas das minhas mãos
te gravei." Se meu nome estava gravado ali,
então Deus sabia tudo que me dizia respeito.
— Espere um pouco, disse eu,
lembrando-me repentinamente de um afilhado
de minha mãe. Eu conheço uma pessoa aqui.
Ele é da polícia.
O resultado foi dramático. Naquela
época, 1966, a polícia era tida em alta conta, e
qualquer um que tivesse um conhecido na
força policial, obviamente era uma pessoa
direita.
Devolveram-me o passaporte
resmungando que eu poderia desembarcar,
sob a condição de que deveria procurar
emprego imediatamente. Na opinião deles,
meu dinheiro não daria nem para três dias de
estada em Hong Kong.

3
Uma Cidade Chamada Trevas
A Cidade Murada é guardada dia e noite,
continuamente, por um exército de vigias.
Assim que um estranho qualquer se aproxima,
os vigias vão passando a notícia de boca em
boca. Aqueles rapazes saem correndo por
entre barracas de lanche, entrando e saindo
por portas, e atravessando ruelas estreitas. As
verdadeiras atividades da cidade ficam
completamente camufladas para um
forasteiro. Portas se fecham, janelas são
cerradas e a queima de incenso disfarça o acre
odor do ópio.
Um dos nomes chineses dados à Cidade
Murada é "Hak Nam", que significa "trevas". E
realmente trata-se de um lugar de trevas
horríveis, tanto físicas quanto espirituais. Mas
quando se conhecem os homens e mulheres
que vivem e sofrem em tal lugar, podemos
ficar condoídos, cheios de compaixão.
A Sr.a Donnithorne me convidara para
visitar o jardim da infância e a igrejinha que
organizara ali, mas não me havia preparado
devidamente para o que iria ver. Pegamos um
carro até a rua Tung Tau Chuen, situada nos
arredores da cidade. É a rua dos dentistas
clandestinos, que exercem seu trabalho ile-
galmente, pois dentistas práticos não podem
operar em Hong Kong.
Logo atrás desses bizarros cômodos
erguiam-se os precários arranha-céus da
Cidade Murada. Passamos apertadamente por
um vão entre duas das lojas de dentistas e
pusemo-nos a caminhar por um beco
escorregadio. Nunca me esquecerei do mau
cheiro e da escuridão reinante. Era um cheiro
fétido de comida azeda e de excremento,
misturado ao de lixo e de vísceras de animais.
Fomos andando por entre as casas, e a parte
superior delas se projetava sobre a rua,
formando uma espécie de arco sobre o beco.
Parecia-me estar caminhando por um túnel
subterrâneo.
A medida que avançávamos, minha
amiga ia comentando algumas coisas: à nossa
direita uma indústria de flores de plástico; à
esquerda, uma velha prostituta, que era velha
e feia demais para conseguir fregueses. Então
ela contratava meninas prostitutas para
trabalharem para ela. E essas tinham muitos
clientes. Nesse lugar depravado, a posse de
uma criança prostituta era considerada apenas
como uma excelente fonte de renda. "Tia
Donnie" avisou-me que mantivesse o rosto
voltado para o chão, caso alguém resolvesse
esvaziar na rua seu urinol, no momento em
que passávamos embaixo. Depois vinha o
cinema de filmes pornográficos, uma espécie
de pavilhão, inteiramente lotado.
Mas havia um comércio normal também.
Vimos homens carregando na cabeça latas de
concreto re-cém-misturado. Mulheres, tendo
nas mãos imensas sacolas cheias de flores
artificiais, iam saindo das pequeninas saletas
onde eram fabricadas. Ali não se observava o
"Dia do Descanso". Cinco feriados ao ano eram
mais que suficientes. Para um chinês, é de
suprema importância que os filhos trabalhem
para os pais, muitas horas por dia.
Como pode existir um lugar destes bem
no meio de Hong Kong, a Colônia da Coroa
Britânica? Há cerca de oitenta anos, quando a
Inglaterra se apossou da ilha chinesa de Hong
Kong, da Península de Kowloon e dos territórios
contíguos a ela, foi feita uma exceção. A velha
cidade murada de Kowloon deveria
permanecer sob a jurisdição da China, com seu
mandarim, sujeita às leis chinesas. Mais tarde
o mandarim morreu, e seu cargo nunca foi
ocupado, nem por outro chinês nem por um
inglês, e assim a desordem passou a reinar na
Cidade Murada, onde prevalece até hoje. Ela
se tornou um paraíso para o contrabando do
ouro, antros de jogatina ilegal e todo o tipo de
vícios. O desentendimento com relação à sua
posse significava que a polícia não podia impor
a lei e a ordem dentro dela. Quando querem
procurar criminosos ali, entram em grupos
grandes.
A cidade tem uma população muito
grande, mas é pequena. Em apenas seis acres
de terra, vivem trinta mil pessoas, ou o dobro.
As condições habitacionais são apavorantes.
Não existem leis regulamentando a construção
das casas; por isso as ruas se acham
"entulhadas" de prédios de apartamento,
situados em ângulos os mais loucos, sem água,
luz ou esgoto. Excrementos são atirados nas
ruas, que exalam constante mau cheiro. No
andar térreo, existem apenas dois banheiros
para as trinta mil pessoas. E esses dois não
passam de buracos feitos no chão sobre fossas
já transbordantes. Um é para as mulheres e o
outro para os homens.
Seria muito improvável que num lugar
como a Cidade Murada houvesse escolas e
igrejas. Mas a Sr.a Donnithorne tinha
conseguido abrir uma escolinha primária. Os
professores não eram formados, mas haviam
feito o curso secundário. Era uma escola
pequena, com várias centenas de alunos. No
primeiro dia em que fui visitar o local, Tia
Donnie pediu-me que lecionasse nela. Antes de
pensar duas vezes repliquei:
— Pois não!
E sem que soubesse claramente em que
estava me metendo, concordei em dirigir a
bandinha de percussão, ensinar canto e
conversação em inglês, três vezes por semana.
Pelo sistema chinês, aprende-se tudo de
cor. E todos os meses se fazem provas, bem
como ao fim do semestre e do ano. A criança
reprovada nos exames finais tinha que repetir
todo o ano escolar.
As aulas da bandinha e de canto não
apresentavam muita dificuldade para mim,
mesmo levando-se em conta que não
conversava muito com os alunos, mas, quanto
às aulas de conversação, meu fracasso foi
total.
Tentei vitalizar mais as aulas
dramatizando as histórias, mas eles não
corresponderam. Todas as vezes que tentava
fazer isso aconteciam verdadeiras guerras na
sala de aula. A liberdade que eu tentava
aplicar, em poucos minutos transformava-se
em anarquia.
Uma vez por semana, à noite, havia um
culto numa das salas de aula. E a Sr.* a Poon —
nome que, orgulhosamente, me deram em
chinês — tocava o harmónio.
A maioria das pessoas que vinham era
constituída de mulheres mais velhas, algumas
carregando crianças presas às costas. Vim a
descobrir depois que muitas delas, sendo
analfabetas, vinham à igreja para ter aula de
leitura. Começavam cantando entusiasti-
camente, em voz bem alta. Em seguida, a
instrutora bíblica expunha os ensinamentos em
cantonês. Nessa época, eu não entendia uma
palavra do que era dito, mas sentia que
participava do culto.
Na primeira noite em que lá estive, uma
mulher me captou a atenção, naquele grupo
de chineses. Era uma velha verdureira: tinha o
rosto muito sulcado de rugas, e apenas dois
dentes, que estavam sempre em evidência,
pois a mulher sorria constantemente. Ela se
aproximou de mim e puxou-me pela manga,
com veemência. Ficou falando e falando,
sorrindo e puxando a manga. Pedi a alguém
que interpretasse para mim o que ela estava
dizendo.
— Até a semana que vem! Até a semana
que vem!
Tive vontade de dizer a ela que não
poderia ir todas as semanas, pois morava
muito longe, e quando voltava para casa já era
muito tarde, e eu tinha que me levantar cedo
para dar aula. Mas senti que não conseguiria
explicar-lhe tudo isso. Ela só compreenderia
que eu estaria ali ou não estaria. Então resolvi
ir ao culto todos os dias, só por causa dela.
Aquela altura, eu já tinha um emprego
fixo: dava aulas numa escola primária, pela
manhã. Lecionei ali durante seis meses. Além
disso, auxiliava Tia Donnie na escolinha dela,
três vezes por semana, à tarde, tocava nos
cultos de domingo, e preparava programas
musicais em prol de várias instituições de
caridade. Isso tomava todo o meu tempo.
Na segunda vez que fui à Cidade Murada,
tive uma sensação maravilhosa: aquela
vibração interior que se tem no dia do
aniversário. E comecei a me indagar por que
me sentia tão feliz. E na outra vez que fui ali,
experimentei exatamente a mesma coisa. Isso
me parecia um pouco descabido, num lugar
tão revoltante como aquele. E, no entanto,
quase todas as vezes em que me encontrava
nesse reduto de marginalidade, nos doze anos
que se seguiram, sentia o mesmo gozo. Eu já
tivera um vislumbre dessa alegria no dia da
minha "confirmação", e depois quando
recebera a Jesus em minha vida — mas
experimentar o contentamento espiritual nesse
lugar profano?
— Aquele ali é viciado, disse-me Tia
Donnie certa manhã, quando nos dirigíamos
para a escola.
Nessa ocasião, eu ainda não sabia direito
o que significava ser viciado. Ele iria nos
agredir, roubar-nos o relógio ou ter um acesso?
Era um homem de aspecto patético, que, com
movimentos lentos, catava coisas num monte
de lixo. Estava examinando os detritos ali
deixados, um por um, para ver se havia algum
objeto que pudesse ser de valor para ele. Dava
a impressão de estar muito doente, o rosto
muito pálido, e parecia ter setenta anos e não
trinta e cinco. Usava uma camiseta de algodão
bastante suja e sandálias de plástico, já bem
gastas. A maioria dos chineses anda sempre
muito limpa, mas o Sr. Fung estava imundo.
Seus dentes eram pretos, quebrados. O cabelo
cortado rente indicava que acabara de sair da
prisão. Mas, para ele, a cadeia era apenas um
lugar para dormir e comer com mais
regularidade.
Mas, na verdade, cama e comida não era
o que importava para ele. Fung vivia para
"perseguir o dragão". Essa maneira chinesa de
tomar droga tem seu ritual próprio. O viciado
chega a um local de comércio de drogas, pega
um pedaço de folha de alumínio e coloca nela
alguns grãozinhos de heroína. Acende um
paviozinho feito de papel enrolado e coloca sob
o alumínio, a fim de aquecer a droga. A heroína
vai-se derretendo lentamente, transformando-
se numa espécie de melaço escuro e
fumegante. Ele coloca na boca a parte externa
de uma caixa de fósforo para servir de funil,
pelo qual ele irá inalando a fumaça. Em
seguida, põe-se a mover a folha de alumínio,
fazendo o filete de líquido grosso escorrer de
um lado para outro, acompanhando o
movimento da fumaça com a boca. Chamam a
isso "perseguir o dragão".
Pouco depois, fiquei sabendo que nem
todos os viciados tinham uma aparência como
a do Sr. Fung. Alguns deles estão sempre bem
vestidos. Para estes, o fato de se apresentarem
bem é uma evidência de que não se acham
escravizados ao dragão. Como passara a ir à
cidade com freqüência, vi o Sr. Fung muitas
vezes. Comecei a me indagar se não deveria
fazer alguma coisa por ele e por outros iguais a
ele.
A prostituição raramente era camuflada.
A primeira prostituta que vi ali chamou minha
atenção por estar usando batom e esmalte
num tom vermelho berrante. Ficava o dia
inteiro agachada na rua, uma rua tão estreita
que o rego do esgoto passava perto de seus
pés. Rua abaixo havia outras delas, sentadas
sobre caixas de laranjas e uma delas tinha até
uma cadeira. Na sua maioria também eram
viciadas em drogas. As marcas escuras no
dorso da mão revelavam que injetavam
heroína diretamente na veia. Eu passava ali
todos os dias e nunca saberia dizer quando
estavam acordadas ou dormindo. Estavam
sempre pendendo a cabeça, o branco dos
olhos amarelado pelo torpor da heroína.
Um dia tentei tocar na menorzinha.
Aprendera a "Jesus te ama", em chinês.
— Yeh sou ngoi nei, falei.
Mas ela se encolheu toda, fugindo ao
meu contato. Vendo a expressão de seu rosto,
compreendi subitamente que cometera um
erro. Ela colocara uma barreira entre nós, e eu
não sabia o que fazer para derrubá-la. A moça
estava fortemente constrangida, porque eu,
uma jovem "limpa", cometera um engano e
tocara nela, uma suja.
Fui percebendo aos poucos que as
mulheres mais velhas se engajavam na
obtenção de clientes. Quando os homens
saíam do cinema pornográfico, as mama-sans
quase os agarravam e puxavam para ali. As
vezes dava para ouvi-las dizer, empurrando-os
escada acima:
— Venha, ela é bem jovem, e é barato.
Naturalmente, as mocinhas não ficavam com o
dinheiro. A maioria das prostitutas era
controlada por quadrilhas, e os bordéis só
podiam funcionar com permissão da quadrilha,
que controlava a área em que se encontravam.
Havia duas mocinhas que eu via
ocasionalmente. Uma delas era aleijada e a
outra retardada. Ambas eram prisioneiras.
Nunca saíam a não ser acompanhadas por
uma mama-san. Eram visitadas por três
clientes a hora. Nessa época uma tinha treze e
a outra quatorze anos. Mais tarde, vim a saber,
através de um membro da quadrilha, como
essas moças eram iniciadas nesse tipo de vida.
Os rapazes organizavam uma festinha e
convidavam mocinhas. Durante a festa, as
jovens eram seduzidas. Se resistissem, eram
estrupadas. Via de regra, cada membro da
quadrilha pegava sua menina e ficava com ela
durante alguns dias. Depois que percebia que
ela já estava afeiçoada a ele e acostumada
com o sexo, ele a entregava a um bordel.
Outras mocinhas se prostituíam, porque
seus pais não tinham condições de sustentá-
las, e as vendiam para o comércio da
prostituição, onde permaneciam até se
tornarem mais adultas. Depois disso, muitas
dessas antigas meninas-prostituas fugiam de
seus donos e se lançavam na carreira, fazendo
a única coisa que sabiam. Algumas dessas
crianças iniciavam este tipo de vida com nove
anos de idade.
Comecei a planejar um modo de alcançar
essas moças, que estavam sempre tão bem
vigiadas. Afinal tive que desistir disso e
"arquivei" mentalmente o problema, mas tinha
esperanças de que um dia pudesse encontrar
um homem que se interessasse por esse
trabalho, e pudesse pagar a quantia necessária
para uma hora com elas, mas que, nesse
tempo, pregasse o evangelho para a jovem.
Talvez juntos, eu e ele, pudéssemos conceber
um plano de fuga para elas, se alguma
quisesse abandonar esse tipo de vida.
4
O Clubinho
Às vezes penso que a verdadeira razão
por que criei o clubinho foi Chan Wo Sai. Era
um rapazinho feioso, de quinze anos, e com
tantos problemas, quantos pode ter qualquer
outra pessoa. Conheci-o quando dava aulas de
inglês e canto na Escola Primária Oiwah, três
tardes por semana. Estava ensinando uma
musiquinha muito simples, sem arroubo
nenhum, e, no entanto, lá estava Chan Wo Sai
parecendo realmente empolgado com uma
cançãozinha infantil. Girava os olhos e estalava
os dedos. Depois levantou-se e pôs-se a
dançar pela sala, vindo em minha direção,
remexendo os quadris com um jeito bem
sensual. Mandei que voltasse para o lugar, e
passei a ensinar outra música. Após a aula,
procurei descobrir as origens dele.
Chan Wo Sai nascera ali mesmo, na
Cidade Murada. A mãe era prostituta e o pai,
um bêbedo. Viviam num pardieiro, numa casa
que havia desabado. Toda a família ocupava
um quartinho minúsculo. Na casa ao lado,
moravam algumas prostitutas. Desde que se
entendeu por gente, o garoto passou a
conviver com esses fatos; eram parte de seu
quotidiano. Seus horizontes eram limitados
pelo bordel ao lado, os antros de jogo um
pouco abaixo e os salões de ópio depois
desses. Na Cidade Murada não havia nada que
oferecesse a alguém uma atividade mais
construtiva.
Então procurei conhecê-lo e ajudá-lo a
melhorar de vida.
Isso seria um pouco difícil, já que eu não
falava uma só palavra de cantonês. E para
dificultar ainda mais as coisas, ele tinha uma
deficiência de fala que embaraçava ainda mais
nossa conversa. Nosso único ponto em comum
era uma espécie de tambor que eu havia dado
a ele. Consistia numa membrana de borracha
presa numa armação de madeira, na qual se
batia com baquetas; uma bateria surda. Ele
tinha que treinar naquilo, mas não tinha o
menor senso de ritmo. Mas ele se mostrava
muito satisfeito, pois era a primeira vez na
vida que alguém demonstrava algum interesse
por ele.
A medida que os dias iam passando,
percebi que estava constantemente pensando
nele, e isso me deixou um pouco alarmada.
Minha mentalidade inglesa me levava a crer
que qualquer amor por um rapaz tinha que ser
de natureza romântica, e, sendo eu crente, isso
teria que terminar em casamento. Mas,
naquele caso, obviamente, isso era impossível,
e até mesmo ridículo. Meu bom-senso dizia
que ele era um rapaz feioso, com uma
formação das piores possíveis. Mas eu
realmente o amava e orava por ele constan-
temente. Cheguei a um ponto em que estaria
disposta a dar minha vida por ele.
Algum tempo depois, vim a compreender
o que se passava comigo, e fiquei bastante
surpresa. Era como se Deus tivesse me
concedido um amor especial por ele, que eu
deveria demonstrar, embora não se tratasse
de um sentimento que devesse ou pudesse ser
retribuído. Era um amor que tinha por objetivo
o bem dele, e diferia bastante do amor que eu
sentira por outras pessoas, para o qual sempre
tinha desejado alguma forma de retribuição.
Dentre os vários grupos humanos
necessitados que pululavam a Cidade Murada,
o mais desatendido era o dos adolescentes. As
crianças menores, pelo menos, tinham a
chance de freqüentar uma escola primária.
Mas os adolescentes não tinham nada. Era
praticamente impossível estudar num ginásio.
E eles tinham de trabalhar nas indústrias de
plástico, onde ganhavam pouquíssimo.
Muitos rapazinhos, e até mocinhas, saíam
de casa e iam viver com outros jovens em
cômodos miseráveis. Pouco depois, não tendo
nenhuma atividade, caíam na senda do crime.
Muitas vezes, as quadrilhas é que lhes
ofereciam a única forma de ocupação possível.
Durante o verão de 1967, toda a China
fora convulsionada pelas atividades da Guarda
Vermelha. Aquela "epidemia" chegou também
a Hong Kong. Houve tumultos por toda a
colônia. Vim a descobrir, porém, que alguns
rapazes da Cidade Murada estavam sendo
pagos para participarem do tumulto. Percebi
então que poderia convencê-los a fazer um
piquenique. Então, num dia úmido de junho,
disse a Tia Donnie em tom bastante pomposo:
— Acho que Deus está querendo que eu
organize um clubinho para jovens.
Eu imaginava o trabalho sendo realizado
com o auxílio de uma equipe de obreiros
cristãos da ilha de Hong Kong, todos escolhidos
a dedo, que iriam avançar sobre a cidade com
um programa de ação mu.'to bem planejado,
enquanto eu ficava sentada, assistindo e
aplaudindo.
Meu plano era termos um salão que
abrisse todas as noites, e aos sábados e
domingos. Seria um lugar onde os rapazes
pudessem jogar tênis de mesa e engajar-se em
outras atividades saudáveis, mas igualmente
um lugar onde ouvissem falar de Jesus. Mas Tia
Donnie tinha uma atitude mais prática.
— Ótimo! Há anos estou orando por isso.
Quando pretende começar? A semana que
vem?
Começamos uma semana depois. Ainda
dava para contar nos dedos as palavras de
cantonês que eu sabia. Não contava com
minha equipe escolhida a dedo e não tínhamos
um local para nos reunirmos. Mas passamos a
usar uma sala da escola nos sábados à tarde. E
Gordon Siu; um jovem chinês que eu
conhecera na Orquestra Juvenil, veio em meu
auxílio como intérprete, tornando-se um esteio
para mim. Ele me ajudava a alugar ônibus,
acompanhava-nos nos piqueniques, ou ia
patinar conosco. Pouco depois, começaram as
férias, e, ao pensar que os rapazinhos
poderiam envolver-se mais nos tumultos de
rua, resolvi ampliar ainda mais nossas
atividades.
De reuniões apenas aos sábados,
passamos a ter um completo programa de
verão, com piqueniques, caminhadas a pé e
visitas às plantações do refloresta-mento. E
nos anos que se seguiram realizamos o mesmo
programa em julho e agosto.
Os primeiros a aparecer foram os
adolescentes de treze e quatorze anos, que
traziam também seus amigos de fora. Todos
sabiam que eu estava ali basicamente porque
era cristã, e que em toda a programação
sempre haveria uma pequena palestra no
início. Eles não gostavam muito de ouvir falar
de Jesus. Nem ao menos sabiam direito quem
ele era. Alguns jovens me disseram que não
poderiam ir ao clubinho.
— Nós bebemos e fumamos, vamos ao
cinema e jogamos, e sabemos que os crentes
não fazem essas coisas.
Pouco depois, Chan Wo Sai largou a
escola. Estando com quinze anos, era um dos
mais velhos alunos do quarto ano. Achava-se
com quatro anos de atraso, pelo menos, em
seus estudos. Ele resolvera não concluir o ano.
Fora aberto um novo cinema, e ele conseguira
um emprego de vender ingressos.
Para a inexperiente professora inglesa,
largar a escola primária era uma coisa terrível.
Durante todo o período das férias, tentei
persuadir o garoto a voltar. Por fim, ele
resolveu ir conversar com os professores, mas
eles se recusaram a recebê-lo.
— Olha, Jackie, disse um deles, ficamos
muito satisfeitos quando ele decidiu sair,
porque não conseguíamos controlá-lo mais.
Pois que vá!
E era uma escola missionária! Os
professores eram crentes, e eu imagina que,
quando se reuniam para orar, intercediam por
alunos difíceis e problemáticos como Chan Wo
Sai.
Mas a verdade era que a maioria deles
mal havia completado o segundo grau. Diziam-
se cristãos apenas para conseguirem o
emprego, e eram incapazes de controlar
quaisquer alunos, a não ser que fossem
bastante dóceis.
A única alternativa que restava a Sai era
fazer um curso profissionalizante, onde
pudesse aprender algum ofício. Viemos a
descobrir, porém, que ele não se qualificava
para nenhum deles, ou porque já passara da
idade, ou porque não tinha terminado o
primário, ou porque não falava inglês. Todas as
portas se fechavam para Chan Wo Sai, embora
ele tivesse apenas quinze anos.
O que iria suceder-lhe? Parara de estudar
e, ao que parecia, a única perspectiva de vida
para ele era vender ingressos no cinema. Não
havia nada mais que eu pudesse fazer por ele,
a não ser manter o clubinho em atividade.
Vários dos seus amigos que paravam de
estudar iam para as quadrilhas. Sentiam que
ali tinham uma função na vida. Tinham sua
posição certa e eram tratados como uma
pessoa importante. Encontravam ali até um
pouco de carinho e afeto, consideração e
amizade, o que não achavam em nenhuma
outra parte. Tanto na igreja como na escola, o
sucesso nas provas era sinônimo de valor e
integridade. Mas nem nas quadrilhas nem em
meu clubinho, eles escutavam palavras de
condenação ou rejeição pelo fracasso.
O nosso Clubinho Jovem era realmente
bem diverso de tudo o mais que havia na
Cidade Murada. Ninguém obtinha lucros com
ele; não era controlado por chefes de
quadrilhas. Tivemos de mudar várias vezes,
mas era sempre o mesmo. Um salão com
alguns joguinhos tais como mesa de pingue-
pongue e alvo para dardos, alguns bancos
toscos e uma estante com alguns livros
evangélicos".
Outro rapaz que vim a conhecer bem
naquela época foi Nicholas. Tanto o pai como a
mãe já tinham sido processados por venda de
drogas, e a família toda vivia numa das piores
casas que já vi. As duas filhas mais velhas
eram prostitutas. E todos moravam em apenas
um cômodo pequeno e malcheiroso.
Os membros da igreja não gostavam de
Nicholas, pois ele, do mesmo modo que Chan
Wo Sai, exercia uma influência negativa sobre
os outros alunos da escola. Naturalmente eles
sabiam que suas irmãs eram meretrizes e o pai
viciado em ópio. Na opinião deles, o fato de eu
receber Nicholas em nosso clubinho implicava
em descrédito para o bom nome da igreja
cristã. Eu não devia nem ser vista em
companhia dele.
Eu sabia que o rapaz tinha má conduta e
estava sempre dando trabalho. Mas eu o
amava, embora isso fosse absurdo. Jesus viera
ao mundo por causa de pessoas iguais a ele, o
que também não fazia muito sentido.
Resolvi então fazer-me amiga dele e
visitá-lo seguidamente. Interessava-me
bastante por ele. Encontrava-o nos antros de
droga, e, quando era preso, acompanhava-o à
delegacia, e ali orava por ele. Mas nada disso o
tocava para que se modificasse.
Vim a compreender depois que naquele
lugar de tamanhas trevas não havia a noção
do conceito de retidão. O crime, a mentira e a
corrupção eram coisas certas, desde que
dessem lucro. Mas as pessoas que assim
pensavam assumiam uma atitude de moralida-
de em minha presença. E achavam que tal
atitude era correta, já que eu era
representante da Igreja, do Sistema.
— Nicholas é um menino terrível, dizia a
mãe, repreendendo-o bem na minha frente, e
depois se lamentava: não sei por que meus
filhos são todos uns perdidos.
E ela era uma pessoa que preparava os
saquinhos de heroína para vender aos
viciados.
Tempos depois, uma das meninas mais
novas, Annie, também se tornou prostituta.
Mas, afinal, acabou fazendo um bom
casamento. O noivo era for-gei, mas também
trabalhava para a polícia, fazendo a
arrecadação do dinheiro do suborno. Annie
ficou muito feliz de se casar com ele, pois o
rapaz tinha seu próprio carro. E sua mãe
também ficou encantada.
Certo dia, quando eu caminhava pela rua,
um velho correu ao meu encontro. Tinha o
rosto esquelético dos viciados em ópio, e
estava furioso.
— Poon Siu Jeh, você tem que reclamar
na polícia. Era proprietário de um salão de
consumo de ópio, um homem muito
importante na Cidade Murada.
— E por que eu deveria reclamar?
indaguei.
— Por que fecharam todas as salas de
ópio, disse ele muito encolerizado.
— Mas estou muito satisfeita de saber
que fecharam as salas de ópio, respondi. Por
que deseja que eu reclame?
— Porque deixaram as de heroína
funcionando, e pagamos a eles a mesma
quantia que os outros. Isso não é justo.
Não se tratava do que era certo e errado,
mas justo e injusto.
Joseph foi um dos primeiros presidentes
do clubinho. Não tinha nenhuma ligação clara
com o crime organizado, como Nicholas e Chan
Wo Sai. Quando ele estava com seis anos, seu
pai casou-se de novo; e como a madrasta não
gostasse dos enteados, não lhes dava o que
comer. Então Joseph e sua irmã Jenny tiveram
que sair mendigando. Mas um pastor de Novos
Territórios os apanhou e enviou para a escola
da Tia Donnie. Depois de terminar o curso
primário, Joseph arranjou um quarto para
morar e pôs-se a trabalhar em serviços
pesados, sempre que conseguia algum. Pouco
depois, sua irmã foi morar com ele.
Depois, tipos como Nicholas começaram
a freqüentar seu cômodo, passando a noite ali,
e seu quartinho se tornou uma "incubadeira"
de quadrilheiros. Passei a visitá-los com
regularidade. A irmã também estava correndo
perigo moral. Aos quinze anos era muito
bonita, e estava-se deliciando com a liberdade
que tinha. Podia conversar à vontade com os
amigos do irmão. Senti que, se continuasse
morando com ele, ela iria fatalmente acabar
tomando o caminho inevitável. Não poderia
abrigar a ambos em minha casa, já que havia
outra moça da Cidade Murada, Rachel,
morando comigo. Mas achei que Jenny poderia
vir. Convenci-a a sair de lá para ficar conosco.
Arranjei uma escola secundária para ela, mas o
desejo da moça era voltar para a Cidade
Murada, e durante o período em que esteve
conosco, causou-nos muitos problemas.
Outro rapaz que freqüentava
assiduamente o clubinho era Christopher, que
morava num casebre. Para se chegar lá,
descia-se por uma ruela escura, onde não
penetrava a luz solar. Em determinado ponto,
havia alguns galinheiros feitos de engradado
de refrigerantes. Era ali. Subia-se uma
escadinha de madeira, e estava-se na casa
dele. A porta era aberta de baixo para cima,
como um alçapão. Era apenas um cômodo.
Uma cortina servia de tapume para o canto
onde a família dormia. Nele havia apenas dois
beliches e todos dormiam naquelas duas
camas, os pais e seis filhos.
O resto do aposento estava ocupado por
imensas pilhas de artefatos de plástico, com os
quais a mãe dele trabalhava, ganhando mais
ou menos um dólar por dia. Todos os filhos
tinham que ajudá-la. A filha mais nova nem
chegara a terminar a escola. Aos treze anos
fora trabalhar numa fábrica de artigos de
plástico. E todo o dinheiro que ganhava tinha
que ser entregue à mãe. E depois que chegava
do serviço, tinha que trabalhar mais, pregando
lantejoulas em roupas. Quando fazia uma blusa
de frio, por exemplo, ganhava mais três
dólares, que, naturalmente, seriam de sua
mãe.
Assim Christopher começou a trabalhar, e
seu dinheiro também era entregue à mãe. Era
uma tradição dos chineses, uma lei não
escrita: os filhos tinham que pagar aos pais
pelo sustento deles recebido. A ambição dos
pais era aposentarem-se e serem sustentados
pelos filhos. Os jovens chineses não tinham
nenhuma satisfação ao receberem seu
pagamento, pois nunca ficavam com ele. Os
pais retinham tudo. A mãe de Christopher foi
assim ajuntando dinheiro e, mais tarde,
comprou um apartamento para si, fora da
Cidade Murada.
Muitos casais chineses têm família
numerosa por razões econômicas: para que
fiquem ricos ao envelhecer. Tive a impressão
de que a afeição familiar não se baseava em
um amor mútuo, mas, sim, em interesses
econômicos.
Ah Lin, a irmã mais nova de Christopher,
afinal se rebelou contra aquela exploração.
Conheceu em sua fábrica um rapaz que
gostava dela, mas a mãe proibiu o namoro.
Também não permitia que ela freqüentasse o
clubinho, pois as atividades dele eram, em sua
maior parte, recreativas. O divertimento, pura
e simplesmente, não deveria existir para ela. A
menina tinha que ficar em casa, e olhar os
irmãozinhos, ou então montar as peças dos
objetos de plástico, ou buscar água.
Finalmente, a garota, com quatorze anos, fugiu
de casa e foi morar com o rapaz. A mãe
conseguiu pegá-la de volta e trancou-a em
casa. O que ela fizera significava não apenas
vergonha para a família, mas também um
rombo nas finanças dela. Sendo as meninas
tratadas assim, como se fossem bens parti-
culares, não é de se estranhar que caíssem na
prostituição para se libertarem.
Minha tarefa era fazer o povo da Cidade
Murada entender quem fora Cristo. Se não
conseguiam compreender as palavras que
pregávamos sobre Jesus, então nós, os crentes,
tínhamos que demonstrar na prática quem ele
era, pelos nossos atos e conduta. Então iniciei
o que eu chamava de "andar a segunda
milha". Parecia que havia muitos cristãos que
não se importavam de andar a primeira milha;
muitos que não se dariam ao trabalho de
andar duas e nenhum que quisesse andar três.
Aquele povo ali precisava que se andasse com
eles uma maratona.
Fui-me envolvendo cada vez mais com os
rapazes, seus familiares e seus problemas.
Implicava em viver diante deles de maneira
prática, para que vissem quem Jesus era, e o
conhecessem. Um exemplo desse tipo de
conduta foi o que se deu, quando um dos
rapazes me pediu que ajudasse sua irmã a
conseguir matrícula numa escola secundária. O
processo normal era ficar na fila um dia inteiro,
apenas para pegar um formulário para fazer o
exame de admissão.
Aquela família esperava que eu
simplesmente fosse à diretora e lhe dissesse:
— Olhe, eu sou fulana de tal, conheço o
Dr. Sicrano. Será que poderiam admitir aqui
essa menina?
Mas não fiz isso. Entrei na fila, como todo
mundo, e eles ficaram muito espantados, pois
quando haviam pedido meu auxílio, não era
isso que tinham em mente.
Eu só podia dar esse tipo de ajuda
durante as férias, pois estava dando aulas de
música em tempo integral no Colégio Anglo-
Chinês para meninas. Mas durante muito
tempo, muitas pessoas se agregaram a mim
simplesmente pensando que, se ficassem em
meu grupo, talvez conseguissem um
certificado de batismo ou um documento
qualquer que lhes possibilitasse emigrar para
os Estados Unidos. Eram os "crentes da sopa".
Tratavam-me como haviam tratado outros
missionários, crendo que eu fosse uma presa
fácil. Estavam constantemente pedindo
dinheiro emprestado. E não acreditavam,
quando eu lhes dizia que não o tinha. Os
diálogos eram quase sempre mais ou menos
assim:
— Poon Siu Jeh, estou sem emprego e
meu dinheiro acabou.
— Mas eu não tenho dinheiro.
— Ah, mas você deve ter sim. Você é
muito rica.
— Não; não tenho dinheiro nenhum.
— Tem, sim. Você tem uma igreja na
América que a sustenta.
— Não, não tenho igreja. E eu vim da
Inglaterra. Mas não sou sustentada por igreja
nenhuma.
— Ah, qualquer dia desses você pega um
jato e volta para sua terra.
— Não; não existe a menor probabilidade
de isso acontecer, pois não tenho dinheiro para
a passagem, respondia eu com toda a
sinceridade.
— Então seus pais lhe mandam dinheiro.
— Meus pais também não têm muito
dinheiro, replicava.
Aquela altura, Ah Ping entrava na
conversa. Ele pensava um pouco mais que os
outros, e seus comentários eram sempre mais
precisos.
— É, talvez você não tenha dinheiro
mesmo, mas sempre pode ir embora, se
quiser. Nós não podemos. Não temos para
onde ir. Mas vocês, os ocidentais, podem pegar
o avião e ir embora, e depois se esquecem
completamente de nós.
— Não, Ah Ping. Não estou pensando em
ir embora e esquecer vocês.
Mas Ah Ping sabia falar, quando se
entusiasmava. E hoje ele iria dizer uma coisa
que todos eles pensavam.
— Vocês, os ocidentais, continuou ele,
vêm aqui e falam de Jesus para nós. Ficam
aqui um ou dois anos, para aplacarem a
consciência, e depois vão embora. Esse Jesus
chama vocês de volta para fazer outro
trabalho, na sua pátria. É verdade que lá
muitos conseguem angariar bastante dinheiro
para nós, povos mais carentes. Mas continuam
bem, morando em belas casas, com geladeiras
e empregados, enquanto nós continuamos
vivendo aqui. Mais cedo ou mais tarde, você
também irá embora.
Era um forte libelo contra aqueles
evangelistas que chegavam a Hong Kong,
cantavam lindos hinos sobre Jesus e depois
pegavam o avião e iam embora.
— ótimo, dizia Ah Ping, ótimo para eles e
para nós também. Teríamos muito prazer em
crer em Jesus, se também pudéssemos pegar
um avião e viajar pelo mundo todo, como eles.
É muito fácil para eles cantar hinos que falam
de amor, mas o que sabem a nosso respeito?
Nada; não sabem nada. E não nos conquistam
tampouco.
Houve ocasiões em que tentei conversar
com os guardas das salas de jogo, mas quando
mencionava que Jesus os amava, eles
acenavam a cabeça afirmativamente.
— Ótimo! Muito bom! diziam. Mas isso
não significa nada para nós.
E não significava mesmo, pois a maioria
nem tinha idéia de quem era Jesus, e do que
fosse amor. E eu continuei a pregar, dizendo
que Jesus poderia dar-lhes uma nova vida, mas
não pareciam entender nada.
5
Luz nas Trevas
Jesus não apenas afirmou que era Deus,
ele demonstrou isso. Fez os cegos recobrarem
a visão, os surdos, a audição, e os mortos
voltarem à vida. Alguns cristãos diziam que
estas coisas ainda aconteciam em nossos dias,
mas eu não as estava vendo.
Meus amigos missionários não podiam
auxiliar-me muito nessa questão. Muitos deles
tinham vivido sempre na China e se sentiam
meio desarvorados. Alguns ainda tinham
certos ranços culturais, e começaram a
influenciar-me a tal ponto, que passei a me
preocupar com detalhes tais como se devia
usar vestidos sem mangas ou se devia ir nadar
aos domingos. Eu não pertencia a nenhuma
missão, e, na verdade, estava bem livre de
imposições. Contudo, estava me sentindo
tolhida, infrutífera.
Certo dia fui tocar harmónio na Capela.
Lá conheci um casal chinês que iria dirigir o
culto, e percebi neles uma vitalidade e um
poder que eu desconhecia. Imediatamente,
tive vontade de saber por que eram tão
diferentes. Não falavam inglês muito bem, e eu
mal falava chinês.
— Você não possui o Espírito Santo,
disseram.
Ligeiramente indignada repliquei que o
tinha sim.
"É lógico que possuo o Espírito", pensei
comigo mesma. "Se não o tivesse não poderia
crer em Jesus."
Mas estava claro que aquele casal tinha
algo que eu não tinha, e eu o reconhecera,
apesar de não ter entendido bem a
mensagem. Eles denominavam-no possuir o
Espírito Santo, ao passo que eu preferia outra
expressão. Mas, se Deus tinha outra bênção
para mim, gostaria de recebê-la, e deixaria
para depois a nomenclatura teológica. Então
combinei visita-los em seu apartamento no dia
seguinte.
O apartamento deles, como milhares de
outros da cidade, tinha apenas um cômodo.
Havia ali uma mesa sobre a qual se viam um
prato com laranjas e outro com pedaços de
flanela molhada. As laranjas eram usadas
tradicionalmente pelos chineses para qualquer
comemoração, e os pedaços de flanela eram
para quando eu chorasse.
Senti meu coração pulsar com força, pois
não sabia exatamente o que iria acontecer ali.
Então me sentei, e eles impuseram as mãos
sobre minha cabeça e começaram a falar
repetidamente:
— Agora comece a falar, agora comece a
falar, agora comece a falar...
Mas não aconteceu nada. No grupo de
West Croydon havia algumas pessoas que
falavam línguas estranhas, mas ninguém
gostava de conversar muito sobre esse dom.
Parecia-me maravilhoso ter uma nova língua
na qual pudesse expressar a Deus todos os
pensamentos, mas fechei a boca firmemente.
Se Deus quisesse dar-me o dom, ele teria que
fazê-lo, e não eu.
Contudo, estava-me sentindo cada vez
mais envergonhada, além de um grande
desconforto e muito calor. Eles iriam ficar
muito desapontados, se nada acontecesse.
Afinal, não consegui me conter mais, e abri a
boca para dizer: "Ajudem-me!" Foi aí que
começou. Logo que fiz aquele esforço
consciente para abrir a boca, percebi que
estava falando fluentemente uma língua que
nunca aprendera. Era uma língua muito bela,
bem articulada, suave e coerente. Não tive a
menor dúvida de que tinha recebido o sinal.
Mas não me sobreveio nenhuma alegria
esfuziante. Foi totalmente desprovido de
emoção.
O casal chinês ficou encantado ao ver
que eu falara em línguas, embora um pouco
surpreso de não me ver chorar. Mas eles
choraram um pouquinho. Ainda me sentia um
pouco constrangida, e saí assim que pude.
Quando estava à porta, disseram-me:
— Agora você pode esperar que os outros
dons do Espírito vão aparecer também.
Mas não entendi bem o que quiseram
dizer. Na semana seguinte, todos os dias,
ficava esperando que o dom de cura ou o de
profecia surgissem de repente. Eram os dois
únicos dons do Espírito de que eu ouvira falar.
Eu não tinha dúvida nenhuma acerca da
validade e do uso deles, mas não sabia quando
uma pessoa reconhecia que os possuía.
Outra coisa que me intrigava um pouco
era o fato de não estar dominada pela emoção.
Lera livros que haviam-me deixado com a
impressão de que aquela experiência iria fazer-
me andar nas nuvens. Procurei, então, alguém
em Hong Kong que pudesse dar-me umas
explicações sobre isso, mas não encontrei nin-
guém. Alguns amigos missionários me
disseram, em tom sombrio:
— Na China, aconteceu uma coisa muito
perigosa que ocasionou divisão nas igrejas.
Os missionários pentecostais informaram-
me que haviam feito um acordo com os demais
evangélicos de não conversarem com outros
sobre os assuntos em que divergissem, falando
só sobre Jesus. Mas o ensino sobre os dons
estava na Bíblia, tinha vindo de Deus, como
isso poderia ser perigoso?
Com o passar dos meses, comecei a pôr
de lado a questão toda. A experiência não
havia mudado em nada a minha vida
espiritual. Ainda continuava rondando a Cidade
Murada, todas as noites ia a um culto
qualquer, procurava ajudar as pessoas, mas
parecia que não estava conseguindo nada.
Senti como se tivesse sido enganada.
"Quem eles pensam que são?" indaguei
comigo mesma, na primeira vez que ouvi falar
do casal Willans. Era um casal americano, a
filha Suzanne e uma amiga, Gail Castle, que
acabara de chegar a
Hong Kong. Eles iam realizar reuniões de
oração. "Hong Kong não precisa de mais
reuniões de oração. Eu mesma tenho reuniões
todos os dias. Eles deveriam, primeiramente,
conhecer a situação da igreja aqui."
Já haviam-se passado dois anos desde
que eu chegara da Inglaterra, e um ano que eu
supunha haver recebido "o dom do Espírito".
Sentia-me uma autoridade na questão de
reuniões de oração da Colônia. Mas uma amiga
minha, Clare Harding, insistiu em que eu fosse,
dizendo que seria uma reunião carismática.
— Está bem, vou freqüentar durante
algum tempo, respondi.
E foi então que fiquei conhecendo Rick e
Jean Stone Willans.
— Você tem o dom de línguas, Jackie?
indagou Jean. Ora em línguas?
— Para dizer a verdade não o faço. Não
vejo nele muita utilidade. Não me ajudava em
nada; então parei de orar.
— Mas isso é um grande erro, disse ela.
Não se trata de um dom de emoção, para
satisfação própria, é um dom do Espírito. A
Bíblia ensina que aquele que ora em línguas é
edificado espiritualmente. Portanto, não se
importe muito com o que sente, exercite-o.
E assim ela e Rick me fizeram prometer
que iria orar em minha língua celestial todos os
dias. E em seguida, para meu espanto,
sugeriram que orássemos juntos em línguas.
Eu não estava muito certa se isso era correto,
pois a Bíblia ensina que as pessoas não podem
falar línguas em voz alta, todas ao .mesmo
tempo. Explicaram que Paulo se referia a um
culto público, onde um estranho poderia entrar
e pensar que estavam todos loucos. Mas nós
três ali não iríamos escandalizar ninguém.
Iríamos simplesmente orar a Deus numa língua
que ele nos concedera.
Não houve jeito de escapar, e então nos
pusemos a orar. Senti-me meio ridícula,
dizendo coisas que não entendia. Mas, em
dado momento, eles pararam de orar e eu fui
impelida a continuar. Faria qualquer coisa para
não estar ali, orando em voz alta, em língua
estranha, diante daqueles americanos. Mas
quando pensei que estava para morrer de
vergonha, Deus me falou:
— Você não quer ser ridícula por amor a
mim? Entreguei os pontos.
— Está bem, Senhor, isso não faz muito
sentido para mim, mas como foste tu quem
inventaste esse dom, ele deve ser bom.
Quando acabamos de orar, Jean falou que
Deus lhe havia dado a interpretação do que eu
dissera. Meu coração estivera clamando pelo
Senhor, como se estivesse nas profundezas de
um vale, e ele no pico das montanhas. Eu lhe
dirigira palavras de adoração e suplicara que
ele me usasse.
Tomei a decisão de nunca mais desprezar
o dom, se Deus me ajudasse a orar daquela
maneira todas as vezes em que o exercitasse.
Aceitei o fato de que ele estava-me ajudando a
aperfeiçoar minha comunhão e súplica.
E, dali por diante, passei a orar todos os
dias na linguagem do Espírito. Antes de fazê-lo,
porém, eu dizia:
— Senhor, não sei orar e nem por quem
devo interceder. Peço-te que ores por meu
intermédio, e me conduzas às pessoas que te
desejam.
Mais ou menos um mês e meio depois,
comecei a notar que acontecia um fato
maravilhoso. As pessoas com quem eu falava
de Cristo, criam nele. A princípio, não entendi
direito, e pensei que tinha descoberto, por
acaso, uma nova e excelente técnica de evan-
gelização. Mas, na verdade, eu dizia as
mesmas coisas que antes. Depois compreendi
o que havia acontecido. Eu estava falando de
Jesus a pessoas que realmente desejavam
ouvir. Deixara que Deus participasse de
minhas orações e isso tivera um resultado
direto em meu trabalho. Eu estava pedindo a
Deus que realizasse sua vontade por meu
intermédio, quando orava na língua que ele me
dera.
E não poderia orgulhar-me de nada. Só
poderia maravilhar-me de ver como Deus
permitia que eu tivesse uma pequena
participação em sua obra. E aí veio a emoção.
Ela veio, quando vi os resultados dessas
orações.
Passei a conhecer melhor os Willans, e
eles se me tornaram ótimos amigos e
conselheiros. Experimentei mais uma vez a
gloriosa liberdade de viver, que possuímos em
Cristo Jesus. Ao me converter, eu aceitara o
fato de que Jesus havia morrido por mim, mas
a partir de então eu começava a ver os
milagres que ele estava operando no mundo
hoje.

6
As Quadrilhas
— Hai bin do ah? De onde você é?
Aterrorizado, o rapazinho fitou os quatro
membros da famigerada quadrilha 14K que
avançavam para ele ameaçadoramente. Em
gíria da quadrilha, estavam indagando a qual
daqueles grupos ele pertencia. Mas o rapaz
não conseguia responder, tremia demais.
— M'gong? Não quer falar, hein?
Ah Ping, o porta-voz da turma,
aproximou-se mais até ficar a um passo dele.
Não havia meio de escape. O rapaz estava
encurralado num dos becos da Cidade Murada.
Eles o atormentavam, ironizando seu medo,
avançando lentamente, como que deliciando-
se sadicamente com o pavor que lhe
inspiravam.
O primeiro soco veio com grande rapidez,
e atingiu-o nas costelas — o treinamento que
os chineses têm no kung-fu produz grande
flexibilidade e economia de movimentos, que
torna o soco preciso e mortal. O menino caiu, e
logo recebeu mais pancadas no estômago,
peito e virilha. Ele gemia, e se contorcia, mas
não disse nada. Então os outros foram
empurrando-o rua abaixo, chutando-o,
enquanto ele seguia aos tropeções, e depois se
afastou manquejando. Ficou então sabendo o
que acontecia, quando alguém entrava em
território inimigo, sem a devida proteção.
Aquilo dava enorme satisfação aos
membros das quadrilhas. Eles estavam no
controle de tudo que se passava ali em seu
território. Foi aí que fiquei sabendo que o salão
que eu alugara situava-se bem no meio da
área controlada pela 14K, pois acabava de
presenciar aquela cena repulsiva.
— Por que fizeram isso? indaguei. O que
aquele rapazinho fez a vocês?
Ah Ping deu de ombros.
— Talvez nada, respondeu anuindo. Mas
ele não se identificou, então tínhamos que dar-
lhe uma lição. Provavelmente é dos nossos
inimigos, o Ging Yu, e temos que mostrar a
eles quem é que manda aqui.
Nos seus primórdios, a Sociedade Tríade
era uma agremiação secreta chinesa, cujos
membros faziam o juramento de derrubar o
governo dos opressores estrangeiros, e
restaurar ao poder a casa governante da
China, a Dinastia Ming.
Nos dias atuais, a antiga Sociedade
Tríade encontra-se degenerada, tendo-se
subdividido em centenas de pequenos grupos,
todos alegando ser um prolongamento da
tradicional Sociedade Tríade. Na verdade, não
passam de quadrilhas de marginais, que
utilizam esse nome e os rituais da antiga
sociedade apenas para camuflar suas
atividades criminosas. No passado, o indivíduo
que quisesse filiar-se a uma das sociedades
tríades tinha que submeter-se a uma série de
rituais. Entre eles contavam-se decorar
poesias, aprender certas formas de aperto de
mão e assinaturas, e beber sangue, bem como
derramar sangue. Quando um homem entrava
para uma delas, tinha que jurar que iria seguir
seu "irmão" para sempre. Este era conhecido
como daih lo, irmão maior; e o iniciante era o
sai lo, irmão menor. E esse laço era
indissolúvel. Um candidato a membro da
Sociedade Tríade poderia pedir a um membro
efetivo dela que o deixasse "segui-lo", e assim
este se tornava seu irmão maior. Cada
quadrilha possuía uma complicada hierarquia
de deveres e posições de liderança. Alguns dos
chefes eram identificados por nomes
estranhos, e outras vezes apenas por números,
tais como 489, 438, 26 e 415. Os membros
comuns eram chamados penas de 49.
As quadrilhas espalhavam terror por toda
a Hong íong, o que facilitava a extorsão de
pagamento por proteção. A Cidade Murada era
sede perfeita para as quadrilhas. Ali operavam
dois grupos principais, geograficamente
separados por determinada rua. O Jing Yu tinha
o controle de todas as salas de venda consumo
de heroína. Também recebia o pagamento por
proteção, e explorava a prostituição no setor a
este da Rua Principal. Mas os quadrilheiros
mais temidos eram os da 14K. Esse nome
deriva do fato de ela haver sido organizada na
Rua Wah, n.° 14, em Tantão, com o objetivo de
ajudar a causa da China Nacionalista. Dizia-se
que ela contava com cem mil membros em
todo o mundo, e mais sessenta mil só em iong
Kong, e que controlava o comércio do ópio, os
antros de jogatina, filmes pornográficos,
bordéis de crianças e outros negócios, no setor
oeste da cidade.
Seu comando era descentralizado, e a
quadrilha dele cada área tinha seu próprio
dirigente, que cuidava los interesses dela no
local. Mas todos conheciam os chefes
principais, e os membros das quadrilhas-irmãs
eram chamadas de "primos". Assim, em
questão de minutos, um grupo tríade poderia
chamar a si dezenas de "irmãos", e, caso
necessário, podia organizar ama briga em
poucas horas, envolvendo centenas de
quadrilheiros.
Enquanto as pessoas não ligadas às
tríades andaram pela cidade "rezando" para
não serem detidas, até mesmo os que
pertenciam a Ging Yu ou 14K, quando saíam
dela, só caminhavam em seu próprio território.
Eu, porém, andava por todas as ruas indis-
tintamente, chegando a conhecer o lugar
melhor que os próprios marginais, que se
achavam restritos a apenas um lado da cidade.
Os quadrilheiros que conheci observavam
aquela velha máxima de que existe honra até
mesmo entre ladrões. Em troca de uma
obediência irrestrita por parte do seu sai lo, o
daih lo lhe prometia proteção. Se um irmão
menor fosse preso, o seu irmão maior tinha
que tomar providências, para que na prisão ele
recebesse comida, drogas e proteção, embora
fizessem restrições ao uso de drogas, já que
sua ausência diminuía sua utilidade para a
quadrilha. E foi minha preocupação pelos
viciados que mais tarde me aproximou de
alguns líderes tríades, levando-me a tomar chá
com eles.
Não fiquei espantada ao saber que
Christopher iria ser iniciado numa 14K. Como
poderia andar por ali, se não pertencesse a
uma quadrilha?
Ele freqüentara o clubinho com certa
assiduidade, mas, depois de certo tempo
passou a me evitar. Todas as vezes que
tentava aproximar-me dele, desaparecia.
Começou a jogar e estava sempre em compa-
nhia de marginais. Contudo, não queria que eu
visse o que estava fazendo. Chegou o dia em
que o apanhei. Encontramo-nos frente a frente,
num beco muito estreito, e ele não poderia dar
para trás. Estava encurralado. Eu carregava
meu pesado acordeon e pedi-lhe que
carregasse o instrumento para mim, à oficina
de consertos. E enquanto caminhávamos, eu ia
conversando com ele.
— Christopher, em sua opinião, por que
Jesus veio ao mundo?
Ele não respondeu.
— Foi por causa dos ricos ou por causa
dos pobres? continuei.
— Por causa dos pobres, disse.
— Mas ele ama os bons ou os maus?
indaguei.
— Jesus ama os bons, Sr.ta Poon.
— Errado. Sabe de uma coisa? Se Jesus
vivesse no mundo hoje, estaria aqui na Cidade
Murada, sentado naqueles engradados de
laranjas, conversando com as prostitutas e
cáftens, bem lá na lama.
Não é correto dizer a um chinês que ele
está errado, mas eu estava ansiosa para que
ele compreendesse o que eu queria comunicar-
lhe. Não era hora de me importar com
convenções.
— Era nas ruas que ele passava grande
parte do tempo, conversando com criminosos
conhecidos, e ia numa igreja arrumadinha e
limpa, esperando que os bonzinhos fossem lá.
— E por que ele fez isto? perguntou
incrédulo.
— Porque foi para isso que veio, respondi
lentamente. Não foi para salvar os bonzinhos,
mas para salvar os maus, os perdidos.
De repente Christopher parou. Estava
pasmado com o que ouvira. Aquela altura,
tínhamos saído da idade Murada e passávamos
pela rua do mercado, ele disse que queria
ouvir mais, e então deixamos o acordeon na
oficina ali perto e nos sentamos num banco
público. Narrei-lhe a história de Naamã, o
general que fora atacado de lepra, e concluí:
— É muito simples. A única coisa a fazer
é buscar Jesus e ser purificado.
Os veículos passavam por nós aos
roncos; o povo conversava em altos brados,
como se faz em Hong Kong. Um avião desceu
para aterrissar. Mas hristopher não estava
escutando nada. Tinha os olhos fechados e
falava baixinho. Estava confessando a Jesus
que falhara em sua vida, e lhe pedia que o
purificasse. E sentado ali à beira da rua
poeirenta e barulhenta, ele se tornou crente.
No sábado seguinte, ele apareceu no
clubinho e stemunhou diante dos outros,
dizendo que na semana anterior não cria em
Jesus, mas agora o conhecia, na palavra foi
acolhida, a princípio, com silêncio. Ias logo
começaram as chacotas e risos. Rapazes de
família ruim simplesmente não se tornavam
crentes, isso era para moços bons, educados,
classe média. Ele devia estar brincando.
Mas não estava. E recusou-se a continuar
com sua iniciação na quadrilha. Já estava com
o livro de regulamentos que deveria
memorizar, mas devolveu-. Uma coisa dessas
nunca acontecera antes, no meio aquela
gente. E sua decisão foi uma revelação para
mim também. Jesus estava em Hong Kong
também, tanto quanto estava na Inglaterra; e
aqueles que o buscassem poderiam encontrá-
lo.
A transformação que se operou em
Christopher foi notável. Passou a trabalhar tão
bem na fábrica, que foi promovido. Passava
todo o tempo livre no clubinho, e aos domingos
ia aos cultos na igreja.
Continuei a orar em Espírito em minha
devoção particular, e outros rapazes como
Christopher também fizeram a decisão de
converter-se a Cristo. Reuníamos para estudar
a Bíblia e orar, muitas vezes, e um dia, quando
estávamos orando, um deles recebeu uma
mensagem em línguas.
Esperamos uns instantes, e daí a pouco
Christopher começou a dar a interpretação, em
cântico.

"O Deus, que me salvas das trevas,


Dá-me força e poder Para que eu viva no
Espírito Santo,
Lute contra o diabo com a Bíblia,
Fale aos pecadores desse mundo
E os leve a pertencer a Cristo."
Bobby, um outro rapaz, também recebeu
a mesma interpretação.
Embora nosso grupinho estivesse
crescendo, nem todos os rapazes que
freqüentavam o clube sabiam ao certo por que
eu estava ali. Muitos vinham apenas por causa
das vantagens que obteriam. Fazíamos
piqueniques aos sábados ou acampávamos, e
eles não tinham que pagar nada. Contudo, não
eram gratos. Consideravam-se pessoas
necessitadas, e supunham que eu era
sustentada por uma instituição muito rica.
Eram exigentes e agressivos. Um desses era
Ah Ping.
Naqueles meses e anos de contato, eu
chegara a conhecer Ah Ping muito bem. Ele ia
ao clubinho muitas vezes. Fora iniciado numa
quadrilha tríade com apenas doze anos, e já
tinha fama de bom lutador. Certa noite,
quando cheguei ao clubinho, ele estava
vagando pela rua. Eu me sentia meio deprimi-
da, e ele percebeu isso.
— É melhor você ir embora, disse. Largue
este lugar, Poon Siu Jeh. Não adianta trabalhar
por nós. Procure estudantes bem comportados
e pregue para eles. Eles serão ótimos crentes.
Nós não prestamos, (ão sei por que você não
desiste. Você arranja estudo ara nós, e não
vamos às aulas. Arranja empregos, e nós os
perdemos. Nunca mudaremos. Então, por que
inda fica aqui?
— Fico porque foi isso que Jesus fez por
mim. Eu também não o queria, mas ele não
esperou que eu o quisesse, para depois morrer
por mim. Ele morreu, morreu por mim, quando
eu ainda o odiava. Apenas disse que me
amava e que me perdoava. Foi esse Jesus que
veio ao mundo e ressuscitou os mortos, que
fez milagres e só praticou o bem. E ama você
também, do lesmo jeito.
A princípio, Ah Ping não disse nada,
depois falou.
— Não pode ser; ninguém ama a gente
desse jeito. Quer dizer, nós... e sua voz ficou
embargada.
Mas logo em seguida ele prosseguiu:
— Quero dizer, nós vivemos estrupando,
roubando, brigando, esfaqueando. Ninguém
pode nos amar assim.
— Pois Jesus os amou. Ele não gosta das
coisas que vocês fazem, mas ama vocês. Isso
pode parecer stranho, mas ele disse que todas
as coisas erradas que vocês praticaram eram
dele, e quando ele morreu ia cruz, declarou-se
culpado de todos os nossos rimes. Isso é muito
injusto, não é? Mas se você lhe entregar todas
as coisas ruins que já praticou, ele lhe dará sua
nova vida. É como se você lhe entregasse sua
roupa suja e recebesse as dele,
completamente limpas.
Ah Ping estava esmagado. Era difícil
acreditar que existisse um Deus assim. E ele se
sentou ali e pediu a Jesus que o perdoasse e
transformasse sua vida.
Ele foi o primeiro quadrilheiro a ligar-se
aos Tentes. Quando estava com apenas
quatorze anos, ima jovem prostituta ofereceu-
se para "sustentá-lo" ;m troca de proteção.
Mas a partir de então todo o seu nodo de vida
se modificou de forma radical. Todas as noites
ele levava seus "irmãos" para o clubinho e me
pedia que lhes falasse de Jesus. Os poucos
freqüentadores do clube que tinham a vida
certinha — os alunos da escola — pararam de
ir, pois sentiam que estavam sofrendo
discriminação. Eu achava, porém, que havia
dezenas de lugares em Hong Kong onde
aqueles rapazes podiam receber cuidados e
assistência, e então não impedi que se fossem.
E foi somente muitos anos depois que
conseguimos reunir esses dois tipos de
pessoas tão diferentes: os maus e os "bonzi-
nhos".
Alguns amigos de Hong Kong vieram a
conhecer Ah Ping e o convidaram para dar seu
testemunho na igreja, num sábado.
— Tome muito cuidado, disse-lhe eu.
Satanás não gosta quando uma pessoa fala de
Jesus. Provavelmente ele tentará atacá-lo de
alguma forma daqui até sábado. Vá direto para
casa e não pare em lugar nenhum.
— Está certo, está certo, Sr.ta Poon,
respondeu acenando afirmativamente, com
docilidade.
Mas logo que se afastou, rebelou-se.
— Diabo? Bobagem. Conheço estas ruas
como a palma da minha mão. Cuidado com
quê?
E foi dar umas voltas, antes de ir para
casa. De repente, sete homens saíram de um
beco escuro e o atacaram. Eram quadrilheiros
Chiu Chow. Mais tarde, quando Ah Ping me
relatou o fato, disse:
— Quando eles se aproximaram,
ocorreram-me dois pensamentos. O primeiro
foi: "Ah, isso é culpa da Sr.ta Poon". E logo em
seguida: "Você deve orar."
Então ele ficou orando, enquanto os
homens o agrediam a pauladas, deixando-o no
chão inconsciente.
— Logo que comecei a orar, meu pai veio
descendo a rua e quando eles o viram, fugiram
correndo. Se não fosse isso, teriam me
matado.
Mas, mesmo assim, ele ficou com um
ferimento grave nas costas e um corte na
garganta. O pai foi buscar socorro com seus
irmãos da quadrilha 14K. Levaram-no ao
médico, e este afirmou que ele não poderia
andar nem falar pelo menos durante duas
semanas.
Os irmãos de Ah Ping decidiram vingar a
agressão que ele sofrera. Fizeram uma reunião
na sede da quadrilha para combinarem um
plano de ação. Depois pegaram faccões e
disseram a Ah Ping:
— Vamos esfaqueá-los, está bem?
Falando com muita dificuldade por causa
da garganta ferida, o moço replicou:
— Não; agora sou cristão e não quero que
revidem.
Depois ele chamou um ou dois membros
de nosso clubinho que eram crentes, foram
para lá e puseram-se a orar. Oraram a noite
toda pelo grupo que o tacara. Além de orar
pelos inimigos, pediu aos outros rapazes que
impusessem as mãos sobre ele e orassem ara
que fosse curado.
No dia seguinte, estava completamente
bom, dando com toda clareza. Aliás, dois dias
depois ele falou na igreja. Testificou da
mudança que se operara m seu coração e
disse também que nunca mais iria
menosprezar o diabo. Sabia que ele estava
sempre por certo.
Mas as brigas de quadrilhas eram um
problema que os convertidos teriam de
enfrentar com freqüência.
Lembro-me de um culto num domingo à
noite na Igreja Oiwah. O simples fato de poder
ir à igreja era ator de orgulho para aqueles
chineses um pouco mais prósperos que os
outros. Ergui os olhos do teclado e pude ver
alguns professores da escola com os
vendedores do mercado e verdureiros. Todos
com aparência de gente direita, séria e
respeitável. O fato de eu me preocupar com os
jovens marginais deixava-os bastante
espantados. Não gostavam muito de ver
aqueles rapazes na igreja, ao passo que eu
ficava lá, sentada, irando para que eles
fossem.
De repente, a porta se abriu de ímpeto, e
os garotos entraram. A aparência deles
provocou repulsa na congregação. Mas até eu
me espantei, pois eles estavam num estado
terrível: sujos de lama e sangue e as roupas
rasgadas. Vários tinham arranhões no rosto.
Todavia, sentaram-se e permaneceram quietos
durante todo o tempo. Logo que terminou o
culto, fui apressadamente até onde se
achavam, para saber o que havia acontecido.
Ao que parecia, haviam caído numa
armadilha. Entraram num banheiro público
para se arrumarem um pouco antes de irem à
igreja; um grupo de quadrilheiros saltou por
sobre os compartimentos e os atacou
violentamente com bastões. Vários deles fica-
ram bastante feridos. Levei-os a um hospital.
Estava muito feliz de eles terem me procurado
na igreja, após uma luta tão terrível.
Ingenuamente, achei aquilo maravilhoso.
"Graças a Deus", pensei, "eles não foram
procurar seus chefes de quadrilha, mas vieram
procurar os cristãos."
Pouco depois eu fiquei sabendo que o
resto da congregação encarou o incidente todo
de uma perspectiva diferente. Estavam
enfurecidos pelo fato de os rapazes terem tido
a ousadia de entrar na igreja naquele estado, e
tão mal cheirosos. Não aceitavam a idéia de
que aqueles garotos pudessem tornar-se
crentes. Pensavam que uma mudança interior
tinha que ser seguida de uma mudança
exterior, e que eles logo deviam passar a usar
gravata e sapatos de cadarço. E mostravam-se
bastante transtornados por eu haver permitido
que entrassem na igreja pouco depois de
terem participado de uma cena de violência.
Pelo que sabiam, nunca nenhum deles se
tornara cristão. E quando pedi para que fossem
batizados os que haviam-se convertido, a
resposta foi um "não" direto. Os rapazes
precisavam antes passar por um período de
provação.
No princípio eu aconselhava os rapazes a
freqüentarem a igreja, embora estivesse bem
claro que eram indesejados ali. Mas um dia
veio à Cidade Murada um velho missionário
bastante sábio, George Williamson. Ele
analisou bem o que estava acontecendo e
entendeu a toda situação.
— Jackie, por que você força esses
garotos a virem a Igreja?
— Bom, respondi meio hesitante, por
duas razões, uma delas é bem negativa. Não
quero que pensem, que pelo fato de eu sair
com eles, que estou criando meu próprio
grupo.
George deu um sorriso compreensivo. Ele
sabia no a geração mais antiga desaprovava a
idéia de missionárias, mulheres, terem a
direção de um trabalho.
— E, em segundo lugar, continuei, acho
que esses rapazes precisam de irmãos e irmãs
mais velhos, precisam da "família" da igreja.
Não seria muito salutar formarmos um grupo
de jovens, separado.
Achei que ele iria concordar comigo, mas
não concordou.
— Não, Jackie, disse. Esses rapazes ainda
não estão preparados para isso. São plantinhas
muito tenras, ainda na sementeira, e se você
os transplantar logo, poderão morrer. Ainda
não conseguirão suportar as sacudidelas da
igreja estabelecida. É muito do para querer
que façam concessões a certas atitudes do
pessoal da igreja.
Fiquei muito admirada. Ele estava-me
dizendo para criar meu próprio trabalho.
— Pense neles como mudinhas numa
sementeira, continuou. Afaste-os daqui e cuide
deles até crescem mais um pouco. Aí, quando
já estiverem bem fortes para suportar os
trancos, pode replantá-los ai. Mas a Igreja de
Hong Kong ainda não tem estrutura para
recebê-los.
Assim, em vez de continuar insistindo
para que os jovens se filiassem à igreja,
comecei a ampliar nosso tudo bíblico no
clubinho. Realizávamos estudos rias vezes na
semana, e também aos domingos pela manhã.
Tínhamos sempre um período de louvor,
bastante barulhento, e jogávamos pingue-
pongue. Se eu falasse em orar, eles iriam para
a rua até terminarmos; depois voltavam.
Mas eu nunca poderia ter superado as
dificuldades sem o auxílio de Dora Lee.
Juntamente com outras estudantes, ela me
ajudava a fazer as traduções mais difíceis,
como a Bíblia. Ela me ensinou muita coisa
sobre os chineses, seus pensamentos e
reações. Quanto mais eu aprendia, mais
percebia que nossos métodos de anunciar a
mensagem de Jesus Cristo não se aplicavam a
todas as partes do mundo. A maioria dos
rapazes vivia em casas pequenas com mais
dez pessoas. Nunca havia silêncio e quietude.
Nenhum deles tinha uma cama para si mesmo,
quanto mais um quarto. A idéia de ir para um
lugar sossegado para estudar a Bíblia e orar,
por exemplo, seria uma ironia. No entanto, orar
em língua estranha era uma solução prática,
pois podiam fazê-lo até caminhando por uma
rua barulhenta de Hong Kong.
Muitos deles não sabiam ler, então eu
tinha que fazer sugestões práticas. Essa lição
eu aprendi através de uma dura experiência.
Um dos rapazes dissera em oração que
desejava seguir a Jesus. Então dei-lhe um
exemplar do Evangelho de João e outros
livretes. Mas ele se afastou e não o vi durante
dois anos. Quando o encontrei novamente e
perguntei por que tinha estado me evitando há
tanto tempo, ficou meio envergonhado.
— Eu queria conhecer a Jesus, mas você
me deu uma biblioteca.
Tive que reexaminar alguns de meus
conceitos sobre o estudo da Palavra de Deus.
Aqueles que sabiam ler, sugeri que, vez por
outra, saíssem um pouco de suas bancas de
trabalho na fábrica e fossem ao banheiro para
ler alguns versículos. Procurei estar em contato
com os rapazes sempre que pudesse,
encorajando-os a seguir os ensinos de Cristo. E
eles cresceram espiritualmente. Mas o tempo
não era suficiente para ver todos eles. Meu
trabalho na escola limitava muito o tempo de
que dispunha. Precisava de mais horas para
estudar chinês. Comecei a orar pelo problema.
"Senhor, estou muito cheia de
ocupações. Preciso de mais tempo para ficar
em companhia desses rapazes. Mas isso é
impossível, se tenho que selecionar na boa
parte do dia. Tu prometeste dar-me o pão de
cada dia. Por favor, diz-me se tu o darás, sem
que eu tenha de trabalhar para isso."
Três dias depois o telefone tocou. Era
Clare Harding, a amiga que me apresentara ao
casal Willans.
— Jackie, queria lhe dizer que, se você
resolver deixar de dar aula, desejamos
oferecer-lhe dinheiro para seu sustento.
Fiquei pasmada. Ninguém sabia que eu
estava pensando naquela hipótese.
— Quem lhe disse que eu ia sair do
colégio? No momento, ainda estou lá.
— É, eu sei. Mas eu e Neil temos orado a
esse respeito. E se você estiver pensando em
largar, queremos oferecer-lhe duzentos dólares
por mês.
— Bom, de qualquer jeito, só sairei em
julho.
— E nós só teremos o dinheiro disponível
em lho, replicou ela. Mas senti vontade de
telefonar e dizer-lhe isso desde agora.
Estávamos em meados de novembro.
O telefonema dela foi um grande
incentivo para mim. Compreendi que, se Deus
podia dizer a uma pessoa para oferecer-me um
cheque mensal equivalente a cerca de quinze
libras esterlinas, então não seria difícil para ele
fornecer-me o restante do que precisava para
viver. Hoje, passados dez anos, percebo e foi
naquele momento que resolvi "viver pela fé".
Tive certeza de que, se Deus queria que me
dedicasse a esse trabalho, ele me daria o
sustento, e nunca me preocupei nem um
pouquinho a respeito do modo mo ele o faria.
7
O "Irmão Maior"
Está Olhando por Você
Em meu sonho, o telefone estava
tocando sem parar. Fiz um esforço imenso para
despertar. Eram cinco horas da manhã. No
fone, Ah Ping, com voz sussurrada, falava
rapidamente:
— Poon Siu Jeh, você tem que vir aqui
bem depressa. Alguém arrombou o clubinho e
fez uma bagunça terrível.
Estremeci apesar do calor sufocante, e
vesti-me. Quando saí, a rua ainda estava vazia,
silenciosa. Afinal consegui um táxi para me
levar à Cidade Murada. Lá chegando, subi
correndo as ruelas tortuosas em direção ao
clubinho. A cena com que me deparei era
muito pior do que eu imaginara. Os bancos,
livros, raquetes de pingue-pongue, esqueites,
tudo tinha sido atirado no chão, espalhado e
quebrado. E pior, a pessoa havia
deliberadamente passado sujeira dos esgotos
nas paredes e assoalho.
Minha vontade foi sentar-me e chorar.
Pensava que aqueles rapazes já me
consideravam como uma pessoa do meio deles
e confiavam»em mim como amiga. Porém
atiravam fezes nas paredes do meu clubinho e
assim mostravam o que realmente pensavam
de mim e do meu trabalho.
— Está bem, Senhor. Para mim chega.
Não me importaria de trabalhar aqui para
sempre, se eles conhecessem o que faço. Mas,
se não me querem aqui, nem a mim nem a ti,
então não preciso ficar tais nesse lugar. Afinal,
não desejo ficar aqui pelo resto da vida
jogando pingue-pongue. Quero dizer, Senhor,
estou fazendo isso por eles, mas, se não o
querem, não serão obrigados a receber isso.
Vamos schar esse clubinho. Estava
profundamente ressentida.
— Muito breve eles irão perceber que só
prejudicaram a si mesmos.
Mas lembrei-me também do que Jesus
dissera: quando alguém nos bate uma vez,
devemos deixar que os bata novamente. E
outra passagem que me vinha insistentemente
era a que falava sobre dar graças a Deus em
todas as circunstâncias. Mas eu não estava
com vontade de fazê-lo; minha vontade era
chorar e de entregar totalmente à auto-
piedade.
Mas passei o resto do dia varrendo e
limpando o alão, e murmurando entre
lágrimas:
— Glória a Deus! Glória a Deus!
E tinha crises de choro, pois parecia que
os alicerces de meu mundo haviam ruído.
No dia seguinte, abri o clubinho como de
costume, das, pela primeira vez, senti medo,
não de que me agredissem, pois Deus sempre
me protegera. Tinha medo de ser rejeitada
pelos rapazes que eu amava e a quem trazia a
mensagem de Cristo. Não sabia quem izera
aquilo, nem por quê, e fiquei ali tremendo
toda. Num dado momento, surgiu um
rapazinho que eu nunca vira antes, e encostou-
se à porta.
— Algum problema? indagou.
— Não, não, respondi. Está tudo bem,
obrigada, das por que pergunta?
— Se tiver algum problema, é só falar
comigo, disse virando a ponta do polegar para
o próprio peito.
— Ah, que bom saber disso, falei. Mas
quem é você? Quem o mandou aqui?
— Foi o Goko, respondeu bruscamente.
Fiquei abalada. Sabia quem era Goko, o
dirigente geral de toda a organização tríade da
Cidade Murada.
Era o chefe de uma das ramificações da
14K, e dizia-se que tinha alguns milhares de
irmãos menores por ali. Tinha o controle de
todas as salas de ópio, jogo e prostituição da
área. Ele era o irmão maior de todos os irmãos
maiores. Um dos irmãos menores que
freqüentava o clubinho havia mencionado seu
nome para mim com o maior respeito. Mas,
embora eu conhecesse seu nome, ainda não o
conhecia pessoalmente. Naqueles anos todos,
eu lhe enviara vários recados, mas ele sempre
se recusava a falar comigo. As mensagens que
eu mandara eram sempre bem simples como
"Jesus te ama". Não podia entender por que
enviara um guarda para vigiar o clube.
— Goko disse que se alguém a incomodar
ou encostar a mão neste lugar, nós vamos
"cuidar" dele, continuou meu protetor, e fez
uma demonstração mímica do que dizia,
pegando um facão imaginário e enterrando-o
profundamente na barriga de uma vítima
também imaginária.
— Muito obrigada, repliquei. É muita
bondade de vocês. Quer fazer o favor de dizer
a Goko que agradeço muito, e não quero
ofendê-lo, mas não posso aceitar. Jesus já está
cuidando de nós.
O olhar de desprezo que o rapaz me
dirigiu foi de quem pensava estar diante de
uma louca. Qualquer um que achasse que
Jesus podia proteger alguém na Cidade Murada
devia estar maluco.
Mas ele continuou a se apresentar todas
as noites, como um bom vigia noturno. Seu
nome era Winson; recebera ordens explícitas
de vigiar o clube. Comecei a falar-lhe de Jesus.
Não queria de maneira alguma ouvir-me, mas,
como era obrigado a ficar ali, não tinha como
escapar. Depois de alguns dias, começou a
ceder, e pôs-se a falar de um "amigo" seu que
era viciado em ópio. Logo percebi que o amigo
era ele mesmo. Então disse-lhe que o ópio não
é problema. Era só trancar o viciado num
aposento e deixá-lo lá por uma semana.
Naturalmente ele iria sofrer as agonias do
processo de desintoxicação, mas ficaria livre
da dependência da droga. Entretanto, logo que
a porta fosse aberta iria direto tomar a droga,
pois sua mente e coração continuavam a
desejá-la. Somente Jesus, o Senhor da vida,
podia remover da pessoa o desejo pela droga.
Disse-lhe isso várias vezes. Ele sempre
ficava encostado de fora da porta do clubinho.
Nunca entrava, e ficava olhando e escutando
os rapazes cantarem nos. Então, uma noite,
quando o salão estava quase vazio, eu lhe
disse:
— Por que você também não entra e vem
louvar a Jesus?
— Está bem, disse ele prontamente.
Fiquei espantada com sua aquiescência,
pois, àquela altura, já sabia que seu posto na
quadrilha 14K a correspondente ao número
426, o que significava que pertencia a uma
categoria especial de tratador das lutas. Sua
tarefa era tratar as brigas, ajustar a colha das
armas, o local e a estratégia a ser usada. No
entanto, ali estava ele, dentro do meu
clubinho, louvando a Deus a plenos pulmões.
Estava cantando n corinho, em voz bem alta.
Depois, pôs-se a orar em chinês. Eu nunca
tinha ouvido uma oração tão cheia de alegria,
e pensei: "Onde será que ele aprendeu isso?"
E foi um momento extraordinário, pois
em seguida ele começou a louvar a Deus em
língua estranha, isso me pareceu ainda mais
espantoso, pois, ao que sabia, ele nunca ouvira
ninguém falando em línguas, ma meia hora
depois ele parou. O milagre tinha acontecido.
Tanto ele como eu sabíamos que estava
completamente curado da dependência da
droga, ora liberto enquanto orava.
Quando afinal ele foi-se calando, eu lhe
disse:
— Glória a Deus! Foi maravilhoso! Agora
o que você tem a fazer é levar seus
companheiros da quadrilha a experimentarem
o mesmo. E não pode mais seguir ao seu irmão
maior, Goko. Ninguém pode ter dois irmãos
maiores. Você terá que seguir ou a Jesus ou a
Goko. Não poderá seguir os dois.
E foi assim que Winson partiu para dizer
ao seu chefe de quadrilha que cria em Jesus.
Foi Ah Sor quem me revelou depois o que
acontecera no arrombamento do clubinho. Um
dos rapazes passara por alguns problemas,
que julgava terem acontecido por culpa minha.
Passara pelo clubinho e começara a berrar e a
jogar pedras nas vidraças. Isso despertou nos
seus amigos o desejo de fazer o mesmo, e
pouco depois estavam todos dominados por
um espírito de violência. Muitos deles nem
sabiam por que estavam com raiva. Era
simplesmente uma questão de violência
coletiva.
Poucas horas depois, Goko recebeu a
notícia daquela agressão a uma casa do seu
setor de controle, e chamou à sua presença os
implicados. Ordenou-lhes que nos devolvessem
o que porventura houvessem tirado, e que na
noite seguinte fossem ao clubinho e se
comportassem muito bem.
— Mas nós quebramos tudo por lá, disse
um deles. Ela não vai nos querer no clube.
— Ah, vai sim, replicou Goko. Vai, porque
a Sr. Poon é crente, ela os perdoará. Ela abrirá
ta

as portas para vocês e os receberá.


Então eles voltaram. Senti-me muito
humilhada quando ele contou o que Goko
dissera. Era óbvio que ele estava sabendo
como os crentes "deviam" agir, embora minha
tendência tivesse sido fazer exatamente o
contrário.
Reconheci assim que o "Irmão Maior"
estava olhando por mim, e senti-me mais
reanimada pelos rumos que o clubinho estava
tomando. Aqueles moços tinham aprendido
algumas coisas sobre Jesus. Muitos dos
aproveitadores, àquela altura, já tinham
desaparecido dali. Haviam descoberto que não
havia vantagens sociais em pertencer a ele.
Alguns assistentes sociais e conselheiros de
jovens me perguntaram qual era meu
programa de ação. Tive muita dificuldade em
respondê-los.
— Bom, abrimos as portas todas as noites
e às vezes aparecem cinqüenta pessoas,
outras vezes apenas uma. Procuro travar
amizade com eles e conversar. As vezes
oramos e louvamos a Deus, e outras imos a
passeios. Há ocasiões em que fico a noite da
aqui com uma pessoa que não tem onde
dormir, há outras em que dou uma tigela de
arroz para guém que está com fome.
Por fim descobri uma frase que descrevia
meu ibalho e que impressionava bem.
— É um trabalho de jovens, sem
estrutura fixa, plicava.
Eu havia tentado operar em termos de
projetos guiares, mas raramente funcionava.
Em certa oca-lo, contávamos com um técnico
de futebol que dava n treino por semana.
Todos os rapazes gostavam íensamente de
jogar futebol e mais de quarenta sram seus
nomes. No primeiro treino apareceram rca de
vinte; na outra semana, vieram dez, e na
rceira, nenhum.
O treinador ficou desanimado e teve
vontade de rgar tudo. Procurei fâzê-lo entender
o que aconte-a. Os garotos da Cidade Murada
levavam uma vida o desregrada, que nem
sabiam qual era o dia da mana. Dormiam de
dia e levantavam à noite. Havia :asiões em que
ficavam de pé setenta e duas horas e ;pois
dormiam dois dias seguidos. Passavam muito
mpo no território da quadrilha, nos salões de
ópio. idéia de treinar futebol era bastante
interessante, ias ir ao treino era outra questão.
Eles queriam ir, e retendiam ir, mas não
tinham autodisciplina.
Se o treinador tivesse ido na semana
seguinte, ilvez tivesse encontrado uns dois ou
três rapazes, e na itra, uns quatro, e na outra
ainda uns dez ou doze, ilvez. Logo que
percebessem que o técnico estava :almente
interessado neles e iria ao campo mesmo ue
houvesse um tufão e mesmo que fosse apenas
ara treinar com um só, lhe devotariam toda a
sua infiança e simpatia.
Muitas pessoas me procuravam pedindo
para au-iliarem no clubinho. Trabalhar na
Cidade Murada arecia empolgante,
emocionante. Mas poucos permaneciam mais
que algumas-semanas. Se a atividade ue
dirigiam — jogos ou aulas — não tinham boa
freqüência, logo desanimavam e nunca mais
voltavam. Eu precisava encontrar obreiros que
realmente tivessem amor pelas pessoas com
quem trabalhavam, mais do que pela atividade
que exerciam.
Como os rapazes da Cidade Murada, eu
passei a dormir de dia e ficava acordada à
noite, pelo menos teoricamente. O que
acontecia na verdade era que eu tinha as aulas
de chinês, ia aos tribunais, visitava os presos e
resolvia outros problemas e então ficava
acordada de dia também. Todos os dias,
quando acordava, a única maneira de fazer-me
sair da cama era prometer a mim mesma que
mais tarde voltaria para dormir, mas nunca o
fazia. Então a solução foi aprender a tirar
cochilos nos ônibus e balsas.
Certa noite, fizemos um churrasco numa
colina das redondezas. O luar estava bem claro
e divisei entre os nossos um rapaz grandalhão,
de aspecto abrutalhado, sentado ali e
comendo muito, enchendo-se de carne. Fiquei
furiosa com ele, pois fora eu quem comprara
tudo e calculara que seria suficiente para o
nosso grupo. Mas, continuando a olhar, notei
que os nossos rapazes estavam dando a ele a
parte deles também, e pareciam magnetizados
pelas suas palavras. Ah Ping sussurrou-me que
aquele fora o seu daih lo, o chefe de sua
quadrilha, da qual eram também muitos dos
presentes. Além disso, ele era irmão carnal de
Goko, e o segundo homem forte de toda a
Cidade Murada. Sai Di ficara curioso a respeito
de nosso clubinho, ao perceber que muitos de
seus "irmãos" o freqüentavam, e resolvera
participar daquela nossa atividade. Se
quisesse, estava em suas mãos controlar todos
aqueles rapazes e o clubinho também.
— Será que eu poderia falar com você?
indaguei. Ele achou engraçado aquele convite
por parte de uma mulher e levantou-se com
gestos apalhaçados. Mas, quando nos
afastamos, ele abandonou aquela atitude e
pôs-se a escutar-me atentamente. Disse-lhe
que meu único objetivo no clubinho era fazê-
los conhecer o amor de Jesus.
— Eu sei, replicou ele. Estamos
observando-a há algum tempo. Muitos
missionários vêm aqui a Hong Kong para
ajudar-nos, a nós, os necessitados. Tiram
retratos do pessoal aqui para chocar o povo de
lá. E alguns até ficam famosos por terem vindo
aqui. Mas nós damos cabo deles dentro de seis
meses. Sempre arranjamos meios para fazê-los
desanimar. Por exemplo, se você fosse homem,
já teria levado uma surra há mito tempo. Não
importa se a pessoa nos dá comida e graça,
escola, aula de judô ou de bordado. Essas
coisas não significam nada para nós, pois os
que as realizam não têm nada em comum
conosco. O que queremos saber de verdade é
se eles realmente se interessam por nós. Você
já está aqui há quatro anos e estamos achando
que talvez você seja realmente sincera.
Não cantei de alegria na frente dele, mas
meu coração estava rebentando de gozo.
Uma vez que os interesseiros, os "crentes
da opa", tinham saído do clubinho, percebi que
os que haviam ficado eram os que mais cedo
ou mais tarde se interessariam pelas coisas
espirituais. E eles começaram a pensar
seriamente que talvez Jesus fosse mesmo o
que se dizia. Certo dia estávamos sentados no
clubinho, quando Ah Keung, que é conhecido
como o 'palhaço" do lugar, disse:
— Poon Siu Jeh, ontem à noite ficamos
um longo tempo conversando sobre você e
chegamos a duas conclusões. Ou você é espiã
do governo britânico, ou então o que você diz
a respeito de Jesus deve ser verdade. Porque
ninguém iria passar a vida toda conosco, aqui,
a não ser obrigado.
E foi assim que Ah Keung também se
tornou crente, e revelou-se um dos mais
entusiastas. Ele tinha cinco irmãos e todos
viviam com o pai. A mãe fugira logo após o
nascimento do sexto filho, e fora viver com um
policial. O pai era membro de uma quadrilha
muito forte. Mas um de seus amigos fora morto
numa luta de bandos e ele resolvera mudar-se
para a Cidade
Murada. Trabalhava num salão de jogo.
Como trabalhasse à noite, nunca via os filhos
durante o dia, e eles não receberam nenhuma
criação.
Crescendo, os rapazes tornaram-se
caloteiros. Nenhum deles estudou, e,
obviamente, acabaram todos como membros
de quadrilhas. Os três mais velhos foram
presos já com a idade de treze, quatorze e
quinze anos, por tráfico de drogas. Além disso,
estavam viciados também. Mais tarde, os dois
mais novos foram presos. Ah Keung era o único
que ainda não fora encarcerado; convertera-se
bem a tempo.
Uma noite, ele entrou no clubinho
correndo, ofegante, e disse que eu tinha de ir à
sua casa imediatamente. Corri rua abaixo,
procurando ir com muito cuidado, pois a rua
estava muito escorregadia. Os jogadores
utilizavam aquele beco para se aliviarem, na
falta de banheiros.
O quartinho onde moravam era muito
pequeno para todos eles, mas, como
normalmente dois ou três sempre estavam
presos, não havia muito problema de
acomodação.
Quando ali entrei, vi que o irmão mais
velho estava injetando heroína em si próprio.
Deitado no chão, estava um homem, com os
braços e pernas cheios de vergões e
ferimentos, e as roupas ensopadas de sangue.
Fora brutalmente surrado. Estava diante de
mim a tarefa de limpar as feridas e tratar dele.
Meu primeiro impulso foi transportá-lo para um
hospital.
— Não podemos levá-lo, disseram os
outros em coro. Ele é de uma quadrilha. Se o
levarmos para o hospital, será interrogado pela
polícia. E vão descobrir que é viciado.
Então não havia outra alternativa. Tinha
que socorrê-lo. Peguei um balde com água e
algumas ataduras imundas, e comecei a tratar
do homem. Jesus dissera que tinha vindo ao
mundo para curar as feridas, e era exatamente
isso que estavam querendo que eu fizesse.
Falei ao ferido sobre isso. Falei-lhe do amor de
Jesus. Não respondeu nada, mas senti que
compreendera. Um ou dois anos depois, voltou
a nos procurar.
Após este incidente, fiquei mais ligada à
família de Ah Keung. Visitei os que estavam
presos e tentei arranjar emprego para quando
fossem soltos. Uma noite, estava saindo da
Cidade Murada, quando escutei um deles, Sai
So, dando meu telefone para um outro viciado.
— 83-3179, dizia ele. Guarde bem esse
número ara o caso de você ser preso. Qualquer
hora do dia ou a noite que você ligar, a Sr. ta
Poon irá auxiliá-lo. Não importa se você
cometeu o crime ou não. A única coisa que
você tem de fazer é falar a verdade, pois,
como você sabe, ela é crente.
Enquanto me dirigia para casa, ia
pensando: "no Senhor, o vosso trabalho não é
vão". Ali estava eu tendo o privilégio de ver os
frutos. Alguns dos piores criminosos de Hong
Kong sabiam que o nome de Jesus era Verdade.
A maioria dos moços que eu conhecia
estava constantemente sendo presa e levada a
julgamento. A medida que os fui conhecendo
melhor, comecei a crer quando declaravam
que eram inocentes de alguns delitos de que
lhes acusavam, pois eu própria ia verificar is
álibis deles. É claro que, na maior parte, eles
eram criminosos, mas nem sempre culpados
dos atos pelos mais eram presos. Parecia-me
um erro muito grande me confessassem
crimes que não haviam cometido ou legassem
participação naqueles em que realmente
estavam envolvidos.
Várias vezes, quando caminhava ao lado
de Ah Ping fora da Cidade Murada, ouvi-o
dizer:
— Fffffiu! Andei a rua toda e não fui
preso!
Tinha avistado um ou dois detetives que
o conheçam. Se quisessem, poderiam tê-lo
detido e interroga-lo. Ou poderiam até levá-lo
preso, e atribuir a ele um :rime qualquer. Isso
acontecia muitas vezes.
Comecei a pedir aos rapazes que sempre
dissessem a verdade no tribunal. Isso me levou
a ir muitas vezes aos tribunais e passar ali
várias horas, partilhando da vergonha
daqueles criminosos, pois via pessoas apon-
tando para mim e dizendo:
— Lá está aquela boba daquela crente,
sentada com os marginais.
Eu tinha consciência de que os moços
haviam praticado muitos crimes, mas estava
sempre disposta a ir lá e me sentar com eles
ali, culpados ou não, desde que falassem a
verdade. Mas a vergonha dessa situação
ajudou-me a compreender o admirável
sacrifício de Cristo, quando publicamente se
associou conosco, os pecadores.
Certa noite recebi um telefonema de Mau
Jai. Eram quinze para as oito, e em minha sala
estavam várias moças e rapazes que ali se
achavam orando.
— Johnny acaba de ser preso. Venha para
a delegacia depressa, disse ele.
— Como você sabe disso? indaguei. E
onde você está?
— Não posso falar nada aqui. Mais tarde
eu digo, respondeu.
A caminho da delegacia, fiquei pensando
em Johnny, que era um dos viciados de
aparência mais repulsiva que eu conhecia. Era
um rapaz de compleição miúda e
horrivelmente magro. Era carpinteiro e
ganhava bom salário, mas gastava tudo em
heroína.
Quando cheguei à delegacia, pedi para
vê-lo, mas disseram-me que não se encontrava
ali.
— A senhora pode voltar para casa,
disse-me o sargento de plantão, e se ele
aparecer, telefonamos.
— Pois vou ficar aqui até que o mostrem,
respondi, e comecei a ajeitar-me para passar a
noite ali.
Dois minutos depois, eles o trouxeram,
mas eu chegara tarde demais. Ele já
confessara um crime. Fora acusado de estar
com uma chave de fenda com a intenção de
entrar num prédio que ficava a um quilômetro
e meio da Cidade Murada.
Johnny e Mau Jai estavam tomando droga
numa das maiores salas de droga da Cidade
Murada, quando dois detetives entraram e
prenderam Johnny. Eles sabiam muito bem
onde eram as salas, e os viciados eram presa
fácil. O mal daquela situação toda era que
certos policiais tinham combinado com os
exploradores dos vícios ali que ignorariam os
antros de comércio, em troca de um
dinheirinho.
Vez por outra, eles davam batidas
policiais, mas, em várias ocasiões, ouvi os
vigias das salas falando ao telefone com
guardas que lhes avisavam que estavam
caminho de lá. Fiquei sabendo inclusive que
muitos detetives eram sócios daqueles
negócios ilegais, em cooperação com as
quadrilhas. Comecei a compreender por que os
rapazes eram tão confusos sobre as loções de
certo e errado.
A família de Johnny morava num
apartamento muito pobre, do lado de fora da
Cidade Murada. Eles arranjaram dinheiro
emprestado e pagaram sua fian-a, e assim ele
foi solto; o que foi um erro, pois nesse leríodo
de várias semanas em que aguardava a prisão
preventiva, ele tomou mais e mais heroína. Fiz-
lhe ima visita e tentei convencê-lo a declarar-
se inocente, ias mostrou-se relutante.
— Não posso voltar atrás na confissão
que já assinei. Os policiais me disseram que,
se eu o fizesse, me prenderiam por outra coisa.
Os viciados sempre diziam que
ganhavam heroína na delegacia, em troca de
uma confissão. Falei a Johnny sobre Jesus e
como ele sempre falava a verdade, ainda que
isso lhe tivesse custado a vida. Oramos, e ele
concordou em que seria acertado falar a
verdade, mas acrescentou:
— Se eu disser a verdade no julgamento,
isso significa que tenho que revelar onde ficam
as salas de droga. E o que é pior, estou
dizendo que os guardas também sabem onde
elas são. Tanto os meus amigos como a polícia
vão querer se vingar.
Mas continuei a visitá-lo e a pedir-lhe que
falasse a erdade. No dia do julgamento, ele
estava decidido a lizer o que a polícia
desejava, embora eu houvesse contratado um
advogado para defendê-lo. Pouco antes de ele
prestar depoimento, mostrei-lhe uma passa-
gem bíblica que nos ensina que não
precisamos ter medo, quando levados a
tribunais, pois o Espírito Santo nos instruirá
quanto ao que devemos dizer.
Mais tarde, ele me relatou que, quando
se pusera de pé no tribunal, sobreviera-lhe
forte convicção de que tinha de dizer a
verdade. Nosso advogado fez longos
interrogatórios aos policiais sobre as provas e
fatos por ele apresentados, mas o juiz acabou
aceitando como certa a versão deles, e
considerou Johnny culpado. Quando ele
pronunciou o veredito, rompi em pranto.
Era muito incomum ver-se uma moça
inglesa chorando por causa de um criminoso
chinês. O chefe de polícia encarregado do
inquérito veio falar comigo. Perguntou-me por
que estava chorando.
— Porque ele não fez aquilo, respondi
entre soluços. Não é culpado.
— Pois a ficha dele é bastante extensa,
disse ele com bondade. Eu não desperdiçaria
com ele minha pena.
— Isso não vem ao caso, repliquei. Esse
crime aí ele não cometeu.
— Se não cometeu esse, cometeu outros.
No todo, a condenação é justa.
— Mas não está certo, insisti; o nome de
Jesus é verdade, e temos que falar a verdade
no tribunal.
Os detetives que efetuaram a prisão e
alguns outros se aproximaram de nós. Sabiam
que tinham mentido. Viram as lágrimas
escorrendo em meu rosto, riram e debocharam
de mim. Era preciso muito esforço para não
sentir raiva deles.
Johnny foi mandado para a prisão e
depois para um centro de reabilitação de
viciados. Mas eu continuei a visitá-lo.
O veredito final ainda não fora dado.
Recorremos da decisão. O juiz voltou atrás e
Johnny foi liberto. Mas acabou voltando ao
vício e preso de novo. Saindo da prisão, ele
prosseguiu nesse terrível círculo vicioso.
Mas ele nunca se esqueceu do que
acontecera naquele julgamento. Fui visitá-lo
várias vezes. Mais ou menos dois anos depois,
ele creu em Jesus, e foi para um centro de
reabilitação cristão, onde sua vida foi
totalmente transformada. Após sair de lá,
tornou-enfermeiro em um sanatório de
tuberculosos, trabalhando na ala dos viciados.
Aquele julgamento teve também alguns
outros resultados positivos. Fora a primeira vez
que eu maltratara um advogado para defender
nossos rapais, e depois disso fiz o mesmo
outras vezes. E em todas as vezes a polícia
saiu vitoriosa no caso. Ao interrogá-los, diziam:
— Não fique pensando que essa inglesa
pode ajudar vocês.
Mas vários rapazes me disseram que vez
por outra eram detidos por detetives que lhes
indagavam:
— Você pertence ao clube daquela
mulher? Quando respondiam que sim, eles os
deixavam ir.
A razão disso era que, quando detiam um
dos nossos rapazes e ele era inocente, o
julgamento poderia durar até uma semana, em
vez de terem apenas uma simples audiência
de dez minutos. E isso ficava muito
dispendioso para eles. Era mais um sinal de
que estavam de lho em mim; e assim Jesus era
pregado.
Outro resultado veio dois anos e meio
depois. Era natal, e eu queria fazer um jantar
especial para os rapazes, mas não tínhamos
dinheiro. O telefone tocou. Era do escritório do
nosso advogado.
— Estamos fazendo uma revisão em
nossa escrituração e descobrimos que temos
de reembolsá-la em mil dólares, disse uma
voz. Verificando o caso de Johnny Ho,
percebemos que lhe devemos mil dólares em
honorários pagos a mais.
— Não devem, não, repliquei. O
pagamento foi feito corretamente.
— Mas pelos nossos registros houve
recurso, e isso pago pela assistência jurídica.
— É, sei disso, respondi. Mas façam o
favor de verificar tudo com muito cuidado,
porque se me mandarem o dinheiro, vou gastá-
lo.
E eles reverificaram os livros e me
enviaram o dinheiro. E foi assim que passamos
um ótimo Natal. Deus também estava de olho
em nós, cuidando de nós.
A mãe de Johnny ficou extasiada quando
ele se converteu. Todas as vezes que eu
passava pelo mercado, ela me dava ovos e
lingüiça, que ela vendia em sua barraca ali.
Estava tão feliz, que sempre me dava muitos
presentes. Afinal, tive que começar a passar de
largo pela sua rua. Minhas roupas estavam
começando a ficar apertadas.

8
Perseguindo o Dragão
Uma noite, quando saía daquela cidade
escura, pus-me a pensar longamente. A vida
que estava levando era muito estranha, pois
nunca me deitava ou cantava em horários
regulares, e ainda tinha que conversar com
Deus o tempo todo.
"Graças a Deus não sou casada", orei.
"Graças a Jesus sou livre, para cuidar dos filhos
de outras pessoas."
Naquela época estava morando num
apartamento m uma jovem de nome
Stephanie, e ela nunca se preocupava com os
horários em que eu chegava em casa. Já era
bem mais de meia-noite, quando tomei o
micro-ônibus, para voltar.
Em dado momento, interrompi minha
oração, pus minha atenção se voltou para um
rapazinho de aparência horrível, um esqueleto
ambulante, de uns quinze anos. As órbitas
oculares eram escuras, imensa, no rosto
acinzentado. Procurei lembrar onde o vira
antes. Afinal, recordei de onde o conhecia.
Fora há cinco anos, quando começara a ir
à cidade Murada. Havia uma grande casa de
chá nas imediações, e aquele garotinho ficava
por ali, esperando táxis para abrir a porta e
receber uma pequena gorjeta. Tinha um
aspecto muito doente, e era óbvio que estava
vivendo pelas ruas. Como ainda não sabia lar
chinês, pedi aos conhecidos chineses que
escrevessem bilhetes para ele, oferecendo-me
para ajudalo. O que eu não sabia era que o
menino se viciara em drogas por volta dos dez
anos. Ele nunca vinha aos encontros que
marcava, mas continuei a orar por ele.
E ali estava ele de novo. Agradeci a Deus
por aproximá-lo novamente de mim.
Felizmente já sabia falar chinês. Ele saltou do
veículo num setor da cidade onde a vida
noturna era movimentada. Saltei também e o
segui. Bati-lhe de leve no ombro e me
apresentei, convidando-o para comermos
alguma coisa. O garoto ficou bastante
constrangido. Enquanto lanchávamos, notei
que se sentia cada vez mais inquieto. Percebia-
se claramente que estava precisando de uma
dose da droga. Sua mente já estava muito
prejudicada pela quantidade de heroína que
consumira. Ele não estava entendendo nada
do que lhe dizia. Portanto, não adiantava falar
com Ah Tsoi sobre Jesus. Calculei que, se
resolvêssemos primeiro o problema de sua
dependência da droga, sua mente se aclararia,
e poderia falar-lhe de Cristo.
Nas semanas que se seguiram, encontrei-
me com ele várias vezes, a qualquer hora do
dia ou da noite. Nunca dormia no mesmo
lugar, e eu estava receosa de perder o contato
com ele, caso fosse preso. Com todas aquelas
marcas de picada pelo braço, era um alvo fácil
para a polícia. E o que era pior, soube que ele
estava assaltando pessoas na rua, para
comprar a droga.
Mas eu estava obcecada pela idéia de
salvá-lo. Quanto mais via aquele garoto de
vida miserável, mais gostava dele. Afinal, o
Pastor Chan concordou em recebê-lo no seu
Centro Cristão de Reabilitação. Era a resposta
às minhas orações. Como ele teria que esperar
algum tempo antes de ir para o centro,
comecei a dar-lhe dinheiro. Estava um pouco
em dúvida quanto a essa atitude, mas ele
precisava do dinheiro para comprar heroína. Se
não lhe desse, seria forçado a roubar. Assim
me convenci de que estava agindo de modo
certo.
Por fim, chegou o dia em que ele deveria
seguir para o centro. Comprara-lhe algumas
roupas novas, sandálias e calção de banho,
pois o centro ficava próximo de uma praia.
Embrulhando aquelas coisas, sentia uma
enorme ternura por Ah Tsoi. Eu lhe dissera para
passar em meu apartamento e tomar um
banho, antes de ir para o centro.
Duas horas depois do momento em que
deveria ter chegado, ainda não havia o menor
sinal dele. Quando eu já estava começando a
achar que não viria mais, ele apareceu. Estava
imundo, mas não havia mais tempo para o
banho. Ele revelava uma atitude muito hostil,
negativa; mesmo assim fomos, e então o
entreguei ao Pastor Chan.
Fui deitar-me e dormi quase vinte horas
seguidas. Havia semanas que não dormia com
tranqüilidade. Estava exausta, mas
grandemente aliviada. Graças a Deus, Ah Tsoi
achava-se nas mãos de outra pessoa e era
problema dela. O pastor poderia falar-lhe de
Jesus e ajudá-lo a crescer. E eu poderia
procurar o próximo...
Fui despertada por um telefonema. Ah
Tsoi fugira do centro. Não suportara as dores
da desintoxicação forçada. Os outros tentaram
convencê-lo a orar, mas recusou-se, e, à noite,
escapou. O pessoal do centro tentou encontrá-
lo para convencê-lo a voltar, mas ele se
recusava terminantemente a retornar.
Senti como se uma parte de meu ser
houvesse morrido. Sentia-me muito abatida, e
deitei-me no chão e chorei. Deitada ali fiquei a
pensar que aquilo era o fim de tudo. Não sabia
o que mais poderia ter feito para socorrê-lo. Eu
dera a Ah Tsoi meu tempo, carinho, dinheiro,
alimento, e tentara falar-lhe de Jesus. Mas
nada disso adiantara. Eu fracassara.
Não estava zangada com Deus, mas
sentia-me muito decepcionada e confusa com
tudo que acontecera. Não entendia por que ele
permitira que eu me aproximasse de Ah Tsoi,
se aquilo não ia dar em nada. Afinal orei:
— Senhor, não quero mais saber desse
tipo de coisa, por favor. Não querer lidar com
viciados, pois não suporto isso. Eu só tinha
amor para dar a uma pessoa, e dei-o todo a
ele, mas não foi suficiente. Acho que não tenho
mais nada para dar.
No dia seguinte, pela manhã, peguei o
ônibus para ir à aula de chinês. Acomodei-me
como pude no meio de outros quarenta e
tantos passageiros de pé, quando, com o canto
do olho, avistei um rapazinho que era
deficiente mental. Virei o rosto, pois não queria
olhar para ele. E meu olhos deram com outro
viciado em drogas. A única coisa a fazer então
era fechá-los.
"Senhor", orei, "não estou olhando,
porque não desejo passar por todo aquele
sofrimento outra vez. Eu pensava que tu irias
ajudar-me, mas não deu certo. E por que não?"
Lembrei-me da época em que começara
a ver e a reconhecer viciados. Em uma rua,
havia mais de cem, inalando heroína
abertamente. Naquela ocasião, eu dissera a
Deus: "Valeria a pena dar minha vida por essa
gente, se tu me usasses para socorrê-los."
Aos poucos fui-me refazendo do
sofrimento que tivera por causa de Ah Tsoi, e
então comecei a ver os erros que cometera no
trato com ele. Tentara dar-lhe tudo que tinha,
mas estava tentando salvá-lo com minhas
próprias forças. Queria vê-lo livre das drogas,
mas ele não se achava tão desesperado, que
desejasse a libertação.
Eu não tivera coragem de forçá-lo a
libertar-se do vício. (Isso aconteceu antes de
eu haver presenciado a libertação de Winson,
operada pelo poder de Deus.) Estava
convencida de que Ah Tsoi precisava dos
cuidados de uma pessoa mais tarimbada.
Vendo que nem isso dera certo, sentira-me
derrotada.
Algum tempo depois, o Pastor Chan
convidou-me a tomar chá com ele. Ele
palmilhara sozinho aquela estrada. Com
determinação e coragem, criara o seu centro
de reabilitação de viciados, nos Novos Territó-
rios. Uma vez que o viciado era liberto da
droga, ficava ali um ano e meio, recebendo
carinho e disciplina, e assim podia crescer em
Cristo. Muitos dos que passaram pelo seu
centro haviam-se tornado obreiros cristãos. E
os rapazes de lá eram os únicos que eu
conhecia que não voltavam à droga. E ele fora
edificando sua obra aos poucos, com muitas
experiências e sofrimento.
Os assistentes sociais são instruídos a
não se envolverem emocionalmente com
aqueles com quem trabalham, mas eu sabia
que, se não tivesse tido uma aproximação
maior com as pessoas com quem trabalhava,
não teria permanecido. O fracasso no caso de
Ah Tsoi ensinou-me que não tinha capacidade
suficiente para pegar uma tarefa assim,
simplesmente porque era uma obra meritória.
Mas eu sabia que meus recursos próprios
estavam esgotados.
Entretanto, apesar de haver orado muito,
pedindo a Deus que não me aparecessem mais
viciados, aquilo não foi o fim. Descobri que
poderia voltar a cuidar deles, com o amor de
Deus.
Conhecendo melhor as quadrilhas e seu
funcionamento, cheguei à conclusão de que
havia tantos viciados entre eles, porque a
droga era muito barata e de fácil obtenção.
Uma noite entrei numa das salas de
comércio e consumo de heroína. Era numa
espécie de coberta, nos arredores da cidade,
mas funcionava com o conhecimento da
polícia. Estava imunda. Havia algumas mesas
longas, às quais estavam sentadas pessoas
que mais lembravam figuras
despersonalizadas. Senti como se estivesse
entrando num banquete diabólico, num jantar
estranho e silencioso. Pela quantia de cin-
qüenta centavos, um "garçon" fornecia os
pavios feitos de papel higiênico retorcido, a
folha de estanho e o funil de papelão
necessário para se "perseguir o dragão". São
poucos os viciados chineses que injetam he-
roína. Têm medo de tomar uma dose
excessiva.
Entre os cinqüenta e poucos presentes
ali, inalando a droga em seu festim macabro,
achava-se um rapazinho de uns quatorze anos.
Sua pele era pálida e sem vida, e suas forças
estavam esgotadas. A namorada, que devia ter
mais ou menos a mesma idade, estava
sentada ao seu lado', amparando-o nos braços,
enquanto ele aspirava aquele veneno. Então
me lembrei de que a moça tinha que comerciar
com seu corpo, a fim de pagar a droga para o
rapaz. Olhei os outros presentes que também
sustentavam o hábito pelo mesmo processo, a
menos que roubassem. Era uma cena
degradante, mas sentia-me fascinada e atraída
por aquilo. Senti a força de atração da droga,
que todo viciado em potencial conhece muito
bem, e que desafia toda a lógica. Ele sabe que
ela destrói, que leva a uma dependência total
e à depravação, mas ainda assim quer
experimentá-la. E depois que a experimenta
uma vez, sente-se forçado a continuar nisso,
até ficar acorrentado a ela.
Todo viciado tem um relacionamento de
amor e ódio com a droga. Na mente, ele a
detesta, mas seu corpo a deseja fortemente, e
atraiçoa a mente, fazendo-a crer que a droga é
sua salvação. Nenhum deles percebe quando
cruzou a fronteira que separa a condição de
simples curioso, que "brinca" com as drogas,
para a de viciado. Na primeira vez em que um
indivícuo toma a droga, ele vomita, mas depois
volta a tomá-la, só para ver se já consegue
sentir alguma coisa. Outro, talvez, experimente
poucos efeitos negativos, e fica pensando que
pode tomá-la sem problemas. Começa com
doses pequenas, mas daí a pouco tem
necessidade de aumentá-las. E vai tomando
doses cada vez maiores até morrer ou ser
preso.
Senti o poder de atração da droga. Era
muito forte. Era demoníaco.
No dia em que Winson veio ao clubinho e
foi liberto do vício, Deus me revelou que o
dragão podia ser derrotado. Naquele momento,
percebi que a experiência por ele vivida
poderia repetir-se em outros rapazes que se
convertessem. Pouco depois, Ah Ping disse-me
que um amigo seu, um viciado, desejava ir ao
nosso acampamento no verão, e aceitei-o
prontamente. Ah Ming era da Ilha de Hong
Kong, um quadrilheiro de grande influência ali.
Conhecemo-nos na balsa que nos conduzia à
Ilha Lamma, onde se situava o acampamento,
mas não quis apertar-me a mão, nem
conversar.
Nos primeiros dias, eu não teria auxiliares
masculinos, embora mais tarde dois rapazes
ingleses, Tim e Nick, fossem trabalhar conosco.
Por isso, orei a Deus nos seguintes termos:
"Senhor, mande-me somente as pessoas
certas. Não permita que venham os
problemáticos."
O acampamento ficava no alto de uma
montanha, um lugar lindo e tranqüilo. A
programação era bem delineada, com horários
de dormir bastante rígidos e trabalho bem
distribuído, mas era difícil fazê-la funcionar
sozinha. Eu e as poucas moças que foram
dormíamos nas barracas, enquanto os rapazes
acomodavam-se no enorme dormitório. Eu não
podia ir lá examinar os pertences deles nem
apagar as luzes. Mas podia orar a Deus, para
que barrasse a ida de problemáticos.
Ah Ming surgiu à porta do dormitório e
me viu sentada do lado de fora, em meio à
escuridão. Não tinha contado com isso.
— Éééé... eu... éeéé... gosto de olhar as
estrelas, disse improvisando uma desculpa.
— É, concordei. Eu também. São muito
lindas, não são?
Ficamos ali sentados várias horas,
mantendo uma conversa educada. Estava claro
que ele estava ansioso para dar uma saída, e
tomar sua droga. Afinal, fui-me deitar e ele
dirigiu-se para o outro lado do morro para
tomar sua heroína.
Eu pedira a Deus que impedisse a ida de
rapazes problemáticos, então tinha de concluir
que todos os que tinham ido haviam sido
enviados por ele. Os missionários haviam-me
dito que o melhor modo de se fundar uma
igreja era trabalhar com um converso de cada
vez. Depois que esse fosse crente e estivesse
bem firme, então poderia trabalhar com outro.
Eu fizera exatamente o contrário, e agora
estava com um dormitório cheio de
quadrilheiros. Comecei a pensar que talvez os
missionários tivessem razão.
Dois dias depois, Ah Ming havia esgotado
seu estoque de drogas. Mandou que um rapaz
viesse dizer-me que tinham um problema
urgente a resolver, e portanto iriam embora.
Como estávamos realizando o culto matutino,
três deles fugiram.
Pedi a Nick que fosse atrás deles. Aqueles
ardilosos rapazes haviam elaborado uma boa
explicação para sua fuga, mas felizmente Nick
não sabia falar chinês e continuou atrás deles.
Subiram e desceram três morros, sempre
escutando aquele inglês dizendo
repetidamente:
— Vocês têm que voltar! Jesus os ama!
Mas o desejo deles pela droga era tão
forte, que subiriam cem morros, se fosse
preciso, para chegar à balsa e aos
fornecedores da heroína.
Enquanto isso, lá no acampamento,
estávamos orando para que voltassem.
De repente, sem saber bem por que
estavam agindo assim, os três rapazes
estacaram. Viraram-se e começaram a voltar.
Quando reapareceram com Nick, pareciam
bastante encabulados. Não sabiam explicar,
nem a si mesmos, aquela mudança de direção.
E quando sugeri a Ah Ming que tivéssemos
uma conversa, ele fez que sim.
Caía uma chuva forte e entramos numa
barraca pequena. Ah Ming estava muito
inquieto, incomodado com a situação, mas não
podia sair da barraca por causa da chuvarada.
— Lamento muito, Ah Ming, principiei,
você estar-se sentindo tão mal, mas queria
dizer-lhe uma coisa que poderá ser-lhe muito
útil.
Desenhei três cruzes no chão.
— Vamos imaginar que podemos
enxergar todos os erros que uma pessoa
praticou. Vamos pegar este lap-sap (lixo) para
representar esses pecados, continuei, pegando
um pouquinho de terra, tampinhas de garrafa
e pedaços de papel que havia por ali. Quando
Jesus foi crucificado, de cada lado dele
também foram crucificados dois homens. Eram
ladroes e talvez até já tivessem matado
alguém.
Coloquei um montinho de lixo sobre as
cruzes laterais, deixando vazia a de Jesus.
— Sabe por que essa do meio está sem
lap-sap? indaguei.
— Sei. Jesus nunca fez nada errado. Não
tinha pecado.
Apontando para uma das outras cruzes,
continuei:
"— Ei, então você é o Cristo, não é?"
disse o homem daqui em tom de ironia. "Então
prove. Chame seus capangas para salvá-lo, e
salve-nos também."
"— Você não devia falar assim", objetou o
ladrão da cruz da direita. "Nós erramos,
merecemos morrer. Mas esse homem não fez
nada", e depois virou-se para Jesus e disse:
"Senhor, lembre-se de mim quando chegar ao
seu reino."
"— Hoje você estará comigo no paraíso",
respondeu Jesus.
E ao dizer isso, peguei o montinho de
terra da cruz da direita e coloquei-o sobre a de
Jesus.
— Você está com vontade de vomitar?
indaguei. Notara que a fisionomia de Ah Ming
estava esverdeada, e que ele tremia.
— Pois bem, Jesus sentiu a mesma coisa.
Só que foi muito pior, pois além de ficar com
os pecados daquele homem, recebeu todos os
pecados e as dores de todas as pessoas do
mundo, para que hoje não tivéssemos pecados
nem dores.
Ficamos os dois olhando para o chão,
durante alguns minutos, fitando a mensagem
ali exposta. Depois eu disse:
— O ladrão desse lado foi perdoado e
hoje está vivendo com Deus. Mas por que o
outro não foi?
— Porque um creu e o outro não,
respondeu Ah Ming.
— E é isso que você precisa fazer,
repliquei. Se você quiser entregar suas dores a
Jesus, ele poderá removê-las agora mesmo.
Você quer?
Ah Ming não estava querendo muito.
Seus olhos lacrimejavam, e ele comprimia o
estômago com as mãos. Ainda estava
chovendo, e ele se achava naquela barraca.
Afinal, não conseguiu suportar mais.
— Suponhamos, disse ele com um suspiro
resignado, suponhamos que eu faça uma
tentativa.
Isso bastava. Então, fez uma oração clara
pedindo a Jesus que removesse a dor e todos
os seus pecados, para que pudesse começar
uma nova vida. Naquele momento parou de
chover.
Meus amigos ingleses vieram até a
barraca, e impusemos as mãos sobre Ah Ming.
Oramos, e ele recebeu o dom do Espírito
Santo.
Uma semana depois, quando
regressávamos do acampamento, o rapaz me
relatou como Deus atendera às nossas orações
naquela noite. Ele fora deitar-se ainda um
pouco confuso, e tivera um sonho bastante
estranho. Sonhara que se achava deitado
numa cama de madeira, no alto da montanha.
Ventava muito, e ele ouviu alguém batendo à
porta. Como estava-se sentindo muito mal,
devido à carência da droga, não foi atender.
Mas a pessoa bateu novamente, e ele foi ver
quem era. Viu um homem com uma vela na
mão. Ele voltou a deitar-se, pois estava de
muito mau humor. Na terceira vez que o
homem bateu, Ah Ming pensou: "Coitado desse
homem, não deve ter para onde ir." Abriu a
porta, e foi deitar-se de novo. O outro entrou
no barraco e, aproximando-se da cama,
colocou a vela sobre ela. Em seguida, disse a
Ah Ming que se sentasse, e impôs as mãos
sobre ele com muito carinho. As dores
desapareceram, e o rapaz nunca mais sentiu
nada.
O apito estava trilando. Todas as manhãs,
os rapazes tinham que fazer a ginástica
costumeira. Saltaram todos da cama. Ah Ming
também se levantou, mas estava apalpando o
leito. Ah Ping perguntou-lhe o que estava
fazendo.
— Estou procurando as gotas de parafina
da vela, replicou.
O sonho lhe parecera tão real, que ele
tinha certeza de que Jesus estivera ali de
verdade. Naquele mesmo dia, foi batizado no
mar.
Embora Ah Ming tivesse um emprego nos
estaleiros, ele próprio não fazia nada. Ficava
deitado o tempo todo, enquanto seus "irmãos
menores" lhe levavam heroína. No primeiro dia
de serviço, após o acampamento, foi orando
pela balsa que atravessava a baía. Estava tão
imerso na oração, que nem notou que alguém
havia-lhe furtado as sandálias. Mas seguiu em
frente, para o trabalho, sem se deixar abater, e
entrou pelo portão descalço. Logo notou que
um grupo de uma quadrilha rival vinha em sua
direção armado para a luta. Instintivamente,
pegou a primeira arma que viu: dois pesados
mourões de ferro. No acampamento, ele já
havia dado instruções a seus irmãos com
relação àquela briga. Vendo que Ah Ming se
preparava para ir ao ataque, eles também
pegaram em facões. De repente, o rapaz se
lembrou de uma coisa.
— Epa! Eu vim pela balsa orando para ter
paz! Não posso brigar com essa gente.
Largou as armas que pegara e, sentando-
se no chão, pôs-se a orar novamente. Instantes
depois, ergueu os olhos e viu que seus
inimigos o cercavam, olhando-o com ar
intrigado.
— O que você está fazendo? indagou o
chefe deles.
— Orando. Agora sou crente. Quer saber
como foi?
Responderam que sim, completamente
espantados, e Ah Ming pôs-se a narrar-lhes o
que sucedera. Os outros ficaram tão
impressionados com o fato, que alguns
passaram a assistir às nossas reuniões.
Desse modo nosso clubinho foi crescendo
mais e mais. Eu ainda não conhecia
pessoalmente o afamado Goko, mas seu
"irmão grandalhão" ia ali muitas vezes.
Algumas semanas depois do
acampamento, estávamos orando certo dia,'
quando um dos rapazes teve uma visão. Como
todos os que haviam crido em Cristo tinham
recebido também o Espírito Santo, não nos
surpreendíamos com as maravilhas que ele
operava. Na visão, todos estávamos descendo
a rua, enfileirados, cantando e dançando. Mas
apenas doze se dispuseram a ir. Os outros se
desculparam.
— Poon Siu Jeh, nós moramos neste lugar.
Um dos corinhos de que mais
gostávamos no clubinho era "Não tenho prata
nem ouro". Um dos moços tocava violão.
Peguei meu acordeon, uns dois ou três
pandeiros, e os outros doze vieram atrás de
nós, enfileirados. Quando chegávamos ao
verso que dizia "andando e saltando e
louvando a Deus", todos nós dávamos alguns
pulos.
Muitos dos comércios do vício naquela
hora tiveram de parar. Ao passarmos pelo
cinema pornográfico e pelas salas de jogo, os
homens saíram para ver o que estava
acontecendo. Muitas daquelas pessoas já
tinham visto os crentes distribuindo
papeizinhos pelas ruas, mas nunca os tinham
visto cantar e dançar por ali.
Depois de passar pelos antros de ópio,
chegamos às duas maiores salas de comércio
de heroína. Ali paramos, e Ah Ming começou a
pregar. Dentro de uma delas um jovem alto,
chamado Ah Mo, acabara de injetar em si uma
dose. Ele pouco ou nenhum prazer alcançava
mais com a droga, pois nem bem acabava de
tomar uma dose, e já precisava pensar em
como obter dinheiro para a próxima. Já estava
maquinando o próximo assalto, quando
escutou aquela cantoria lá fora. Saindo de lá,
ficou espantado de ver seu amigo Ah Ming
contando como Jesus havia transformado sua
vida.
Realmente acontecera uma coisa
maravilhosa com o rapaz, pois umas três
semanas antes os dois tinham tomado heroína
juntos. Esquecendo sua intenção de praticar
um assalto, acompanhou a fileira de crentes
até o clubinho. Ali pôs-se a escutar
maravilhado as palavras dos moços que lhe
diziam como Jesus poderia transformar-lhe
toda a vida. Mas ele abanou a cabeça, e pediu
para falar comigo em particular.
— Não posso ser crente, Sr.ta Poon. Matei
minha esposa.
E me narrou a trágica história de sua
ascensão na quadrilha pela fama de bom
brigador. Ele costumava jogar pessoas para
fora de boates e bares nos mais chiques
setores da cidade. Em pouco tempo, tinha o
controle de um pequeno império. Vivia com
uma recepcionista de um dancing, mas tinha
mais três amantes. Quando foi preso, a
recepcionista o visitou na cadeia. Ela o amava
realmente. Mas depois que foi solto, continuou
a procurar as outras mulheres. Ela começou a
tomar drogas, e, certa vez, foi levada quase à
morte para o hospital, onde fez lavagem
estomacal. Mas Ah Mo não largou sua vida de
libertinagem, e ela tomou outra dose
excessiva. Na terceira vez em que o fez,
morreu no hospital. Ele ficou profundamente
abalado com o senso de culpa, e, num impulso
de autopunição, entregou-se às drogas
também.
Quando eu lhe disse que poderia
encontrar perdão em Cristo, seus olhos
ganharam nova esperança. Orou recebendo a
Jesus e saiu dali pisando nas nuvens. Alguns
dos velhos companheiros que se achavam lá
fora, no beco, zombaram dele ao ver a
expressão de seu rosto.
— Ele ficou religioso, gente, diziam. Ficou
religioso.
Mais tarde Ah Mo me disse:
— Não me importei com aquilo, pois meu
coração estava leve.
Eu presumira que, como Winson e Ah
Ming tinham sido curados milagrosamente do
vício, todos os que cressem o seriam também.
Mas Ah Mo não o foi, e continuou a tomar
drogas.
Pedi ao Pastor Chan que o recebesse em
seu centro, mas não havia vagas, e ele teve de
esperar várias semanas.
— Glória a Deus! disse Ah Mo alguns dias
depois, quando veio para o culto de domingo.
Essa semana não precisei assaltar ninguém
para comprar minha heroína. Arranjei um
emprego.
Quando fiquei sabendo qual era o
emprego, eu mesma não consegui dar graças
a Deus. Ele estava trabalhando em uma das
salas como tin-man-toi (metereologista). Todas
as noites, tinha que ficar sentado em uma das
entradas da Cidade Murada. Em seu maço de
cigarros havia um plugue elétrico. Se visse um
grupo de policiais aproximando-se, ou um
investigador do departamento de narcóticos,
ou um membro de uma quadrilha inimiga, sua
tarefa era introduzir o plugue numa tomada
que havia na muralha. Isso disparava um
alarme nas várias salas, e, quando o intruso
chegasse lá, toda a atividade estaria
paralisada.
Para fazer este serviço, Ah Mo recebia
cerca de HK$ 15,00 dólares diários, que eram
suficientes para a heroína, mas não para o
arroz.
Todos os dias eu lhe dava um pouco de
alimento. Aprendera que não devia dar
dinheiro. Ele dormia num beco atrás dos
banheiros públicos de Kowloon, pagando para
isso a quantia de HK$ 15,00 dólares a outro
homem que se arvorara em "dono" da rua.
Quase todas as vezes em que ia lá, eu me
sentava ali e orava com ele, embora
geralmente estivesse sonolento.
Dei graças a Deus quando acabou-se
aquele trabalho de vigilante. Ah Mo foi para o
centro de reabilitação, libertou-se da droga, e,
em um mês, engordou quase dez quilos. Mais
um dragão beijara a lona.
Após a cura miraculosa de Winson,
continuei mandando recados a Goko. Ia aos
antros de jogo e deixava ali meu nome;
conversei com a esposa dele. Afinal, concordou
em falar comigo. Winson chegou com um
recado, dizendo que ele me convidava para
tomar chá no Restaurante Fairy, fora da
cidade. Enquanto me encaminhava para lá,
fiquei a imaginar como seria Goko. Sabia que
era alto e forte, e que fora um grande jogador
de futebol antes de se entregar ao ópio. O fato
de ser viciado fazia um forte contraste com o
terror que seu nome inspirava. Era um dos
mais velhos chefes das quadrilhas, e
orgulhava-se de observar bem as leis do seu
mundo, como, por exemplo, encarregar-se dos
funerais de um companheiro assassinado.
Ele me reconheceu primeiro, já que eu
era a única ocidental a entrar no restaurante.
Era um homem de uns trinta e cinco anos,
muito bem vestido, e achava-se sentado
sozinho. Fez um gesto cortês, indicando que
me sentasse. Olhando-o de frente pela
primeira vez, pude perceber que o ópio deixara
profundas marcas de dissipação em seu rosto
forte. Sorriu, exibindo dentes estragados e
escurecidos pela droga.
Educadamente, aquele impiedoso chefe
da corrupção indagou-me o que iria pedir.
Entregamo-nos a uma conversa agradável, até
que não agüentei mais e disse abruptamente:
— Não precisa ser tão educado comigo.
Vamos parar com essa hipocrisia, por favor.
Não temos a mínima simpatia um pelo outro.
Por que me trata com tanta gentileza?
Ele pensou por uns instantes.
— É que creio que você gosta de meus
"irmãos" assim como eu gosto.
E ele não estava falando por falar. Era
conhecido de todos o cuidado que tinha por
seus seguidores.
— É, realmente gosto deles, concordei.
Mas detesto tudo que você faz, e as coisas em
que está envolvido.
Então pôs de lado as gentilezas e passou
a falar abertamente.
— Poon Siu Jeh, tanto eu como você
conhecemos o poder. Eu o utilizo desse jeito (e
cerrou os punhos), e você desse jeito (apontou
o coração). Você possui um poder que não
tenho. Não quero meus "irmãos" amarrados à
heroína, mas não consigo fazer com que
larguem. Mas acho que Jesus consegue.
Fiquei maravilhada ao pensar nas
implicações do que ele acabara de dizer.
— Por isso, continuou ele, resolvi entregar
todos os viciados a você.
— Não, repliquei prontamente. Já sei o
que você quer. Quer que Jesus os liberte das
drogas, para que voltem a lutar na quadrilha.
Mas os cristãos não podem servir a dois
senhores. Eles têm que seguir ou a Cristo ou a
você. Nós dois estamos seguindo rumos
diferentes. Não tenho a menor intenção de
ajudar seus "irmãos" a se libertarem da droga,
simplesmente para você pegá-los de volta.
Tenho certeza de que, se voltarem a seguir
você, retornarão ao vício também.
— Está bem, então, disse ele erguendo a
cabeça lentamente. Eu libero aqueles que
quiserem seguir a Jesus.
Mal pude acreditar no que ele estava
dizendo. Uma sociedade tríade nunca liberava
seus membros. Quando uma pessoa se unia a
uma quadrilha, era membro dela para o resto
da vida. Se alguém tentasse sair, arriscava-se
a ser severamente castigado ou até morto. E
ali estava Goko, voluntariamente, liberando
alguns de seus "irmãos".
— Sabe o que vou fazer? disse ele depois.
Vou dar-lhe todos os imprestáveis e ficar com
os bons para mim.
— Ótimo, repliquei, Jesus veio para os
imprestáveis mesmo.
E foi esse o estranho pacto que fizemos.
A partir daquele dia, Goko sempre mandava os
viciados para eu curá-los. Quando ouviu falar
do que acontecera a Johnny, ele disse:
— Vou ficar de olho em vocês. Se ele
permanecer firme uns cinco anos, eu também
terei que crer.
9
"Doenças" da Infância
Winson estava em perigo. Ele me
procurou todo animado.
— Poon Siu Jeh, tenho que dar muitas
graças a Deus. Ontem à noite, fui a uma sala
de ópio e um deles me ofereceu a droga de
graça. Tive vontade de tomar. Mas orei, e Deus
me deu forças para resistir.
Fiquei furiosa com ele.
— Isso não é razão para "louvar o
Senhor", Winson, disse-lhe. Isso é tentar a
Deus. Você nem devia ter ido lá.
Mas o problema é que Winson não tinha
outro lugar para dormir. Na época em que se
convertera, estava morando nessa sala de
ópio. Eu já lhe dissera para largar a quadrilha e
seguir a Jesus, mas na prática isso era o
mesmo que dizer: "Ide em paz, aquecei-vos e
fartai-vos", e não fazer nada para suprir suas
necessidades materiais. Tanto Winson como Ah
Ping ainda estavam envolvidos com as
quadrilhas, pelo simples fato de residirem na
Cidade Murada. Quando um "irmão" deles era
atacado, ficavam num dilema muito grande. O
primeiro impulso deles era defendê-lo. Era
muito difícil dar as costas aos amigos com
quem haviam-se criado e de quem gostavam.
Compreendi também que a mera presença
deles ali era uma aprovação às atividades das
quadrilhas.
Ah Ming também encontrou muitas
dificuldades.
— Antes de me tornar cristão, disse, eu
era bastante conhecido pela minha capacidade
de comando. Se eu dizia: "Vai", meus
seguidores iam. Se eu dizia: "Faca", eles
esfaqueavam. Nem paravam para pensar. Mas,
agora, quando eles vêm se queixar comigo,
tenho que parar e pensar. Não posso mandá-
los lutar, pois sou crente. Pela primeira vez na
vida, tenho parado para pensar no sentimento
das vítimas. E meus "irmãos" estão perdendo o
respeito por mim, e isso me magoa.
Andando pela Cidade Murada, eu estava
sempre encontrando ex-viciados e
quadrilheiros que revelavam um grande desejo
de mudar de vida. Tinham que ser retirados
dali, daquele ambiente de pecado. Mas não
havia outro lugar onde pudessem viver. Pus-me
a procurar lares ou pensões de crentes que
pudessem recebê-los, mas sempre exigiam
que eles tivessem um emprego ou
estudassem, e que pudessem dar referências
de um pastor e pagar um mês de aluguel
adiantado. E como nenhum dos recém-
convertidos que eu conhecia preenchia essas
exigências, era impossível arranjar lugar para
eles.
Eu procurara colocar um desses rapazes
em casa de cada família inglesa que eu
conhecia. Mas essa situação não foi bastante
satisfatória, pois os garotos precisavam de
maior vigilância e de um disciplina-mento mais
rígido, o que tais pessoas às vezes não podiam
dar. Além disso, a maioria delas, depois de
algum tempo, achava muito desagradável ter
um quadrilheiro em casa, mesmo sendo um
quadrilheiro convertido.
Mary Taylor rompeu em lágrimas na
primeira vez que viu nosso apartamento da
Rua Lung Kong. É verdade que as paredes
estavam rachadas, a ponto de desmoronar; no
telhado havia um grande rombo, e a luz não
estava ligada. No entanto, para mim era um
presente do céu. Havíamos orado pedindo a
Deus um lugar onde pudesse abrigar minhas
ovelhas, e esse era o lugar.
Encontrei esse apartamento quando
estava andando nas vizinhanças da Cidade
Murada, indagando se ali havia cômodos para
alugar. Tinha mais de trezentos metros de área
ao todo, e havia uma escada que dava para
um terraço que fora parcialmente recoberto
com folhas de zinco ondulado, e assim era um
quarto a mais.
Fiquei tão empolgada quando o vi, que
enxerguei apenas as possibilidades. Mas Mary,
sendo mais prática, via apenas as falhas dele.
Os rapazes da Cidade Murada nos ajudaram a
fazer os reparos necessários, contribuindo com
suas habilidades, ou mesmo sem elas.
Baseadas na premissa de que o serviço
sai com mais rapidez se o interessado se acha
presente, eu e Mary nos mudamos para lá,
acomodando-nos entre montes de entulho,
sem luz e com um encanamento de água não
muito confiável. Uma das grandes vantagens
era o jardim do terraço, depois que removemos
o lixo que ali havia e plantamos begónias,
cactus e trepadeiras. Colocamos a trepadeira
de forma a vedar a vista à casa do outro lado
da rua.
Era então hora de resolver se iria receber
ali rapazes ou moças, já que tantos estavam
desabrigados. Se recebesse os rapazes, o que
não era muito aconselhável visto ser eu
solteira, seria necessário recusar as moças.
Mas a chance de opção foi-me tirada das
mãos, quando Ah Ping e Ah Keung tiveram de
sair da casa que eu arranjara para morarem, e
não tinham mais para onde ir, a não ser a
Cidade Murada ou nosso apartamento da Rua
Lung Kong.
Nossa família foi aumentada com a
chegada de Joseph, o antigo presidente de
nosso clubinho. Winson também largou a sala
de ópio e passou a morar conosco. Tivemos
que arranjar um jeito de Ah Ping ir morar com
alguns amigos. E foi assim que criamos uma
comunidade cristã, para auxiliar os rapazes no
seu crescimento espiritual.
Eu me encarregava de muita coisa.
Cozinhava, comprava roupas e alimento para
os rapazes, cuidava da casa, arranjava escola
ou emprego para eles. Também abríamos o
clubinho quase todas as noites.
Quando finalmente me deitava para
dormir, era acordada por viciados que queriam
ouvir falar de Jesus. Prostitutas me ligavam da
delegacia; detetives vinham à nossa porta
procurando informações, e juízes me enviavam
certos casos, pois nossa casa era uma das
poucas que recebiam delinqüentes.
Afinal, nosso apartamento acabou sendo
misto. Uma noite ouvi uma batida à porta.
Quando abri, vi uma mocinha com um bebê
num dos braços e uma mala enorme na outra
mão. Atrás dela estavam seu irmão e duas
irmãzinhas menores.
— Poon Siu Jeh, murmurou ela. Viemos
morar com você.
Eu conhecera aquelas crianças havia três
meses e tivera muitos contatos com a família.
A história da família Chung era de estarrecer.
Moravam num quartinho minúsculo onde só
havia uma cama de casal. O teto era um
pedaço de linóleo que, quando chovia, ficava
cheio de água e abaulado no meio. Era nessa
cama que as crianças aprendiam a andar;
dormiam nela, cozinhavam nela, brincavam e
faziam os deveres de casa nela. Todos os cinco
eram muito acanhados, e quando eu ia visitá-
los, viravam-se para a parede, ignorando
minha presença.
Nunca os vi comer nada a não ser
congee, uma espécie de mingau de arroz
cozido em água, porque o infeliz pai gastava
tudo que tinha em heroína e não dava à família
nenhum sustento. O único dinheiro que
entrava ali era a Sr.a Chung quem ganhava,
carregando água. Ela buscava água nas fontes
que havia fora da Cidade Murada, levando-a às
casas. Ganhava cinco centavos por balde que
entregava, mas ficou reumática e não podia
mais caminhar com os baldes pesados.
Embora estivesse esperando o sexto
filho, ela estava sempre sorrindo. Recebera a
Jesus no coração e muitas vezes orava
conosco. Costumávamos levar-lhe bacon, peixe
seco e azeite para melhorar um pouco seu
arroz. Se lhe déssemos dinheiro, o marido o
roubaria para comprar heroína. No Natal,
demos brinquedos às crianças e pagamos a
taxa escolar para elas. Até mesmo os filhos
tinham que trabalhar nas indústrias ali, para
poderem comprar seu arroz. Levei o caso
dessa família ao Departamento de Bem-Estar
Social, solicitando alguma ajuda financeira,
mas os sociólogos encarregados do
levantamento eram muito desinteressados.
Acompanhei a Sr.a Chung até lá, pois não sabia
ler. Ficamos sentadas lá o dia todo, esperando
a assistente designada para cuidar do caso
deles. Sugeri à moça que tratasse o casal
como duas pessoas distintas, pois o marido
raramente aparecia em casa, e não contribuía
para a renda da família. Mandaram-me sair,
enquanto a Sr.a Chung era entrevistada. Mais
tarde, ela me disse que tinha ido outra vez à
repartição para assinar o pedido de auxílio, e
que devíamos aguardar uma carta deles.
Passaram-se quatro meses e a carta não veio.
Fui ao departamento para verificar, e a
resposta que recebi foi:
— Essa família não se enquadra dentro
das disposições para receber auxílio de
pobreza.
— Se eles não estão enquadrados, então
quem está? indaguei. Não conheço ninguém
que seja mais pobre que eles. E agora têm
uma criança recém-nascida.
Ao que parecia, os encarregados haviam
solicitado a presença do marido na repartição
para fazer uma declaração de rendimentos.
— Ganho HKS600 dólares por mês e dou
400 à minha esposa, dissera ele.
Isso era uma grande mentira, mas, para
um chinês, é muito vergonhoso ter de
confessar que não consegue sustentar sua
família. Essa informação errada foi anotada, e
quando a Sr.a Chung foi lá, pediram-lhe que
endossasse a declaração do marido. Ela não
sabia o que estava escrito ali. Pensou que
estivesse assinando a petição de auxílio, e
então colocou sua marca.
— Mas vocês não viram que ele é
viciado? Não se pode confiar na palavra de um
homem assim!
— Ele disse que está completamente
liberto da droga, replicaram.
— Mas não sabem reconhecer um
viciado?
O pessoal ali acabou-me tachando de
"criadora de caso", mas voltaram atrás na
decisão, e afinal a Sr.8 Chung recebeu auxílio
do governo.
Então ajudamos a família a mudar-se da
Cidade Murada. Meus rapazes contrataram um
caminhão, e retiramos a cama de casal dali.
Debaixo dela encontramos vários tambores
cheios de roupa usada. Anteriormente, eles
tinham estado em contato com uma instituição
de caridade que lhes dera uma dúzia de
tambores de roupas, enviadas de outros países
para os "refugiados". A Sr.a Chung tinha um
desejo tão forte de possuir coisas, que não
jogava nada fora. Os tambores estavam
apinhados de baratas. Havia muitas e muitas
roupas que não prestavam mais e amontoei
uma porção delas junto às latas de lixo na rua.
No dia seguinte, quando fui lá, soube que a
filha mais velha, Ah Ling, as apanhara de volta.
Mais ou menos na época em que nos
mudamos para o apartamento da Rua Lung
Kong, a Sr.a Chung me disse que recebera
ordens do governo para arranjar trabalho, já
que não podiam sustentar a esposa de um
viciado indefinidamente. Ela lhes respondeu
que não estava bem, mas eles se recusaram a
ajudá-la por mais tempo. Duas semanas
depois, ela começou a tossir e morreu. Já
padecia com tosse havia muito tempo e tinha-
se consultado várias vezes.
Senti que, em parte, eu era culpada de
sua morte. Sabia que estava tossindo, mas
nunca me dera ao trabalho de acompanhá-la
ao médico, e assim não fora diagnosticado que
estava com tuberculose. E ela morreu. Uma
morte que poderia ter sido evitada.
Após o sepultamento dela, continuei a
visitar e a ajudar as crianças, que estavam
sendo exploradas pelo pai. Ele mandou a filha
de treze anos trabalhar numa fábrica, por um
minguado salário de HK$ 100 dólares por mês.
E tinha que entregar todo o dinheiro a ele.
Quando fazíamos passeios com o clubinho,
levávamos todas as crianças, e foi então que
pediram para morar em minha casa. Disse-lhes
que, pela lei, eles estavam sob a guarda e
tutela do pai. Mas, um mês depois, fizeram a
mala e fugiram de casa para morar comigo.
Parados ali à minha porta, constituíam
um quadro patético. Estavam inteiramente
convictos de que eu os receberia. Em minha
casa já havia rapazes dormindo no chão, mas
não tinha outra opção, senão acolhê-los. Eram
crianças muito retraíadas, e só depois de muito
tempo foi que conseguiram conversar comigo.
Nossos rapazes eram muito bondosos com
aquelas crianças, e gostavam imensamente de
brincar com o bebezinho.
Depois, nossa família aumentou mais
com as constantes visitas da Sr.a Chan, que eu
conhecera havia alguns meses. Seu filho, Pin
Kwong, era um viciado terrível, que não tinha a
menor intenção de mudar de vida. Muitas
vezes, pedi-lhe notícias de sua mãe, mas ele
sempre me dizia:
— Ela não quer saber de crentes; é uma
adoradora de ídolos.
Quando ele foi preso mais uma vez,
procurei a mãe e encontrei-a de cama, em seu
quartinho na Cidade Murada. Ela resolvera
morrer, ao saber que o filho fora preso mais
uma vez. Pin Kwong era toda a sua vida. As
mulheres chinesas em geral têm muito orgulho
dos filhos homens, mas o dela era um perdido,
e por isso ela não tinha mais vontade de viver.
Ele não queria que eu visitasse a mãe, para eu
não saber que a explorava. Quando a
encontramos, ela já estava recolhida havia
vários dias, sem se alimentar, e achava-se
enfraquecida. Então resolvemos tomar provi-
dências para restaurar-lhe o animo. Demos-lhe
alimento e falamos-lhe do Pai celestial, que
tinha dado ao mundo o seu bem mais precioso,
o seu Filho, só porque a amava.
A Sr.a Chan nunca tinha ouvido falar de
Cristo.
Impusemos as mãos sobre ela, orando
em voz alta e pedindo a Deus que ele próprio
lhe falasse de um modo que ela pudesse
compreender. Terminada a oração, ela ergueu
os olhos, sorriu e disse que fora curada da
"doença do pulmão" e que já conseguia
respirar sem dificuldade. E nunca mais sentiu
nada.
Naquela noite ela sonhou que via um
homem vestido com um longo manto branco,
aproximar-se dela com os braços estendidos,
pendindo-lhe que fosse a ele e se batizasse. A
partir daquele momento, ela foi sempre uma
pessoa alegre e radiante. Quando nos
mudamos para a Rua Lung Kung, demos-lhe
uma chave da casa, e ela estava sempre
aparecendo por lá, fazendo a limpeza ou
cozinhando para nós, e nos apresentava os
negociantes do mercado local, seus
conhecidos, que passaram a vender-nos
alimentos por baixo preço. Gostava
imensamente da nova família que adotara e
ficava por ali dando ordens a todos.
Como não soubesse ler, pedi aos rapazes
que lhe ensinassem versículos da Bíblia. Levou
uma semana para aprender: "Disse Jesus: Eu
sou o pão da vida".
Três anos antes, certa noite, íamos ter um
estudo bíblico, e Dora viera até a Cidade
Murada para interpretar para mim. Foi uma
dessas ocasiões em que só um rapaz veio ao
culto. Fiquei muito irritada, e foi esta uma das
raras vezes em que desejei estar na Inglaterra.
E expressei esses sentimentos. Quando
orávamos, Deus deu uma mensagem em
línguas ao rapaz, e Dora interpretou-a.
— Ninguém que tenha deixado casa,
irmãos, irmãs, mãe, pai ou filhos, ou terras por
amor a mim ou ao evangelho deixará de
receber cem vezes mais casas, irmãos, irmãs,
mães e filhos, e terras nesta vida, e, na vida
futura, a vida eterna.
Imediatamente abri a Bíblia em Marcos e
li esses versos, e vi que realmente o texto dizia
que receberíamos ainda nesta vida cem vezes
mais. E naquela noite reivindiquei o
cumprimento dessa promessa.
— Senhor, disse, gostaria de ter cem
casas, cem irmãos e irmãs. E também cem
mães e filhos.
Contei então o pessoal ali, naquele
apartamento da Rua Lung Kong, e vi que devia
ter pelo menos uns cem irmãos e irmãs. Como
ainda era pequeno o número de mães,
apareceu então a Sr.a Chan. Mas vieram outras
mães também.
Certo dia fui procurada por um rapaz que
acompanhava sua avó. Era bem velhinha e
debilitada, e tinha um curativo na cabeça.
— Quero ser batizada, disse ela com voz
esganiçada.
Fiquei logo desconfiada.
— Se a senhora ainda não recebeu a
Jesus, batizar não significa nada. Se quiser que
eu lhe fale dele, terei imenso prazer, mas se o
que a senhora quer é apenas o certificado, não
posso dar-lhe. Aqui em nossa igreja não damos
certificados.
A velhinha tinha levado um tombo e
ferido a cabeça. Estava com receio de morrer,
sem ter um lugar para ser enterrada. Em Hong
Kong havia poucos lugares. Mas, como
membro de uma igreja, ela conseguiria um.
Levei-a à Sr.a Chan, que fez amizade com ela e
falou-lhe de Cristo. A velhinha teve uma
conversão genuína, foi batizada e seis meses
depois morreu, tendo já o seu lugar reservado
no céu.
Eu não fazia idéia de que cuidar dos
rapazes em minha casa iria ser tão trabalhoso.
Cometera um erro básico. Tinha pensado que
"se alguém está em Cristo é um novo homem",
ao passo que o texto bíblico diz que "é nova
criatura". Eles eram como recém-nascidos, e
tinham muito que aprender. A ignorância deles
sobre as condições normais de vida era de
estarrecer.
Alguns, como Mau Jai, tinham vivido pelas
ruas desde a idade de cinco anos. Ele não
pudera viver em sua própria casa, porque o pai
tinha duas esposas, e a segunda, sua mãe,
caíra no desagrado dele e os filhos dela foram
expulsos de casa. Não tiveram uma infância
normal. Logo tornaram-se peritos na arte da
astúcia e da trapaça. Como estavam
acostumados a ficar acordados a noite toda,
não compreendiam por que tinham que ir
dormir à meia-noite. Levantavam a hora que
acordassem. Se não sentissem vontade de ir
trabalhar, não iam. Os regulamentos da casa
eram logo associados com a idéia da prisão, e
não os observavam da forma devida.
Por vezes, eu achava que eram eles que
estavam-me dirigindo, e não eu a eles. Um
exemplo de um caso assim foi o de Ah Hung,
que nos fora enviado pelas autoridades,
supostamente liberto da dependência à droga.
Na verdade, ele recomeçou a tomar heroína no
mesmo dia em que foi solto. Portanto, não foi
surpresa para nós, quando perdeu o emprego e
desapareceu de casa. Certo dia, reapareceu
completamente drogado, confessando que
havia participado de um assalto. Nós o
convencemos a entregar-se, mas fugiu de
novo. Como mencionara uma arma, liguei para
a polícia, e, daí a pouco, seis viaturas cheias de
detetives vieram pelo túnel, cantando pneus, e
pararam diante do prédio. Num instante,
entraram no apartamento, revólveres em
punho, como se pensassem que ele ainda
estava lá. Depois se foram, deixando alguns de
vigia, os quais se revezavam, guardando a
casa vinte e quatro horas por dia. Numa noite,
os dois que estavam de guarda largaram seu
turno e foram procurar um bom restaurante,
deixando-nos um número de telefone, onde
poderíamos encontrá-los.
Era tudo mentira. No dia seguinte, Ah
Hung apareceu e explicou que não havia
participado realmente do crime. Não acreditei,
e levei-o à delegacia para confessar. Foi a
melhor coisa que poderia ter-lhe acontecido,
pois soubemos que não poderia mesmo ter
tomado parte no assalto. Todos zombaram
dele, por haver inventado aquela história sob o
efeito de drogas. Mas era exatamente o que
precisava acontecer para que se comprovasse
o fato de que ainda estava viciado, e chegasse
ao ponto de desejar auxílio espiritual.
Estávamos sentindo claramente que os
rapazes da Cidade Murada precisavam de uma
disciplina mais forte. Em parte, eu tinha
dificuldade nisso, pois me relacionara com eles
como amiga, e tornou-se difícil a transição, e
colocar-me na posição de pastor ou professora.
Assim, eles chegavam em casa a qualquer
hora do dia ou da noite, e não estavam
crescendo espiritualmente, como eu desejava.
Comecei a orar a Deus para que mandasse
alguém que pudesse encarregar-se dos
serviços caseiros, de modo que eu pudesse
sair às ruas outra vez.
Pedi a dois rapazes crentes, chineses,
que morassem conosco para dirigir a casa. Mas
não deu muito certo. Eles queriam um salário
definido, o que eu não poderia prometer-lhes.
Queriam que os rapazes os tratassem de
"professor". Quando eu acordava de manhã,
perguntava-lhes se haviam chamado os rapa-
zes e preparado o desjejum. Replicavam que
tinham estado muito ocupados com a "hora
silenciosa", isto é, seu momento de oração e
leitura bíblica. Para eles, ensinar era realizar
um estudo bíblico e pregar por quase uma hora
e meia. Foram ensinados que era assim que se
fazia o trabalho cristão: dirigir cultos, serem
tratados com determinado título e pregar.
Ainda não haviam aprendido a lição de Jesus,
quando lavara os pés dos discípulos.
Muitas vezes, eu levava os rapazes às
reuniões promovidas pelo casal Willans, das
quais eles gostavam muito. Ali sempre se fazia
a interpretação para o chinês, a fim de que
eles pudessem participar e ter comunhão com
outros crentes. Muitas pessoas oravam por
nós.
Certo dia, Jean Willans disse-me com
firmeza:
— Se você quer mesmo trabalhar com
esses rapazes, Jackie, tudo bem. Mas não
precisa morar com eles. Ou pelo menos arranje
um lugar, onde você possa ir vez por outra
para recuperar suas energias em paz.
Mas eu não entendia essa atitude. Aliás,
eu não entendia por que o mundo todo não
queria trabalhar na Cidade Murada. Eu não
desejava estar em nenhum outro lugar da
Terra.
Entretanto, a despeito da confusão
reinante em nossa casa, descobri que muitas
vezes Deus usava crentes jovens para nos
reanimar, a mim e aos outros. Todos os que
haviam-se tornado crentes receberam o poder
de Deus na mesma hora em que haviam crido.
E nós os aconselhávamos a exercitar os dons
espirituais, quando tínhamos nossas reuniões.
Então eles sabiam perfeitamente que, o fato
de terem um dom, tinha por objetivo
auxiliarem-se mutuamente.
Certa noite, estávamos orando, quando
um dos moços disse que Deus lhe dera
algumas palavras para nos dizer: "Vá e colha
os repolhos e pegue o ônibus rapidamente."
Era uma mensagem muito estranha. Só depois
de uma consulta ao dicionário foi que consegui
a interpretação correta. "A seara está pronta;
vá trabalhar na colheita." Saímos e pregamos
aos vagabundos que dormiam pelas ruas nas
proximidades da nossa. Um deles aceitou
nossa oração e mais tarde foi liberto das
drogas em nossa casa.
Houve uma outra ocasião em que os
rapazes me reanimaram bastante. Eu chegara
em casa exausta e preocupada. Mary e os dois
obreiros tinham ido embora. Estavam-se
sentindo impotentes para dirigir os conversos e
os outros rapazes. E me indagava se os
missionários de outros países tinham os
mesmos problemas que eu enfrentava com os
novos convertidos.
— Achem um versículo bíblico bem
reconfortante para mim, disse aos rapazes.
Mas o texto mais animador que acharam
foi um verso deprimente de Apocalipse.
— Vamos orar, então falei.
Quando estávamos orando, recebi uma
mensagem em línguas, e um dos rapazes a
interpretou imediatamente. Só havia poucos
dias que ele crera em Jesus, e não sabia ler a
Bíblia direito. Mas a interpretação que deu foi
uma citação clara e direta do livro de Salmos:

"Os que com lágrimas semeiam


Com júbilo ceifarão.
Quem sai andando e chorando
Enquanto semeia,
Voltará com júbilo,
Trazendo os seus feixes.
Se o Senhor não edificar a casa
Em vão trabalham os que a edificam.
Inútil vos será levantar de madrugada
Repousar tarde.
Comer o pão que penosamente
granjeastes.
Aos seus amados ele o dá enquanto
dormem."
(Salmo 126.5,6 e 127.1,2)

E aquelas criancinhas em Cristo, por meio


do Espírito Santo, me disseram exatamente as
palavras certas naquele dia.
A medida em que nossa família da Rua
Lung Kong ia crescendo, nossa renda foi
aumentando também. Desde que eu parara de
lecionar em tempo integral, percebi que
sempre recebia tudo de que precisava. As
vezes chegava um cheque pelo correio. Outras,
um amigo me dava exatamente a quantia que
eu estava pedindo ao Senhor em oração. Certa
vez, queríamos comprar um bote de borracha
para um passeio que eu desejava fazer com os
rapazes, e uma pessoa nos enviou da
Inglaterra a quantia exata. Sempre tínhamos o
suficiente para as despesas de cada dia. Para
os jovens, isso era maravilhoso, pois sentiam
estar participando de maneira direta na obra
de Deus, quando oravam pela manhã pedindo
o pão de cada dia.
Todos os domingos, após o culto da
manhã, convidávamos muitas pessoas para
almoçarem conosco. Num domingo, tivemos de
dizer aos rapazes que não dispúnhamos de
dinheiro para o alimento daquele dia.
— Mas vamos cozinhar o arroz assim
mesmo, e orar para Deus nos dar mais alguma
coisa para colocar nele.
Dez minutos antes da hora marcada para
a refeição, chegou ali uma visita, arfando e
suando, levando-nos alimentos enlatados'. Sua
classe de estudo bíblico tinha levantado uma
coleta para nós, à última hora, e mandara que
ele a entregasse a nós. Era uma vida muito
emocionante.
Naquela época, cometi muitas tolices,
mas, mesmo assim, Deus via a intenção de
meu coração e nos abençoava. Uma noite eu
estava muito gripada e ficara em casa,
sentindo-me bastante indisposta, quando ali
chegou Geui Jai, um conhecido lutador de
kung-fu, um dos poucos que era instruído. Era
muito inteligente e falava inglês muito bem.
Mas também era um miserável viciado e
perdera sua utilidade para a quadrilha. Eu o
encontrara muitas vezes dormindo nas ruas ou
escadarias próximas de nossa casa, pois tanto
seus pais como seus "irmãos" da quadrilha o
haviam banido.
— Será que poderia emprestar-me sua
máquina de escrever, SrM Poon? pediu ele. Vou
conseguir um bom dinheiro ajudando uma
pessoa a fazer traduções. Isso me rende o
suficiente para a droga e assim não preciso
roubar.
A condição em que estava deve ter
prejudicado meu discernimento. Deixei que
levasse a máquina, contando que me
devolvesse à noite.
Mais tarde ele me ligou.
— Sr.ta Poon, sinto muito, mas não
poderei devolvê-la hoje. Pois arranjei um outro
serviço. Que bom, não é? Tenho que
datilografar duzentos convites para uma festa.
Seu argumento me pareceu razoável, até
que coloquei o fone no gancho. Que ridículo!
Ninguém aqui iria bater um convite duzentas
vezes. Mandariam imprimir. Era óbvio que ele
empenhara a máquina, e que nunca mais a
veria.
Alguns rapazes ficaram sabendo do que
Geui Jai fizera, e ficaram bastante zangados.
Ameaçaram bater nele, embora eu tivesse
dito:
— Deixem isso para lá. Perdi minha
máquina, e daí? Jesus perdeu a vida. E a
máquina nem se compara com uma vida. Foi
culpa minha e não dele. Vamos esquecer isso.
Três meses depois, Deus me deu o
primeiro fruto positivo disso. Minha máquina
reapareceu na estante de livros, em casa.
Interroguei Ah Ping para saber o que
acontecera. Afinal, ele contou que Goko ficara
tão irritado ao saber do que Geui Jai fizera, que
mandara seus homens atrás dele. Estes
exigiram dele a cautela de penhor da máquina,
e Goko pagara do seu próprio bolso o resgate
dela. Então ele a devolvera sem mandar dizer
nada.
Mais uma vez mandei um recado urgente
para ele, pois queria agradecer-lhe. E mais
uma vez fomos tomar chá juntos. E ali
conversei com o "poderoso chefão" de
quadrilha que, com uma das mãos, dirigia um
império do crime e com a outra protegia uma
missionária.
— Muito obrigada pela devolução da
máquina, disse-lhe.
— Moeyeh, moeyeh. Não foi nada. Nada
mesmo, replicou parecendo bastante
constrangido.
— Seu gesto me comoveu
profundamente, continuei. E eu queria explicar-
lhe uma coisa.
— Geui Jai é um sujeito muito ruim, disse.
Não poderia ter feito uma coisa dessas com
você.
— Mas você não tinha obrigação
nenhuma de resgatar minha máquina,
continuei. Não é meu amigo. Sou contra você,
e vim para cá, porque quero derrubar tudo isso
por que você luta.
Em seguida falei-lhe um pouco do que
Cristo havia feito para nós, resgatando-nos
com seu próprio sangue. Ele ouviu
atentamente, parecendo quase acanhado.
Depois pagou a conta do lanche e saiu apres-
sadamente. Mas ouvira a história da redenção.
O segundo resultado positivo foi que Geui
Jai ficou com consciência de culpa e tornou-se
mais sensível. Certa vez, dei com o fracassado
lutador dormindo em ruas e escadas. Ele vira a
mudança que se operara em Winson e Ah
Ming, e seu desejo de ser uma pessoa
diferente também aumentou. Afinal chegou o
dia em que ele orou conosco, e depois foi para
o centro de reabilitação do Pastor Chan e
trocou a seringa pela cruz. E não apenas
libertou-se da droga, mas também foi estudar
numa escola bíblica e tornou-se pastor.
Aqueles anos vividos no apartamento da
Rua Lung Kong foram uma época de
aprendizado e crescimento. Muitas vezes me
senti confusa. A maneira mais fácil de
expressar o que sinto é empregando as
palavras do Evangelho de João: "A mulher
quando está para dar à luz, tem tristeza,
porque a sua hora é chegada; mas, depois de
nascido o menino, já não se lembra da aflição,
pelo prazer que tem de ter nascido ao mundo
um homem."
As dores daquela época podem ficar
esquecidas, porque deram à luz muitos filhos e
um relacionamento maior com o casal Willans.
As duas coisas me proporcionaram muita
alegria.
10
É Jesus Mesmo
"Jean Stone Willans é uma senhora muito
entusiasta. Tem o dom de falar 'línguas estra-
nhas', e acaba de publicar um livro leve e
interessante sobre religião. O título é The Acts
of the Little Green Apples (Os atos dos
maçãzinhas verdes) e descreve^ vida da
família Willans — dela, de seu marido Rick, e
de Suzanne, a filha do casal. A Sr. a Willans não
pratica religião, ela a vive. Ao que parece, ela
conseguiu uma forma de fácil comunicação
com Deus. Mas, segundo ela diz, isso se acha
ao alcance de qualquer pessoa. O pensamento
de Jean Stone Willans é de que, se Deus está-
lhe chamando para trabalhar para ele, deve
também capacitá-la para isso. E ele o faz
muitas vezes."
Era o que dizia um artigo do Hong Kong
Standard, em julho de 1973, a respeito do livro
de Jean, e eu também partilhava desse
entusiasmo acerca dele. Aquela altura, Jean e
Rick eram meus amigos íntimos e conselheiros
espirituais. Eles haviam-me ensinado que
podemos apreciar as boas coisas que Deus nos
dá. Eu fora levada a crer que os missionários
devem ter o mínimo de coisas possíveis. Os
Willans haviam vivido momentos de
necessidade também, mas não achavam que
Deus queria que vivessem assim para sempre.
Quando tinham coisas belas, apreciavam-nas
bastante, mas da mesma forma estavam
dispostos a dar tudo para os outros, se Deus
assim o determinasse. Haviam aprendido a
estar contentes em quaisquer circunstâncias.
Também eram os únicos crentes que eu
conhecia que poderiam orar a noite toda, ou
então assistir televisão, ou ir a um jantar
refinado.
Descobrimos que houvera muita
semelhança em nossas chamadas para
trabalhar no Oriente, pois eles também tinham
recebido a orientação através de um sonho e
uma profecia. Seu ministério em Hong Kong
era numa esfera de ação completamente
diferente da minha.
Certo dia eu me encontrava num tribunal
acompanhando um caso, quando avistei David
agachado a um canto, no setor onde ficavam
os acusados. Era amigo de Ah Ming. Ele estava
pensando em declarar-se inocente, mas
quando me viu sentiu um aperto na
consciência. Começou a orar e acabou
confessando-se culpado das acusações que lhe
eram feitas. O juiz resolveu soltá-lo, e ele saiu
como que fora de si de espanto. Saímos juntos
dali e fomos tomar um café. Ele me disse que
estava disposto a seguir a Jesus de todo o
coração. Logo pensei que devíamos então
informar ao chefe de sua quadrilha que ele iria
sair dela, pois seria bom se rompesse com o
mundo do crime.
— Quem é o seu daih lo, David? indaguei.
Ele ficou nervoso e pôs-se a remexer no
assento.
— Ele não vai querer falar com você.
— Mas qual é o nome dele? insisti.
— O apelido dele é "Jesus", respondeu.
Mas ele não vai querer vê-la.
— Por que você não tenta falar com ele?
Se quer mesmo ser crente, não poderá seguir
a dois Jesus.
— Está bem, disse ele. Vou tentar
encontrá-lo.
E foi a um telefone. Afinal voltou com
uma expressão de surpresa no rosto.
— Ele vai falar com você. É para você ir à
Quadra 20 do conjunto habitacional de
Chaiwan, hoje à meia-noite, na lanchonete. Ali
uma pessoa irá encontrá-la e levá-la a "Jesus".
Mas terá que levar cem dólares.
— Mas por que os cem dólares? indaguei
curiosa.
— Porque lá em Chaiwan ninguém a
conhece, Sr.ta Poon, explicou David. É um lugar
muito perigoso à noite e pode ser assaltada.
Se você tiver o dinheiro, eles o levam e a
deixam em paz; mas se não tiver nada, ficam
com raiva e batem em você.
— Está brincando? Não tenho nem dez
dólares, quanto mais cem. Não vou levar
dinheiro nenhum. Se estou fazendo a obra de
Deus, ele cuidará de mim. E depois, se isso
puder fazer você compreender que Deus o
ama, não me importo de morrer.
O rapaz olhou para mim com ar incrédulo
e depois falou:
— Você está maluca, está louca!
Deu uma olhada de relance para os
amigos e depois continuou:
— Nunca vimos ninguém que quisesse
morrer por nós.
Cheguei em Chaiwan às onze e meia e
fiquei alguns minutos passeando por ali. Trata-
se de uma área bem espaçosa na Ilha de Hong
Kong, onde haviam construído prédios de
conjuntos habitacionais. Aquela hora, a rua
ainda estava regurgitando de gente, centenas
de pessoas estavam sentadas tomando seu
lanche noturno.
Deu meia-noite. Eu estava na lanchonete
da quadra 20. Na valeta da rua, ao lado,
escorriam detritos em água poluída. Estava tão
absorta olhando para aquilo, que não percebi a
aproximação daquele que seria meu guia.
— O que você quer? indagou um
cantonês de cabelos encaracolados.
— Quero que me conduza ao seu chefe,
repliquei agarrando firmemente a minha Bíblia.
— Quem você quer ver?
— Quero ver "Jesus".
— Por que quer ver "Jesus"?
— Quero falar com ele sobre o meu Jesus.
— Tem certeza de que quer falar com
ele? Aquela conversa parecia um diálogo de
filme de segunda classe.
— Tenho.
— O que quer conversar com ele?
— Quero falar sobre o meu Jesus, repeti.
O homem virou a ponta do polegar para
si mesmo.
— Está falando com ele.
Eu e "Jesus" sentamo-nos num café
próximo. Abri a Bíblia e pus-me a falar-lhe de
Jesus. E ele entendeu tudo que eu estava
dizendo. Era quase como se o Espírito Santo
estivesse ali, àquela mesa. Ali estava "Jesus",
com lágrimas escorrendo pelo rosto, total-
mente desligado do ambiente que nos cercava.
E depois orou, pedindo a Jesus que entrasse
em sua vida; e foi batizado no Espírito Santo,
em meio às chícaras de café.
Já eram mais ou menos três horas da
madrugada, quando saí de Chaiwan e peguei
uma condução de volta a Kowloon. Mas antes
disso, lembrei-me de uma coisa.
— Ah, a propósito, disse-lhe, você deve
contar a pelo menos uma pessoa, que creu em
Cristo hoje.
Quando o vi no dia seguinte, no
apartamento de um amigo, quase não
reconheci nele o antigo "Jesus". Tinha uma
expressão alegre e vibrante.
— Você falou a alguém que creu em Jesus
ontem à noite? A pelo menos uma pessoa?
indaguei um pouco ansiosa.
— Não, replicou. Falei com a quadrilha
toda. Ficamos acordados até às seis da manhã,
lendo os versos que você sublinhou na Bíblia, e
agora todos querem crer em Cristo também.
Existem muitas descrições sobre o
encontro de diversas pessoas com Jesus. Mas
só aquele que já passou por essa experiência
compreende a maravilha que ela representa.
Minha vontade era pular, cantar, dançar,
participar da festa que, naquele momento,
estava acontecendo no céu, entre os anjos.
Todavia, eu ainda estava em Hong Kong,
com os pés na terra. E à minha frente estava
aquele ex-quadrilheiro, que me olhava,
esperando ouvir mais alguma coisa. Trouxera
consigo um sai lo, Sai Keung, que estivera
presente à nossa conversa de madrugada.
Também queria saber como poderia receber o
poder de Jesus, como o seu daih lo. E então ele
recebeu a Jesus e o dom do Espírito Santo. Eu
sempre dizia aos rapazes que, logo que
cressem, Jesus lhes daria o dom de língua
estranha para auxiliá-los em oração. E aqueles
novos convertidos aceitaram com facilidade o
fato de que, se estavam seguindo um Deus
Todo-Pode-roso, era perfeitamente adequado
que ele lhes desse uma nova língua para que
falassem com ele. E todos, sem exceção,
receberam o dom, e assim não houve
nenhuma confusão sobre a possibilidade de
um ser mais espiritual que outro.
Sai Keung mostrava-se radiante. Era um
rapazinho baixo e corpulento, de pouca
conversa, mas incentivou-me com muita
ênfase a voltar a Chaiwan no dia seguinte,
para pregar aos outros.
E eu voltei naquela noite, e em muitas
outras. O número de interessados aumentou
consideravelmente. Fazíamos estudos bíblicos
junto a barracas de lanches, reuniões de
oração em lojinhas, e cultos evange-lísticos
nas escadas dos prédios. A obra estava-se
alastrando para fora dos limites da Cidade
Murada e atingindo pessoas de outros bairros.
Como sempre fazia, pedi a "Jesus" (que
passou a chamar-se Christian) para apresentar-
me ao seu "irmão maior".
— Ele não vai querer falar com você,
disse. É uma pessoa muito importante e tem
centenas de seguidores. Mesmo quando
queremos falar com ele, não sabemos onde o
podemos encontrar. Deixe para lá.
Mas fiquei sabendo que o nome dele era
Ah Kei. Prometi que não iria forçar um encontro
com ele, mas Christian deveria orar em favor
dele. Estávamos todos com a impressão de
que ele iria tornar-se um elemento muito
importante em nosso trabalho. Onde quer que
eu ia, sempre levava comigo exemplares da
Bíblia, pronta para uma emergência.
A hora era meia-noite e quinze; o local,
uma barraca de rua; o elenco, Sr. ta Poon,
"Jesus" e os crentes de Chaiwan. Ah Kei surgiu
de entre a escuridão disposto a brigar.
— Poon Siu Jeh, disse em tom de desafio,
se você puder me converter, eu lhe darei mil
discípulos.
Parecia estar tendo enorme satisfação em
"atirar a luva". E tinha-se até a impressão de
que ele se preparava para duelar.
— Não posso convertê-lo, Ah Kei,
repliquei. Acreditar em Jesus é uma decisão
que você próprio deve tomar. E também não
pode simplesmente dizer aos seus sai los para
crerem nele. Terão que decidir isso por si
mesmos.
Ah Kei tinha ouvido os rumores a respeito
do que estava acontecendo em Chaiwan; e se
ia haver um avivamento, então ele tinha que
estar no comando da coisa. Sentando-se à
mesa onde estávamos, convidou todos que se
achavam por ali para lancharem com ele,
exibindo ostensivamente sua condição de
homem endinheirado. Queria que todos vissem
bem quanto dinheiro iria gastar. Mas ele
mesmo não comeu nada; e nem queria saber
se estávamos com fome ou não. Aquilo era
pura e simplesmente uma exibição.
Mas ele ficou muito pensativo e, após o
lanche, convidou-me para acompanhá-lo a um
certo lugar, onde iria mostrar-me uma coisa.
Começamos a caminhar em direção à
favela cujos antros de jogo e drogas tinha sob
seu comando. De repente, ele se virou para
mim.
— Poon Siu Jeh, você despreza os
viciados?
— Não, Ah Kei. Não os desprezo, pois foi
por causa de pessoas como eles que Jesus veio
ao mundo.
— Você seria capaz de ter amizade com
um? indagou, e tanto ele como eu sabíamos a
quem ele estava-se referindo.
— Pois o pessoal da Cidade Murada me
critica justamente por que gosto mais de ter
amizade com um viciado, do que com um
indivíduo que pensa que leva uma vida
certinha, respondi.
Continuamos a caminhar em silêncio, até
que Ah Kei parou à porta de um barraco
coberto com folhas de zinco. Quando ele
empurrou a portinhola com um tapume de
plástico escuro, vi-me diante de uma dezenas
ou mais de homens jogando. Logo se estam-
pou na fisionomia deles uma expressão de
espanto e preocupação, pela presença ali de
uma mulher inglesa, às três horas da manhã.
Ah Kei ergueu a mão pedindo silêncio.
— Não tenham receio, disse. Ela não tem
desprezo por nós. É cristã e veio aqui para nos
falar sobre Jesus.
E em seguida me passou a palavra,
convidando-me a pregar.
Depois fomos ao salão de ópio, que fica
contíguo. Dentro presenciei um terrível
espetáculo. Ali havia velhinhos esquálidos
estendidos sobre um estrado. Pareciam mais
uns insetos gigantescos, mais braços e pernas
que corpos. A metade deles estava inconscien-
te. Ah Kei repetiu o que dissera antes.
— Não tenham medo. Ela não nos
despreza. Veio aqui para nos falar sobre Jesus.
Os que ainda estavam conscientes
escutaram atentamente o que eu dizia.
Quando saí dali deixei vários exemplares da
Bíblia em chinês.
Só o fato de eu ter pregado o Evangelho
naquelas salas de perversão já era
extraordinário, mas Ah Kei insistia em que eu
conhecesse outros pontos de seu império de
drogas, perversão e jogo. Fomos de Chaiwan
para Shaukiwan, e dali para Lyemum, Kwon
Tong e Ngautaukok. Em cada um desses
lugares, ele me apresentou como uma cristã, e
em todos as pessoas me escutavam
respeitosamente. Distribuí bíblias em todos os
pontos que passei. Em um dos antros,
trouxeram-me um homem que se contorcia em
dores.
— Poon Siu Jeh, a senhora é médica?
Pode levá-lo para um hospital? Ele está
padecendo muito.
— Não, não sou médica, nem enfermeira,
e não tenho dinheiro para interná-lo num
hospital. Mas posso orar por ele, respondi.
Ouvindo isso, soltaram risinhos
maliciosos, mas concordaram em conduzir-nos
a um quartinho dos fundos, que estava mais
silencioso. Ali impus as mãos sobre o homem e
orei por ele em nome de Jesus. Imediatamente,
seu estômago relaxou e ele se levantou,
parecendo bastante espantado. Estava
completamente curado. Os outros também
estavam um tanto surpresos. Um deles
perguntou:
— Esse é o Deus vivo, aquele de quem
você esteve falando?
E então puderam crer, porque
entenderam quem era Jesus, pelas suas obras
poderosas.
No final, dei uma Bíblia para Ah Kei e
escrevi uma dedicatória nela: "Para meu amigo
Ah Kei, orando para que um dia seja meu
irmão." Ele me agradeceu educadamente, mas
sem a menor intenção de lê-la.
Nos três meses que se seguiram, passei a
acompanhar a vida dele. Era casado, tinha
mulher e filhos, mas também costumava
dormir onde estivesse, tarde da noite. Uma
noite ele ficou tão drogado, que leu duas
páginas de A Cruz e o Punhal, duas de Foge,
Nicky, Foge, e duas da Bíblia, alternadamente,
durante dois dias. A certa altura começou a
abrir-se comigo e disse-me como se
arrependera de haver-se casado tão jovem.
Mas tive mais pena da esposa dele, por ter um
marido que quase nunca parava em casa.
As vezes ele dormia três dias seguidos.
Outras, não dormia. Mas Deus sempre me
revelava onde ele estava dormindo, e depois
de procurá-lo por algum tempo, eu o
encontrava. Ele me olhava com uma expressão
que parecia dizer:
— Você, de novo? Como ficou sabendo
que estava aqui?
Enquanto isso, eu pedi a muitos crentes
que orassem por ele. Certo dia, quando o
encontrei, disse-me:
— Deus me falou uma coisa.
— O que quer dizer? Deus falou com
você? Fiquei meio irritada, pois pensei que
estivesse brincando.
— É; Deus conversou comigo, insistiu ele.
Estava lendo a Bíblia, e lá diz que ele tem uma
graça especial para pessoas como eu.
— O que quer dizer com "graça
especial"?
— A Bíblia diz que quem mais pecou,
mais é perdoado.
Quase senti inveja dele, mas estava
falando com muita seriedade sobre essa sua
descoberta, e parecia preparado para pedir ao
Senhor essa graça especial. Estávamos num
barraco contíguo a uma de suas salas de jogo.
Ele sentou-se no chão e eu também me sentei.
E, pela primeira vez, orei com Ah Kei. Ele pediu
a Jesus que aceitasse a dedicação que fazia de
sua vida e que fizesse dele uma nova pessoa.
Aquela altura, porém, ele ainda não tinha
muita noção de pecado e orgulhava-se de seu
passado.
Em seguida fomos para Mei Foo onde
Jean e Rick estavam morando. Sabia que
ficariam encantados de conhecer Ah Kei, já que
tinham orado tanto por ele.
Fizemos uma grande festa pelo
nascimento espiritual de Ah Kei. Geralmente
orávamos em festinhas, e como Ah Kei ainda
não recebera o dom do Espírito Santo,
dissemos-lhe que Deus dá o seu poder a todos
quantos o seguem. E todos começamos a orar
no Espírito, quando, de repente, Ah Kei caiu de
joelhos. Depois da reunião, ele nos disse que,
ao ouvir as línguas estranhas, ficara
profundamente consciente de seus erros
passados. Sentindo forte convicção de
pecados, compreendera que não poderia ficar
sentado na presença de Deus, mas tinha que
ajoelhar-se. E começara a falar em línguas
também. Era uma cena incrível, ver um chefe
de uma tríade de joelhos. Naquela mesma
noite, pegamos um táxi e fomos a uma praia,
onde Rick o batizou.
Nas semanas que haviam precedido sua
conversão, eu havia lido a Bíblia com ele
muitas vezes. E certa vez ele me disse que não
iria crer em Jesus com muita pressa, pois, se
construísse uma casa rapidamente, ela poderia
desmoronar-se com rapidez também. Mas, na
noite em que foi batizado, começou a colocar
sua vida em ordem, na mesma hora. Voltou
para a esposa depois de muitos meses de
afastamento. Ela parecia querer crer que ele
mudara de vida, mas tinha tão pouca
confiança nele, que temia ser mais uma espe-
rança infundada.
Ah Bing casara-se com Ah Kei havia sete
anos. Ele a conhecera numa festa e a seduzira,
planejando "vendê-la" à prostituição. Mas
acabara gostando dela e resolvera ficar com
ela.
Até certo ponto, Ah Bing tinha direito de
duvidar, pois para ele edificar um lar cristão,
teria que pagar um alto preço. Não apenas
teria que abandonar uma imensa fonte de
renda ilegal e seu controle sobre diversos
homens, como também teria de enfrentar um
processo de desintoxicação de ópio e heroína.
Ele não se libertou da dependência da
droga, e eu estava sem saber o que fazer.
Aguns dos viciados que haviam-se tornado
crentes, haviam sido libertos ins-
tantaneamente, enquanto outros iam para o
centro de realibitação do Pastor Chan, onde
recebiam muita assistência após a
desintoxicação. Ah Kei solicitou admissão no
centro, mas não havia vagas. O que eu poderia
dizer-lhe? "Ore, Ah Kei, e Deus o libertará
miraculosamente!" Eu vira o Senhor fazer isso,
e não compreendia por que não acontecia
sempre, em todos os casos.
Não poderia levar Ah Kei para minha
casa, pois já estava cheia de rapazes que
tinham sido libertos da droga, ou haviam saído
da cadeia dados como libertos dela. E era claro
que não desejava colocar ali um que tomava
drogas declaradamente. Para reanimá-lo, dis-
se-lhe sem muita convicção:
— Deus vai dar um jeito.
Pouco antes do Natal, fui despertada às
quatro e meia da madrugada por um chamado
telefônico. Era Ah Kei que desejava despedir-
se.
— Poon Siu Jeh, muito obrigado por suas
conversas a respeito de Jesus, por seu cuidado
e consideração, mas não posso ser salvo.
— Pode, sim, Ah Kei. Para Deus tudo é
possível, disse eu.
Mas minhas palavras até a mim mesmo
pareciam sem convicção.
— Não adianta mesmo. Não posso mais
ser crente.
— O que quer dizer com isso? Não pode
ser crente?
— Não dá para mim. Parei de controlar as
quadrilhas, o jogo e o tráfico de drogas. Agora
não tenho com que viver. Muito obrigado, Sr.ta
Poon, por tudo que você fez. Mas não deu
certo.
Tentei ainda argumentar com ele
desesperadamente. Arranjei todos os
argumentos possíveis. Não poderíamos perdê-
lo. Talvez, se eu fizesse com que continuasse
falando, aquele impulso passasse. Mas a voz
dele foi ficando cada vez mais impessoal, e
não conseguia mais falar ao coração dele.
Afinal disse que ia sair à Procura de Ah Chuen
para matá-lo.
— Ah Kei, você não pode matar ninguém.
Você é crente.
Mas ele já não escutava mais os meus
apelos patéticos. Estava fortemente drogado e
depois de dizer-me que seria obrigado a fazer
alguns assaltos para obter dinheiro, desligou.
Eu não queria acreditar no que ouvira.
Não queria aceitar o fato de que uma pessoa
que crera em Jesus pudesse pensar em matar
alguém. Imediatamente liguei para Jean e Rick.
Eles me ouviram atentamente.
— Vocês precisam levantar e orar, disse.
Acho que Ah Kei saiu para matar um homem e
também está planejando praticar assaltos.
Então o casal se pôs a orar. E eu também
orei durante todo o período de festejos do
Natal. E chorando cantei os tradicionais hinos
natalinos. Estava um pouco zangada com
Deus.
— Senhor, eu realmente cria que tu eras
a solução para tudo. Como pode ser que,
conhecendo-te, ele não te quis? Ah Kei e outros
creram em ti, e veja como estão agora. Há
muitos viciados e aleijados espirituais pelas
ruas. E as pessoas olham para eles e zombam
de ti. "Deus fez um milagre, mas não durou
muito!"
Fiquei a procurar algum crente que
pudesse dizer-me que, quando Cristo começa
uma boa obra em alguém, leva-a até o fim.
Mas não parecia que Deus estava fazendo sua
parte nesse caso.
Alguns dias depois, Ah Kei apareceu em
nossa porta.
— Nem sei por que vim aqui, disse.
Estava só passando. Até logo.
— Ei, espere um pouco! disse eu. E os
assaltos?
— Bom, respondeu, minha mulher
preparou as fronhas, fez os capuzes para nós,
isto é, fez os cortes nelas para enxergarmos
por eles. Da primeira vez que planejamos ir,
ficamos sabendo que um do grupo nos havia
delatado. Então não fomos. Na segunda vez,
estávamos sentados no carro com tudo pronto,
mas eu não estava com vontade de fazer um
assalto naquele dia. E não fomos.
Na noite em que me telefonara, não
conseguira achar Ah Chuen.
— Pois bem, falei, vamos à casa do casal
Willans. Você precisa ter uma conversa com
eles. Está na hora de alguém agir com firmeza.
Como de costume, Jean mostrou-se
bastante receptiva; mas pude sentir que
estava começando a ficar transtornada em ver
um verdadeiro crente não conseguir libertar-se
das drogas.
— Você tem problemas? indagou.
— Não, não, respondeu ele, e depois
acrescentou:
— Só um. Ainda estou viciado em
heroína.
— Se estiver sendo sincero em seu
propósito de seguir a Jesus, continuou ela
firmemente, ele fará o que você quiser.
— Eu estou, disse acenando
afirmativamente.
— Pois bem, quer ficar aqui e passar pela
desintoxicação?
Fiquei grandemente admirada. Era
exatamente isso que eu desejava, mas não
tivera coragem de sugerir. Ela também não
pensara em fazer esse convite, mas sua
preocupação pelo futuro de Ah Kei, aliada
inspiração do Espírito Santo, levou-a a isso. Em
seguida, abriu o blusão, tirou alguns embru-
lhinhos de heroína e atirou-os no vaso
sanitário, apertando a descarga.
Depois disso, fomos também à sua casa,
no conjunto habitacional. Lá, estendeu o braço
debaixo da cama e tirou ali uma caixa
contendo um suprimento de heroína suficiente
para várias semanas, jogou tudo no vaso, sob
nossas vistas. Por fim, voltamos ao
apartamento de Jean e Rick.
Jean ligou para um médico crente e
pediu-lhe explicações sobre como seria o
processo de libertação de drogas, para um
viciado que durante dez anos vinha tomando
heroína. Ele respondeu que, sem medicação
adequada, ele iria sofrer agonias terríveis,
febre, tremores, vômitos, diarréia e fortes
dores no estômago. Ele poderia até tornar-se
violento, ao ponto de atacar as pessoas que o
assistiam. Ele não a aconselharia a cuidar dele,
mas se ela o quisesse, ele poderia ministrar-lhe
metadona, uma droga que substituía a heroína.
— Vamos ficar com Jesus mesmo,
respondeu ela, recusando o oferecimento dele.
Passei três noites sem dormir, sentada ao
lado de Ah Kei. Esperávamos todas as reações
previstas, mas ele dormiu como uma
criancinha. Ao fim dos três dias, estava
completamente bom, e com ótima aparência.
Nos momentos em que acordava, se sentisse
uma pontada de dor, logo o instruíamos para
que orasse em línguas, e a dor cessava
milagrosamente. Já sabíamos que a maneira
de uma pessoa passar pelo processo de
desintoxicação sem dor era orar no Espírito.
Quatro dias depois, a esposa dele o
visitou, e tentou convencê-lo a voltar para
casa, já que estava curado. Mas nós nos
opusemos. Ele ainda precisava de cuidados, e
era melhor ficar mais algum tempo num
ambiente onde não houvesse drogas.
Felizmente, ele começou de repente a sentir os
efeitos da desintoxicação, com fortes
sensações de frio seguidas de sensações de
calor. Pusemo-nos a orar todos no Espírito,
procurando o alívio para ele, e enquanto
adorávamos a Deus, a dor passou. Mais uma
vez Deus o libertara. No quinto dia, ele estava
inteiramente liberto da dependência da
heroína, mas ainda tinha forte desejo de fumar.
Rick dizia firmemente que, se ele não se
libertasse do vício do fumo também, então não
estava completamente liberto. No sétimo dia,
Ah Kei, que não estava muito satisfeito com
essa situação, conseguiu que a empregada do
casal, que era budista, lhe arranjasse alguns
cigarros. Quase no mesmo instante, começou a
sentir as dores. Redobramos nossas orações
outra vez, e só depois que ele aquiesceu com a
exigência de Rick, foi que as dores cessaram.
O milagre da cura de Ah Kei se deu
também com vários de seus amigos. Certo dia,
Jean Levou-o ao barbeiro para cortar o cabelo,
e ele encontrou-se com um velho amigo,
Wahchai. Conversando com ele, convenceu-o a
acompanhá-lo ao apartamento de Jean, e ali
tivemos de improvisar uma reunião. Recebi ali
uma mensagem em línguas, mas a
interpretação não veio. Esperamos alguns
instantes, mas ninguém disse nada. Por fim,
Wahchai confessou que recebera a
interpretação da mensagem, mas ficara
receoso de falar, pois ainda era viciado,
embora tivesse se convertido pouco antes, e
recebido o dom do Espírito Santo. Ao
transmitir-nos a interpretação da mensagem,
começou a chorar incontrolavelmente. Depois
disso, sua cura foi relativamente simples, uma
questão apenas de ficarmos ao lado dele, e ele
foi liberto da heroína sem nenhum sofrimento.
Como acontecera com Ah Kei, todas as vezes
que sentia a primeira pontada da dor, punha-
se a orar no Espírito, e logo sentia-se melhor.
Na quinta-feira seguinte, na reunião
regular, um outro rapaz, que também aceitara
a Jesus, pediu o poder de Deus para se libertar
do vício. Como o apartamento do casal Willans
já não comportava mais ninguém, alugamos
então um quarto num apartamento que era
utilizado como bordel, e ficamos a noite inteira
com ele ali, orando. Durante quatro dias, vários
rapazes de nosso grupo se revezaram, dando
assistência a ele, até que foi totalmente
liberto. Depois que já estava bom, passou uma
semana na casa de Jean e Rick, a fim de se
completar a cura.
Duas semanas depois, Ah Kei resolveu ir
à China e passar uma semana lá. Um bom
grupo acompanhou-o à estação ferroviária.
Quando o trem chegou à fronteira, os guardas
de segurança do país interrogaram-no
querendo saber quem eram as pessoas que o
haviam levado à estação de Kowloon.
Respondeu que tinha sido um senhor
americano (Rick), um moça inglesa (eu) e uns
amigos chineses.
— E quem eram esses ocidentais?
indagaram eles.
— Ah, foram eles quem me falaram sobre
Jesus Cristo, respondeu alegremente.
— Pois bem, replicaram os guardas.
Então diga uma coisa: quem é melhor, o
homem chinês ou os ocidentais?
— Bom, sendo chinês, acho que os
chineses são melhores, respondeu Ah Kei. Mas
aqueles ocidentais são crentes, e portanto
também são muito bons.
Foi então que aqueles guardas revelaram
que sabiam que Ah Kei muitas vezes tentara
passar na fronteira com drogas.
— Por que dessa vez você não está
trazendo drogas? indagaram. Quem são
aqueles ocidentais? Como você se envolveu
com eles?
Era um interrogatório incessante, e Ah
Kei respondeu a tudo com a verdade. Explicou
que havia deixado a quadrilha, abandonando
as atividades criminosas. E que em março iria
começar a trabalhar num escritório. Os
agentes da segurança disseram que não era
possível que ele estivesse liberto da dependên-
cia das drogas, mas ele insistiu em afirmar que
o estava, que cria em Jesus Cristo, e era uma
nova pessoa. Explicou também que não
tomara nenhum medicamento. A cura fora
totalmente efetuada por Jesus. Ouvindo isto, os
guardas ficaram muito irritados e responderam
que era impossível. Mas essa reação deles foi a
deixa para Ah Kei se lançar no relato de seu
testemunho, uma narração completa do que
Deus fizera por ele. Falou quase uma hora. Os
policiais o escutaram atentamente, e depois
permitiram que entrasse na China levando sua
Bíblia.
Chegando ao seu povoado de origem,
soube de uma jovem crente que não conhecia
bem as Escrituras, porque nunca tivera uma
Bíblia. Ah Kei deu-lhe a sua e a notícia se
espalhou.
Logo que Ah Kei se tornara crente,
transmitira a boa-nova a todos os seus
familiares, que a aceitaram um por um. O pai
de Ah Bing ficou tão satisfeito de ver a
transformação que se operara em seu genro,
que também se tornou cristão e foi batizado
com o Espírito Santo. E para comemorar deu-
nos um banquete memorável, em que se
serviram pratos chineses saborosos. Ao fim da
festa, ele se ergueu e disse:
— Já fui moço, e agora sou velho, mas
nunca antes vi um homem mau tornar-se um
homem bom.
11
As Casas de Estêvão
Eis o testemunho de Daniel, escrito em
minha casa, na Rua Lung Kong.
"Dou graças a nosso Senhor Jesus por ter-
me salvado de minha antiga vida, dando-me
uma nova e maravilhosa existência nele. Meu
nome chinês é Ah Lam, mas meu nome
ocidental é Daniel.
"A razão por que estou dando graças ao
Senhor Jesus é que antes eu era um homem
depravado. Há mais ou menos dez anos, eu
estava com quatorze anos, larguei os estudos
e entrei para uma quadrilha tríade. Desejava
ser temido, respeitado, reconhecido por todos,
e achei que, sendo membro de uma quadrilha,
teria tudo isso. Então abandonei a vida normal
e passei a viver no submundo da
marginalidade. Um ano depois, fui preso e
indiciado por roubo à mão armada. Fui
sentenciado a cumprir pena num centro de
treinamento para jovens delinqüentes.
"Naquela ocasião, estava muito sentido
pelo que fizera, e me senti muito triste e
infeliz. Resolvi modificar-me, começar vida
nova. Mas logo que fui solto, tornei-me pior
que antes. Aprofundei-me mais e mais no
crime. Mas sentia um grande vazio interior.
Então recorri à heroína.
"Tornei-me um viciado. Tentei libertar-me
das drogas algumas vezes, mas nunca o
consegui. Um dia, vim a conhecer Jesus,
arrependi-me e aceitei-o como meu Salvador.
Senti-me completamente diferente. Era como
se tivesse sido liberto, como se tivessem tirado
um enorme peso de meus ombros. Foi uma
experiência maravilhosa! Posso dizer que
nunca voltei atrás na decisão tomada. Ele tem-
me abençoado muito; já tenho aprendido
muitas cousas e a cada dia aprendo mais. £
uma vida realmente maravilhosa. Dou graças a
Jesus por haver-me proporcionado tudo isso.
"Oro para que você também goze dessa
mesma experiência, e só então poderá
entender plenamente meu testemunho.
"Que Deus o abençoe, Ah Lam."
Isso foi escrito por um dos muitos
marginais que procuraram a mim ou aos
Willans, após terem ouvido contar o que
ocorrera a Ah Kei. Logo se espalhou entre os
viciados a notícia de que, se quisessem crer
em Jesus, receberiam um certo poder, que os
capacitaria a libertar-se das drogas sem
sofrimentos.
Tanto quanto possível eu evitava recebê-
los em minha casa na Rua Lung Kong, pois era
muito próxima da Cidade Murada, e em
questão de segundos um viciado, em
desespero, poderia obter a quantidade que
quisesse de heroína ou ópio. No apartamento
de Jean e Rick, eles não tinham opção de
escape. A porta tinha tranca dupla, e as
janelas eram protegidas por grades. E sempre
havia pelo menos uma pessoa a vigiá-los nas
vinte e quatro horas do dia.
Um jovem que fora trazido à minha casa
por um padre disse:
— Sei que os viciados que vão à casa de
Sr. Pullinger são libertos. Mas tenho um pouco
ta

de medo desse negócio de Jesus.


— Não se preocupe com isso, respondeu-
lhe o padre. Jackie não tentará impingi-lo a
você.
Estava redondamente enganado. Se não
"impingíssemos" Jesus aos viciados, não
teríamos nada para oferecer-lhes. Ele teria que
sofrer as agonias do processo de
desintoxicação, se não quisesse orar.
Entretanto, nunca tivemos de enfrentar
um caso em que o viciado não quisesse crer
em Jesus. Aliás, eles só nos procuravam
quando já estavam dispostos a fazê-lo, pois
sabiam o modo como trabalhávamos. E o
número deles foi crescendo ao ponto de a casa
de Jean e Rick ficar superlotada.
Estava claro que precisávamos de um
lugar só para que os viciados se libertassem da
dependência da droga, e onde pudessem ficar
algum tempo, a fim de crescerem
espiritualmente. A maioria deles exigia uma
atenção constante.
E foi o problema de Ah Kit que afinal nos
obrigou a resolver de uma vez por todas a
questão da casa. Poucos dias depois de ter
sido liberto das drogas, ele concluiu que queria
governar a própria vida novamente e saiu da
casa dos Willans. Todos oramos para que ele
chegasse a um ponto onde não pudesse
continuar com aquela vida de crimes e drogas,
e voltasse a Jesus. E ele foi preso. Na prisão,
ele teve uma genuína experiência de
transformação de vida e se arrependeu.
Começou a orar e a falar de Cristo aos
companheiros de cela. Foi indiciado por assalto
à mão armada.
No julgamento, o juiz fez um comentário
no sentido de que Ah Kit tinha uma ficha muito
ruim e merecia uma longa sentença.
Entretanto, ouviu o relato de Jean sobre a
mudança que nele se operara, e, levando em
conta o fato de que ela cuidaria dele, liberou-o,
colocando-o aos nossos cuidados. Fora um ato
bastante raro o dele: soltar um homem que
tinha tais acusações.
Levamos Ah Kit para casa. Ao sairmos
dali, escutamos os guardas comentando se não
seria melhor uma pessoa ter um Deus do que
um advogado...
Ah Kit começou a crescer espiritualmente
bem devagar. Estava gostando de ficar na casa
de Jean e Rick, mas exigia atenção constante.
Depois de toda uma vida de descaso, parecia
muito carente de afeto. Se Jean se afastava
para falar com alguém, sentia-se rejeitado. Isso
provocou enorme tensão na família, ao ponto
de um dia Jean encontrar sua filha Suzy, de
dezessete anos, fazendo as malas.
— Ou os viciados ou eu, disse ela à mãe,
e falava sério.
Nenhuma família poderia resistir por
muito tempo a esse tipo de pressão.
Estava na hora de procurarmos um lugar
que tivesse a atmosfera de um lar, com muito
amor, e uma vigilância de vinte e quatro horas
por parte dos obreiros.
Eu me encontrava na Inglaterra, quando
o casal Willans me telegrafou, dando a notícia.
Uma pessoa que lera o livro de Jean doara uma
soma em dinheiro para alugarmos um
apartamento que seria utilizado
exclusivamente para a assistência a viciados
que desejassem começar uma nova vida em
Cristo.
O nome escolhido pelo grupo que orava
em casa dos Willans foi Associação Estêvão.
Tanto eu como os Willans estávamos cada vez
mais envolvidos em auxiliar marginais, e por
isso precisávamos de atuar através de uma
entidade oficializada, quando lidávamos com
as leis do inquilinato, julgamento nos tribunais,
e outras questões desse tipo. Então nos
tornamos conhecidos por todo o submundo dos
viciados como "Estêvão". Demos ao novo
apartamento alugado o nome de "Terceira
Casa de Estêvão", sendo que a minha fora a
primeira e a de Mei Foo, a segunda.
Nosso primeiro obreiro de tempo integral
foi Diane Edwards. Era uma ex-freira que já
morara cinco anos em Hong Kong. Fora
batizada no Espírito numa das reuniões na
casa dos Willans.
Começamos com apenas um residente,
mas, em poucas semanas, o número aumentou
para seis. Cada vez que chegava um rapaz, o
milagre se repetia. Ele cria em Cristo e era
liberto da dependência das drogas sem dores,
quando orava no Espírito. Depois, Ah Kei e
seus familiares se mudaram para o
apartamento para auxiliarem Diane na direção
da casa.
Na época de Natal já havia dezessete
pessoas naquele pequeno apartamento.
Começamos a orar pedindo a Deus mais um
lugar, uma quarta casa, por volta do Ano-Novo,
a fim de acomodarmos aqueles que nos
procuravam. Era-nos penoso ter que recusar-
lhes admissão ali, sabendo que seria tão
simples libertarem-se das drogas pelo poder de
Jesus.
A reunião dos sábados na casa dos
Willans cresceu tanto, que tiveram de mudar-
se para uma casa maior. Por vezes, havia ali
até cento e cinqüenta pessoas entre pastores,
professores universitários, padres e freiras,
juntamente com nossos quadrilheiros e ex-vi-
ciados. No culto da véspera do Ano-Novo,
oramos pedindo a Deus uma nova casa no
novo ano, agrade-cendo-lhe pela resposta
antecipadamente.
Após o encerramento do culto, um amigo
inglês perguntou-me por que ainda não
havíamos alugado a casa.
— Porque precisamos de uma promessa
de dinheiro para o aluguel, ou então de que
alguém nos doe o apartamento, ou então de
uma garantia de Deus, de que podemos tratar
do aluguel mesmo sem termos o dinheiro,
respondi.
E ele me disse:
— Faz duas semanas, depositei o dinheiro
numa conta especial para vocês.
Então mandamos dois de nossos rapazes
procurarem um lugar adequado. Voltaram
quase no mesmo instante, dizendo que havia
um apartamento desocupado ali perto. Eram
onze e meia da noite, quando acertamos o
aluguel do apartamento com o vigia. Coroamos
o negócio fazendo uma reunião de oração na
nova casa, comemorando a entrada do Ano-
Novo. Foi o mais maravilhoso culto de vigília de
que já participei em minha vida.
Pelas experiências obtidas com Ah Kei e
outros viciados, aprendi que não era
necessário esperar até que Deus
"acidentalmente" os libertasse. Compreendi
que poderiam ser libertos por intermédio do
poder que Cristo lhes concede, no momento
em que oravam na linguagem do Espírito.
Nunca obrigávamos os viciados a orarem,
quando estavam passando pelo processo de
desintoxicação. Aliás, é impossível obrigar
qualquer um a orar. Simplesmente reduzíamos
a zero todas as outras alternativas possíveis;
ou melhor, deixávamos apenas outra opção,
sofrer.
Certa vez, um dos chefões do sindicato
do crime fez uma oração recebendo a Cristo e
foi cheio do Espírito, mas quando as dores
começaram, recusou-se terminantemente a
orar.
No dia seguinte, disse-nos que iria
embora. Não o permiti, pois cria que ele fora
sincero quando dissera que desejava seguir a
Cristo.
— Não podem me prender aqui, objetou
ele. Não têm esse direito.
— Ah, tenho sim, repliquei. Você pediu
que o ajudássemos a começar vida nova, e se
o deixasse sair agora, estaria sendo desleal
para com você.
— Mas vou embora, disse irredutível, e
encaminhou-se para a porta, onde eu me
encontrava.
— Se você orar, vai se sentir bem melhor.
— Já decidi que não quero mais seguir a
Jesus, ou embora.
— Pois bem, então você tem quatro
opções. Pode e dar um soco e pegar a chave,
ou saltar do telhado, ou ficar aqui e passar por
todo aquele sofrimento, ou então ficar aqui e
orar. Mas terá que passar por cima de mim
para sair.
Fiquei olhando-o, enquanto sopesava as
alternativas. Um homem de grande influência
como ele não usava de violência contra
mulheres. Saltar do telhado significaria a
morte. Então ele ficou e foi para o quarto.
Afinal, seu desespero foi tão grande, que
resolveu orar. Logo que começou, as dores
cessaram e ele dormiu tranqüilamente. E da
outra vez em que principiou a sentir dor, orou
novamente. Quando o processo já estava
quase findando, ele confessou que orara em
línguas várias vezes, sozinho.
Eram bem poucos os viciados, com
exceção dos da Cidade Murada, que tinham
algum conhecimento do cristianismo, antes de
passarem pela experiência de libertação da
droga. Mas isso, ao invés de ser uma
desvantagem, era um benefício para eles.
Chegavam a uma de nossas casas dizendo:
— Ouvi falar que Ah Kei (ou outro amigo
qualquer) mudou completamente de vida, e
disse que foi Jesus que fez isso. E se Jesus
pode mudar a vida dele, pode mudar a minha
também
A fé dessas pessoas não se baseava no
entendimento de conceitos teológicos, mas no
fato de que Jesus havia operado em outros.
Cada uma que orava, recebia a resposta de
sua petição, e assim sua fé se fortalecia.
Certas pessoas explicavam esse
extraordinário acontecimento espiritual como
um caso em que a mente sobrepuja a matéria,
mais tais pessoas não estão a par de todos os
fatos. Um viciado em drogas, que passa por
um processo de desintoxicação, tem a mente
já parcialmente destruída. A maioria de nossos
rapazes começou a entender quem era Jesus
somente depois que já o haviam
experimentado na própria vida. Só
compreendiam verdades como salvação, per-
dão, redenção muito tempo depois de já
possuírem os benefícios delas.
Uma vez já tendo quatro casas, o
clubinho da Cidade Murada e as reuniões e
cultos, precisávamos de mais obreiros de
tempo integral. Uma enfermeira inglesa,
Doreen Cadney, resolveu ajudar-nos, bem
como Gail Castle, que regressara dos Estados
Unidos. Depois foi Sarah Searcy que
abandonou um emprego, para responsabilizar-
se pela direção das casas. Além disso, os
rapazes que haviam sido libertos das drogas
ajudavam muito aos "novatos". Arrumavam a
casa, cozinhavam e assistiam aos recém-
chegados, orando por eles e incentivando-os à
oração. E esses os escutavam com muito
respeito.
Quase diariamente chegavam novos
viciados desejosos de se libertarem das
drogas. Vendo a transformação por que os
moços passavam, muitas pessoas "boazinhas"
ficavam impressionadas e criam em Cristo
também. Muita gente batia à minha porta, a
qualquer hora do dia ou da noite, cheia de
problemas, e saía dali crente, batizada no
Espírito Santo.
Aos domingos realizávamos cultos pela
manhã na casa da Rua Lung Kong, aos quais
compareciam muitos estudantes, rapazes da
Cidade Murada, ex-viciados e outros visitantes,
que vinham em busca de cura ou
aconselhamento espiritual.
Durante muito tempo, eu tentara fazer
tudo sozinha, mas depois comecei a passar
tarefas para os outros. Entendi então o
significado do Corpo de Cristo, vendo cada
pessoa executar uma função diferente. Percebi
também que eu não era indispensável.
Outra coisa que aprendemos foi que o
trabalho de se transformar um viciado numa
pessoa integrada à sociedade era tarefa a
longo prazo. No ministério da Rua Lung Kong,
eu tentara arranjar trabalho ou estudo para os
rapazes o mais cedo possível. Mas a
experiência me ensinou que, embora os
rapazes estivessem fisicamente habilitados
para tal, ainda tinham muito que aprender,
antes de poderem caminhar com os próprios
pés.
Muitos tinham vivido pelas ruas durante
anos e anos. Seu hábito de vida era mentir e
trapacear, ao enfrentarem situações difíceis.
Tínhamos que mantê-los em contato com uma
família cristã, recebendo muito amor e uma
disciplina rígida, até que se habituassem a agir
à maneira do crente. A princípio, pensávamos
que três meses seriam suficientes. Depois
percebemos que eram necessários pelo menos
seis meses, para que sua atitude mental se
modificasse. Mais tarde passamos a
recomendar que o tempo mínimo para isso
fosse de um ano, embora ainda preferíssemos
que fosse de dois.
Dos rapazes que desejavam realmente
seguir a Jesus, nenhum foi mandado embora,
jamais. E aos que apareciam querendo livrar-se
da dependência da droga, dizíamos que, como
ele fizera uma decisão voluntária de seguir a
Jesus e entrar para uma de nossas casas, não
permitiríamos que saísse antes de dez dias.
Depois desse período, já completamente
libertos, tinham a opção de ir embora ou
permanecer na casa e conhecer melhor a
Jesus. Nunca recomendavamos um período
inicial inferior a dez dias. Seguir a Cristo era
uma opção para toda a vida, e se o novo
crente não tivesse feito aquela entrega pessoal
básica, aquele comprometimento de modificar-
se, Cristo não poderia transformá-lo.
E assim estabeleceu-se a rotina, embora
não muito rígida. Os rapazes encontravam nela
um forte senso de segurança, e se aquietavam
ali. Assim que percebiam que não iríamos
mesmo deixar que voltassem para casa, eles
se tranqüilizavam e passavam a ter uma vida
ordenada. Diariamente oravam, individual-
mente ou em grupo, iam ao mercado, faziam
as tarefas caseiras. Tinham estudo bíblico,
aulas de chinês e inglês. Quase todos os dias
praticavam esportes, principalmente futebol, e
aí tinham a oportunidade de falar de Cristo a
outros. Sempre jogavam perto de um Centro
de Metadona, uma espécie de clínica onde os
viciados recebiam certas drogas em
substituição à heroína, que eram fornecidas
pelo governo. O time formado pelos nossos
rapazes era tão forte e saudável, que muitos
dos viciados que estavam por ali ficavam
sabendo que Cristo poderia libertá-los do vício.
Recebemos a doação de uma enceradeira
industrial, e isso ensejou a formação da
"Conservadora Estêvão". Grupos de rapazes
iam fazer a limpeza e enceramento de
apartamentos. Isso constituiu-se numa
oportunidade a mais para a pregação do
Evangelho.
Nunca tivemos um melhor supervisor
para o nosso serviço de assoalhos do que Tony,
que dirigia a companhia como se fosse uma
operação militar. Estava acostumado a
mandar...
Eu havia conhecido Tony havia uns dois
anos. Estávamos lanchando numa barraca de
lanches em nossa rua, e ele me viu. Ficou
intrigado por ver uma mulher ocidental
lanchando numa barraca de lanches, e com
tantos criminosos por ali. Um amigo mútuo nos
apresentou, e ele chegou até nossa casa. Mais
tarde foi a uma outra igreja e disse que gostou,
mas era tudo muito vago, como um conto de
fadas, que não se conseguia apreender bem.
Sua vida era muito diferente de um conto de
fadas. Nascera em Havana, Cuba. Quando
estava com oito anos, seu pai o mandara para
a China, para ajudar sua primeira esposa, que
não tinha filhos. E ele viveu com ela em
Pequim durante algum tempo, na maior
pobreza, até que a cidade caiu em poder dos
comunistas. Sua verdadeira mãe escreveu-lhe
de Havana suplicando-lhe que voltasse, mas
isso era impossível para o garoto sem dinheiro.
Quando estava com quatorze anos, fugiu e
viajou pela China em direção à fronteira de
Hong Kong. Afinal conseguiu cruzar a fronteira.
Aqui chegando, não tinha nenhum
dinheiro. Então pôs-se a trabalhar como
engraxate ou a bater carteiras para sobreviver.
Inevitavelmente, acabou-se deparando com as
tríades, que o encaminharam para o roubo
com violência. Com dezesseis anos, começou a
tomar heroína e pouco depois injetava-a
diretamente na veia. Sentia que ninguém o
amava, e devido às tristes experiências da
infância, criou em torno de si uma couraça de
amargura. Com isso, granjeou a reputação de
"solitário" entre os "irmãos" da quadrilha. Até
mesmo eles temiam aquele líder impiedoso,
que conseguira deter tanto poderio nas mãos,
fundando, com mais dois colegas, uma nova
ramificação da 14K. Eles se envolviam em
chantagens, brigas e mortes.
Uma noite, Ah Kei me telefonou aflito,
pedindo que procurasse Tony, que se
encontrava em grande dificuldade. Então
abotoei bem o casaco e fui fazer uma visita
noturna à Vila Diamond, onde ficava a sede de
seus domínios.
Encontrei-o sentado em uma casa de chá,
o colarinho do paletó virado para cima a
proteger-se do frio. Mas ele estava tremendo.
Junto dele, dois companheiros de quadrilha.
Mas quando fitei Tony, o que me chocou foi a
expressão de seu rosto.
Era a expressão de quem ia morrer.
Eu ainda não sabia como ia acontecer,
mas percebia, e isso era terrível, que ele já
havia planejado tudo.
Pôs-se a narrar-me a situação. Contou-me
que, ao sair da prisão, soubera que uma
quadrilha rival tinha tentado tomar o controle
de seu território. Tinham roubado seus
pertences, e, sabendo de sua paixão pela
música, haviam quebrado seu violão ao meio.
Isso exigia represálias. Ele não tinha outra
opção senão preparar o ataque da vingança.
Entretanto, no fundo da lembrança havia uma
recordação muito doce de uma coisa boa. Para
aplacar isso, resolveu vender seu barraco e
doar o dinheiro obtido para a Associação
Estêvão.
Pouco antes de eu chegar ali, porém, a
outra quadrilha havia arrastado suas roupas no
chão, peça por peça, e depois tocara fogo em
sua casa. Mostrou-me o lugar onde ela era, e vi
as cordas do violão ainda espalhadas pelo
chão.
— Sr.ta Poon, disse ele, eu queria dar a
escritura desse lote para a igreja.
— Não queremos seu terreno, Tony,
queremos sua vida, respondi.
— Vocês podem construir uma igreja
nele, insistiu.
— Não estamos querendo construir um
templo, Tony, mas queremos ajudá-lo a
reconstruir sua vida.
Descemos pela ruazinha que passava
entre os barracos, e notei como os habitantes
dali olhavam para ele. Tony tinha sido o "rei"
do lugar. Todos estavam esperando que ele
tomasse represálias. Se ele não revidasse ao
ataque, nunca mais poderia andar pelas ruas
com a moral de um chefe. Por isso decidira
matar ou morrer. E nenhuma das duas coisas
lhe importava muito. Estava cansado.
— Deus está chamando você, Tony, disse
eu por fim. Venha comigo.
Não quis, mas eu insisti.
— Deus o chamou para salvá-lo. Ele quer
você. Venha conosco.
Chamei um táxi e entrei. Comecei então
a dizer-lhe:
— Deus quer sua vida hoje, Tony. Venha
conosco.
Quando eu estava no meio da frase, ele
entrou no carro e sentou-se ao meu lado. Era a
última vez que via seu povoado por um
período de vários anos. Nem se despediu dos
"irmãos" da quadrilha.
Em meu apartamento da Rua Lung Kong,
os rapazes estavam prontos para recepcioná-
lo. Perguntaram-lhe se desejava receber a
Jesus. Ele estava com certo temor de Deus,
mas ficou pensando no que eu dissera: "Deus o
chamou; Deus o chamou", e fez que sim. Então
eles lhe ensinaram como poderia receber uma
nova vida. Mais tarde, ele escreveu seu
testemunho.
"Eles oraram por mim e eu aceitei a Jesus
como meu Senhor, recebendo depois o
batismo do Espírito Santo. Quando fui cheio do
Espírito, senti o coração arder e todo o meu
corpo com um forte calor; e chorei. Desde que
era criança nunca mais havia chorado. Então
compreendi que realmente nascera de novo.
"Levaram-me para a Terceira Casa de
Estêvão. Eu já tinha tentado outras vezes
livrar-me da dependência das drogas. Mas a
dor era muito forte, e eu não a suportava, por
isso sempre andava com um pouco de heroína
escondido em minhas roupas, para o caso de
ficar sem ela. Mas daquela vez foi diferente.
Meus irmãos em Cristo oraram por mim, e
também orei em língua estranha, e a dor
desapareceu. Dois meses depois, fui morar
com o casal Willans. Eles são agora como pais
para mim.
"De lá para cá, tenho visto Deus operar
de muitos modos em minha vida. Fui com
meus pais adotivos à China, e em 1976 visitei
também os Estados Unidos e a Inglaterra, onde
falei em igrejas, no rádio e na televisão. Que
coisa maravilhosa para mim, um ex-lutador de
quadrilha, ex-viciado em heroína, ex-
presidiário, receber uma concessão especial
para visitar os Estados Unidos.
"Depois fiz um curso de cabelereiro, onde
aprendi a cortar e pentear. Agora trabalho num
dos principais salões de Hong Kong. Isso tudo é
maravilhoso e mostra como o Senhor Jesus é
poderoso. Mas a melhor coisa que ele fez por
mim foi mudar meu coração. E hoje já não
desejo seguir os caminhos do pecado, porque
sigo a ele." O ideal seria que cada um de
nossos rapazes se tornasse filho adotivo de
uma família crente, onde pudesse ser amado e
cuidado. Foi maravilhoso ver Tony crescer
espiritualmente e ir sempre se transformando.
Ele perdera sua vida, mas assim fazendo a
reencontrara.
Os outros rapazes que se achavam nas
outras casas também estavam-se
desenvolvendo, embora alguns saíssem antes
de sentirmos que estavam preparados para tal,
o que nos entristecia bastante. A mais forte
pressão que sofriam nesse sentido era a dos
pais que, vendo os filhos libertados da droga,
logo começavam a resmungar com relação a
dinheiro e a responsabilidades de família. Mas,
para aqueles rapazes, o peso de sustentar uma
família era demasiado, e alguns voltavam a
tomar droga, e depois pediam para retornar à
nossa casa. Mas só os recebíamos quando
tínhamos certeza de que estavam sendo
sinceros.
Siu Ming não sofreu essas pressões por
parte dos pais, pois era órfão. Sua mãe tinha
morrido quando estava com seis anos e ele
morava num casebre com o pai e uma irmã
menor. Como acontece a muitas famílias de
Hong Kong, todos dormiam numa cama só, e
não havia cozinha, nem banheiro, nem
eletricidade, nem água encanada.
Siu Ming e a irmã costumavam sentar-se
numa pedra que havia à porta do barraco,
esperando o pai voltar para casa. Se viam que
ele trazia alguma coisa consigo, sabiam que
teriam o que comer. Se as mãos dele estavam
vazias, isso significava que ele perdera no jogo
e não teriam jantar naquela noite. Siu Ming
trabalhava vendendo jornais. Nunca aprendera
a ler ou escrever.
Aos quinze anos entrara para uma
quadrilha tríade. O pai ficou com muita raiva, e
constantemente o repreendia, até que ele saiu
de casa. Um ano depois, a irmã foi à sua
procura e disse que o pai havia morrido. Como
não tinham mais ninguém na vida, ele
começou a tomar heroína. A irmã suplicou-lhe
que não o fizesse, mas pouco depois já estava
viciado. E então saiu de casa outra vez, para
sempre.
Como a venda de jornais não fosse
suficiente para custear a compra de heroína,
ele passou a roubar. Foi preso e enviado para
um centro de reabilitação. Depois de
permanecer ali cinco meses, saiu e imedia-
tamente voltou a tomar drogas. Voltou ao
centro, e, certa vez, quando saiu num feriado,
foi preso de novo. Dessa vez foi mandado para
o presídio. Liberto depois de algum tempo, ele
sentia profunda amargura contra tudo e contra
todos, e voltou às drogas.
O agente encarregado de vigiá-lo na
condicional disse que ele era um caso perdido,
mas resolveu dar-lhe uma última oportunidade
e instruiu-o para que procurasse a Associação
Estêvão. Escreveu meu nome e endereço, em
chinês, num pedaço de papel, e deu-o a ele.
Siu Ming foi procurar-nos pensando que iria
entrevistar-se com uma mulher chinesa.
Tampouco sabia que tínhamos alguma relação
com igreja.
Ao ver-me, disfarçou um pouco a
surpresa de encontrar-se frente a frente com
uma inglesa. Mas, quando lhe falei que Jesus o
amava, pareceu indeciso sem saber como
receber isso. Afinal pensou: "Tenho que
escolher entre Jesus e a cadeia", e preferiu
Jesus. Alguns dos ex-quadrilheiros que
moravam em nossa casa oraram por ele, e
começou a falar numa língua que não
conhecia. Depois o conduzimos à terceira casa,
onde deveria passar pêlo processo de
desintoxicação.
Alguns rapazes, inteligentemente,
oravam logo, e não sentiam nem uma pontada
de dor. Outros, como Siu Ming, esperavam até
não suportarem mais. Ele simplesmente não
queria orar. Sofria as agonias das dores
provocadas pelo processo. E, mesmo que
quisesse orar, não o saberia.
Afinal, não agüentando mais,
desesperado, aceitou orar naquela língua
estranha. Depois disso, falou que estava-se
sentindo maravilhosamente bem, e daí a dez
minutos dormia tranqüilo. Quando acordou, ti-
nha verdadeira convicção de que Cristo o
amava.
Siu Ming era uma pessoa muito calada, e
parecia ter personalidade muito fraca. Nos
primeiros meses em que esteve conosco, mal
se notava sua presença. Sempre que fazíamos
nossas excursões à praia, ou íamos ao campo
de futebol, tínhamos que recontar nosso
pessoal, esperando que nenhum deles
houvesse escapulido para ir fumar no
banheiro. Sempre nos esquecíamos de contá-
lo. Mas, com o passar do tempo, começou a
revelar-se um rapaz bondoso, trabalhador,
digno de confiança, e, o que é mais
importante, muito espiritual. Aprendeu a ler e
escrever através de nossos estudos bíblicos
diários, e muitas vezes o víamos orando
sozinho. Acabou-se tornando um de nossos
melhores auxiliares para os novatos.
Também havia homens mais idosos
morando conosco nas casas. Ah Lun e o Sr.
Wong chegaram à nossa casa da Rua Lung
Kong no mesmo dia, mas não juntos. Ambos
tinham ouvido falar de nosso ministério e
pediram que os acolhêssemos imediatamente.
Ah Lun estivera preso durante um ano e meio e
só vivia para comer e tomar heroína. O Sr.
Wong dizia que fora general do exército de
Chiang Kai Shek. (Conheci tantos soldados
nacionalistas que afirmavam o mesmo, que
acabei pensando que o exército era composto
unicamente de generais.) Dizia também que já
estivera em diversas igrejas de Hong Kong,
mas que a nossa era a primeira em que Jesus
estava presente.
Dei um jeito de dispensar os dois. Ah Lun
tinha quase sessenta anos e o Sr. Wong uns
cinqüenta e tantos. Não me parecia acertado
misturá-los com os rapazes. Mas os dois
continuaram a aparecer em nossa casa todos
os dias, sempre pedindo que os aceitássemos.
Não poderia deixá-los de fora, negando-lhe a
oportunidade de receber a Cristo.
E assim os dois passaram a morar
conosco e se adaptaram muito bem.
Naturalmente houve certos problemas, pois Ah
Lun tinha mania de ajuntar coisas, e guardava
objetos debaixo de sua cama ou mesmo em
cima dela. Além disso, pegou vários livros de
Jean, embora não soubesse ler inglês.
Já o Sr. Wong se julgava superior a todos,
devido à sua posição. Era um alto oficial do
exército, e esperava que Taiwan
reconquistasse a China Continental. Como isso
não aconteceu recorrera às drogas. Embora
sua reabilitação pudesse parecer mais fácil, na
verdade ele apresentava o mesmo problema
básico que os outros rapazes: orgulho.
Empregava uma linguagem evangélica
bastante floreada, que aprendera nas outras
igrejas que visitava. Achava-se muito certo e
justo, mas irritava-se facilmente. Era briguen-
to e causava-nos muitos aborrecimentos.
Depois de ficar livre da dependência da
droga, o Sr. Wong achou que não precisava
mais de Jesus e parou de orar. Mas Sara lhe
disse que devia orar pela manhã e à noite em
língua estranha, e ainda tinha que orar pelo
menos durante meia hora em seu devocional
particular. Sua atitude começou a mudar
imediatamente e um dia ele me disse:
— Meu coração de pedra está-se
derretendo, e Deus está-me dando um coração
de carne.
Ao que parecia, seu estilo pomposo não
mudara nada.
Muitos rapazes, quando oravam para
serem libertos da heroína, eram curados
também de outras enfermidades. Um deles
sofria de tuberculose e asma. Mas dois dias
depois a asma desapareceu completamente e
a chapa do pulmão estava limpa. Ah Lun
também estava com o fígado inchado ao
chegar, mas foi curado, e o órgão voltou ao
normal.
Enquanto um viciado está fazendo uso de
drogas, não fica ciente de outras doenças,
mas, depois da desintoxicação, sempre
descobríamos algumas que ainda perduravam.
O problema mais comum eram os entes.
Tivemos de gastar uma pequena fortuna em
atamento dentários e em dentaduras.
Felizmente, o exército britânico nos ofereceu
assistência nos casos mais graves, e assim o
Sr. Wong foi para o hospital militar, a fim de
extrair todos os dentes, que haviam-se
estragado pelo uso constante de heroína. O
exército ainda fez mais: doou-nos alguns
fundos, para mandarmos fazer as dentaduras
dele.
Não era a primeira vez que o exército
auxiliava as Casas de Estêvão. Muitas vezes, já
havíamos utilizado seus acampamentos e
ônibus para nossas excursões. Isso foi de
beneficio mútuo, pois alguns de nossos
conhecidos ali tornaram-se crentes, devido ao
contato conosco. Quantas vezes nossos
rapazes diziam a um soldado inglês:
— Você já aceitou Jesus?
E logo em seguida ofereciam orientação
espiritual.
— Se quiser, podemos orar por você.
Um de nossos mais entusiastas
evangelistas era Ah Fung. Ele era de uma
família rica. Fizera alguns anos de curso
secundário, e considerava-se um filósofo. O tio,
que o criava, pertencia ao Jockey Clube, uma
associação bastante elitista. Mas, apesar de
todas essas vantagens, Ah Fung era um garoto
carente. O pai havia morrido e a mãe
desaparecera. Era fortemente viciado em
heroína e precisava de meios para custear o
vício. O tio lhe dava muito dinheiro, e isso lhe
proporcionava maiores oportunidades de
cultivar mais e mais o vício. Chegou um dia,
porém, em que a quantia dada pelo tio já não
era suficiente. E viu-se forçado a roubar ou
fazer o que fosse necessário para arranjar
dinheiro.
Quando o tio teve conhecimento do vício
do sobrinho, obrigou-o a ficar preso em casa
durante dois meses, sob vigilância constante.
O rapaz concordou, mas insistiu em que não o
importunassem à noite. Certo de que não iriam
perturbá-lo, ele ajeitava coisas na cama, a fim
de dar a impressão de que estava lá dormindo,
e todas as noites escapolia da casa sem ser
visto.
Afinal, depois de dois meses, a família
percebeu que ele ainda estava viciado, e o
expulsaram de casa. Aí então ele procurou
assistência profissional. Mais tarde, ele fez a
triste declaração de que conhecia todos os
centros de tratamentos de viciados de Hong
Kong. Chegara até a ir a Taiwan e à Austrália,
numa tentativa de procurar trabalho, mas
ainda estava viciado.
Quando conheci Ah Fung, ele já estivera
preso seis vezes, e parecia um caso perdido.
Procurou-me em minha saleta na Cidade
Murada.
— Sr.ta Pullinger, quais são as exigências
para se entrar na Associação Estêvão?
perguntou. Onde se faz a matrícula, e quanto
tenho de pagar?
— Bom, Ah Fung, respondi. Não é bem
assim. Somos um grupo de cristãos
interessados em que você passe por uma
mudança de vida. Se você quer apenas ficar
livre do vício, eu lhe recomendo que procure
um centro de tratamento. Lá você ficará alguns
meses e depois sairá e voltará a tomar drogas.
Mas nós só o aceitaremos, se estiver disposto
a mudar de vida e quiser ficar pelo menos um
ano.
Ele fez que sim. Alguns dos rapazes que
estavam ali no clubinho lhe falaram
entusiasticamente sobre Jesus. O rapaz ia
acenando afirmativamente, meio alheado, e
afinal concordou em fazer a oração de entrega
pessoal.
No dia seguinte, o encaminhamos para a
terceira casa. No segundo dia em que lá
estava, começou a sentir dores, o que indicava
que estava iniciando seu processo de
desintoxicação. Recusou-se a orar, e exigiu que
o deixassem sair. As dores pioraram.
Jean e Rick tinham acabado de sentar-se
à mesa para jantar, quando veio um
telefonema de um dos obreiros, dizendo que
Ah Fung ainda estava teimando em sair,
lutando para fugir. Rick foi até lá e falou ao
rapaz com toda a firmeza, como se fosse um
pai. Disse-lhe que acontecesse o que
acontecesse, ele não teria permissão para sair,
senão dali a oito dias.
A firmeza e autoridade dele fizeram com
que o paz se acalmasse, e aquiescesse em
orar com Rick. ais tarde contou-nos que,
quando Rick impusera as mãos sobre ele,
sentira como que um clarão sobre si, e as
dores cessaram.
No dia seguinte, quando acordou, sentiu
novamente as dores e lembrou-se do que
acontecera no dia anterior. Espiou para um
lado e outro, para ver se alguém o observava,
e em seguida impôs as mãos sobre si mesmo.
Mas nada aconteceu. Resolveu orar, e aí então
foi liberto.
Assim Ah Fung aprendeu que era Jesus, e
não Rick, que tinha as mãos de cura. E ele
ficou em nossa casa dois anos e nos ajudou
bastante no trato com os outros rapazes.
Cada um dos rapazes que acolhíamos
tinha sua própria história, uma história
maravilhosa. E todos, sem exceção, foram
libertos do vício da heroína sem dores nem
traumas.
Todos conheciam a realidade de um Deus
vivo e o poder de seu Espírito. Aqueles que o
seguiam eram evidências vivas de uma incrível
transformação de vida. Ah Fung citou um
provérbio chinês que diz: "É mais fácil mudar
as características de um país, do que a
disposição de um homem." Ele reconheceu que
Deus podia remover montanhas.
12
Acolhendo Anjos
Elas poderiam ter vinte anos, ou
sessenta. Não havia meio de se saber. A
cabeça pendia sobre o peito, estando elas
agachadas ou apoiadas à parede, aguardando
os clientes.
A prostituta que comprara Maria, quando
esta era ainda um bebezinho, estava pensando
em aposentar-se. Postava-se junto ao cinema
pornográfico, instando com os homens que de
lá saíam para que desfrutassem dos prazeres
juvenis da moça lá em cima, ou então sentava-
se e contava o dinheiro.
Maria estava com treze anos, e quando
sua mãe adotiva quis que ela começasse a
trabalhar nos bordéis, ela se rebelou. Não que
ela tivesse repugnância pelo trabalho, mas a
idéia de dormir com homens velhos não lhe
agradava muito. Tendo sido criada numa casa
dessas, via aquilo apenas como um meio de
ganhar a vida. Era uma garota muito bonita, de
pele azeitonada e olhar expressivo. Contudo,
ela estava procurando amor e atenção. Por
isso, fugiu.
Maria tornou-se bailarina de dancing em
Kowlo-on. As bailarinas constituíam uma casta
superior de prostitutas. Aliás, não se
consideravam meretrizes. Os homens
pagavam para dançar com elas, e se quises-
sem segui-las até a casa, teriam que pagar um
pouco mais. Cada bailarina dessas tinha o seu
"protetor", que recebia o dinheiro. Se ela
quisesse mudar de protetor poderia fazê-lo,
desde que ela ou o outro pagassem uma
grande soma em dinheiro.
Eu não sabia onde ela se encontrava. Só
sabia que havia fugido. Quanto mais o tempo
passava, mais preocupada eu ficava. Num
domingo à tarde, pus-me a andar pelas ruas,
pedindo a Deus que me levasse até onde ela
se achava.
"Siga diretamente em frente. Não vire
para a esquerda, nem para a direita."
Não ouvi uma voz, nem vi uma nuvem
branca, mas tive certeza de que Deus queria
que fosse naquela direção. Caminhei em
frente, atravessei a rua principal e depois senti
claramente a orientação: "Pare aí." Encontrava-
me diante de um prédio de apartamentos,
muitos deles com cartazes anunciando
"Massagens", "Hotel", etc.
Mas, naquele momento, refutei todas as
revelações até ali recebidas e disse:
— Senhor, isso tudo é uma bobagem. Vou
parar de brincar de detetive espiritual.
E voltei para casa.
Alguns dias depois, sonhei com Maria. Vi
claramente o lugar onde estava morando e o
homem com quem vivia. Acordei chorando,
pois sentia que não possuía meios de
encontrá-la, para dizer-lhe que me interessava
por ela e queria ajudá-la. A única maneira
possível de saber seu paradeiro era recorrer à
teia de comunicação dos tríades.
Normalmente, eles conseguem localizar
garotas desaparecidas em pouco tempo.
Entretanto, alguns meses depois, a
própria Maria me telefonou. Disse que havia
muito tempo estava tentando entrar em
contato comigo, e me deu as instruções de
como chegar à sua casa. Fui visitá-la. Era no
mesmo prédio, na frente do qual eu parara,
naquele domingo, alguns meses antes. E o
apartamento era exatamente igual ao do meu
sonho, com a exceção de que havia muitos
espelhos pelas paredes e no teto.
Passei a visitá-la todos os domingos, à
tarde. Contou-me que estava totalmente
endividada no seu dancing. Geralmente, as
moças desses lugares ganham lindos vestidos
e recebem aulas de dança, mas tudo é
debitado em sua conta, e vão descontando de
seus ganhos. Ela não poderia sair dali, sem
antes pagar uma quantia vultosa. Um modo de
escapar disso era engravidar-se. E foi o que
fez. Mas depois provocou o aborto. Engravidou-
se pela segunda vez, e foi morar com a mãe de
seu protetor, e depois arranjou serviço numa
fábrica. Mas os familiares desse homem, seus
amigos e ele próprio a desprezavam por ter
sido dançarina. E afinal, essa rejeição por parte
deles convenceu-a de que não valia a pena
levar uma vida direita, então o melhor era
mesmo voltar para o dancing.
A filhinha, porém, ficou com a vovó. Ela
lhe dera o nome de Jackyan, em minha
homenagem.
Mais tarde, Maria arranjou um novo
protetor, mas sentia-se cada vez mais infeliz.
Dançava muito todas as noites, e tomava
comprimidos estimulantes para suportar o
cansaço. Após o trabalho, ia para as salas de
jogo e o inevitável acontecia, ficava mais e
mais endividada, sendo forçada a tomar
dinheiro emprestado de um agiota. Não
demorou muito e ficou totalmente enredada e
sem condição de saldar a dívida. O agiota
então exigiu que ela se tornasse propriedade
dele por dois anos, trabalhando na pros-
tituição, a fim de pagar o débito.
E então ela me ligou, dominada pelo
pânico. Isso seria a suprema humilhação para
ela. Como bailarina de dancing, ela era
independente até certo ponto. Mas estava por
se tornar virtualmente prisioneira de um
homem impiedoso. Queria que eu lhe
arranjasse HK$ 1.500 dólares, a fim de evitar
cair nesse destino. Contudo, eu não tinha nem
HK$ 15 dólares. Minha grande preocupação era
saber se ela estava realmente sendo sincera.
Algum tempo antes ela tinha feito uma oração
de entrega pessoal a Cristo, mas não fizera
nenhum esforço para segui-lo. Eu não tinha
intenção de dar dinheiro a uma moça que não
tivesse um desejo sincero de mudar de vida.
Mas precisava vê-la e falar com ela. Resolvei
levar Ah Ping comigo. Precisava do
conhecimento que ele tinha dessas coisas,
para descobrir se ela estava querendo apenas
explorar-me. Fazendo um levantamento de
meus bens materiais, cheguei à conclusão de
que a única coisa de valor que eu possuía era o
meu "querido" oboé. Como todo oboísta,
considerava o instrumento quase como um
amigo muito estimado. Numa certa reunião,
recebemos uma mensagem em língua
estranha, e Ah Ping recebeu a interpretação.
Disse ele: "O Senhor Jesus Cristo entregou seu
bem mais precioso por você, isto é, a sua
vida." E se Jesus tinha dado a própria vida, o
que era um oboé em comparação com isso?
— Está bem, Maria, respondi à moça mais
tarde. Vou pagar a dívida, mas com duas
condições. A primeira é que eu própria vou
entregar o dinheiro; a segunda é que você
mude de vida. Vou ajudá-la a arranjar um
emprego e outro lugar para morar. Se ficar
aqui, logo estará novamente com os mesmos
problemas.
— Eles não vão querer manter
conversações com você, respondeu ela.
Michael é um agiota muito exigente.
Mas como ela não tinha outra escolha,
então marcou um encontro numa casa de chá
para daí a dois dias, à meia-noite e meia.
Vendi meu oboé e coloquei o dinheiro,
quinze notas de HKSIOO dólares, num
envelope grande. Cheguei ao restaurante e me
sentei a uma das mesas centrais. Eu e Maria
ficamos a tomar café, aguardando a chegada
de Michael.
O ruído de pneus chiando no asfalto
anunciou a chegada dos encarregados da
cobrança. Michael mandara quatro homens,
que entraram pelo salão no velho estilo de
Chicago. Mal deram uma olhada para nós.
Pegaram logo o envelope, verificaram o
conteúdo dele, e saíram novamente, sem dizer
nada. Quando já estavam quase na porta,
chamei-os.
— Ei, esperem aí!
Um deles olhou para trás.
— O que deseja? indagou com ar de
desdém.
— Quero falar com Michael, respondi.
— O que quer com ele?
— Tenho uma mensagem muito
importante para transmitir a ele.
— Pois pode dizer-nos o que é.
— Não, repliquei, tenho que entregá-la
pessoalmente.
— E o que é?
— É muito pessoal. Como posso
encontrar com ele?
Para surpresa minha, deram-me o
telefone dele, e quando liguei, ele concordou
em me receber. Fui conduzida a um prédio alto.
A boate dele ficava no vigésimo primeiro
andar. O porteiro abriu-me a porta com uma
chave dourada. Já estavam-me esperando.
Dentro, tapetes macios e luz amortecida
faziam o ambiente. Então era este o clube em
que Maria teria de trabalhar, se não
tivéssemos conseguido o dinheiro para ela.
Sentei-me a uma das mesas e pus-me a
esperar.
Afinal, Michael dignou-se a dar-me a
entrevista. Era uma pessoa de aspecto
agradável, bem vestido. Pôs-se a falar com
muita emoção sobre as terríveis condições de
vida em Hong Kong, e de como, sem o negócio
da agiotagem, não poderia pagar os estudos
de seus onze irmãos. Depois de esplanar toda
a autojustificação, passou a atacar-me:
— Você é uma boba, disse. Talvez pense
que praticou um ato muito nobre pagando a
dívida daquela garota, mas sei que ela não vai
mudar nunca. Acabará voltando ao mesmo tipo
de vida. Não pense que ela ficará grata a você,
nem que mudará de vida. Você foi levada a
cometer um erro, um verdadeiro desperdício.
— Isso realmente não tem muita
importância, falei. Vou explicar por que fiz isso.
Já ouviu falar de Jesus?
Ele já tinha escutado algumas histórias
bíblicas.
— Jesus foi o único homem perfeito que
houve no mundo, expliquei. Ele só fez o bem.
Curou os doentes, ressuscitou mortos, mas
seus inimigos o pregaram numa cruz e assim o
mataram. Ele morreu por minha causa. E não
esperou que eu mudasse de vida e me
tornasse uma pessoa boa, para morrer por
mim. E tampouco disse que só morreria por
mim, se eu mudasse de vida. Mas deu-me sua
vida, e no instante em que morria perdoou-me.
Foi isso que Jesus fez. E é isso que desejo que
Maria compreenda. Fiz uma pausa.
— Mas ela não vai mudar. Voltará à
mesma vida de antes, insistiu ele. Tudo que fez
foi pura perda.
— Não me importo de passar por tola e
perder esse dinheiro, disse. Afinal Jesus perdeu
sua vida. Prefiro ser uma boba, e perder tudo,
do que ser incrédula, e ver essa moça ir para o
inferno. Agora, é com ela. Não posso mudar
sua vida, mas ela tem a possibilidade de fazê-
lo. Foi Jesus quem lhe deu essa oportunidade.
Michael abriu a boca para responder, mas
não conseguiu dizer nada. Estava mudo de
espanto. Passaram-se alguns minutos, e ele
ainda não conseguia falar. Seus olhos ficaram
marejados de lágrimas. Afinal resmungou com
voz roufenha:
— Não sei o que dizer.
Nunca mais vi Michael, mas quando
estava descendo pelo elevador, um dos
empregados da boate entrou e veio falar
comigo.
— Posso falar com você um instante?
indagou. Quero aprender sobre esse negócio
de ser crente. Pode me indicar um lugar onde
posso ir para aprender?
Então fomos nos sentar num bar, e
passamos o resto da noite ali, com uma Bíblia
aberta à nossa frente.
Naquela ocasião, eu já começara a
receber rapazes para morar em minha casa, e
não poderia levar Maria para lá. Já tínhamos
percebido que era mais difícil ajudar moças
iguais a ela, pois eram poucas as que queriam
mudar de vida.
Muitas não achavam que procediam mal.
Achavam que valia a pena o*estigma que a
sociedade lhes impigia, tendo em vista a
liberdade que obtinham.
Eram livres no sentido de que podiam se
divertir, ganhar muito dinheiro, e não se
submetiam à vida insípida da mulher chinesa
em geral. Muitas jovens tinham essa ilusão e a
conservavam por muito tempo. Amavam o
namorado com elevado grau de romantismo e
os sustentavam de bom grado. Só mais tarde é
que vinham a perceber que tinham sido
exploradas. Mas àquela altura, não conheciam
outra vida, e só aí percebiam que não tinham
conquistado nenhuma liberdade, mas
achavam-se cativas.
Algumas dessas moças até que
gostariam de largar esse tipo de vida, mas os
homens para quem trabalhavam naturalmente
resitiam a isso, e, em alguns casos, eles eram
em número de até sete ou oito. Também
achavam-se em dívida com o clube para o qual
trabalhavam, além de temer o cáften. Nas
visitas que fiz ao dancing onde Maria estava,
conheci muitas moças que queriam sair dali.
Uma noite, recebi um telefonema de
Frederick.
— Poon Siu Jeh, falou ele em voz calma,
uma pessoa de minha amizade levou uma
surra, porque tentou largar dos tríades. Ela
está desesperada e não tem para onde ir. Será
que podemos ir até aí?
— Pode, Fred, tudo bem. Quer vir amanhã
cedo?
— É "muito perigoso. Essa pessoa não
pode ser ta. Iremos à noite.
No dia seguinte, à noite, quando abri a
porta para receber meu fugitivo, levei um
choque. Fred estava-me trazendo uma moça.
Como na língua chinesa as palavras não têm
gênero, pensara tratar-se de um rapaz, que
estava querendo deixar a quadrilha. Os olhos
dela exibiam marcas de pancadas. Mandei que
entrassem rapidamente, e tentei conversar
com a jovem, mas ela não quis dizer uma só
palavra naquela noite. Sua necessidade de
conversar limitava-se a acenos afirmativos ou
a abanar a cabeça. O nome dela era Angel.
Frederick contou-me que ela trabalhara
como stituta para uma quadrilha de Mong Kok.
Sua e a dera para um homem que lhe pedira a
menina, esperando que se casasse com a filha.
Mas isso não aconteceu. Em vez de esse
homem cuidar da moça, era ela quem o
sustentava e a mais quatro ou cinco. Todas as
noites tinha que ir para um bordel, onde
trabalhava. Em algumas dessas casas, havia
rapazes que vigiavam as garotas. Eles ficavam
lá sentados, jogando baralho, assistindo
televisão ou comendo alguma coisa. Estavam
ali para vigiar as moças, para que
trabalhassem o número devido de horas e não
fugissem. Uma noite, Angel não foi trabalhar, e
quando apareceu no apartamento, seu
"namorado" bateu muito nela. Disse-lhe que,
se acontecesse de ela não ir trabalhar uma
outra vez, ele a mataria de pancadas.
A moça não queria apanhar mais, mas
também não tinha para onde ir. Se fosse para
casa, o namorado iria atrás dela; se alugasse
um apartamento, os tríades a localizariam em
quarenta e oito horas. Não tinha amigos. A
única pessoa que conhecia era Fred, e então
recorreu a ele.
Angel parecia ter dezessete anos, mas na
verdade tinha vinte e cinco, e era bastante
ingênua. Mas alguns dias depois, ela entendeu
a mensagem cristã o suficiente para aceitar o
fato de que Jesus a amava tal como era, e que
a perdoava. E assim tornou-se crente. Só então
vimos seu olhar adquirir um pouco mais de
animação e vida.
Embora ela estivesse disposta a começar
vida nova, era claro que não poderia andar
livremente por Hong Kong, enquanto a
situação não fosse solucionada. Tinha que
haver uma gong-sou, isto é, uma conversação,
para se acertar a taxa a ser paga para a
separação dela, e assim ficasse oficialmente
transferida para outra pessoa. Se não
fizéssemos isso, na primeira vez que saísse à
rua, a quadrilha poderia raptá-la, desfigurar
seu rosto com ácido, ou entrar em luta contra
nós.
Combinei com Angel para que fossemos
falar com seu antigo namorado. Telefonei para
ele, e marcamos um encontro nà Lanchonete
do Hotel Hong Kong, pois era um lugar com
muitas portas, e assim não poderiam
encurralar-nos. Também era um lugar com bom
afluxo de público, o que impediria que a
quadrilha a seqüestrasse. Além disso, liguei
para a polícia e expliquei-lhe que iríamos ter
essa conversação, e seria bom se houvesse
algum dos seus homens por ali, apenas para
"ficar de olho" na coisa toda.
E assim eu e Angel fomos para o hotel,
acompanhadas de um dos rapazes; mas, ao
chegarmos ali, já encontramos o namorado
dela sentado a uma mesa, rodeado de
quadrilheiros.
Deixe que Angel conversasse com eles,
mas, a certa altura, percebi que não estavam
discutindo as bases, mas concordando com
tudo que o homem dizia. Estava simplesmente
obedecendo a força de um hábito de vários
anos. Eu já nos via saindo dali, eu entrando
num táxi e ela em outro, para voltar a ser uma
prostituta. Resolvi entrar na conversa, mas o
homem estava irredutível; não abriria mão
dela em hipótese alguma. Em seguida,
procurou convencer a mim e a si mesmo de
que amava a moça.
— Mas que maneira estranha você tem
de demonstrar seu amor, comentei, mandando
que ela vá fazer esse tipo de serviço.
— Mas não vou desistir dela, insistiu. Por
direito ela é minha. Foram seus pais quem a
deram para mim.
— Com você, ela não tem nenhuma
chance de uma vida melhor, disse eu. E ela
deseja parar com isso e começar vida nova.
Ela creu em Jesus.
Mas isso não significava nada para ele, e
ordenou à moça que fosse embora com ele.
Agarrei-a por um braço, enquanto o nosso
moço a segurava pelo outro, e foi dessa forma
que saímos porta a fora e tomamos um táxi.
Quando este já se afastava do meio-fio, ele
entrou e sentou-se no banco da frente. Como
não queria sair, instruí ao motorista para dar
uma longa volta. Não queria que o sujeito
descobrisse onde Angel estava. Ele virou-se
para trás.
— Meu chefe vai ficar muito irritado com
isso, falou. Não vai deixar Angel sair. Preciso do
número do seu telefone.
Neguei-me a dar o número, e expliquei
que entraria em contato com ele. Afinal, ele
saiu do carro, e pudemos ir para casa.
Resolvemos que, quando voltássemos a ter
nova conversação, Angel não iria, pois
poderiam tentar raptá-la.
Ligamos para ele e marcamos um novo
encontro. Decidi ter esse encontro no Café
Diamond, que fica logo em frente ao nosso
prédio, na rua Lung Kong. O namorado disse
que deveríamos ir apenas eu e Angel, e mais
ninguém, e ele também estaria sozinho.
Não confiei plenamente nele. Além disso,
estava com medo de que brotasse violência de
uma outra fonte. Os rapazes de nossa casa
estavam tomando as dores de Angel, e
desejavam protegê-la e a mim. E isso era
exatamente o que eu não queria que
acontecesse, pois, se houvesse briga,
instintivamente eles iriam brigar. Então, na
manhã daquele dia, meditei com eles sobre as
histórias de Gideão e Josafá, no Velho
Testamento, que estavam enfrentando
situações fortemente adversas, mas não
tiveram de lutar para vencer. Simplesmente
louvaram a Deus e cantaram, e assim
obtiveram a vitória. Queria que nossos rapazes
aprendessem que não precisamos lutar.
Algumas horas antes do encontro, os
homens da quadrilha começaram a postar-se
em vários pontos da rua, que ficou tomada por
eles. Eu pedira aos nossos moços que ficassem
no alto de nosso prédio, de onde podiam ver o
que se passava, sem contudo serem vistos.
— A única coisa que vão fazer aqui é
orar, disse-lhes. Se virem algum ato de
violência, então podem ligar para a polícia.
Mas não podem absolutamente sair para me
defender.
Eles estavam querendo mandar pedir a
Goko que enviasse alguns de seus homens
para brigar com a outra quadrilha.
— Mas assim vocês não estariam lutando
a batalha espiritual, que é o que devemos
fazer como crentes. Não podemos nos envolver
numa briga corporal, expliquei-lhes com
firmeza.
Oramos bastante a respeito da situação,
e afinal parti, acompanhada de um dos
rapazes, enquanto que Angel ficou em casa.
O namorado de Angel não apareceu;
mandou em seu lugar o chefe da quadrilha,
juntamente com mais quatro ou cinco de seus
companheiros, bem como os outros do lado de
fora. Ficou furioso ao ver que Angel não estava
comigo. Estava claro que tinham tudo
preparado para seqüestrá-la.
— Não pense que vou ficar todo
cerimonioso, só porque você é desse negócio
de igreja, disse ele.
Ele não sabia que eu era bem relacionada
com o pessoal da Cidade Murada; então,
ingenuamente, tentei dar uma espécie de
testemunho, mencionando o nome de alguns
rapazes de lá, que já eram seguidores de
Jesus. Imediatamente ele concluiu que eu tinha
ligações com a 14K.
— Pois bem, falou. Não vamos mais ter
nenhuma cerimônia com você, e deu um murro
na mesa. Entregue-nos a moça. Não vamos
deixar que saia daqui, enquanto não a trouxer.
Tentei falar-lhe de Jesus, mas não quis
ouvir.
"Bom", pensei, "quis falar de Jesus e ele
não me deu ouvidos. Se eu quiser argumentar
sobre á moça, também não irá ouvir-me."
Senti muito medo naquele momento.
— Por favor, posso dar um telefonema?
falei com voz mansa.
Liguei para casa, e Willie atendeu.
— Não olhe agora, mas na porta do café
há dois carros cheios de quadrilheiros armados
de faca, disse-me ele. Estão aí esperando.
Fiquei aterrorizada e sussurrei para Willie:
— Chame a polícia!
Voltei à mesa e disse-lhes que teriam que
fazer as conversações comigo mesma, e que
Angel desejava seguir a Jesus.
Quando a polícia chegou, os carros com
os homens armados escapoliram, e quando os
policiais entraram no restaurante já estava
tudo tranqüilo. Os outros rapazes,
naturalmente, não portavam armas. Fui ao
banheiro, e um dos investigadores estava lá.
— Ah, dá licença, disse eu. Há alguns
carros lá fora cheios de homens com facas.
— Agora não há mais ninguém lá,
respondeu. Quer que façamos uma revista no
café?
— Não iria adiantar, repliquei. Não
encontrariam nada.
Então, os policiais foram embora, e assim
que saíram, os carros deles voltaram. Eu ainda
estava presa ali, sem saber o que fazer. A
única coisa a que poderia recorrer naquela
situação era a oração. Então orei em línguas,
em voz bem baixa, para que não escutassem.
Meus joelhos tremiam, e não tinha a
mínima idéia do que iria fazer em seguida.
Afinal, levantei-me e disse:
— Tenho que sair para comprar verduras.
Estava tremendo fortemente quando saí dali, e
à
porta vi os homens também saindo do
carro. Vinham em minha direção. Meu maior
medo era que os rapazes da Cidade Murada
viessem lutar com eles em minha defesa. Por
felicidade, naquele instante, passou um
lotação e entrei nele e fui embora. Fui
diretamente para a delegacia. Tentei explicar-
lhes que havia uma porção de homens
armados procurando Angel.
— Tenho certeza de que vão à casa de
seus familiares e vão criar problemas para
eles.
— E onde moram? indagaram eles.
— Em Shek Kip Mei, respondi.
— É fora de nossa jurisdição, disseram.
Quer ir à delegacia de Shek Kip Mei?
— Não poderiam lígar daqui mesmo?
perguntei.
Estou achando que vão matar alguém.
Um dos policiais disse-me com ironia.
— Minha senhora, disse com uma
entonação deliberada, todos os dias morre
gente nesta cidade.
— Mas estou avisando a vocês, porque
gostaria que essa morte fosse evitada.
Afinal, concordaram em levar-me à
delegacia de Shek Kip Mei numa de suas
viaturas. Ali, senti que os outros policiais
também não estavam muito dispostos a
cooperar.
— Esse negócio é de Kowloon, disseram.
Mas, afinal, o que deseja que façamos?
— Eles moram aqui nesse endereço,
repliquei. Tenho quase certeza de que esses
quadrilheiros irão aparecer para maltratar essa
gente.
— Não podemos mandar uma pessoa
ficar de guarda lá o tempo todo, responderam.
Temos muito que fazer.
— Sei que não podem, mas poderiam ao
menos instruir os policiais da ronda, para ficar
de olho nessa casa.
Por fim, um dos inspetores anotou a
queixa, não oficialmente, já que não
acontecera nada.
Mas, algumas horas depois, recebi um
chamado desesperado de um dos familiares de
Angel.
— Saí para comprar umas coisas, e agora
estou vendo cinco homens sentados em minha
casa, disse a pessoa com voz trêmula. E ainda
há outros sentados nas escadas, e estão
armados.
Imediatamente liguei para a polícia. Já
estavam a par do fato e mandaram seus
homens para lá rapidamente. A maioria dos
quadrilheiros conseguiu escapar, mas a polícia
pegou dois ou três deles. Além disso, eles os
amedrontaram, dizendo que, se quisessem,
poderiam criar muitos problemas para toda a
quadrilha. Nunca mais importunaram Angel.
Mais tarde, os familiares da moça me
contaram que, quando os quadrilheiros
entraram na casa e se assentaram lá, eles
ficaram aterrorizados; interrogaram-nos
bastante, querendo o meu endereço. Feliz-
mente, eles não o sabiam e assim não o
puderam revelar.
— Mas quem é essa dona que só fala de
Jesus e quem são esses crentes? perguntou um
dos rapazes da quadrilha.
— E vocês já viram o olhar dessa mulher?
indagavam. Quando estávamos conversando
com ela no café, ficamos muito nervosos, e a
gente nem conseguia olhar para ela direito. Ela
tem um poder qualquer.
E a palavra que empregaram designa
poder sobrenatural. Quando me contaram isso,
senti grande regozijo, pois aquele fora um dos
momentos mais terríveis de minha vida. E, no
entanto, eles tinham ficado ainda mais
atemorizados que eu, pois reconheciam ali a
presença de um poder espiritual.
Uma vez que a liberdade de Angel estava
garantida, não poderíamos mais mantê-la em
nossa casa, juntamente com os rapazes. Como
Jean e Rick tinham-se mudado para Hong
Kong, o apartamento de Mei Foo estava à
nossa disposição, até vencer o contrato de
aluguel. Resolvemos acomodar a moça ali, com
mais três. Sara permaneceu lá, para ser a
responsável. E assim teve início a casa das
moças.
Outra grande dificuldade na reabilitação
dessas jovens era que ninguém esquecia o
passado delas. Nos crimes dos homens, parece
que existe uma espécie de glória. Mas com as
mulheres é diferente. Mesmo que se tornem
crentes, ninguém esquece o que foram antes.
Embora não tenhamos podido manter a
casa das moças por muito tempo, aprendemos
muita coisa com a experiência. Angel aprendeu
a ler um pouco. Nunca mais foi incomodada
por ninguém e mais tarde casou-se com um
ótimo rapaz crente.
Mais ou menos um ano depois, um certo
juiz ligou para Jean e perguntou se ela poderia
considerar a hipótese de receber em nossas
casas uma mulher de meia-idade. Fora presa
no aeroporto com dois quilos de ópio
escondidos nas roupas. O juiz acreditava que
isso fora um incidente isolado em sua vida, e
estava disposto a enviá-la para nós, pois seria
melhor para ela.
Jean explicou-lhe sucintamente que não
tínhamos mais a casa de moças, mas
concordou em ir falar com a mulher no dia
seguinte, no tribunal.
Fui com Jean, e quando lá chegamos, o
juiz mandou esvaziar o salão para que
pudéssemos falar com ela o tempo que
desejássemos. Era uma mulher chinesa, com
seus quarenta e sete ou quarenta e oito anos.
Não queríamos que ela pensasse que seu
futuro estivesse dependendo das coisas que
nos diria e de sua reação à nossa mensagem,
pois poderia passar por uma conversão
insincera. Então falamos-lhe de Cristo, e de
como ele removia o peso de seu pecado,
dando-lhe uma nova vida com seu poder.
Respondeu-nos que estivera orando na
prisão e que éramos uma resposta a suas
orações. Recebeu a Jesus com um sorriso, ao
sentir que seus pecados tinham sido
perdoados, e depois fez uma oração fervorosa
para receber o Espírito.
Jean olhou para mim. Olhei para ela. E
sorrimos, pois dissemos quase juntas:
— É melhor dizermos ao juiz que vamos
levá-la. Ah Ying passou a morar na Terceira
Casa. Era muito igrejeira, a princípio, mas
também meio contenciosa e de difícil
convivência. Mas, aos poucos, ela foi
melhorando, tornando-se uma pessoa
totalmente diferente; resultado, talvez, de ela
sempre orar no Espírito, quando estava
passando roupa. E, às vezes, passava horas e
horas...
— Meu Deus, não posso falar de Jesus a
essas mulheres. Seria horrível, se elas se
convertessem.
Eu costumava passar por algumas das
velhas prostitutas e evitá-las. Sabia que Cristo
pode derrotar o poder do vício de drogas, mas
sabia também que os novos crentes
precisavam de um lugar seguro onde
pudessem desenvolver-se espiritualmente; e
não tinhamos mais uma casa para moças.
Então, o que fazer com uma daquelas
"senhoras", caso se convertesse? Deixá-la na
rua?
Mas uma noite não pude resistir ao
impulso de falar a uma delas. Estava sempre
sentada num caixote de laranjas. Não tinha
onde morar. A única maneira de ela arranjar
uma cama para dormir era conseguir um
cliente, e assim ela passava o resto da noite no
quarto alugado por ele.
Ah King já estava com quase cinqüenta
anos, e, para suportar aquela vida de
prostituição, tomava heroína. Quase sempre,
essas duas coisas estavam intimamente
ligadas. Ela sabia quem eu era, pois passara
por ela várias vezes, naqueles anos todos.
Comecei falando-lhe sobre a mulher que
lavava os pés de Jesus com as próprias
lágrimas e os enxugara com os cabelos; ela
era prostituta, e ele, o Filho de Deus, a amou e
tratou-a com bondade; e ainda lhe dissera:
"Perdoados são os teus pecados... vai-te em
paz."
Ah King ouviu tudo aquilo e creu.
— Esse é o Deus que eu quero, afirmou.
Expliquei-lhe como poderia receber o Senhor, e
ela orou em chinês, em voz alta, com a
maior naturalidade. O velho que era seu cáften
estava por perto. Ficou a observar-nos, ali
sentadas com os olhos fechados, e pôs-se a
dar gargalhadas. Mas isso não afetou Ah King.
Continuou tranqüilamente a conversar com seu
novo Senhor.
— Esse mesmo Deus vai dar-lhe poder
para a oração, disse-lhe.
Daí a pouco ela estava orando numa
belíssima língua estranha.
Uns dez minutos depois, ela ergueu os
olhos, o rosto radiante de felicidade. Chegou
então o momento que eu mais temia. Não
tinha nada para dar a ela. Não tinha uma casa
para abrigar prostitutas, e minha bolsa estava
vazia.
— Sabe de uma cdisa, Ah King? Você não
precisa mais recorrer aos homens para obter
sua porção diária de arroz, falei com ela.
Busque a Deus.
— Você está querendo dizer que ele vai
cair do céu? indagou.
— Talvez, repliquei falando seriamente.
Deus pode muito bem mandar arroz do céu
para você. A partir de agora você não pode
mais viver nesse tipo de vida.
— Pois da próxima vez que nos
encontrarmos, disse ela, vou lhe contar como
foi que o arroz veio.
Saí dali, deixando-a sentada no caixote
de laranja. Não estava muito satisfeita de fazer
aquilo, mas resolvi confiá-la inteiramente a
Deus.
Uma semana depois encontrei-a
novamente.
— Já aprendi muitas coisas, disse-me ela.
Acho que é certo Deus me dar dinheiro para o
arroz, mas não para a heroína.
Foi a última vez que a vi. Mais tarde
indaguei às outras prostitutas onde ela estava,
e responderam:
— Ah, ela não trabalha mais nisso. Foi
para um lugar desses aí, para se libertar da
droga.
Gosto de imaginar Ah King num lugar
qualquer, sentada, e Deus derramando arroz
para ela, como chuva.

13
Testemunhos
Estava muito escuro, aquela noite, na
Cidade Murada. Quatro ou cinco rapazes
achavam-se em nosso pequeno salão do
clubinho, assistindo a um jogo de pingue-
pongue. Uma figurinha patética surgiu em
dado momento, na claridade do ambiente. Era
muito jovem e magérrimo. Notava-se
claramente que era viciado em heroína.
Reconheci Bibi, o irmão mais novo de Winson.
Estava fugindo da polícia. Chamei-o para que
se sentasse num banco de madeira, e falei-lhe
de Jesus. Tive a impressão de que ele começou
a entender a mensagem, mas não ficou ali
mais que uma meia hora. Prometeu-me que
voltaria, e, de fato, alguns dias depois
reapareceu. Falei-lhe um pouco mais, e disse-
lhe que já tinha conhecimento suficiente para
tomar, sozinho, a decisão de seguir a Cristo.
— Não posso mais continuar
encontrando-o, pois estarei desrespeitando a
lei. Vou orar por você, e quando estiver
disposto a seguir a Cristo, pode me chamar,
que irei com você à delegacia para se entregar.
Acompanharei todo o seu processo, pois, se
realmente se dispuser a orar, tenho certeza de
que tudo sairá bem.
Mas ele não se entregou. Mais tarde, foi
preso e mandado para a cadeia. Fui visitá-lo,
mas, assim que foi solto, voltou às drogas. Um
dia ouvi dizer que fora outra vez preso por dois
crimes bastante graves. Uma das acusações
era que ferira um jornaleiro e roubara o relógio
dele. A segunda era de assalto. Logo que fiquei
sabendo dos detalhes das acusações, senti que
ele não era culpado de pelo menos uma delas.
No momento em que supostamente estaria
assaltando o jornaleiro, ele estava no clubinho
conversando comigo. Fui vê-lo na prisão, e
fiquei sabendo que estava disposto a confessar
tudo, pois, embora fosse inocente das duas
acusações, tinha cometido uns vinte roubos
em outro lugar.
— Vou-me confessar culpado e acabar
logo com isso, disse com um tom de
resignação.
— Mas não pode, insisti, isso não é
verdade. Diga ao juiz que você cometeu os
outros crimes, mas diga a verdade.
No julgamento, ele se declarou inocente,
mas foi considerado culpado, apesar de meu
depoimento. Ao explicar o caso, o juiz disse
que acreditava que eu estava falando a
verdade, mas achava que a outra testemunha
se confundira a respeito da hora do crime. E
encerrou o caso.
Eu passara muitos dias no fórum orando,
e acabei ficando conhecida dos policiais. No
fim do julgamento, quando eu saía da sala do
júri, um inspetor de polícia me deteve.
— Como você se envolveu nisso?
indagou.
— Bom, acontece que sou crente.
— Então, por que está depondo a favor
de um criminoso?
— Sei que ele é criminoso, e sei que
praticou muitos furtos, mas esse aí ele não
praticou.
— Pois eu também sou cristão, disse o
policial. Procure ver as coisas por esse prisma.
Quando esse pessoal comete um crime,
geralmente sabemos quem o cometeu, mas
nem sempre temos provas para prendê-lo. Por
isso, os acusamos de crimes para os quais
possamos "arranjar" provas. É duro, mas é
justo. E a sociedade sai ganhando, concluiu
ele.
— Mas, a longo prazo, repliquei, o efeito
sobre a sociedade é negativo. Isso destrói o
respeito pela lei, pela polícia e pela verdade. O
criminoso aprende a pensar que ser preso não
tem nada a ver com sua culpa ou inocência. É
simplesmente falta de sorte sua.
— Mas, pelo menos, estão recebendo
castigo pelos seus crimes, argumentou o
inspetor.
— Mas não reconhecem que estão
pagando pelos atos praticados, repliquei. E
ficam fortemente revoltados por estarem
presos sob acusações falsas. E quando saem, a
primeira coisa que querem fazer, é praticar o
crime pelo qual foram castigados. Acham que,
já se que cumpriram a pena por ele, têm o
direito de cometê-lo.
Afinal, o homem encerrou a conversa
meio desajeitado.
— E, nunca tinha pensado nisso dessa
maneira, comentou e afastou-se
apressadamente.
Quando Bibi saiu da prisão, encontrei-o
novamente. Seu rosto parecia acinzentado e
tinha profundas olheiras. Voltou direto a tomar
drogas. Prometera modificar-se, mas achava-se
sem forças para tal. Os viciados têm uma frase
que gostam de repetir quando vão a uma
"boca" de drogas: "Meu coração ainda não
tinha decidido, mas meus pés foram por si
mesmos."
Bibi arranjou o emprego de coletor de
lixo, a fim de comprar a droga. Era o mais
baixo tipo de trabalho ali, mas ele tinha que
ganhar algum dinheiro para adquirir a heroína.
Mas o que ganhava não era suficiente; e voltou
então a roubar. Sempre que me via, dava um
jeito de fugir. Mas geralmente eu descobria
onde ele estava morando. Certa vez, uma
emissora de televisão foi à Cidade Murada
fazer um filme sobre nosso trabalho.
Procuramos Bibi, e ele foi filmado em casa. A
família transformou o acontecimento numa
novela. A mãe chorava:
— Conserte a vida de meu filho, Poon Siu
Jeh, dizia ela. Leve-o para sua casa e faça dele
um homem bom.
É lógico que não era assim que as coisas
se passavam. Bibi tinha conhecimento da
verdade, sabia que só ele poderia tomar a
decisão de modificar-se. Eu já tinha aprendido
que havia um tempo certo para se pregar e
falar, e um tempo em que não se falava mais.
E este tempo chegara para ele; então disse-lhe
que havíamos chegado ao fim da linha.
— Esta é a última vez que venho falar-
lhe. Você já conhece o caminho da salvação.
Agora é com você. Pode escolher se quer
segui-lo ou não. Não quero vê-lo mais
enquanto estiver nesse estado, pois você não
precisava estar assim. Quando estiver disposto
a mudar de vida, aí então pode me procurar.
Uma semana depois, ele veio.
— Agora estou disposto, falou. Para mim,
chega. Não há outro jeito. Não consigo me
livrar do vício sozinho. Não posso ficar em
casa, senão irei vender drogas para comprar a
minha. Por favor, ajude-me.
Oramos durante muito tempo. Bibi foi
cheio do Espírito e começou a falar numa nova
língua. Depois me disse:
— Agora, você tem que me levar para
sua casa. Dei um suspiro profundo e respondi:
— Sinto muito, mas não temos vagas. Ele
ficou muito irritado. Sua única salvação seria ir
para uma das casas de Estêvão.
— Mas você tem que deixar eu ir para lá,
berrou ele. Não pode querer que eu fique pelas
ruas, pois continuarei a tomar heroína. E
nenhum crente de verdade pode tomar essa
droga.
Conversei com os Willans e com os
obreiros da terceira casa, pedindo que o
recebessem, mas recusa--se. Sara explicou:
— Não podemos recebê-lo, porque não
estamos condições.
— Mas tem que receber, argumentei.
Esse é o objetivo dessas casas, isto é, que os
moços possam desenvolver-se na vida cristã.
Agora você não quer deixar que eu leve um aí,
porque deseja a casa bem acertadinha.
— Não será bom trazer nenhum rapaz
para uma a que não esteja com tudo acertado,
replicou ela com firmeza. Se os que estão aqui
não tiverem um relacionamento sólido para
suportar a vida de mais um, ele terá que
esperar até que já estejam mais firmes.
Ela tinha razão. Era seu dever proteger os
membros de "nossa família". Se eu fosse
simplesmente colocando mais e mais pessoas
ali, desordenadamente, a situação poderia
tornar-se caótica, como já o fora antes.
Tive que procurar Bibi e dizer-lhe que não
havia vagas mesmo. Encontramo-nos junto a
uma barraca de lanches. Ele ficou furioso
comigo, quando lhe dei a notícia.
— Bibi, disse procurando acalmá-lo, só
por um momento, pare de olhar para si mesmo
e de pensar que nossa casa é a sua salvação.
Olhe para o céu. Olhe para o alto e pense
naquele que criou o céu, a terra, o mar e os
pássaros. É ele quem faz tudo. E foi ele quem
decidiu que seu Espírito habitasse em nós. Por
quê? Por que Jesus deixou toda a sua glória e
veio aqui e foi chicoteado, morreu e
ressuscitou para que tivéssemos seu Espírito.
Não é maravilhoso pensar que o Espírito do
Deus que criou o mundo todo possa realmente
vir morar em nós? Pare de ficar pensando que
nossa casa é a sua salvação e pense em como
nosso Deus é grandioso.
Deixei-o naquela barraca, orando, e saí
para conversar com outro viciado. Voltei meia
hora depois e encontrei-o ainda ali, de olhos
fechados e um leve sorriso no rosto. Chamei-o,
mas não respondeu. Na terceira vez que o
chamei, abriu os olhos com muita relutância.
Contou-me que tinha visto Jesus. Ele estava no
alto de uma montanha e Jesus se aproximara
dele com a mão estendida, dizendo-lhe:
— Bibi, você quer me seguir?
— Quero, Senhor. A quem mais eu
poderia seguir? replicou ele.
Então o Senhor o tomara pela mão e o
conduzira por um caminho belíssimo.
— Era um lugar lindo. Havia flores lindas
por ali, e pássaros, e o perfume era muito
doce. Estávamos andando por aquele caminho,
quando a ouvi chamar-me, mas não queria
voltar.
Daquele momento em diante, em vez de
ficar com a idéia fixa de que nossa casa era
sua única salvação, passou a olhar para o seu
Criador, esperando só nele. No dia seguinte,
abriu-se uma vaga para ele em nossa terceira
casa. E ele ficou ali dois anos. Foi um dos
melhores rapazes que já tivemos lá. Durante o
processo de libertação da droga, levou uma
vida normal. Certo dia, seus familiares ligaram
para Jean e Rick informando que o pai dele
estava à morte, e o rapaz foi visitá-lo no
hospital. O pai, que também se libertara do
ópio e se tornara crente, disse:
— Agora estou pronto para ir para o céu,
pois Jesus transformou meus filhos em homens
bons.
Mas não morreu. Os filhos oraram por
eles e foi curado.
Como havia vários obreiros trabalhando
na Associação Estêvão, eu podia sair mais às
ruas. Os viciados espalhavam a notícia do
nosso trabalho, e pessoas de todas as partes
da colônia procurava-nos em busca de ajuda.
Um policial crente deu-me um bip, para que eu
pudesse ser contactada onde estivesse, a
qualquer momento. Assim achei-me cada vez
mais envolvida em tribunais e julgamentos.
Certo dia eu havia assistido a um julgamento
e, quando saía, ouvi alguém me chamando:
— Poon Siu Jeh! Estão-me acusando
injustamente! Ajude-me!
Olhei para trás e vi o rapaz que iria ser
julgado em seguida, sendo levado para o
tribunal. Não o conhecia. Mas pude perceber o
desespero em seu rosto sujo. Eu não tinha
condições de saber se ele estava falando a
verdade ou não, e mesmo que o soubesse, não
tinha direito de falar no tribunal. Entretanto,
aquele rapaz estava para enfrentar aquela
batalha sozinho. Tive uma inspiração súbita e
levantei-me.
— Meritíssimo, disse, não conheço bem o
acusado, mas creio que é possível que não
tenha tido acesso a um defensor. Será que
poderia suspender o caso até que façamos
verificações nesse sentido?
O juiz ergueu as sobrancelhas. Era uma
solicitação meio incomum. Virou-se para o
acusado.
— Você deseja um representante?
indagou.
— Quero, respondeu o rapaz. Mas depois
que fui preso, não me deixaram dar um
telefonema.
O juiz suspendeu o julgamento por vinte
e quatro horas, e então fui falar com o rapaz.
Fiquei sabendo que tinha o apelido de
Sorchuen, e que tinha conhecimento a meu
respeito por intermédio de seus "irmãos" de
Chaiwan.
Tremia convulsivamente e seus olhos
estavam vermelhos e lacrimejantes. Fungava o
tempo todo.
— Não tenho muito tempo para lhe falar
de Jesus, mas se você clamar a ele, ele o
ouvirá e o salvará.
Imediatamente, os sintomas de carência
da droga desapareceram, e suas feições
relaxaram. Quando o vi no dia seguinte, tinha
o rosto tranqüilo e feliz.
— Orei a Jesus, disse ele, e agora me
sinto totalmente diferente.
Sorchuen foi declarado culpado das
acusações que pesavam contra ele. Depois de
sair da cadeia, foi preso de novo, mas
telefonou-me da delegacia. Fui visitá-lo
acompanhada de um excelente advogado. Fora
preso sob a acusação de arrombar vários
carros no distrito de Shaukiwan. Segundo ele,
isso era mentira. Afirmava que no momento do
crime ele se achava no cinema, assistindo a
um filme pornográfico, em Wanchai. Terminado
o filme, pegara um ônibus para ir a Chaiwan,
mas fora detido por dois detetives que lhes
ordenaram que descesse e fosse "falar".
Pediram-lhe que os ajudasse a encontrar outro
quadrilheiro de nome Morgwai, (diabo), e o
levaram num carro particular até um cinema, à
procura do outro. Ali, Sorchuen viu um amigo
seu, mas não conseguiram localizar o "Diabo";
então os homens o levaram para a delegacia, e
o indiciaram sob aquela acusação, depois de
ele haver assinado uma declaração incrimina-
tória na delegacia de polícia.
Como muitos dos outros rapazes,
Sorchuen afirmava que apanhara para
confessar o crime. Vim a saber que muitos não
chegavam a apanhar, mas tinham tanta
certeza de que isso aconteceria, que
assinavam as confissões, incriminando-se.
Muitos acusados eram condenados com base
apenas em sua confissão, sem testemunhas,
provas, nada.
Eu e Davi, o advogado, resolvemos
investigar os fatos por nossa conta. Ele
escreveu à polícia solicitando o número da
placa dos carros que supostamente Sorchuen
tinha tentado arrombar. Fui procurar o "Diabo",
mas soube que também tinha sido preso.
Encontrei, porém, o amigo que o rapaz vira no
cinema. Ele se lembrava bem do dia e da hora.
Sorchuen estava preso e não poderia ter
entrado em contato com esse amigo. O rapaz
disse que ele o tinha visto três horas antes da
hora em que, segundo os autos, ele fora preso
em Shaukiwan. Fiquei convicta de que estava
falando a verdade, já que as duas versões
eram idênticas.
De posse das placas dos veículos fomos a
Sheko, onde morava o dono de um deles.
Conseguimos localizá-lo e perguntamos onde
normalmente estacionava o carro.
— Normalmente, respondeu ele, no
estacionamento de Shaukiwan.
Mas no dia do roubo, não o tinha deixado
lá. Tínhamos, afinal, uma testemunha.
Toda essa agitação em torno de um caso
de menor importância era muito incomum, e o
escritório da promotoria ficou alerta.
Num dos intervalos do julgamento do
caso, o advogado de acusação pediu para falar
comigo. Tinha ficado muito irritado com o
interrogatório longo e minucioso levado a
efeito pela defesa.
— Por que vocês dois estão-se dando
tanto trabalho por um caso tão insignificante?
indagou ele. Se não fosse isso, já estaria tudo
encerrado a essa altura. De qualquer modo, é
uma questão tão trivial.
— Será que não se deve apresentar a
melhor defesa possível em favor do acusado?
— Claro, replicou, mas por que perder
tempo com um caso desses? objetou.
— Porque cremos que o acusado é
inocente, respondi.
Olhou-me grandemente espantado.
— Mas a ficha desse homem tem dezenas
de condenações!
— Estamos falando das acusações de
hoje. Tenho certeza de que não cometeu esse
crime.
— Olhe, minha cara, já estou em Hong
Kong há seis meses...
Entretanto, aquele foi um dos poucos
casos em que me envolvi, nos quais o acusado
não foi declarado culpado. E estávamos com
Sorchuen nas mãos também. No dia em que
tínhamos orado na cela da delegacia, eu lhe
falara do fato de que Jesus está vivo. Mas
ainda teria que aprender que a maneira de se
tornar seu discípulo não era assistindo a um
filme pornográfico.
Após este caso, Davi representou vários
outros acusados, e certa vez provocou a
abertura de um precedente jurídico em Hong
Kong. Foi numa ocasião em que alguns rapazes
foram presos por terem-se declarado membros
de uma sociedade tríade. Embora uma pessoa
não possa ser presa por ser membro de uma
quadrilha, se se mantiver calada, pode ser
presa caso se declare como tal. Dois dos
rapazes tinham assinado confissão nesse
sentido. Mais tarde afirmaram que o tinham
feito sob coação. Os outros se declararam
culpados.
O julgamento de problemas semelhantes,
isto é, de membros de uma sociedade tríade,
geralmente era rápido, mas esse acabou-se
tornando extremamente complicado. Os dois
rapazes acusados tinham-se tornado cristãos
havia mais ou menos um ano. Muitos de nós
estávamos orando para que esse julgamento,
de alguma forma, fosse para a glória de Deus.
Um indivíduo que fosse membro ativo de uma
sociedade tríade não poderia ser cristão, pois
as duas coisas eram incompatíveis.
A polícia apresentou sua primeira
testemunha. Ele se apresentou no tribunal e
deu seu depoimento.
— Sou um dos dirigentes de uma 14K.
Pelos regulamentos de uma sociedade tríade,
uma vez membro de uma delas, o indivíduo é
membro para sempre. Embora hoje eu fique o
tempo todo dando depoimentos na polícia,
ainda sou membro da 14K.
Argumentamos que nossos rapazes já
não pertenciam à tríade, porque tinham
recebido o batismo cristão, renunciando assim
à condição de membros dela. Perante o juiz os
rapazes declararam:
— Já fomos membros da quadrilha. Agora
não o somos mais.
Outra testemunha técnica foi um filólogo
chinês que explicou que a confissão dos
rapazes tinha sido traduzida para o inglês,
como se eles tivessem dito: "Sou membro de
uma sociedade tríade". Mas esse sentido era
questionável, pois na língua chinesa não havia
tempos verbais, nem presente nem passado.
Nosso argumento era de que tinha dito
realmente:
— Sim; fui membro de uma tríade.
Depois apresentamos outra testemunha,
Ah Kei, que tivera na sua quadrilha a mesma
graduação que o rapaz que testemunhara pela
polícia.
— Também sou um número 426 da 14K.
Mas tornei-me cristão e renunciei à quadrilha.
Esses dois rapazes que estão sendo julgados
eram meus irmãos menores. Já disse aos
membros do grupo que não sou mais
responsável por eles. Se quiserem seguir a
Jesus, são livres para fazê-lo.
O juiz já tivera de passar várias horas
escutando essa gente falar de batismo,
conversão e etc. Normalmente, nesse tipo de
caso, os indiciados eram logo condenados ou
absolvidos.
— Não vejo por que um homem tenha
que ficar marcado para toda a vida, disse ele
afinal. Se ele deseja mudar de vida e tornar-se
cristão, muito bem. Caso encerrado.
Uma razão pela qual não havia mais
absolvições, era que o povo de Hong Kong não
se dispunha muito a depor nos tribunais. Havia
uma desconfiança geral da justiça. Mas eu,
como era ferrenha defensora do sistema
judiciário britânico, crendo que ele era justo,
tentei convencê-los de que, se falassem a
verdade, não poderiam deixar de ser
justificados. Se tantos casos eram julgados
desfavoravelmente a eles, isso se devia ao fato
de eles próprios se omitirem tanto.
Como eu ia muitas vezes ao tribunal,
comecei a notar certos indivíduos que
apareciam com regularidade. Havia, por
exemplo, uma velhinha com uma longa trança
que lhe caía pelas costas. Tinha nas mãos uma
espécie de lista, e ficava ali sentada a manhã
inteira, declarando-se culpada de pelo menos
umas vinte acusações, sob nomes diversos.
Quando um desses nomes era chamado, ela se
levantava e murmurava:
Yauh (presente).
Em seguida, anotava diante do nome a
quantia a da multa a ser paga. Vim a saber que
era assim que ganhava a vida. Como não tinha
mais condições de ficar na rua vendendo seus
artigos, ia ao tribunal responder pelas
infrações de seus colegas vendedores de rua,
para que pudessem continuar com seus negó-
cios. Para isso, recebia uma pequena quantia.
Havia ali também um velho de setenta
anos que fazia a mesma coisa. As acusações
eram lidas:
— Uso de tóxicos e posse de
instrumentos para consumo de tóxicos.
O velho acenava afirmativamente, muito
satisfeito.
— Cinqüenta e oito condenações
anteriores por infrações semelhantes.
E ele continuava a acenar que sim,
sorrindo.
— Cem dólares de multa, ou cinqüenta
dólares, e um dia de detenção.
E o homem se afastava com um amplo
sorriso no rosto. Comentei com Ah Keung:
— Ele sempre tinha a má-sorte de ser
preso.
— Não, não, explicou ele. Esse homem é
um "ator". Ganha dos donos da sala de drogas
para ser preso.
Quando os proprietários das salas eram
informados de que a polícia ia dar uma batida,
fechavam tudo, deixando ali somente um
velho viciado, que então era preso e indiciado.
Devido à sua idade e ao número de
condenações anteriores, recebia uma sentença
leve. A loja lhe pagava cento e cinqüenta
dólares para fazer isso, e ainda lhe fornecia
ópio de graça: assim ele podia cultivar seu
vício e, depois de pagar a multa, ainda lhe
sobrava algum dinheiro.
O pai de Ah Keung pediu-me certa vez
que socorresse seu filho Ah Pooi, que tinha sido
preso por ter roubado um rádio de um velho,
fora da Cidade Murada. Mas, no momento do
roubo, ele estivera dentro da cidade,
conversando com uma velhinha. A mulher
negou-se a depor. O pai também vira os dois
detetives levarem o rapaz, mas não queria ir
depor.
— Pa mahfan, não quero envolvimento
com a polícia. É muito perigoso, argumentava.
Como estava ligado à jogatina ilegal,
achava que era preferível ficar em paz com a
polícia, do que defender o filho. Mesmo assim
desejava que eu o ajudasse. Expliquei-lhe que,
como ele estava retendo uma informação de
vital importância, eu não poderia fazer nada.
Eu tinha que me controlar muito, para
não me deixar dominar pela raiva, quando a
verdade era derrotada. Mas também tinha que
tomar cuidado, para não ser usada por
indivíduos inescrupulosos, que não tinham o
mínimo interesse em mudar de vida.
Muitas pessoas foram tocadas devido a
esses problemas no tribunal, e, se parecia que
os tribunais terrenos eram injustos, era cada
vez maior o número de pessoas que
compreendiam o que era ser justificado nos
celestiais. Um maravilhoso exemplo disso foi
Suenjai, um criminoso que se reabilitou.
Durante dez anos, ele tinha levado uma vida
certinha, trabalhando arduamente para
sustentar a esposa e quatro filhos. Certo dia foi
preso sob a acusação de bater carteiras. Tive
certeza de que não fizera aquilo. Foi um golpe
muito duro para ele.
A esposa dele entrou em contato comigo
e visitei-o na cadeia, onde aguardava
julgamento. Estava muito ressentido e
revoltado. Queria falar-lhe de Jesus, mas ele
não queria ouvir sermões; pus-me então a orar.
Aí ele ficou calmo. Não tinha uma Bíblia em
mãos, apenas um livrete com trechos do
Sermão do Monte. Achei que não era uma
literatura bastante adequada, pois não
continha a mensagem da salvação. Não tendo,
porém, outra coisa, deixei-a com ele, para que
a lesse.
Na primeira vez em que fui visitar o
centro de triagem, Suenjai estava sentado no
meio de um pequeno grupo. Perguntei-lhe:
— Por que Jesus teve de morrer?
— Porque está escrito: "Não penseis que
vim revogar a lei ou os profetas: não vim para
revogar, vim para cumprir. Porque em verdade
vos digo: Até que o céu e a terra passem, nem
um Í ou um til jamais passará da lei, até que
tudo se cumpra." Foi a resposta dele.
O Sermão do Monte levou-o à fé. Pediu a
Jesus que entrasse em sua vida e recebeu o
Espírito Santo.
Pouco antes do dia do julgamento,
perguntei-lhe como iria apresentar sua defesa.
Resolvera não apresentar defesa nenhuma. Ia
apenas declarar-se inocente. Comecei a
aconselhá-lo a não fazer isso, mas ele me
interrompeu.
— A Bíblia diz: "Seja, porém, a tua
palavra: Sim, sim; não, não. O que disto
passar, vem do maligno."
Suenjai foi condenado. Embora fosse
obrigado a ficar preso um ano e três meses por
um crime que não cometera, conservou-se
sempre alegre, nunca cessando de louvar a
Deus. Aliás, alguns de seus vizinhos, quando
ouviram falar da maneira como ele se condu-
zira no tribunal, ficaram tão impressionados,
que me pediram que fossemos falar-lhes desse
Jesus que tinha poder para transformar o
coração do homem.
Um dia, Suenjai contou-me que ganhara
para Cristo doze prisioneiros. Fiquei um pouco
em dúvida, pois sabia que seus conhecimentos
teológicos eram baseados apenas em três
capítulos de Mateus, algumas conversas
comigo, e em sua própria experiência.
— Bem, explicou ele, uma noite um dos
companheiros da cela acordou aos berros,
contorcendo-se na cama, como se estivesse
sufocando. Percebi que estava sendo agarrado
por um demônio. Então, levantei-me e disse:
"Satanás, em nome de Jesus, saia dele!" Mas
nada aconteceu. Falei de novo: "Saia dele, já
disse." Fiz que ia dar um chute no espírito, e
ele saiu, e o colega ficou calmo e tranqüilo. Os
outros colegas me perguntaram:
— Que foi isso? O que você fez?
— Foi Jesus, respondi.
— Então disseram que também queriam
crer nele. E assim expliquei-lhes como
poderiam fazê-lo.
Três dias depois que Suenjai foi solto, sua
esposa fugiu com outro homem e se prostituiu.
Mas ele permaneceu fiel em oração, e, em
encontros posteriores com a mulher, ela ficou
tão impressionada com a atitude de compaixão
e perdão da parte dele, que acabou voltando
para o marido.
Durante algum tempo, ele realizou
reuniões de oração em seu pequeno
apartamento, convidando todos os vizinhos.
Um ex-detento que assistiu a uma dessas
reuniões, afirmou:
— Quando vi o que aconteceu com esse
meu amigo, não pude deixar de receber a
Jesus em meu coração.
E Deus não operava apenas no coração
dos criminosos, mas em várias ocasiões tocou
profundamente na vida de pessoas ligadas aos
processos. Quando Ah Kit foi julgado, eu, Jean
e vários outros membros de nosso grupo fomos
assistir ao julgamento.
Após o veredito, quando o juiz o confiou
às nossas mãos, um inspetor de polícia
procurou-nos mostrando-se muito interessado
em nosso trabalho. Sugeriu que fôssemos
almoçar juntos para continuarmos a conversa.
Várias horas depois, ele conseguiu dizer o que
estava querendo.
— Sei que o que vou dizer é meio
estranho, principiou, mas, quando vocês
entraram no tribunal hoje de manhã, olhei para
vocês, e, bom... parecia que havia uma auréola
na cabeça de cada um.
Não tive vontade de rir; pelo contrário,
engoli em seco várias vezes.
Nós o convidamos para a reunião de
oração dos sábados à tarde, e ele compareceu.
Acho que nunca vi uma pessoa que ficasse tão
tocada por uma reunião de oração. No final,
comentou:
— Normalmente, aos sábados à noite,
saio com os colegas para beber. Mas hoje
estou vendo que vocês aqui estão realmente
sendo inspirados por uma coisa que não
compreendo bem.
Fiquei aliviada ao ouvi-lo emitir um
comentário tão positivo; pois, durante a
reunião, uma das moças se aproximara dele e
lhe indagara sem rodeios se era salvo. Fiquei
preocupada, pensando que ele pudesse ter
ficado agastado com um "ataque" tão direto.
Mas não. E ao sair, levou consigo um exemplar
do livro de Jean.
Leu-o durante todo o domingo. Afinal,
teve que ajoelhar-se e orar. Em seguida, ligou-
nos e disse que queria receber o batismo no
Espírito Santo.
— Não consegui dormir, explicou. Fiquei
só pensando no que vi ontem à noite; vi gente
falando em línguas; vi com meus próprios
olhos como a vida dos moços foi transformada.
E cheguei à conclusão de que Jesus tem que
ser mesmo real. E hoje pela manhã orei a ele
pedindo que entrasse em minha vida.
No domingo seguinte, ele foi batizado no
mar, juntamente com a esposa e com um
antigo quadrilheiro.
Logo, muita gente ficou sabendo da
conversão do policial. Seus amigos notaram
que sua vida mudara completamente. A
conversão de Ted causou um grande impacto
no Departamento de Polícia de Hong Kong.
Não muito tempo depois disso, um de
seus colegas, que fazia oposição à sua
conversão, disse-lhe:
— Pelo menos espero que você não tente
mudar-me.
— Não, replicou Ted, não estou tentando
modificar você. Sei que quando você se
arrepender tudo vai-se acertar.
— Bom, mas se eu "apagar" antes?
— É, realmente isso pode acontecer,
replicou Ted.
14
E Pôr em Liberdade os Cativos
Certo dia recebi uma belíssima carta de
um chinês de Taiwan, que se encontrava preso
no centro de triagem, aguardando julgamento.
Na ocasião em que o conhecera ali, era um
homem revoltado, cheio de ódio. Em suas
roupas havia uma tarja branca, que indicava
ser ele um indivíduo perigoso. Na mesma cela,
estava com ele um rapaz da Cidade Murada,
que lhe falara a meu respeito.
Então fui falar de Jesus a Ah Lung. O que
ele esperava era que eu iria ajudá-lo a sair da
prisão. Contudo, depois de ouvir-me, disse que
queria crer no Senhor. Respondi-lhe que teria
de perdoar os guardas da cadeia e abandonar
os ressentimentos.
— Não me peça para fazer isso,
resmungou. Nunca poderia amar esses
homens.
— É lógico que não pode perdoá-los,
enquanto não compreender que você foi
perdoado.
Expliquei-lhe que, fosse o que fosse que
tivesse feito, Jesus perdoaria seus pecados. A
seguir, orei, e senti o impulso de falar em
língua estranha. Então ele pôs-se a interpretar-
me em voz suave.
— Deus me falou que não poderá me
perdoar, enquanto eu não perdoar a outros.
Então, voluntariamente, perdôo os guardas.
E ele se tornou um detento-padrão.
Modificou seu depoimento, declarando-se
culpado no tribunal. Mais tarde nos disse:
— Tive que reconhecer que fiz uma
porção de coisas erradas. Foi a primeira vez
em minha vida que admiti que estava errado.
Ah Lung testemunhou para um rapaz que
estava aguardando o julgamento por crime de
estupro, e que assistiu a um dos estudos
bíblicos que eu realizara no centro.
— Vi o que aconteceu com Ah Lung,
quando creu em Cristo. O que há nisso tudo
que faz um homem durão tornar-se uma
pessoa de coração brando? Quero conhecer
este Jesus.
Expliquei-lhe que Jesus era o Filho do
Deus to-do-poderoso, que morrera pelos
pecadores.
— Você crê que ele era o Filho de Deus?
perguntei. -
— Não entendo bem essas coisas,
respondeu, os olhos fixos no tampo da mesa.
— Mas você deseja crer?
— Está bem, respondeu, continuando
com os olhos baixos.
— Crê que ele morreu pelos seus
pecados?
— Isso também eu não entendo.
— Não tem importância se você não
compreende bem essas coisas. Deseja crer
nisso?
— Está bem, respondeu, ainda sem
erguer a cabeça.
— Crê que ele ressuscitou dos mortos?
— Ah, creio, disse prontamente, e afinal
ergueu o rosto.
— Por que tem tanta certeza disso, mas
não tem certeza das outras coisas? indaguei
curiosa.
— Porque senão você não estaria aqui na
cadeia conversando comigo.
— Pois bem, você deseja segui-lo?
perguntei.
— Se ele é o Deus verdadeiro, é lógico; a
quem mais eu iria seguir?
— Está bem. Jesus lhe dará poder para
viver a vida cristã, pois ele não espera que
você tenha essa vida obedecendo a um
conjunto de regrinhas. Isso é impossível. Ele irá
dar-lhe seu Espírito, para que este o ajude
nisso.
Duas semanas depois, vi no jornal que
seu caso tinha sofrido uma reviravolta. No
julgamento, ele se dirigira ao juiz e dissera:
— Meu advogado instruiu-me para dizer-
lhe que sou inocente, mas tenho que confessar
que sou culpado, pois agora creio em Jesus.
Foi sentenciado a nove anos de detenção.
Quando fui visitá-lo na penitenciária, sorriu
para mim.
— Estou tão feliz de saber que meus
pecados foram perdoados, Sr.ta Poon, exclamou
ele.
E nunca cessava de testemunhar de
Jesus aos outros, dizendo:
— É maravilhoso saber que Jesus levou
sobre si todos os nossos pecados, até o tão
terrível estupro.
Essa atitude se acha em franco contraste
com a que vi em Daih So, quando fora visitá-lo,
havia dois anos, no mesmo lugar. Não tivera
permissão para utilizar uma sala privativa, e
conversara com ele no salão geral. Os
prisioneiros ficavam dentro de um
compartimento, e a parede de separação
consistia numa telinha muito fina, que não me
permitia ver claramente suas feições.
Daih So tinha apenas trinta anos, mas
como era viciado em heroína desde os treze
anos, parecia mais um velho. Estava sempre
babando, mas eu gostava muito dele, pois
parecia haver uma aura de inocência em torno
de sua pessoa. Certa vez, ele me deu a mais
clara definição de pecado que eu já ouvira até
então.
— O que é pecado? perguntara-lhe.
— Isso é simples, replicara. Pecar é andar
em nossos próprios caminhos.
Mas aquele dia na prisão, sua atitude era
outra.
— Não adianta ficar conversando comigo,
Sr. Poon, falando que tenho de largar as
ta

drogas. Isso é impossível. Também não me


peça para orar. E se deixar uma Bíblia aqui,
não vou lê-la.
E assim dizendo, deu-me as costas, para
encerrar a conversa.
Saí dali profundamente desolada, mas
continuei orando por ele. Aquele pobre homem
estava convicto de que não poderia parar de
tomar drogas na cadeia.
Mais ou menos uns seis meses depois, eu
.estava andando pela Cidade Murada, quando
um desconhecido meio gorducho correu para
mim.
— Poon Siu Jeh! Sou eu, Daih So!
— Daih So, você saiu da cadeia? E por
que está tão bem assim?
— Eu queria mesmo contar a você. No dia
em que foi lá falar-me de Jesus, eu não queria
ouvir, e chamei o guarda para me levar de
volta. Mas quando cheguei à porta, olhei para
trás e vi você sentada, parecendo tão triste. De
repente, senti uma forte convicção e pedi ao
guarda para voltarmos. Entretanto, quando
voltei, você já tinha saído. Então fiz o que tinha
me falado. Cheguei à cela e orei em nome de
Jesus, e assim fiquei liberto da droga.
Houve ocasiões em que mandamos
pessoas para a cadeia, em vez de ajudá-las a
escapar dela. Muitos dos rapazes que
chegaram à nossa casa tinham cometido
crimes, pelos quais nunca haviam sido presos.
É verdade que tinham deixado para trás
todo o passado, mas, às vezes, algumas coisas
ficavam a importuná-los, e tinham que reparar
o erro no plano humano também.
Ah Wah, por exemplo, queria ir à
delegacia para entregar-se, por ter deixado de
se apresentar quando devia. Ele fora preso em
julho por posse de drogas, mas foi solto sob
fiança, com a instrução de apresentar-se no
tribunal daí a duas semanas. Naturalmente, ele
não tinha a mínima intenção de apresentar-se.
Mas não sabíamos disso, e o recebemos numa
das Casas de Estêvão em novembro.
Os meses foram-se passando, e sua
consciência começou a importuná-lo. Então ele
confessou que deveria ter ido a julgamento.
Conversando com Ah Wah achei que a
possibilidade de ele ser liberto era ínima.
Quando cometera o último delito, encontra-se
cumprindo pena em liberdade. Então, era bem
provável que fosse preso ao apresentar-se.
Seria muito difícil evitar isso. Disse a ele e a
todos os rapazes de nossas casas que
orassem.
Todos oramos muito em línguas naquela
manhã de segunda-feira. Afinal, seguimos para
a delegacia, onde nos serviram um cafezinho e
pediram que esperássemos. Dissemos várias
vezes que Ah Wah deveria ser preso, mas não
pareciam muito interessados. Afinal, levaram-
no para tirar impressões digitais, para fazer
uma identificação precisa. Estava com tão boa
aparência, que os homens que estavam
tirando as impressões pensaram que fora ali
para se candidatar a um emprego. Afinal ele
conseguiu convencê-los de que fora entregar-
se, explicando que Jesus transformara sua
vida.
Finalmente, chegou o momento em que
fomos convidados a entrar numa viatura, e nos
dirigimos para o tribunal, orando todo o tempo.
O juiz perguntou-lhe por que não fora
apresentar-se, e ele respondeu:
— Eu era viciado, e sinto muito ter agido
assim. Mas agora creio em Jesus, e vim para
entregar-me.
— Meu parabéns, disse o magistrado,
tomou uma decisão muito sensata. Desejo-lhe
muitas bênçãos nesta nova vida. Pode ir.
Ah Wah apenas teve que assinar um
compromisso de boa conduta, e, depois disso,
nunca mais foi preso. Ficou muito feliz e
aliviado, e quando chegou de volta, houve um
grande regozijo em nossas casas.
De meu contato com tantos detentos,
aprendi a fazer diferença entre os termos
hauh-fui (sentir muito) efui-goih (arrepender-
se). Muitos criminosos ficavam bastante
sentidos por terem sido presos, mas bem
poucos se arrependiam do erro cometido.
Um dos que estavam constantemente
errando era Ah Bill, que ficou em nossa casa
apenas dez dias, e afinal resolveu que já
estava apto a cuidar, ele mesmo, de sua vida.
Mas não sabia o que fazer com a liberdade e
com as decisões que tinha de tomar. Foi preso
e escreveu-me da cadeia.
Querida Pullinger,
Faz muito tempo que larguei o povo aí da
casa. Espero que Jesus os abençoe em tudo.
Terei que ficar aqui dez meses, depois
então poderei ter minha nova vida de novo.
Espero poder arrepender-me e ser aceito pelo
Senhor mais uma vez. Orem por mim, sim?
Fui transferido de área, pois fiz uma coisa
muito errada aqui na prisão. Mas agora está
tudo certo, pois aprendi a ser obediente. Você
tinha-nos visitado e ensinado a Bíblia para nós,
mas não dei ouvidos e desobedeci aos
regulamentos.
Logo que vim para a prisão, eu
costumava ir à capela todos os domingos e
orava em língua estranha todas as noites.
Alguns dos homens aqui diziam certas coisas a
meu respeito. Diziam por exemplo:
— Você crê em Cristo, mas mesmo assim
tem que ficar preso.
Naqueles momentos, eu ficava com
muita raiva, mas quando o milagre de Deus
entrou em meu coração, consegui esquecer as
palavras deles.
Agora estou seguindo a Jesus. E para
terminar, quero dizer uma palavra aos novos
irmãos. Deus nos tem dado muitas
oportunidades, mas será que a» estamos
levando a sério? Tenho passado por muitas
dificuldades, mas apesar disso pude receber
um pouco de sua graça.
Ficaria muito feliz de receber uma carta
sua no mês que vem. E eu responderia para
fazer-lhe algumas perguntas sobre a Bíblia.
Espero que esteja gozando boa saúde.
Ah Bill.
Ah Bill foi um dos que descobriram que
era mais fácil ser crente dentro de uma prisão.
Não que ele gostasse da cadeia; claro que não.
Mas é que ali não tinha que tomar ele mesmo
as decisões de todos os dias. E cada vez que
era liberto, tinha menos capacidade de viver
do lado de fora.
Outro rapaz, Ah Kit, foi entregue aos
nossos cuidados e falou-me de Kwok, um
amigo da cadeia. Embora Kwok fosse policial,
também era membro de uma tríade, e
participara de uma batalha entre quadrilhas.
Um dos rapazes de outra quadrilha fora morto
durante a briga. Cinco dos quadrilheiros foram
julgados.
Era um rapaz tranqüilo, do interior, vindo
de Novos Territórios. Era muito cortês, de
aparência limpa. Quando lhe falei de Jesus, só
conseguiu compreender que ele era o Filho de
Deus.
— Mas que esperança há para mim?
repetia ele tristemente. Que futuro me espera?
— Você sabia que dois homens da Bíblia,
dois homens que Deus usou muito, mais que
todos os outros, tinham sido assassinos?
Ele teve uma expressão de espanto.
— Um deles era Davi, continuei, e o outro
Paulo. Paulo foi chamado para pregar a Boa-
Nova do perdão de Deus. E ele tinha matado
os cristãos. Mas, ao usar este homem, Deus
mostrou todo o significado do evangelho.
— Quer dizer então, disse Kwok, que
além de ser perdoado, posso vir a trabalhar
para Deus?
Essa idéia de que poderia ser útil para
Deus foi de tanto estímulo para ele, que fez
uma oração jubilosa, como se seu coração
estivesse estourando de regozijo.
Dois dias depois fui visitá-lo novamente.
Estava radiante.
— Sr.ta Poon, disse ele, tenho uma paz tão
grande no coração. Agora sei que meu passado
foi perdoado e tenho esperanças para o futuro.
Não me importa se serei condenado ou não.
Agora tenho esperança.
No dia seguinte, ele foi sentenciado à
morte. Lembro-me de que fiquei a observá-lo
no momento em que era pronunciada a
sentença. Estava profundamente calmo. Mas o
outro rapaz que fora condenado à morte
juntamente cóm ele estava aterrorizado.
Levantou os braços algemados até a altura do
pescoço fazendo a mímica do enforcamento, e
riu.
Nos dois anos que se seguiram não
consegui mais entrevistar-me com Kwok. Por
fim, sua sentença foi comutada para prisão
perpétua.
Afinal, quando pude vê-lo novamente,
sentia-me muito nervosa, pois conversara com
ele apenas duas vezes, tendo-lhe falado muito
sobre Deus. Ele sabia que Jesus era o Filho de
Deus, que ele o amava e morrera por ele, e
tinha orado e recebido o poder do Espírito
Santo. E era só isso.
— Coitado, pensava eu, provavelmente já
esqueceu tudo que lhe falei.
Quando entrei, não sabia exatamente o
que ia encontrar. Mas ele veio correndo para a
sala de visitas, muito radiante. Nunca tinha
visto uma alegria tão pura no rosto de um
homem.
— Oh, Poon Siu Jeh, falou quase sem
fôlego, tudo isso é maravilhoso! Tenho uma
paz tão grande no coração, uma alegria tão
grande de saber que meus pecados estão
perdoados. Oro todos os dias em minha cela,
de manhã e à noite. Oro naquela língua que
Deus me deu, e sei que ele compreende o que
vai em meu coração. Tenho falado aos outros
presos sobre Jesus, e uns seis deles creram
também. Aqui está o nome deles.
Deu-me uma lista com os nomes, e mais
tarde os visitei. Um deles era o rapaz que
fizera a mímica do enforcamento no dia do
julgamento. E eles eram realmente crentes.
Jamais conheci um grupo de homens que
entendesse o que significava Jesus ter dado a
vida por eles, melhor do que aqueles ali.
Dei uma Bíblia a Kwok, e ele leu o Novo
Testamento em dois meses. E leu-o duas vezes
antes que eu o visse novamente e ele pudesse
perguntar-me:
— Ah, Sr.ta Poon, o que significa "gentio"?
Os seus convertidos também se
desenvolveram bastante. Tinham seus próprios
cânticos, que o Espírito Santo lhes inspirava. E
oravam uns pelos outros, quando adoeciam.
Certo dia visitei Kwok, e estava um pouco
temerosa de que não me dessem permissão
para vê-los mais.
— Não se preocupe conosco, Poon Siu
Jeh, disse-me sorrindo, procurando reanimar-
me. Estamos muito bem. Estamos orando por
você.
São os homens mais livres que conheço.
Recebi várias cartas deles, e alguns
jovens de nosso grupo escreveram para eles
também, inclusive alguns estudantes.
Prezado William,
"Graças sejam dadas ao Senhor Jesus
Cristo, pois pelo seu maravilhoso nome nós nos
conhecemos. Glória a Deus!
"Quero agradecer-lhe muito por ter-me
escrito palavras de encorajamento e ensino,
para eu compreender o amor de Deus. Jackie
costuma visitar-nos aqui na prisão todos os
meses, para explicar-nos o evangelho.
Realmente estamos muito tocados por isto,
pelo grande amor de Deus. Todas as vezes que
ela vem, nos sentimos muitos felizes. Acredito
firmemente no que a Bíblia nos afirma sobre
Jesus Cristo ter morrido por nós, e, com toda
sinceridade, espero fazer o máximo por ele.
"Pelo poder do Espírito Santo, Deus me
tem dado muitas oportunidades de
testemunhar a outros aqui, e muitos deles
querem falar com Jackie, mas tenho a
impressão de que têm segundas intenções.
Mas eu apenas oro para que o Espírito Santo
opere no coração deles, para que sejam
totalmente transformados.
"Por favor, ore por nós aqui.
"Saúdo-o no mome de Jesus.
Kwok."
Na primeira vez que visitei Ah Lung
conheci um outro prisioneiro que estava sendo
julgado por ter tentado entrar em Hong Kong,
com uma grande quantidade de heroína, a
maior que já se descobrira num navio. Logo
que o conheci, começou a discutir comigo
sobre os pormenores de seu processo.
— A única razão por que estou aqui,
disse-lhe, é falar-lhe sobre Jesus.
— Mas não posso tornar-me cristão,
replicou Go Hing. Deixe-me contar-lhe uma
história.
Há mais de vinte anos, uma familia
chinesa fugiu da China para Taiwan. Nessa
família havia um garotinho de mais ou menos
quatro anos. Certo dia, ele saiu de casa e foi
brincar com um amigo no pátio da escola. Ali
havia uma lagoazinha. E ele caiu dentro dela.
O amiguinho dele ficou tão apavorado, que
saiu correndo e não disse nada para ninguém.
Horas depois, o diretor da escola voltou
ali e viu, horrorizado, o corpo do menino
boiando na água. Puxou-o para fora, mas não
conseguiu reanimá-lo mais. Mandou chamar os
pais, e a mãe ficou fora de si de desespero, e
insistiu para que o levassem a um hospital.
Naturalmente, já era tarde demais para salvá-
lo, e os médicos deram o atestado de óbito.
Afinal, com muita tristeza, a mãe levou o
corpinho do filho para casa e vestiu-o com uma
mortalha. Bem no meio da noite, o garoto
sentou-se e disse:
— Por que estou vestido com essas
roupas? A mãe pensou que se tratasse de uma
visão.
— Você se lembra de que caiu dentro da
lagoa? indagou ela.
— Lembro. Estava afundando na água e
abri a boca para gritar pedindo socorro, mas a
água entrou por ela. Nesse instante, vi um
homem vindo em minha direção.
— Um homem? Quem era ele? indagou a
mãe.
— Bom, ele veio e me tirou da água,
respondeu o garoto.
— Sabe o nome dele? perguntou ela.
— É Jesus, replicou o menino.
Aquela família nunca tinha ouvido falar
de Jesus antes. Mas, daquele dia em diante a
mãe e toda a família tornaram-se discípulos de
Jesus.
Go Hing contou-me essa história com
muita emoção. Depois perguntou:
— Sabe por que conheço essa história?
Eu era aquele menino. Voltei da morte, e desde
então minha família sempre foi crente. Mas
não posso ser crente porque eu conhecia a
verdade, e não segui a Jesus.
— Pois tenho uma coisa muito boa para
lhe dizer, Go Hing. Jesus não espera que o
sigamos com nossas próprias energias.
Portanto, se você disser a ele que está
arrependido e pedir-lhe perdão, ele o perdoará.
Ele lhe dará poder para segui-lo. Também lhe
dará uma nova língua, para se comunicar com
ele.
Ali mesmo nós oramos, e ele começou a
orar em língua estranha; depois pôs-se a
chorar. Após alguns instantes disse:
— Essa é a primeira vez que choro, desde
que me tornei adulto. Agora sei que Jesus está
comigo.
Passados alguns dias, fui visitá-lo
novamente e conversei com ele.
— Você sabe que deve confessar a
verdade no tribunal, não é?
— Estou com muito medo, replicou. Não
vou conseguir.
— Mas você tem de falar a verdade. Você
agora é crente.
— Se me confessar culpado desse delito,
serei condenado à morte. Em Taiwan, dão pena
de morte para tráfico de drogas, assalto à mão
armada e por assassinatos.
— Estou só dizendo que você tem de
falar a verdade, disse-lhe. Sabe que Cristo
salvou sua vida, e não pode obedecê-lo apenas
parcialmente.
O rapaz foi sentenciado a doze anos de
detenção. Pouco antes de voltar à Inglaterra,
pude ir visitá-lo na Prisão Stanley. Logo que
olhei para ele através do vidro de
comunicação, começou a chorar, mas estava
sorrindo.
— Só quero lhe dizer uma coisa, falou.
Sou conhecido como um homem muito durão.
Fui marinheiro muitos anos, e não tenho medo
de ventos e ondas bravias. Quando fui preso,
sabia que ia passar muitos anos sem ver
minha esposa e filhos, mas não chorei. Só
houve duas ocasiões em minha vida em que
chorei. Uma foi quando você me visitou na
prisão e recebi a Jesus e seu Espírito Santo; e a
outra é agora. Hoje estou chorando de alegria,
porque sei que meus pecados foram
perdoados. Quando você me disse que eu
devia confessar a verdade, eu não tinha a
menor intenção de fazê-lo, mas fiz um acordo
com Deus. Eu disse a ele: "Se ela vier me
visitar hoje, à tarde confessarei a verdade."
Você veio, então revelei à polícia que havia
mais heroína naquele navio. Naturalmente,
meus colegas ficaram furiosos comigo, porque
havia ali uma fortuna escondida. A polícia não
ficou satisfeita, porque isso a deixou muito mal
vista. O juiz ficou com raiva e me deu uma
sentença pesada.
E aqui ele sorriu para mim e concluiu.
— Sei que tenho uma sentença pesada,
mas meus pecados estão perdoados, e um dia
irei para o céu. E isso é melhor do que ter uma
sentença leve aqui, e depois ir para o inferno.
15
Andar no Espírito
Certa vez, um marinheiro americano
resolveu me passar um sermão por causa do
meu dom de línguas. Achava que eu estava
exagerando um pouco. Ele próprio tinha o
dom, mas exercitava-o com muita parcimônia.
Expliquei-lhe que sempre falava em línguas,
quando andava pela Colônia, pelas ruas. E
convidei-o para acompanhar-me numa de
minhas rondas por Hong Kong, orando os dois,
sem cessar.
No dia seguinte, nos encontramos e
fomos caminhando do Setor Oeste até o cais.
Numa das ruas, uma rua tão íngreme que
era feita de degraus, vimos um homem que
morava num armário. Durante o dia, ele vendia
verduras ali, e, à noite, subia nele para dormir.
Com uma população de quatro milhões e meio
de pessoas, ocupando cada metro quadrado do
lugar, havia famílias inteiras morando num só
cômodo.
Um pouco mais abaixo, encontramos uma
velhinha que estendeu-nos uma tijela de
plástico. Ninguém na cidade tinha dinheiro ou
espaço sobrando, então ela ganhava a vida
mendigando.
Continuando a caminhada, vimos uma
garotinha de mais ou menos cinco anos,
carregando às costas uma criancinha, pois os
pais tinham que trabalhar. Ninguém estava
cuidando da pequenina e suja menina de cinco
anos, mas ela estava cuidando do nenê.
Depois passamos por um rapazinho que
pagava para ter o privilégio de dormir em cima
de um balcão de loja. Parara de estudar logo
após o curso primário.
Queria continuar estudando, mas os pais
o haviam tirado da escola para trabalhar. Todas
as vezes que o encontrava, pedia-me para
falar inglês com ele, para praticar um pouco e
poder conseguir um emprego melhor.
Chegando ao fim da rua, eu tinha a
sensação de que passara toda a minha vida ali,
e que poderia amar todas aquelas pessoas e
conhecê-las bem. Mas entramos na outra rua,
que era uma réplica da primeira. E depois
desta, outra igual. Contei ao marinheiro como
havia perguntado a Deus que setor de sua
obra iria caber a mim, e ele me respondera
enviando-me para a Cidade Murada, e
concedendo-me os maravilhosos eventos dos
doze anos seguintes.
Aquele marinheiro ficou pasmado com
essa nova visão que tivera de Hong Kong. Mas
meu objetivo naquele dia fora incentivá-lo a
andar no Espírito. Então comecei a orar, à
medida que caminhávamos mais.
Atravessamos a baía e chegamos à Rua Jordan.
Entramos num prédio que alardeava bordéis e
dan-cings, um lugar onde os viciados em
heroína se reuniam. Havia várias pessoas
deitadas pelas escadas. Estávamos procurando
um certo marginal. Eu fora ali à procura de
Mau Wong, que era "protetor" de várias
prostitutas, e assim ganhava bastante
dinheiro.
Quando o encontramos, estava em
péssimo estado. Sentia forte dor de estômago
e vomitava muito. Não se achava em
condições de ouvir-me falar de Jesus, e então
eu e o jovem americano simplesmente impuse-
mos as mãos sobre ele e oramos
silenciosamente, no Espírito, pedindo sua cura.
Imediatamente, a dor passou, e em sua
fisionomia surgiu uma expressão de espanto.
Podia afinal sentar-se tranqüilamente e escu-
tar-nos. Aceitou a Jesus e foi batizado no
Espírito no mesmo instante. Mal termináramos
de orar, quando ele se ergueu, saiu correndo, e
voltou daí a pouco trazendo consigo um
homem de magro e chupado. Mau Wong
explicou que aquele seu amigo estava com dor
de dente. Será que poderíamos orar por ele?
Então oramos por aquele outro também. Foi
curado na hora, e depois lhe falamos de Jesus.
Ele também quis receber a Cristo e seu
Espírito, e o fez imediatamente.
Tive oportunidade de visitar Mau Wong
várias vezes, para falar-lhe mais a respeito de
Jesus. Da segunda vez em que o vi, explicou-
me que, como era crente, tinha de ganhar a
vida de forma honesta, e que iria tornar-se
engraxate.
Eu e o americano continuamos nossa
ronda por Hong Kong. Atravessamos a baía de
volta e pegamos um micro-ônibus para ir a
Chaiwan. Eu ia orando o tempo todo, em voz
baixa. O moço achava que orar num ônibus já
era demais, mas depois do que vira na Rua
Jordan, pôs-se a orar também. O dia inteiro nós
oramos sem cessar, parando apenas para as
refeições, ou para conversar com as pessoas
que encontrávamos pelo caminho.
Em Chaiwan, fomos para um salão de
drogas. Receberam-nos como se já estivessem
nos esperando.
— Poon Siu Jeh, disse-me um viciado,
pode arranjar-me uma Bíblia?
Um velho indagou:
— Onde posso ir para ouvir mais a
respeito de Jesus e sua doutrina?
— Você não precisa ir a um culto, para
ouvir falar de Jesus, respondi. Eu mesma posso
falar-lhe.
Sentei-me ali e pus-me a explicar o plano
da salvação, e um bom grupo foi-se
aglomerando ao nosso redor para escutar-nos.
O velho aceitou a Jesus com a sinceridade de
uma criança. Depois passou a freqüentar
regularmente nossas reuniões aos sábados.
Quando saímos, Ah Wing nos
acompanhou. Era um dos homens que vendia
heroína. Paramos numa barraca de lanches
para comer, e ele também. Mas era só isso que
queria, uma refeição gratuita. Eu estava-lhe
falando de Jesus, mas ele estava-se
apressando para podermos ir logo comer.
— Está disposto a crer que Jesus é o Filho
de Deus? indaguei.
— Não tenho certeza, replicou. Talvez.
— E você crê que ele morreu por você?
— Não entendo isso.
— Isso não tem importância. Quer crer?
— Está bem, resmungou ele.
— Está disposto a crer que ele
ressuscitou dos mortos?
— Bom, acho que ele deve ter
ressuscitado mesmo, aquiesceu.
— E você quer segui-lo?
— Ah, quero, isto é, se ele é mesmo o
Deus yerdadeiro, é lógico.
— Ah Wing, por que não pergunta a Deus
se Jesus é o Filho dele ou não? Tenho certeza
de que ele responderá, disse-lhe, e pus-me a
orar silenciosamente, fazendo um aceno ao
americano, para que se juntasse a nós.
Alguns instantes depois, ergui a cabeça,
julgando que já havíamos orado o suficiente.
Mas, quando olhei para aquele traficante de
drogas, vi que ainda estava orando, e
continuou a orar por muito tempo. O ma-
rinheiro fora sentar-se numa outra banqueta,
procurando dar a entender que não tinha nada
conosco. Mas, quando viu a expressão do rosto
de Ah Wing, sua atitude mudou inteiramente.
Suas feições tinham uma aparência celestial.
Afinal, quando levantou o rosto, perguntei:
— O que foi que viu?
— Bem, quando estava orando, vi uma
espécie de um quadro, e acho que era Jesus.
Estava sentado a uma longa mesa e havia
outros homens em torno dela. Estavam
passando uns para os outros um pedaço de
pão, e depois um cálice de vinho, e todos
bebiam.
Expliquei-lhe que aquilo significava, que
Jesus havia dado seu corpo e seu sangue por
nós.
Na continuação de nossa caminhada,
mais duas pessoas se converteram, e meu
amigo americano não precisou mais de
argumentos sobre o valor de se orar no
Espírito.
O marinheiro escreveu ao casal Willans
indagando se poderia trabalhar conosco,
depois que desse baixa da marinha. Eles
responderam que àquela altura poderíamos ter
cinco casas, cinqüenta, ou nenhuma. E que
estaríamos nas mãos de Deus, para agir do
modo que ele determinasse, quer nos
mandasse ir para a China, ou incumbisse-nos
de instalar mais doze apartamentos para os
rapazes.
Muitas vezes, não tínhamos onde abrigar
aqueles que ganhávamos para Cristo. Eu
achava que tinha a responsabilidade de cuidar
de cada um, até que ele acertasse a vida. A
maioria deles não tinha um lar, nem roupas,
lutavam com sérios problemas de perso-
nalidade, bem como vício de drogas e doenças
diversas.
Mais tarde, senti que devia voltar a
Chaiwan e procurar Ah Wing para fazer com
ele um trabalho de consolidação. Não o
encontrei, mas vi Ah Kwan, que conversava
com alguns traficantes de droga. Todos me
trataram muito bem, mas senti que devia
dizer-lhes que, embora Jesus os amasse e eu
também, o negócio que faziam era repulsivo.
Ah Kwan disse que só poderia arrepender-se na
semana seguinte, pois precisavam dos lucros
dos três dias seguintes. Respondi-lhe que
ninguém pode escolher a hora para se
arrepender, e que se ele não seguisse a Jesus
imediatamente, iria preso dentro de poucos
dias. Quatro horas depois, foi apanhado e
sentenciado a trinta dias na cadeia. Então
espalhou-se em Chaiwan o boato de que eu
era profeta.
Nunca mais vi Ah Wing, o traficante, mas
confiei plenamente em que Deus cuidaria dele
melhor do que eu poderia fazê-lo, já que ele o
ama mais que eu.
Voltei então ao ponto de partida:
primeiro, crera que Deus pode curar um
viciado em drogas instantaneamente. Depois,
que ele só poderia firmar-se, se eu pudesse
fornecer-lhe uma atmosfera de segurança. Fi-
nalmente vim a crer que poderia deixá-los
inteiramente aos cuidados do Senhor.
Um outro irmão carnal de Goko voltou do
Canadá. Era um homem alto, de modos
brandos, impeçavelmente vestido.
Conhecemo-nos no casamento de Johnny. Ele
convidara membros de sua antiga quadrilha
para que seu casamento fosse um testemunho
para eles.
— Tenho que dar-lhe um aperto de mão,
Sr. Pullinger, disse-me o irmão de Goko. Criei-
ta

me na Cidade Murada com esses rapazes, e


decidira estudar direito para ajudá-los. Mas
agora estou vendo que não há mais nada para
eu fazer. Você já fez tudo.
Prontamente recusei seus louvores,
explicando-lhe quem realmente fizera toda a
obra.
Fomos caminhando pelas ruas da Cidade
Murada em direção ao clubinho. Muitos dos
negócios ilícitos da Cidade Murada haviam-se
fechado. Isso se devia em parte ao fato de que
muitos dos rapazes da 14K tinham-se
convertido.
O irmão de Goko entrou ali e logo gostou.
Nas noites seguintes, assistiu às nossas
reuniões e conversou comigo.
— Como resolve seus problemas de
dinheiro? indagou ele um dia.
— Ah, Deus cuida de nós, repliquei.
Quando precisamos de dinheiro, oramos.
— Está bem, mas, falando de maneira
prática, de onde ele vem? Ele não cai do céu,
cai?
— Bem, isso até pode acontecer,
respondi. Naquele momento bateram à porta e
entrou um velhinho, que me entregou um
envelope.
— Poon Siu Jeh, disse ele, eu estava
andando pela rua e uma pessoa me entregou
esta carta.
Olhei para ela. Estava escrita em inglês:
"Jackie Pullinger — Walled City (Cidade
Murada)." E era só. Abri-a, e dentro havia a
quantia de cem dólares, enviada por um
homem que eu não conhecia e de quem nunca
ouvira falar. Mostrei aquilo para o irmão de
Goko, e ele ergueu as mãos.
— Eu me rendo, falou. „
Depois ele se foi, e saí por aquelas ruas
sozinha, passando pelas prostitutas, pelos
cinemas pornográficos, pelos salões de drogas
e jogatina. Passei pelo lugar onde, um ano
antes, tinha presenciado um começo de briga
entre dois desconhecidos, brandindo facões.
Saí da cidade e passei pelo local onde
estivera o prédio da Rua Lung Kong; era
apenas um monte de entulho. Lembrei-me de
que Goko morava no edifício do outro lado da
rua.
Alguns meses antes, sua esposa havia
desaparecido, após perder uma grande quantia
em dinheiro no jogo. Estava com muito medo
de voltar para casa, sabendo que ele iria
castigá-la severamente. Então raptou um filho
dele com uma antiga amante, e escondeu o
garoto, de apenas quatro anos, num
apartamento. Depois telefonou para ele e disse
que devolveria a criança, se ele perdoasse sua
falta. Ele não quis prometer nada, e logo
colocou os quadrilheiros na pista do
apartamento. Mas a esposa dele não queria
ficar à espera de que ele a encontrasse.
Aterrorizada com o marido, forçou o garotinho
a beber veneno e depois bebeu também, e
ambos morreram.
Eu tinha feito o propósito de ver Goko
pelo menos uma vez por ano, e quando nos
encontramos outra vez para tomar chá,
apresentei-lhe minhas condolências. Fez uma
expressão de desdém quando mencionei a
esposa, mas pude sentir que sofria pela perda
do filho. Percebi nele também medo da solidão,
e como queria tanto ganhá-lo e tocar seu
coração, disse-lhe que percebera seus
temores.
— Como você sabe? Nunca contei a
ninguém que tenho medo, confessou ele.
E Goko disse-me que nunca falara de
seus sentimentos a ninguém.
Tanto Goko como Sai Di tinham atitudes
semelhantes com relação a Cristo, mas o irmão
canadense se confessava crente abertamente.
— Não estou dizendo que não creia em
Jesus, diziam eles. Mas tenho observado vocês,
os crentes, e já notei que a maioria ganha
muito pouco em seus empregos. Mas eu tenho
que mentir, roubar, trapacear para sustentar
minha família, e sei que os crentes não podem
fazer essas coisas. Por isso não quero ser
crente, porque, se o fosse, queria ser um
crente de verdade. Sei que Jesus pode me
sustentar, mas quero ter certeza de que ele irá
sustentar também os meus seguidores.
Sempre respeitei a opinião desses dois
irmãos, e tenho orado para que eles vejam que
Deus é suficientemente poderoso para suprir
todas as suas necessidades. Mas estou certa
de que nenhum deles fará uma entrega
pessoal insincera. Muitas vezes, em minhas
conversas com Goko, tenho-o ouvido dizer:
— Está bem, se aquele irmão deseja ser
crente, tudo bem. Mas que siga a Jesus
direitinho. Não quero que ele saia daqui hoje e
volte amanhã. Se quer ser crente, então que
seja um bom crente.
Afastei-me da casa de Goko e dirigi-me
para as Casas de Estêvão, onde os rapazes que
continuavam a caminhar no Espírito se
tornavam homens dignos de todo respeito e
confiança. Os que tinham conhecido a Cristo,
mas deixavam as casas prematuramente, a
fim de seguir seus próprios impulsos, sempre
acabavam tendo problemas.
Certa vez, um viciado de Chaiwan
resumiu tudo isso muito bem:
— Ouvi dizer que Jesus faz o mesmo
milagre para todos os rapazes que vêm a esse
lugar. Mas sei também que a decisão de
perservar ou não, ah!, isso é com o rapaz.

CONTRACAPA
Caça ao Dragão
No coração de Hong Kong, encontra-se a
temida Cidade Murada, verdadeiro inferno de
tráfico de drogas e de jogatina ilegal. Os
forasteiros não são bem recebidos ali. A
própria polícia tem receio de se aventurar
naqueles domínios. Ali florescem a
prostituição, a pornografia e o vício da heroína.
E nessa área pequena e apertada vivem
amontoadas pelo menos trinta mil pessoas —
talvez o dobro.
Quando Jackie Pullinger saiu da
Inglaterra, não tinha a menor idéia de que
Deus a estava levando para trabalhar
justamente na Cidade Murada. Mas, quando
começou a falar de Jesus ali, rudes
quadrilheiros se converteram, prostitutas
largaram o ofício... e Jackie tropeçou na
descoberta de um novo método de tratamento
para a dependência das drogas.
Caça ao Dragão é um relato honesto,
desafiante e inspirador, que revela a fibra, o
amor e a dedicação de uma jovem disposta a
tudo para servir a Deus.

Editora Betânia
Leitura para uma vida bem sucedida

You might also like