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DE MAUSS A CLAUDE LÉVI-STRAUSS 1

A sociologia torna-seo que atualmentechamamos antropologia social -


termo que se difunde na França, embora já usual em outros lugares - quando
admite que o social,como o próprio homem, tem dois pólos ou duas faces:é signi-
flrcante,pode-secompreendêlo de dentro, e, ao mesmo tempo, a intenção pessoal
encontra-senele generalizada, amortecida, tende para o processo,estánsegundoa
célebreexpressão,mediatizadapelascoisas.Ora, na França, ninguém como Mar-
cel Mauss antecipouessasociologia mais elástica.Sob muitos aspectos,a antro-
pologia social ê a obta de Mauss continuandoa viver sob nossosolhos.
Após vinte e cinco anos, o famoso "Ensaio sobre o Dom, forma arcaica da
Troca" acabade ser traduzido para os leitores anglo-saxõescom um prefácio de
Evans-Pritchard."Poucas pessoas",escreveLévi-Strauss,"puderam ler o'Ensaio
sobre o Dom' sem ter a certeza ainda indefinível, mas imperiosa, de assistir a um
acontecimento decisivo para a evolução científica." Essa lembrança deixada por
aquelemomento da sociologiafaz com que valha a pena rememorá-lo.
A nova ciência havia pretendido, segundoas palavras bem conhecidasde
Durkheim, tratar os fatos sociais como "coisas" e não mais como "sistema de
idéiasobjetivadas". Mas, tão logo tentava precisaro social, só conseguiadefini-lo
como "psíquico". Tratava-se, dizia-se, de "representa$es" que simplesmente
eram "coletivas" em vez de seremindividuais.bonde a idéia tão discutida de uma
n'consciênciacoletiva", tomada como um ser distinto no coração da história.
A
relação entre ela e o indiúduo permanecia exterior como se fora a relação entre
duas coisas. Aquilo que se outorgava à explicação sociológica era roubado da
explicaçãopsicológicaou Íisiológica e reciprocamente.
Além disso, Durkheim propunha, sob o nome de morfologia social, uma gê-
nese ideal das sociedades pela combinação de sociedades elementares e pela
composiçãodos compostosentre si. O simples era confundido com o essenciale
com o antigo. Por sua vez, a.idêia, de Lévy-Bruhl a respeitode uma "mentalidade

I As análisesde Merleau-Pontya respeitodas implica@esepistemológicas e ontológicasda antropologia


contêmas esperanças que o filósofo depositavana noção de estruturacom saídapara o impassereinanteno
pensÍrmentoocidental desde Descartes,qual seja, a dicotomia coisa-consciência, sujeito-objeto. Essa
esperança,que tambémapareceno ensaio"O metafisicono homem", leva Merleau-Pontyao elogio dos tra-
balhos de Lévi-Strauss.Este,por sua vez, considerandoque o filósofo compreenderaseu projeto científico,
dedicoulhe La PenséeSauvage,em cujô prólogo lemos:"Aqueles que se aproximaramde nós, de Merleau-
Ponty e de mim. no decursodos últimos anos,conhecemalgumasdas razõesque tornam desnecessário expli-
car por que estelivro, que desenvolve livrementealgunstemasde meuscursosno Colégiode França,lhe foi
dedicado,E terìhe-ia sido dedicadode qualquermaneirase tivessepermanecidovivo, como continuaçãode
um diá{ogocujo começodata de 1930. . . E visto que a morte o roubou subitamentede nós, que estelivro
fique dedicadoà suamemória,comotestemunhode fidelidade,reconhecimento e afeto".(N. do T.)
t94 MERLEAU-PONTY

prê-lógica" não nos dava uma abertura para o que hâ de irredutível nas culturas
ditas arcaicasquando confrontadascom a nossa,visto que as congelavaem uma
diferençaintransponível.Das duas maneiras a escolafrancesafalhava no acesso
ao outro que, não obstante, é a própria definição da sociologia. Como
compreendero outro sem sacrificá-loà nossalógicae sem sacrificâ-laaele?As-
similando muito depressao real a nossasidéias ou, então, declarando-oimper-
meável, a sociologia falava como se pudessesobrevoarseu objeto e o sociólogo
era um observadorabsoluto.2 Faltava uma penetraçãopacienteno objeto e a
comunicaçãocom ele.
Marcel Mauss, ao contrário, praticou-as instintivamente.Seu ensino e sua
obra não polemizam com os princípios da escola francesa.Sobrinho e colabo-
rador de Durkheim, tinha todos os motivos para fazer-lhejustiça. A diferença
explode na sua maneira de entrar em contato com o social. No estudo da magia,
dizia ele, as variações concomitantes e as correlações deixam um resíduo qtueê
preciso descrever,pois nele se encontramas razõesprofundasda crença.Era pre-
ciso, então,penetrarno fenômenopelo pensamento,lê-lo ou decifrálo. E estalei-
tura consiste sempre em aprender o modo de troca que se constitui entre os ho-
mens por meio da instituição, as conexões e equivalências que estabelece,a
maneira sistemáticacomo regula o empregodos utensílios,dos produtos manufa-
turados ou alimentícios,das Íórmulas mágicas, dos ornamentos,cantos, danças,
elementosmíticos, como a língua regula o empregodos fonemas,morfemas,voca-
bulario e sintaxe. Esse fato social, que jâ não é uma regularidade compacta, mas
um sistemaefrcazde símbolosou uma rede de valores simbólicos,vai inserir-seno
individual mais profundo. Contudo, a regulaçãoque circunscreveo indiúduo não
o suprime.Não há mais que escolherentre o individual e o coletivo. "O verdadei-
ro", escreveMauss,"não é a precenem o direito, mas o melanésiode tal ou tal
ilha, Roma, Atenas." Assim, também não há mais o simplesabsoluto,nem a pu-
ra soma,mas em toda parte,totalidadesou conjuntosarticuladosmais ou menos
ricos. No pretensosincretismoda mentalidadeprimitiva, Mauss observouoposi-
ções tão importantes para elequanto as famosas"participações".3 Concebendo
2 Cf. a mesmacrítica do "pensamentode sobrevôo"e do "espectadorabsoluto" ín O Olho e o Espírito,"O
metaÍisicono homem" e "A linguagemindiretae asvozesdo silêncio".(N. do T.)
3 Em La PenséeSauvage,Lévi-Strauss,continuandoa linhagemde Mausse da etnologiade Morgane Boas,
tambémrecusaa "mentalidadeprê-l6gicaz'eo "pensamentopor participação" que Lévy-Bruhl atribuía aos
"primitivos". No capítulo 1.o,denominado"A Ciência do Concreto", Lévi-Strausscritica o pressuposto
daquelaatribuição,qual seja,a incapacidadedo "primitivo" para alcançaro pensamentoabstrato.Para dar
uma idéia do nível de abstraçãoa que o "primitivo" pode chegar,Lévi-Straussfornecedois exemplos:"A
proposição:o homemmalvadomatou a pobrecriança,em Chinook seexprimeda seguintemaneira:a malda-
de do homemmâtou a pobrezada criança.E para dizer que uma mulher utiliza um cestomuito pequenodiz-
se: coloca raízesna pequenezde um cestopara conchas".E mais adiante,o antropólogoafirma: "Como nas
línguasdos oficios, a proliferaçãoconceitualcorrespondea uma atençãomais detida sobreas propriedades
do real, a um interessemais despertopara as distirrçõesque se possamfazer. Estegosto pelo conhecimento
objetivo constitui um dos aspectosmais esquecidosdo pensamentodos que chamamosde 'primitivos'. Se
raras vezessedirige para realidadesdo mesmonível em que se movea ciênciamoderna,supõeaSes intelec-
tuais e métodosde observaçãocomparáveis.Nos dois casos,ô universoé objeto de pensamentotanto quanto
meio para satisfazernecessidades". O pensamento"primitivó" rrãoê pré-lógico- é uma lógicado concreto
cuja peculiaridadeé "situar-sea meio caminho entreos preceitose os conceitos",e esteintervalo é a região
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o social como simbolismo"conseguiuencontraro meio para respeitara realida-


de do indivíduo, a do social e a variedadedas culturas sem torná-las impermeá-
veis uma à outra. Uma razão alargadadevia ser cap.azde penetrar até no irracio-
nal da magia e do dom. "Antes de tudo", dizia ele,"é precisotraçar o maior catá-
logo possívelde categorias;é preciso partir de todas aquelasque pudermos sa-
ber que foram usadaspelos homens. Ver-se-á,então, que ainda há muitas luas
mortas, pálidas ou obscurasno firmamento da Íazão..."
Porém, Mauss possuíamais essaintuição do social do que uma teoria explí-
cita dele. Talvez seja por isso qqe, no momento de concluir, permaneça aquém de
sua descoberta.Procura o princípio da troca no Hau e no Mana. Noções enigmá-
ticas que tbrnecem menos uma teoria do fato social e mais uma reprodução da
teoria indígena. Na realidade,designam apenasuma espéciede cimento afetivo
entre a multidão de fatos que é preciso vincular. No entanto, são estes fatos
inicialmentedistintos para que se procure reuni-los?A síntesenão é primeira? O
Mana não é, precisamente,para o indiúduo, a evidência de certas rela$es de
equivalência entre o que ele dâ, recebee devolve, a experiênciade um certo desvio
de si mesmo e do equilíbrio institucional com outros, o fato primeiro de uma
dupla referênciada conduta a si e ao outro, a exigênciade uma totalidade invisível
de que ele e o outro são, aos seusolhos, elementossubstituíveis?Neste caso, a
troca não seria um efeito da sociedade,mas a própria sociedadeem ato. O que hâ
de luminosono Mana decorreriada essênciado simbolismoe tornar-se-iaacessí-
vel para nós através dos paradoxos da palavra e da relação com o outro - aná-
logo ao "fonema zeÍo" de que falam os lingüistas que, em si mesmo desprovido de
valor assinalâvel,opõe-se à ausência de fonemas, ou ainda, ao "significante
flutuante", que nada articula e, no entanto, abre um campo de significação possí-
vel. Contudo, ao falarmos dessamaneira,já estamosseguindoo movimento de
Mauss para alêmdo que ele dissee escreveu,vemo-lo retrospectivamentena pers-
pectiva da antropologia social, já atravessamosa fronteira de outra concepção e
de outra abordagem do social, representada brilhantemente por Claude
Lévi-Strauss.

A nova concepção vai denominar estrutura à maneira como a troca estâ


organizada em um setor da sociedade ou na sociedade inteira. Os fatos sociais
não são coisas nem idéias: são estruturas. O termo, hoje bastante empregado,
tinha, no início, um sentido preciso. Entre os psiólogos servia para designaras
configuraçõesdo campo perceptivo,totalidades articuladas por certas linhas de
força, nas quais e das quais todo fenômeno recebe seu valor local. Também na
lingústica, a estruturaé um sistemaconcreto,encarnado.Quando Saussuredizia
que o signo lingüístico é diacrítico - que opera apenasgraças à sua diferença,

do signo,Por isso, Merleau-Pontyfrisarâ que com Lévi-straussa antropologiacontribui para a constituição


das ciênciashumanascomo "ciênciassemiológicas".(N. do T.)
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por uma certa distância entre ele-e os outros signos e não pela evocação de uma
significação positiva - tornava patente a unidade da língua abaixo da significa-
ção explícita, uma sistematizaçãoque se realiza nela antes que seu princípio
ideal lhe seja conhecido.Para a antropologia social, a sociedadeé feita de siste-
mas destegênero: sistema do parentescoe da filiação (com todas as regras conve-
nientesdo casamento),sistemada troca lingüística, sistemada troca econômica,
da arte, do mito e do ritual. A própria sociedadeé a totalidade dessessistemas
em interação.Dizendo que são estruturas,pode-sedistingui-los das "idéias cris-
talizadas" da antiga filosofia social. Os sujeitosque vivem numa sociedadenão
têm necessariamente conhecimentodo princípio da troca que os governa, assim
como o sujeito falante não precisa,paÍa.falar, passar pela análise lingüística de
sua língua. A estrutura é, antes,praticada por eles como óbvia. Por assim dizer,
ela "os tem" mais do que eles a têm, se a compararmoscom a linguagem,tanto
no uso vivo da fala quanto em seu uso poético, onde as palavras parecemfalar
por si mesmase tornar-seseres.a
Como Janus,a estrutura tem duas caras: de um lado, organiza os elementos
que nela entram de acordo com um princípio interior, é sentido. Porêm, este senti-
do que caÍÍega é, por assim dizer, um sentido pesado.Portanto, quando o sábio
formula e flxa conceitualmenteestruturas e constrói modelos com cujo auÍlio

a Na Phénoménologie de la Perception,Merleau-Pontyescreve:"Poder-se-iadistinguir entreuma fala falan-


te (paroleparlante) e uma fala falada (paroleparlée).A primeira ê aquelana qual a intençãosignificativase
encontraem estadonascente.Aqui a existênciasepolarizanum certo"sentido" que não podeserdefinidopor
nenhumobjeto natural,procura reunir-seconsigomesmapara alémdo ser e por issocria a palavracomo um
apoio empíricode seupróprio não-ser.A palavra é o excessode nossaexistênciasobreo sernatural. Mas o
ato de expressãoconstitui um mundo lingriísticoe um mundo cultural, faz recair no ser aquilo que tendia
para além. Nasce,então,a fala falada que frui as signihca@esdispoúveis como uma fortuna adquirida;A
partir dessasaquisi$es tornam-sepossíveisoutros atos de expressãoautêntica:os do escritor,do artista ou
do filósofo. Esta aberturasemprerecriadana plenitudedo ser condicionaa primeira fala da criança como a
do escritor,a construçãodo vocábulocomo a do conceito.Tal é estafunçãoque adivinhamosatravésda lin-
guagem'quesereiterae seapóiasobresi mesmaou que,comouma vaga,secomprimee seagarraparaproje-
tar-se além de si mesma". (Phénoménologiede la Perceptíon,ed, Gallimard, p. 229-230.)E no ensaio
"L'homme et I'adversité" lemos: "A linguagemé, pois, esseaparelhosingular que, como nosso corpo, dá
mais do que nele pusemos,seja porque falando nós próprios apreendemos nosso pensamento,sejaporque
escutamosos outros.Pois,quandoescutoou quandoleio, as palavrasnem semprevêm tocar em mim signifi-
caçõesjápresentes. Têm o poderextraordiná,riode lançar-mefora de meuspensamentos, praticamfendasem
meu universoprivado por ondeoutrospensamenÍosirrompem.Os vocábulosda linguagemque,considerados
um por um, são apenassignosinertesaos quais correspondesomenteuma idéia vaga ou banal, subitamente
inflam-secom um sentidoque extravasaem outrem quandoo ato de falar os ata num único todo. O espírito
não estámais à parte,germinanas bordasdos gestos,nas bordasdas palavras,como que por uma geração
espontânea".("L'homme et I'adversité",in Signes,ed. Gallimard, p. 298.) Em Le Cru et Cruit, Lévi-Strauss
retoma a mesmasuposiçãode que os homens"são tidos" pela estruturamais do que estapor eles:"Ocorre
com os mitos o mesmoque com a linguagem:o sujeitoque conscienciosamente explicasse em seudiscurso
as leis fonológicase gramaticais,supondo-seque possuaa ciênciae o virtuosismonecessârios, logo em segui-
da acabariaperdendoo flrode suasidéias.Do mesmomodo,o exercícioe o uso do pensamentomítido exigem
que suaspropriedadespermaneçamescondidas,senãonós nos colocaríamosna posiçãodo mitólogo que ú
acreditanos mitos pelo fato de poder demonstrá-los.A análisemítida não tem, nem pode ter como objeto
mostraÍcomo os homenspensam(.. .). Não pretendemos mostrar,portanto,como os homenspensamnos
mitos,mas como os mitos sepensamnos homense malgradoestes.Talvez,comojá sugerimos, convenhair
aindamaislonge,fazendoabstraçãode todo sujeito,paraconsiderarque,de uma certamaneira,os mitosse
pensamentresi". (Lévi-Strauss,Le Cru et le Cruit, ed. plon, Introdução,p. l 9-20.)(N. do T.)
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procura compreenderas sociedadesexistentes,não lhe passapela cabeçasubsti-


tuir o real por um modelo.Por princípio, a estruturanão é uma idéia platônica.
Imaginar arquétipos imperecíveisque dominariam a vida de todas as sociedades
possíveisseriaexatamenteo erro da velha lingüística,quandosupunhanum certo
material sonoro uma afinidade natural para um sentidodeterminado.Seria esque-
cer que os mesmostraços fisionômicospodernter um sentidodiferenteem diferen-
tes sociedades. de acordo com o sistemãonde são capturados.Se a sociedade
americana, em sua mitologia, reencontra hoje um caminho que foi seguido outro-
ra ou alhures, não se trata de um arquétipo transcendenteque se encarna três
vezes: nas Saturnais romanas. nas Katchinas do México e no Christmas america-
no. Na verdade,essaestruturamítica ofereceuma via paÍa a resoluçãode alguma
tensão local e atual, sendo recriada na dinâmica do presente.A estrutura não
rouba a espessuraou o peso da sociedade.Esta ê, ela pr6pria, uma estrutura das
estruturas: como, então, deixaria de haver alguma relação entre o sistema lingús-
tico, o econômicoe o parentescoque ela mesma pratica? Mas a relação é sutil e
variável - algumas vezesé uma homologia; outras, como no caso do mito e do
ritual, uma estruturaé a contrapartidae a antagônicada outra.5 Como estrutura,
a sociedadepermaneceuma realidade facetada,legitimando miras diversas.Até
que ponto podem ir as compara$es? Acabaríamos encontrando invariantes
universais,como queria a sociologia propriamentedita? Restaver. Nada limita a
investigaçãoestrutural neste sentido, mas também nada a obriga a postulá-los
logo no início. O maior interessedestanova investigaçãoconsisteem substituir as
antinomiaspor relaçõesde complementariedade. 6
'
A pesquisairradia-se para todas as direções,rumo ao universal e rumo à
monografia, indo cada veztáo longe quanto possívelpara sondarjustamente aqui-
lo que pode faltar em cada uma das apreensõesisoladas.A busca do elementar,

5 Num curso ministrado em 1971,no Departamentode Filosofia da USP, o professorJean-PierreVernant


apresentouuma anâliseestruturaldo mito de Prometeu,narrado por Hesíodo,e do ritual do SacrificioSan-
grento realizadoa partir daquelemito, como sua contrapartidae seuantagonista.O mito narra o momento
da constituiçãodo mundo humanodos mortaisem oposiçãoao mundodos deusesimortais. No princípio,era
a ldade de Ouro: os homens,nascidosespontaneamente da Terra, conviviamcom os deusese reinavaa abun-
dância.A sgguiÍ,no momentoem que Prometeuseparaas partesde um boi para um bânquete,tendenciosa-
mentedeixa as melhorespartespara os homense as piorespara os deuses.Enfurecido,ZeusexpulsaProme-
teu e os homensdo conúvio com os deuses.Os homenstornam-semortais,nascemnas doresdo parto e são
obrigadosa trabalhar para viver. O ritual do SacriÍicioSangrentofeito na polis, rememorade forma drástica
e contraditória o mito da origem: nesserito as parles do animal são separadasexatamentecomo no mito,
contudo, uma conotaçãovalorativa positiva recai sobre as partes divinas, pois são queimadascom ervas
aromáticasde sorte que os homensenviam perfumesaos deuses,As partescomestíveisque sobramnão são
queimadas,mas cozidas,a fim de seremcomidaspeloshomens.Queimare cozeÍ,perfumee comida revelam
a Separaçãodefinitiva entre os homense os deuses,que nunca mais se banquetearão juntos. No entanto,o
SacrificioSangrento,rememorandoa separação,é tambóma forma humanada união proviúria com os deu-
ses,de tal modo que a oferendadas partesqueimadase o usufruto das partescozidassimbolizamum ban-
quetecomunitárioproviúrio e que deveserreiterado.O rito lembrae negao mito. (N. do T.)
6 Bem ou mal, Lévi-Strausse Chomsky acabaramaí. O primeiro desembocanum "kantismo sem sir.leito
transcendental",ou num."pensamentoobjetivo", dotado de estruturasformais determinadase universais.O
segundorecuperao inatismocartesianocomo único modo capazde explicar a universalidadedas estruturas
profundas(sintáticas)da linguagem.O decorrerdo ensaionos mostraÍá que não era bem isto que Merleau-
Ponty esperavada análiseestrutural.(N. do T.)
r98 MERLEAU-PONTY

nos sistemasde parentesco,vai orientar-se,atravês da variedade de costumes,


para um esquemade estruturade que estespossamser consideradoscomo varian-
tes. A partir do momento em que a consanguinidade exclui a aliança, em que o
homem renuncia a tomar uma mulher em sua família biológica ou em seu grupo
e deve obter fora uma aliança que exige,por razõesde equilíbrio, uma contrapar-
tida mediata ou imediata, começa um fenômeno de troca que pode complicar-se
indefinidamente quando a reciprocidade ceder lugar a uma troca generalizada.É,
preciso, então, construir modelos que evidenciam as diferentesconstela@espossí-
veis e o arranjo interno dos diferentes tipos de casamentopreferencial e dos dife-
rentes sistemas de parentesco.Para-desvendar essas estruturas extremamente
complexase multidimensionais,nossa aparelhagemmental usual é insuficientee
pode ser necessáriorecorier a uma expressãoquase-matemâtica, tanto mais utili-
zável quanto mais a matemáticaatual deixa de'limitar-seao mensurâvele às rela-
'ções quantidade.
de Pode-semesmo sonhar com um quadro periódicodas estrutu-
ras de parentescocomparável ao quadro dos elementosqúmicos de Mendeleeff.É
saudávelpropor, no limite, o programa de um código universaldas estruturas,que
nos permita deduzi-las umas das outras por meio de transforma$es reguladas,
construir, para alêm dos sistemasexistentes,os diferentessistemaspossíveis,nem
que seja apenaspara orientar, como já aconteceu,a observaçãoempírica paÍa cer-
tas instituiçõesexistentesque, sem esta antecipaçãotórica, passariamdesaperce-
bidas. Dessa maneira, no fundo dos sistemas sociais apaÍece uma infra-estrutura
formal, somos mesmotentados afalat num pensamentoinconsciente,uma anteci-
paçáo do espírito humaRo,como se nossa ciência já estivessefeita nas coisas,e
como se a ordem humana da cultura fosse uma segundaordem natural, dominada
por outros invariantes. Mas, mesmo que estesexistam, como a fonologia abaixo
dos fonemas, a ciência social encontraria abaixo das estruturas uma meta-es-
trutura com que eles se conformam, o universal a que se chegariadessamaneira
não substituiria o particular, assim como a geometfia generalizada não anula a
verdadelocal das relaçõesdo espaçoeuclidiano.Também em sociologiahá consi-
derações de escala e a verdade da sociologia generalizada nada roubaria à da
micro-sociologia.As implicaçõesde uma estruturaformal podem muito bem fazer
com que apaÍeçaa necessidadeinterna de uma certa seqüênciagenética. Mas não
são elas que fazem com que haja homens, uma sociedadee uma história. Um
retrato das sociedades,ou mesmo as articula$es gerais de toda sociedade,não é
uma metaÍïsica.Os modelos puros, os diagramastraçados por um método pura-
mente objetivo são instrumentosde conhecimento.O elementarprocurado pela
antropologia social ainda consisteem estruturaselementares,isto é, em laçadasde
um pensamentoem rede que nos reconduzpor si mesmo à outra face da estrutura
e à sua encarnação.
As operaçõeslógicas surpreendenteso atestadaspela estrutura formal das
sociedades,de algum modo devem ser realizadaspelas populaçõesque vivem tais
DE MAUSSA CLAUDE LÉVI-STRAUSS 199

sistemasde parentesco.Deve,portanto, exiôtir uma espéciede equivalentevivido


que o antropologo precisa procurar, desta vez, com um trabalho que não é mais
somente mental e, talvez, pagando o preço da perda do conforto e, até mesmo,
pondo em risco sua segurançapessoal.O emparelhamentoda análise objetiva
com o vivido talvez seja a tarefa mais específicada antropologia, distinguindo-a
de outras ciências sociais como a ciência econômica e a demografra. O valor, a
rentabilidade,a produtividade ou a população máxima são objetos de um pensa-
mento que abraça o social.Não sepode exigir delesque apareçamem estadopuro
na experiênciado indivíduo. Ao contrârio, as variáveis da antropologia devem ser
reencontradas,cedo ou tarde, no nível em que os fenômenostêm uma significação
imediatamentehumana. Nessemétodo de convergênciaficamos embaraçadosem
virtude de preconceitosantigos que opõem indução e dedução,como seo exemplo
de Galileu não houvessemostrado que o pensamentoefetivo é um vaivém da expe-
riência à construção ou reconstrução intelectual. Ora, em antropologia, a expe-
riência é nossainserçãocomo sujeitossociaisnum todo cuja síntesejá está feita,
e que é laboriosamenteprocurada por nossainteligência,pois vivemosna unidade
de uma só vida todos os sistemasde que êfeita nossacultura.Hâ algum conheci-
mento a tirar desta sínteseque somos nós. Mais ainda: o aparelho de nosso ser so-
cial pode ser desfeitoe refeito pela viagem, assim como podemosaprendera falar
outras línguas.Há aí uma segundavia rumo ao universal:não mais o universalde
sobrevôode um método estritamenteobjetivo, mas como que um universal late-
ral.7 cuja aquisiçãoé possívelatravésda experiênciaetnológica,incessanteprova
de si pelo outro e do outro por si. Trata-se de construir um sistemade referência
geral onde possamencontrar lugar o ponto de vista do indígena,o do civilizado e
os erros de um sobreo outro, construir uma experiênciaalargadaque setorne, em
princípio, acessívelpara homens de um outro país e de um outro tempo. A etnolo-
gia não é uma especialidadedefinida por um objeto particular - as sociedades
"primitivas" -, ê a maneira de pensarque se impõe quando o objeto é "outro" e
que exige nossa própria transformação.8Assim, também viramos etnólogosde

Cf. tambem "A linguagem indireta e as vozesdo silêncio". (N. do T.)


E Para Merleau-Ponty a metafisica (e a metafisica nas ciências humanas) emerge quando se põe o problema
da alteridade. No entanto, ao contrário do pensamento francês contemporâneo, que é herdeiro de uma proble-
mática nitidamente merleaupontyana, a questão do Outro e do Ìr,{esmo,da Diferença e da Identidade, levam
a uma intertogação radical da racionalidade estreita posta pelo saber ocidental. Para Merleau-Ponty, a antro-
pologia, tomando a alteridade como objeto, fornece à filosofia um instrumento para o alargamento darazáo,
para a convivência dos incompatíveis, para um universal constituído por relaçôes de complementariedade.
Sabemos que, contrariamente a essa tentativa, o pensamento francês contemporâneo exacerbou a alteridade,
rumou para diferenças absolutas, cortes e rupturas que dominam as práticas e teorias humanas, reagindo con-
tra uÍn certo hegelianismo presente em Merleau-Ponty, e usando como arma o elogio da esquizofrenia deri-
vada de um mundo esquizofrênico. No ensaio "Em toda e em nenhuma parte", Merleau-Ponty se refere à
China vista numa fotografia e à China vivida pelos e com os chincses - a primeira ê ex6tica, pitoresca, dis-
tante, porque diferente; a segunda,êumaoutra maneira de alcançar uma relação coÌn ser, um projeto social
e político que também nos diz respeito e por cujo intermédio nos comunicamos com o que é diferente de nós
e que, conosco, forma a unidade de uma "universalidade obüqua". A abertura de Les Mots et les Choses
mantém a China em sua distância fotográfica: a enciclopédia borgiana, rompendo o que é familiar ao nosso
pensamento, determina a impossibilidade definitiva de alcançar o outro. "No maravilhamento desta taxino-
mia, alcançamos de um só golpe aquilo que, em favor do apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de
200 MERLEAU-PONTY

nossa própria sociedade,se tomarmos distância com relação a ela. Hâ algumas


dezenasde anos - desdeque a sociedadeamericanase tornou menos segurade
si - abrem-seas portasdo serviçode Estadoe do Estado-Maiorpara os etnólo-
gos.e Método singular:trata-sede aprendera ver o que é nossocomo se fôsse-
mos estrangeiros,e como se fossenosso o que é estrangeiro.E não podemos se-
quer fiar-nos em nossavisão de despatriados:a própria vontadede partir tem seus
motivos pessoais,podendoalteraro testemunho.l0Se quisermosser verdadeiros.
deveremos dizer tambêm essesmotivos, não porque a etnologia seja literatura,
mas porque, ao contrário, não deixa de ser incerta a menosque o homem que fala
deixe de cobrir-se com uma máscara.Verdade e erro habitam juntos na intersec-
ção de duas culturas, sejaporque nossaformação nos escondeaquilo que há para
conhecer,seja porque, ao contrário, ela se torna, na pesquisade campo, um meio
para sitiar as diferençasdo outro. Quando Frazer dizia, a respeitodo trabalho de
campo, "Deus me livre", não estava se privando apenasdos fatos, mas de um
modo de conhecimento.Claro que não é possível,nem necessârio,que o mesmo
homem conheçapor experiênciatodas as verdadesde que fala. Basta que tenha,
algumas vezes e bem longamente,aprendido a deixar-seensinar por uma outra
cultura, pois, doravante,possui um novo ôrgão de conhecimento,voltou a se apo-
derar da região selvagemde si mesmo,que não é investidapor sua própria cultura
e por onde se comunicacom as outras.11 Em seguida,mesmoem sua escrivani-

um outro pensamento,o limite do nosso: a impossibilidade nua de pensar aquí\o". (M. Foucault, Les Mots
et les Choses, Prefácio, ed. Gallimard.) Para Merleau-Ponty, a etnologia criava aquilo que Foucault revela
como impossível: um espaço do encontro. O espaço toÍnou-se a-tópico e a linguagem, afásica. Se na leitura
merleaupontyana a etnologia pôde surgir como um subsolo das ciências humanas e como instrumento para
a apreensão de uma racionalidade alargada, torna-se estranho perceber que este mesmo papel lhe é conferido
por Foucault no final de Les Mots et les Choses, onde, ao lado da psicanáúise e da lingiüsüca, a etnologia
constituiria a base do "triedro do saber", fornecendo "a unidade de uma estrutura cujas transformações for-
mais liberariam a diversidade das narrativas".
É possível, no entanto, marcar a distância entre M.-Ponty e Foucault. Para o primeiro, a etnologia levava a
um alargamento da racionalidade porque desembocava numa ontologia. Com efeito, superando a dicotomia
sujeito-objeto, a estrutura revelada pelo etnólogo e generalizada pelas outras ciências, deixava claro que não
hâ dados nem essências, isto é, pontos fixos e completos a serem meramente explicitados, mas que o real (vín-
culo sujeito-objeto) se conÍìgura num processo conúnuo de reestruturação, contendo nele mesmo a possibili-
dade de sua transformação e um devir do sentido, isto é, uma história, O papel conferido à antropologia
estrutural decorria do fato de que a partir dela a historicidade como produção dos objetos e das significa@es
anulava a tradição clássica que tomava o real como exterioridade acabada e que iria sendo explícitadatú-
rica e praticamente, e não como sendo efetuada. Ora, quando Foucault privilegia a etnologia, ele o faz em
nome doformalismo inconsciente qve ela revelaria; portanto, em nome de ínvariantes Jìxos que as narrativas
(e as sociedades que as produziram) apenas explicitam. Para M.-Ponty o alargamento da racionalidade mos-
trava que a história não trabalha com alargamento porque ê advento do sentido, ísto ê, produção do mundo
pelos homens em situações determinadas. Ao passar do sentido para os invariantes formaís Foucault perdeu,
juntamente com os estruturalistas, aquilo que a noção de estrutura teria permitido alcançar. (N. do T.)
' Seria interessanteanalisar o que teria tornado possível filmes como "Um Hdmem Chamado Cavalo" e "O
Pequeno Grande Homem". (N. do T.)
10 Merleau-Ponty se refere tanto às críticas dos etnólogos às informações de sacerdotes, empenhados na ta-
refa"evangelizadora", isto é, colonialista, quanto às confissõesde alguns etnólogos, movidos pela má cons
ciência do colonizador frente aos colonizados. (N. do T.)
" Eis por que Lévi-Strauss considerou dispensávelexplicar a dediçatória de La PenséeSauvage. Para uma
avaliação rigorosa da contribuição de Merleau-Ponty para aquela obra, confira os dois primeiros capítulos
do referido livro - "A lógica do concreto" e "A lógica das classifica$es totêmicas" -, especialmente o uso
da figura do Bricoleur. (N. do T.)
DE MAUSSA CLAUDE LÉVI-STRAUSS 201

nha, mesmode longe,poderecortarnumaverdadeirapercepçãoas correlações da


análisemaisobjetiva.
Seja,por exemplo,conheceras estruturasdo mito. Sabe-secomo as tentati-
vas da mitologia geral foram decepcionantes. Talvez o tivessemsido menosse
houvéssemos aprendidoa escutaro mito como seescutaa narrativade um infor-
manteno local, isto é, o tom, a feição,o ritrno, as recorrências,tanto quantoo
conteúdomanifesto.Querercompreender o mito como uma proposição,pelo que
diz, ê o mesmoque aplicar nossagramâticae nossovoçabulárioa uma língua
estrangeira.Ele deveserinteiramentedecriptadosemquepossamossequerpostu-
lar, como fazernos decriptadores,que o ódigo.a serteencontradotenhaa mesma
estruturado nosso.Abandonandoaquilo que o mito nos diz logo de início e que
nos desviariado sentidoverdadeiro,estudemossua articulaçãOinterna,tomemos
os epiúdios somenteenquantotêm,para falar como Saussure, um valor diacítico
e enquantoencenamuma certarelaçãoou uúa certaoposiçãorecorrente.Ver-se-
â - seja dito para ilustrar o métodoe não a título de teoria - que no mito de
Éaipo a dificuldadepara caminharcorretamenteaparecetrês vezes,o assassinato
de uma criatura ctoniana,duas vezes.Dois outros sistemasde oposiçãoviriam
confirmaraquele.Ter-se-iaa surpresade reencontraÍoutrascomparáveisna mito-
logia norte-americana. E chegar-se-ia,graçasa recortesque não podemosrepÍo-
duzir aqui, à hipotesede queo mito de ÉAipoexprimeem suaestruturao conflito
entrea crençana autoctoniado homeme a superestimação dasrelações deparen-
tesco.Destepontode vista as variantespodemserordenadas, engendradas umas
pelasoutras numa transformaçãoregulada,vendonelas instrumentoslógicos,
modosde mediaçãopara arbitrar uma contradiçãofundamental. Pusemo-nos à
escutado mito e chegamos a um diagramalógico- poder-se-ia atêmesmodizer,
ontológico:um certomito da costacanadense do Pacíficosupõequeo seraparece
parao indígenacomonegaçãodo não-ser.EntreessasÍórmulasabstratase o mé-
todo quaseetnológicodo iníciohá em comuma presença da estruturacomoguia:
no começo,sentidaem suasrecorrências compulsivas, no final, apreendida em
suaformaexata.
Aqui, a antropologiaentraem contatocom a psicologia.A versãofreudiana
do mito de Édiposurgecomoum casoparticularde suaversãoestrutural.A rela-
ção do homemcom a terranão estápresenteagoÍa,maspara Freuda criseedi-
piana consistena dualidadedos genitores,no paradoxode ordemhumanado
parentesco. A hermenêutica freudiana,naquiloem queé menoscontestável, tam-
bémé o deciframento deumalinguagemoníricae reticente
- a denossaconduta.
A neuroseé um mito individual.E tantoela comoo mito seesclarecem quandose
vê nelesumasériedeestratificações ou folhelos,poder-se-iadizer:um pensamento
emespiralquetentasempremascararoutravezsuacontradiçãofundamental.
Contudo,a antropologiadâ umaprofundidade novaàs contribuit'esda psi-
cologiae da psicanálise, instalando-asnuma dimensãoquelhesê pr6pria:Freud
ou o psicólogocontemporâneo não sãoobservadores pertencem
absolutos, à his-
ória do pensamento ocidental.Não sedeve,pois,acreditarqueos complexos, so-
nhosou neuroses dosocidentaisforneçamàs clarasa verdadedo mito, da magia
202 MERLEAU-PONTY

ou da feitiçaria. Segundoo método da dupla crítica, peculiar à etnologia, trata-se


também de ver a psicanálisecomo mito e o psicanalistacomo feiticeiro ou xamã.
Nossas investiga$es psicossomáticaspermitem-noscompreendera cura xama-
nÍstica, ou, por exemplo,como o xamã auxilia um parto difícil. Mas o xamã tam-
bém nos permitecompreenderque a psicanáliseé a nossafeitiçaria.12 Mesmo em
suas formas mais canônicas e respeitosas,
a psicariâlisesó se reúne à verdadede
uma vida através da relação entre duas vidas, na atmosfera solene da transfe-
rência, que (se existir) não é um puro método objetivo. Com maior razão, ao se
transformar numa instituição, ao'aplicaqse mesmo aos sujeitosditos "normais",
cessacompletamentede ser uma concepçãoque se possajustificar ou discutir por
casos,não cura mais, persuade,modela os sujeitos conforme sua concepçãodo
homem, tem seus convertidos e, talvez, seusrefratários, não pode mais ter seus
convictos. Para além do verdadeiro e do falso. é um mito. e o freudismo. assim

l'z Cf. Lèvi-Strauss,Antropologia Estnttural, ed. Tempo Brasileiro,capitulos


"O feiticeiro e sua magia" e
"A eficácia simbólica". "Neste sentido,a cura xamanísticase situa a meio caminho entre nossamedicina
orgânicae terapêuticaspsicológicas,como a psicanálise.Sua originalidadeprovémde que ela aplica ã'uma
perturbação orgânicaum métodobempróximodessas últimas.Como isto é possível? Uma comparação mais
particularizadaentre xamanismo e psicanálise(e que não comporta, em nossospensamentos,nenhuma
descortesiapara com esta) permitirá precisaresteponto. Em ambosos casos,proSe-se conduzir à cons-
ciência conflitos e resistênciasaté entãoconservadosinconscientes,quer em razãode seureÇalcamento por
outras forçaspsicológicas,queÍ - no casodo parto - por causade suanaturezaprópria,que não é psíquica
mas orgânica,ou até simplesmente mecânica.Em ambosos casos,também,os conflitose as resistências se
dissolvem,nào por causado conhècimento,real ou suposto,que a doenteadquiredelesprogressivamente,
mas porqueesteconhecimentotoma possíveluma experiênciaespecífica,no cursoda qual os conflitos serea-
lizam numaordeme num plano quepermitemseulivre desenvolvimento e conduzemao seudesenlace. Esta
experiênciavivida recebena psicanáliseo nomede ab-reação.Sabe-seque ela tem por condiçãoa intervenção
não provocadado analista,que surgenos conflitos do doente,pelo duplo mecanismoda transferência,como
um protagonistade carnee osso,e face ao qual esteúltimo poderestabelecer e explicitar uma situaçãoinicial
conservadainformulada.
Todosessescaracteres se encontramna cura xamanística. Aí também,üata-sede suscitaruma experiência,
e, na medidaem que estaexperiênciaseorganiza,mecanismossituadosfora do controledo sujeitoseajustam
espontaneamente, para chegara um funcionamentoordenado.O xamã tem o mesmoduplo papelqueo psica-
nalista - estabelece uma relaçãoimediatacom a consciência(e mediatacom o inconsciente)do doente.É
o papel da encantaçãopropriamentedita. Mas o xamã não profere somentea encantação:ele é seu herói;
visto que é ele quem penetranos órgãos ameaçadosà frente do batalhãosobrenaturaldos espíritos,e quem
liberta a alma cativa. Nestesentido,ele se encarna,como o psicanalista,no objeto da transferência,para se
tornar, graçasàs representa$esinduzidasno espíritodo doente,o protagonistareal do confìito queesteexpe-
rimenta a meio -caminhoentre o mundo orgânico e o mundo psíquico.O doenteatingido de neuroseliquida
um mito individual, opondo-sea um psicanalistareal; a parturienteindígenasuperauma desordemorgânica
verdadeira,identificando-secom um xamã miticamentetransposto.
O paralelismonão exclui,pois, diferenças.Não seficará admirado,seseprestaratençãoao caráterpsíquico,
num casoe.orgânico,no outro, da perturbaçãoque se trata de curar. De fato, a cura xamanísticapareceser
um equivalenteexato da cura psicanalítica,mas com uma inversãode todos os termos.Ambas visam a pro-
vocar uma experiência;e ambaschegama isto, reconstituindoum mito que o doentedeveviver, ou reviver.
Mas, num caso,é um mito individual que o doenteconstróicom a ajudade elementostiradosde seupassado;
no outro, é um mito social.que o doentedo exterior,e que não correqpondea um antìgoestadopessoal.Para
prepàrara ab-reação,que sé torna entãouma "ad-reação",o psicanã[staescuta,ao passoque o xamã fala.
Melhor ainda: quando as transferênciasse organizam,o doente faz falar o psicanalista,emprestandoJhe
supostossentimentose inten$es; ao contrário, na encantação,o xamã lala por sua doente.Ele a interrogae
põe em sua boca réplicasque correspondemà interpretaçãode seuestado,do qual ela devesecompenetrar".
(N. do T.)
DE MAUSSA CLAUDE LÉVI-STRAUSS 203

degradado, não ê mais uma interpretação do mito de Édipo, mas uma de suas
variantes.13
Mais profundamente:para uma antropologia,não se trata de dar arazão do
primitivo ou de lhe dar razão contra nós, e sim de instalar-se num terreno onde
sejamosouns e outros, inteligíveis,sem redução nem transposiçãotemerária.Este
espaço comum emergequando se vê na função simbólica a fonte de toda razão e
de toda irrazáo, porque o número e a riqueza das significações de que o homem
dispõe sempre excedem o círculo de objetos definidos que mereçam o nome de
significados,porque a função simbólica devesempreestarem avanço com relação
ao seu objeto e só encontra o real adiantando-o no imaginário. A tarcfa é, pois,
alargar nossa razão para torná-la capaz de compreender aquilo que em nós e nos
outros precedee excedearazão.I4

'r Na famosacomunicaçãoao Congresso de Roma,JacquesLacanacusaos psicanalistas por teremdeixa-


do de questionaro sentidoe os limites da teoria e da prática psicanalítica,acomodando-secom regaliasinsti-
tucionais que privilegiam o despotismoe o autoritarismo,visto que o psicanalistaparececomprazer-secom
o papelque elaslhe conferem."Concebe-sea formaçãoanalíticacomo aquelafornecidapor uma auto-escola
que, não contentede pretendero privilégio singularde fornecercartasde motorista(em fratcès:permis de
conduire, permissãopara dirigir), ainda se imaginasseem posição de controlar a indústria automobilís-
tica... Método da verdadee da desmistificaçãodas camuflagenssubjetivas,apsicanálise manifestariaa
ambiçãodesmedidade aplicar seusprincípiosà sua própria corporação,isto é, à concepçãodos psicanalistas
a respeitode seupapeljunto ao paciente,de seulugar na sociedadedos espíritos,de suasrelaçõescom seus
parese de sua missãode ensino?"(J. Lacan,ÉcritsI, ed. du Seuil,p. I 15-116).E Lacan conclui:"Não se
trata de uma 'ambiçãodesmedida',mas de uma necessidade para queo psicanalistanão caia naquilo quepre-
tendiadesmistificar".
Mais recentemente, Guatari e Deleuzeno LAntïOedípe, recolocama questãomerleaupontyana da psicaná-
lise como variantedo mito de Édipo, mas de uma forma mais radical: o próprio conceitode Édipo estariaa
serviçode uma psicanáliseinstitucional.O livro procura mostrar que Édipo "é uma idéia de pai", e mais,de
um pai que é "um paranóicoadulto". Usandoa análisede Lévi-Strauss,segundoa qual o incestoé o centro
do mito de referência,incestoque culpabilizao herói,mas onde a culpa "pareceexistir apenasno espíritodo
pai, que desejaa morte do filho e procura meiospara provocâ-la",ao fim e ao caboé o pai que sesenteculpa-
do por querer mâtar e será,finalmente,morto, A psicanálisenão apenascai numa regressãoinfinita para
explicar que o pai tambémfoi filho de um outro pai, mas,em termospráticos,políticose ideológicos,torna-se
o sustentâculoda consciênciade culpa que invade pais e hlhos e da qual o psicanalista,miraculosamente,
poderia livráìos. Ocupandoo lugar do Pai de tociosos Pais, o psicanalistaoutorga aos filhos-pacientesa
possibilidadeda liberdade.O primado do pai faz da psicanálisea variante mistificadorade uma sociedade
repressivae culposa.Não haveria,portanto,nadasurpreendente em sua acomodaçãoinstitucional.(N. do T.)
ta Em La Sfilcture du Comportemezt,o adventoda
"ordem humana" ê o adventoda funçàosimbólica.A
"ordem Íisica" caracteriza-se como estruturade atualídade:o sistemafisico é constituídopor uma totalidade
de forças em equilíbrioinstávelque pode ser rompido cadavez que forças exterioresmais poderosasagirem
sobreele. Há uma transformaçãoqualitativada estruturafisica, mas essatransformaçãoestáreduzidaà rea-
ção aiual que a estruturaproduz frentea açõesexterioresatuais.A "ordem vital" ou biológicacaracteriza-se
pela capacidadede interaçãoentreo organismoe o meio num processode adaptação.Esta tambémsepassa
na dimensãoda atualidade,emboraimpliquenuma instrumentalização de certoselementos,do ambiente,que
se tornam meiosvirtuais para alcançarum certo alvo. Contudo, a virtualidadedo instrumentodependede
duas condi$es que a restringemà atualidade:em primeiro lugar, para que um elementodo ambiente(por
exemplo,um galho de árvore) poósaconverter-seem meio para um fim (ser uma bastãopara alcançaruma
banana),é precisoque entreele e o alvo haja proximidadeespacial,isto é, ambosprecisamser vistosjuÌttos
no campoperceptivo;em segundolugar, assimque o alvo é atingido,o elementoperdesua funçãode instru-
mento e volta a ser um mero objeto natural entre os outros. A "ordem vital" ou biológica caracteriza-se,
ainda,pelaunilateralidade de ação:o organismoé que seadaptae setransforma,não o meio- tantoassim
que, em condiSes desfavoráveispara a sobrevivência,o organismoê capaz de reagir internamentepara se
adaptara elas,semtentarqualquertransformaçãodas condi$es ambientais.
O tempo, a história, a negaçãoda naturezapelo trabalho, a manutençãodo instrumentoe sua reprodução
204 MERLEAU-PONTY

Este esforçovem reunir-seao das outras ciências"semiológicas"e, em geral,


ao das demais ciências.Niels Bohr escrevia:"As diferençastradicionais (entre as
culturas humanas)(. . .), sob vârios aspectos,assemelham-se às maneirasdiferen-
tes e equivalentes em que a experiência Íisica pode ser descrita". Cada categoria
tradicional invoca hoje uma complementar,isto é, incompaúvel e inseparâvel,e
nessascondiçõesdiÍiceis procuramos aquilo que faz a membura do mundo.l 6 O
tempo lingriístico não é mais a série de simultaneidades familiar ao pensamento
clássicoe na qual ainda pensavaSaussure,quando isolava claramentea perspec-
tiva do simultâneo e a do sucessivo:como no tempo legendárioou mítico, com
Troubestzkoy,a sincronia engrenana sucessãoe na diacronia. Na medidaem que
a função simbólica estâ avançada frente ao dado, inevitavelmenteo todo da
ordem da cultura que ela caffe1a tende a embaralhar-s€.A antíteseentre a natu-
Íeza e a cultura torna-semenosnítida. A antropologia se volta para um conjunto
importante de fatos de cultura que escapamà proibição do incesto.A endogamia
hindu, a prítica iraniana, egípcia ou árabe do casamentoconsanguíneoou colate-
ral provam que algumasvezesa cultura compõe com a natureza.Ora. trata-se

para além das cohdi$es imediatasde uso, ú podemsurgir na "ordem simbólica" ou "ordem humana".Esta
se caracterizapor uma relaçãocom o possívele com o porvir. Nela emergea dialéticapropriamentedita, pois
a açãoê mais do que interaçãocom o meio ou adaptaçãoa ele: é uma dupla transformaçãoque incidesobre
a nat:uÍezae sobreo agente,que se negamreciprocamente.A açãonegadorada naturezaproduz os objetos
de uso (vestuário,móveis,pomares)e os objetosculturais(linguagem,livro, música),constituindoo meio hu-
mano propriamentedito. Somentecom a emergênciada funçãosimbólicae, portanto,da relaçãocom o possí-
v el, comoau se nte ,po de mem er gir odes ejo, ot r abalhoealin g u a g e m . " S e m d ú v i d a , o v e s t u á r i o , a c a s a
vem para nos protegerdo frio, a linguagemajuda o trabalho coletivo e a análisedo'úlido inorgânico'.Mas
o ato de se vestir torna-seo ato de enfeitee também o do pudor e revela uma nova atitude para conSigo
mesmoe parâcom o outro.Somenteos homensvêemque estãonus.Na casaqueconstróipara si, o homem
projeta e realiza seusvalorespreferidos.O ato da palavra exprime,enÍìm,que deixa de aderir imediatamente
ao meio, eleva-oà condiçãode espetáculo,e apossa-sedele mentalmentepelo conhecimentopropriamente
dito. (. . .) O quedefineo homemnão é a capacidade paracriaruma segundanatureza - econômica, social,
cultural - para além da naturezabiológica,mas antes,a capacidadepara ultrapassaras estruturascriadas
e criar outras.(. . . ) O sentidodo trabalho está,pois, no reconhecimento,para além do mundo atual,de um
mundo visível para cada Eu sob uma pluralidadede aspectos,a apropriaçõode um espaçoe de um tempo
indefinidos,e mostraríamosfacilmenteque a significaçãoda linguagem,do suicídioe do ato revolucionário
tambémé esta.Os atosda dialéticahumanarevelama capacidade para orientar-se com relaçãoao possível,
ao mediato,e não com relaçãoa um meio limitado. E a dialética humanaé ambígua:manifesta-seinicial-
menteem estruturassociaise culturais que faz aparecere nas quais se aprisiona.Mas seusobjetosde uso e
seusobjetosculturaisnão seriamo que são se a atividadeque osfaz aparecernão tivessecoma sentidonegá-
los e ultrapassó-los. " (Merleau-Ponty,Za Structuredu Comportement,pp. 188/I90, ed. P.U.F.).Eis por que
a descobertada função simbólicanuma antropologíaestruturalnão significa,para Merleau-Pontyo a recusa
da hisória, mas, pelo contrário, leva inevitavelmenteà posiçãode uma história estrutural,como será dito
logo abaixo,(N. do T.)
1 6 Em francês: membrure.Em português:membrurae membura.Em francêso mesmovocábulorecobreo
sentidodos dois portugueses.Membrura:a qualidadeou constituiçãodo conjunto de membrosde uma pes-
soa.Membura:o conjuntodos membrosde um navio,cadauma dasvigastransversais presasà quilha,que
sustentamo flanco e sobreas quais estãofixadosos barrotesda ponte.Cada uma das vigas que constituem
os exterioreslateraisde umajangada.Preferimosusar "membura" em vez de "membrura" porqueo texto su-
geremenosos membrosou partesque constituemo mundo,e mais as categoriascomplementares e, portanto,
incompatíveise inseparáveisque,como as vigastransversaise extremasdo navio, sustentamo todo. Semdú-
vida, "membrura"tambêmseriacorreto,pois,assimcomoem "O filósofoe suasombra"Merleau-Ponty usa
um vocábuloanatômico(lacis) pan descrevera coisa fisica sensível,atribuindolhe "cârne", tambémaqui, o
vocábuloem sua acepçãoanatômicadaria ao mundo a espessura de um organismo.(N. do T.)
DE MAUSSA CLAUDE LÉVI-STRAUSS 205

justamentede formasde culturaquepossibilitaram o sabercientíflrco


e uma vida
acumulativae progressiva. Nessasformas,se não as mais belas,pelo menos,as
maiseficazes, a culturaseriaantesuma transformação da natureza,uma sériede
mediaçõesonde a estruturanunca emergede golpecomo puro universal.Que
nomedar a estemeioondeuma forma,prenhede contingência, abresubitamente
um ciclo de porvir e o comandacom a autoridadedo instituído?Quenome,senão
o de história?Semdúvida,não a históriaque pretenderia comportodo o campo
humanocom acontecimentos situadose datadosno temposeriale com decisões
instantâneas, mas a históriaque bem sabeque o mito, o tempolegendârioobce-
cam sempre,soboutrasformas,os empreendimentos humanosqueesquadrinham
além ou aquémdos acontecimentos parcelados,história que se chama,justa-
mente,históriaestrutural.
Com a noçãode estruturaestabelece-se hojeum regimede pensamento cuja
fortunarespondea uma cafenciahumanaem todosos domínios.A estrutura,pre-
sentefora denósnossistemas naturaise sociais,e emnóscomofunçãosimbólica,
indica para o filósofoum caminhofora da correlaçãosujeito-objeto quedomina
a filosofia de Descartesa Hegel.Em particular,permitecompreender como esta-
mos numa espéciede circuito com o mundo sócio-histórico, o homem sendo
excêntricoa si mesmoe o social só encontrandoseucentronele.Masjá é muita
filosofia e a antropologianão tem que arcar com tal peso.O quenela interessaao
filósofo é precisamente o tomar o homemcomo é, em suasituaçãoefetivade vida
e conhecimento.Não interessaao Íïlósofo que quer explicar ou construir o
mundo, mas àqueleque buscaaprofundarnossainserçãono ser. Portanto,sua
recomendação não comprometea antropologia,pois funda-senaquiloquehá de
maisconcretoem seumétodo.

Os trabalhos atuais de Claude Lévi-Strausse os que prepara a seguirproce-


dem, evidentemente, da mesmainspiração,porém simultaneamentea investigação
se renova e ricocheteia sobre suas próprias aquisições.Fazendo trabalho de
campo na ârea melanésia,pretenderecolher uma documentaçãoque, na teoria,
permitiria a passagemàs estruturascomplexasdo parentesco,isto é, àquelasde
onde provêm em particular nossosistemamatrimonial. Ora, desdejá, isto lhe apa-
rece como não sendo uma simples extensão dos trabalhos precedentese, ao
contrâ,rio,lhes conferirá um alcance maior. Os sistemasmodernosde parentesco
- que deixam a determinação do cônjuge a cargo do condicionamento demográ-
Íïco, econômico ou psicológico - deveriam ser definidos, nas perspectivasini-
ciais, como variantes "mais complexas" da troca. Mas a plena compreensãoda
troca complexa não deixa intato o sentido do ienômenocentral da troca, exige e
possibilita um aprofundamentodecisivo deste último. Claude Lévi-Straussnão
pretendeassimilar dedutivae dogmaticamenteos sistemasqomplexosaos simples.
Ao contrário, pensaque frente a eles a abordagemhistórica é indispensâvel,atra-
vés da Idade Média, das instituiçõesindo-européiase semíticas,e que a anâlise
206 MERLEAU-PONTY

histórica imporá a distinção entre uma cultura que proíbe absolutamenteo inces-
to, sendo a negação simples,direta ou imediata da natureza, e uma cultura -
aquela que está na origem dos sistemasde parentescocontemporâneos- que
joga ardilosamentecom a naturezae algumasvezesrodeia a proibição do incesto.
Precisamenteeste tipo de cultura mostrou-secapaz de enfrentar um "corpo-a-
corpo com a natuteza", criar a ciência, a dominação técnica do homem e aquilo
que se denominahistória acumulativa.Assim, do ponto de vista dos modernossis-
temas de parentesco e das sociedadeshistóricas, a troca como negação direta ou
imediata danatureza aparececomo caso limite de uma relaçãomais geral da alte-
ridade. Somente aqui está definitivamente concluído o sentido último das primei-
ras pesquisasde Lévi-Strauss,a naturezaprofunda da troca e da função simbó-
lica. No nível das estruturas elementares,as leis da troca, que envolvem
completamenteas condutas,são suscetíveisde um estudoestáticoe o homem, sem
mesrnoformulá-las numa teoria indígena,obedece-asquasecomo o átomo obser-
va a lei de distribuição que o define.No outro extremodo campo da antropologia,
em certos sistemascomplexos,as estruturasexplodeme, no que concerneà deter-
minação do cônjuge, abrem-se para motivações "hisóricas". Aqui, a troca, a
iunção simbólica, a sociedadenão funcionam mais como uma segundanatuÍeza
tão imperiosa quanto a outra e que a apaga.Cada um é convidado a definir seu
próprio sistemade troca; por essavia, as fronteiras entre as culturas.seesfumam,
e, pela primeira vez, sem dúvida, uma civilização mundial está na ordem do dia.
A relação dessahumanidadecomplexa com a naturezae com a vida não é sim-
ples, nem nítida: a psicologia animal e a etnologia desvendamna animalidade,
não, certamente,a origem da humanidade,mas esboços,prefiguraçõesparciais e
como que caricaturasantecipadas.O homem e a sociedadenão estãoexatamente
fora da natuÍeza e do biológico - distinguem-sedeles mais por neunirem as
"apostaso' da natureza, arriscando-as todas juntas. Essa reviravolta significa
imensosganhos,possibilidadesinteiramentenovas, como, ademais,perdasque é
preciso saber medir, riscos que começamosa constatar.A troca, a função simbó-
lica perdem sua rigidez, mas também sua beleza hierática; a razão e o método
substituem a mitologia e o ritual, e inauguram um uso profano da vida, acompa-
nhado de pequenosmitos compensatóriossem profundidade.Levando tudo isso
em conta, a antropologia social caminha para um balanço do espírito humano e
para urna visão do que ele é e pode ser. . .
Assim, a investigação nutre-se com fatos que inicialmente lhe pareciam
estranhos; progredindo, adquire novas dimensões,reinterpreta seus primeiros
resultados com novas pesquisassuscitadaspor elespróprios. A extensãodo domí-
nio coberto e a compreensãoprecisados fatos crescemsimultaneamente. Por estes
sinais reconhece-seuma grande tentativa intelectual.

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