You are on page 1of 17

Teatro

Entrevista
com o devorador
de ratos

Rogério Viana

Curitiba – Paraná – Janeiro de 2011


(todos os direitos reservados)

1
Personagens

Lourenço Machado –60 anos, um escritor tardio que uma época foi médico.

Dionelia Mutarelli – 25 anos, jornalista e estudante de pós graduação que é ou foi personagem.

©Rogério Viana
Rua Padre Anchieta, 2690 – apto. 1301
Bigorrilho – Curitiba – Paraná
CEP 80730 – 000

Fones 41 8803 7626 – 3078 8647

2
Entrevista com o devorador de ratos assunto é esse, pode me adiantar?

Ato I Lourenço – Vai perder a graça se eu lhe


contar...
Cenário sugerido: Uma sala com um sofá, duas
poltronas, um abajur e uma mesinha de centro. Dionelia – Quer manter segredo? Mas como é
É sugestão, sugestão, entenderam? que minha fonte tinha essa informação?

1 – O caderninho de anotações Lourenço – Parece-me ser óbvia essa questão.

(Lourenço está sentado e tem um livro nas Dionelia – Qual?


mãos. Entra Dionelia)
Lourenço – De um escritor estar trabalhando
Lourenço – Finalmente nos encontramos, não num novo livro. Ainda mais depois de eu não
é? Foi difícil chegar aqui? ter publicado nada nos últimos quinze anos, não
é? Quanto ao assunto pouco comum, creio que
Dionelia – Então... Eu pensei que o senhor seja imaginação desse seu amigo. Não trato,
estivesse se escondendo de mim. Para ser nunca, nos meus livros, de questões pouco
franca: nunca imaginei que o senhor fosse me comuns. Trato tudo de questões bem comuns.
atender em sua casa, nem em lugar algum.
Dionelia – Talvez ele tenha intuído que o
Lourenço – Não que eu seja avesso a senhor...
entrevistas. O que não gosto é de ter que me
expor... E tem certas respostas que não devem Lourenço – Pode me tratar de você mesmo.
ser dadas. Você sabe.
Dionelia – Ah! Está bem... Talvez ele tenha
Dionelia – Se preferir pode pular certas imaginado que você fosse trabalhar com um
perguntas, está bem? tema incomum no seu retorno às atividades
literárias...
Lourenço – Posso pedir que as reformule?
Lourenço – Eu nunca abandonei a literatura. Só
Dionelia – Se não tiver entendido bem, pode. não estava colocando nada sobre o papel. Mas
Mas eu disse que pode pedir para que eu não quem escreve não faz isso apenas quando pega
considere a pergunta feita. Assim, a resposta uma folha em branco e coloca nela uma
ficará perdida no ar. primeira letra.

Lourenço – Por favor, sente-se. Dionelia – Sim, eu sei, sei sim... Mas... Bem,
você pode, pelo menos, dar uma dica sobre o
Dionelia – Obrigada. tema do seu trabalho? Já está adiantado? Tem
previsão de quando vai terminar?
Lourenço – Antes de começar, quer uma água,
chá, refrigerante, café...? Lourenço – Eu sempre escrevo meus livros
muito rapidamente. O último levei apenas vinte
Dionelia – Agora não. Obrigada. noites, num dezembro, um verão inesquecível e
maravilhoso.
Lourenço – Então...
Dionelia – Ah, o senhor só escreve de noite?
Dionelia – Um amigo meu comentou que o
senhor está escrevendo um novo livro e que ele Lourenço – Não, claro que não. Apenas para
vai tratar de um assunto pouco comum. Que situar. Prefiro indicar o meu tempo por noite e

3
não por dias. enorme gravador e uma máquina fotográfica
bem pequena. Ele ligou o gravador e ficou me
Dionelia – É mesmo? Curioso isso. Tem uma fotografando... e o gravador ficou ligado o
motivação especial para fazer essa troca tempo todo. Deve ter feito umas 72 fotografias
referencial da passagem do tempo? minhas sentado nesta mesma poltrona. Usou
uns dois filmes, creio. Mas fez fotos de tudo
Lourenço – Não. Talvez seja frescura minha. que é jeito. Ficou atrás de mim, de um lado, de
outro. Subiu no sofá sem um mínimo cuidado.
Dionelia – Frescura? Ah, sim... um tipo de Deitou no tapete. Subiu na mesinha, deslocou
esquisitice, é isso? várias vezes o abajur de lugar. Acendeu-o,
depois, apagou-o. Abriu a janela, puxou a
Lourenço – Não, nem tanto. Podia quantificar a cortina. Fechou a janela depois a cortina.
passagem do tempo por minutos. Ou horas. Ou Apagou a luz. Acendeu-a novamente. E foi só
semanas. Escrevi o último livro em vinte noites, clicando, clicando, clicando. Não disse uma só
sim. Talvez em umas três semanas. Mas você se palavra. E o gravador continuava ligado e ele
esqueceu que, naquela época, eu era médico e mudo. Porém, atento no que fazia. Como se
trabalhava muito durante o dia. Somente à noite estivesse tomado pelo espírito do grande Cartier
é que eu tirava meu jaleco, apoiava meu Bresson...
estetoscópio sobre a mesa e assumia esse lado
escritor. Dionelia – Sim... sei quem é...

Dionelia – Ah, sim... sei que o senhor é médico. Lourenço – Depois de fazer as fotos. Ele
Mas o senhor abandonou a medicina e a desligou o gravador. Abriu sua bolsa e tirou
substituiu em sua vida pela literatura, quando? todos os meus livros e pediu que eu os
autografasse. Perguntei o nome dele. E ele me
Lourenço – Nunca abandonei a medicina. Nem disse: Lourenço.
ela a mim. Creio que sempre fui um médico,
desde quando eu era bem pequeno, lá nos Dionelia – Que coincidência!
pampas...
Lourenço – Sim... o nome dele era Lourenço.
Dionelia – Desde quando se mudou para São Ele ficou observando minha surpresa. Olha... eu
Paulo? ria enquanto autografava os três livros. E ele só
observava. Eu lhe entreguei os livros
Lourenço – Quando publiquei o segundo livro. autografados. Ele pegou o gravador. Enfiou
Depois vieram mais quatro. O último foi o de tudo na bolsa meio hippie que trazia.
quinze anos atrás. Agradeceu-me com um inesperado abraço. E se
foi... Não disse uma só palavra, nem fez uma
Estou percebendo que você não anota nada... perguntinha sequer...

Dionelia – Prefiro só pontuar algumas coisas Dionelia – Assim...


que julgar necessária. Gosto de ouvir
atentamente. Minha memória fica bem alerta Lourenço – Sim.
sem me perder em detalhes que a caneta possa
me roubar enquanto anoto... Dionelia – E qual foi o resultado disso tudo?
Ele publicou alguma coisa sobre o senhor...
Lourenço – Certa vez apareceu um repórter, digo, sobre você?
assim que eu cheguei a São Paulo e disse que
precisava fazer uma entrevista sobre meu Lourenço – Surpreendente...
terceiro livro. O que me trouxe para São
Paulo... Então marcamos e ele veio com um Dionelia – O quê?

4
Lourenço – Foi a mais surpreendente matéria Dionelia – Acha que eu faria isso?
que publicaram sobre mim em toda a minha
vida. Ele publicou numa revista literária uma Lourenço – Quem sabe tenha ficado retraída e
enorme foto de minha cabeça, por trás e uma preferiu não trazer os livros para eu autografar...
sequência, tipo cineminha com umas quarenta
fotos do meu rosto, em vários ângulos. E o texto Dionelia – Eu não faria isso... Não mesmo. Vim
dele era magistral. Foi a mais surpreendente aqui com outra finalidade. Não fica bem fazer
matéria sobre mim. Um passeio panorâmico papel de tiete, de fã deslumbrada, concorda?
sobre minha obra. E... o mais surpreendente, Até porque não sou muito chegada no que você
sobre mim. Ele esmiuçou a mim, não como escreveu em seus seis livros anteriores...
escritor, mas como pessoa, como gente... e até
como o médico que fui durante quase 30 anos Lourenço – É mesmo? Você me diz isso, assim?
de carreira. Se não se interessa pelo que escrevi, veio aqui
com que finalidade? Quer descobrir qual será o
Dionelia – Nossa! Fiquei curiosa... Pode me tema do próximo livro? É apenas isso?
mostrar a tal matéria na revista?
Afinal, quem é você mesmo?
Lourenço – No próximo encontro, pode ser?
2 – A menina do sutiã lilás
Dionelia – No próximo encontro? Como assim?
(Lourenço entrega o livro para Dionelia que
Lourenço – Eu quero que você venha aqui outra senta na poltrona. Ele fica com o caderninho de
vez para completar seu trabalho de pesquisa. anotações na mão)

Dionelia – Mas... Dionelia – Estamos aqui. Acredito que você


não vai mais poder dizer que eu não queria
Lourenço – Ou você vai me surpreender como conceder-lhe uma entrevista. Estamos aqui, não
aquele Lourenço? Não vai precisar vir aqui é?
outra vez, é isso?
Lourenço – Ainda bem... mas eu não insisti
Dionelia – Você me deixou sem saber o que tanto. Apenas enviei-lhe duas mensagens.
dizer... Depois outras duas. Estamos aqui. Nunca
imaginei que você não queria ser entrevistada
Lourenço – Não diga nada. Pense na por mim. Sabe, aquele seu jogo inicial parecia
possibilidade de retornar aqui outra vez, um jogo de gato e rato. Você se escondendo e
combinado? eu procurando, procurando...

Dionelia – Mas... Dionelia – Então... estamos... e o que você...

Lourenço – Talvez se sinta com vontade de Lourenço – Como havia colocado no último
retornar. Ou não? Talvez precise voltar. contato, não vou querer entrar em questões
muito íntimas suas, mas, acredite, fiquei curioso
Dionelia – Só porque eu não estou anotando por saber uma coisa...
nada é que você me diz isso? Mas eu não
trouxe, infelizmente, nenhum dos seus livros Dionelia – É mesmo? Mas pode perguntar.
para autógrafos... Tenho o direito de não responder, está bem?

Lourenço – Não tem problema. Traz da outra Lourenço – Mas é uma coisa tão trivial e, ao
vez. mesmo tempo, tão fora de contexto...

5
Dionelia – Mas, por favor, pergunte. Posso Dionelia – Você acha?
não...
Lourenço – A mim me parece...
Lourenço – Você é uma mulher elegante,
sempre bem vestida. É o que mostram suas Dionelia – Bem... nós temos certas atitudes que
fotos que publicam por ai... Você agora está não se afinam muito bem com o que pensamos,
com uma roupa muito bonita e não pude deixar não é? Parece contraditório. Querer queimar
de notar que está usando um sutiã de cor lilás... sutiãs e depois ter que usar sutiãs... Mas o
feminismo evoluiu. Agora, na minha visão,
Dionelia – Você notou? A alça apareceu? posso buscar outras coisas além disso.

Lourenço – Discretamente, sim. Lourenço – Foi porque quis ou por alguma


recomendação médica, estética, sobretudo...
Dionelia – Sim...
Dionelia – Eu sempre invejei as estrelas
Lourenço – Então tenho que perguntar pois platinadas de Hollywood que tinham seios
aguçou minha curiosidade... enormes!

Dionelia – Pode perguntar, já que seu olhar foi Lourenço – Mas todas elas sempre mostravam
invasivo, foi um pouco além do que eu que usavam sutiãs... E você, como feminista,
esperava. tem uma antiga postura de que os sutiãs deviam
ser queimados... Bem... eu nunca entendi isso
Lourenço – Sua calcinha também é lilás? Usa direito, mas já se passaram tantos anos que nem
um conjunto de sutiã e calcinha da mesma cor? me lembro mais o que foi que aquelas
americanas loucas fizeram...
Dionelia – ...E se eu disser que não uso.
Dionelia – Mas eu não tenho um discurso
Lourenço – Conjunto de peças da mesma cor? feminista por influência daquelas mulheres.
Nem quis ter peitos enormes por causa das
Dionelia – Não... eu não uso. Eu não uso outras mulheres americanas.
calcinhas. Só de vez em quando... Na maior
parte do tempo, não uso. Lourenço – Mas isso tudo é muito complexo
para entender...
Lourenço – Mas, então, porque usa sutiã?
Dionelia – Eu quis ter a liberdade de não usar
Dionelia – Antes, não usava. Também não sutiãs e calcinhas... só isso. Claro, você sabe...
usava calcinha antes. Agora, bem... depois que mulher tem que usar calcinha em alguns dias do
implantei silicone... mês. É alguma coisa óbvia, não é?

Lourenço – Mas eles parecem tão naturais... Lourenço – Seria?

Dionelia – Ah, sim, são... mas depois que Dionelia – Sim... mas, passados aqueles dias...
implantei silicone estou sendo obrigada a usar... Sempre senti enorme prazer em não usar nada,
Mas o médico me disse que poderei, daqui uns nada mesmo por baixo. Você nunca teve
meses, abandonar de vez os sutiãs... vontade de não usar cuecas?

Lourenço – Mas ter feito uma cirurgia para Lourenço – E quem disse que eu uso?
implantar silicone não é uma atitude que vai
contra seu discurso feminista? Dionelia – É mesmo?

6
Lourenço – Não disse que uso. Nem que não sobre você, seus escritos, seu comportamento
uso. em público, por onde você anda, com quem
anda, principalmente, tudo isso me parece
Dionelia – Bem, poderia ser uma coincidência indicar que age como uma mulher adiante do
você também não gostar de roupas íntimas o seu tempo...
incomodando... Não é?
Dionelia – Acha mesmo?
Lourenço – Mas acabamos desviando nosso
tema... Lourenço – Estou dizendo. É mesmo o que
acho...
Dionelia – Imaginei que você tivesse vindo só
com o firme propósito de descobrir a cor de Dionelia – Sei quais são as contas que tenho
minha calcinha e do meu sutiã... que pagar...

Lourenço – Não... não seria tão ousado assim. Lourenço – Incomoda o peso de certas atitudes
suas?
Dionelia – Acha que não foi?
Dionelia – Nenhum pouco... O que quero tenho
Lourenço – Fui? que correr atrás... E o que eu quero tem um
custo, financeiro, principalmente. Pois os outros
Dionelia – Pelo menos teve coragem. Admiro custos, não estou nem aí...
homens assim. Que não temem abordar um
tema que possa ser surpreendente para uma Lourenço – Será?
mulher...
Dionelia – Bem... já sabe que minha calcinha
Lourenço – Mas você é uma mulher com algo a não é lilás... O sutiã, sim... é lilás... Pode
mais... você é uma mulher diferente... Eu sinto escrever aí... A menina do sutiã lilás... Dá um
que você poderia inaugurar um tipo de bom título para seu texto, não dá?
comportamento para as mulheres de seu tempo,
quem sabe, perpetuar uma postura para as Lourenço – Daria... Mas não vou abordar nada
futuras gerações... a partir do sutiã... ou da calcinha que deve estar
na sua gaveta...
Dionelia – Como foi a Emma Bovary?
Dionelia – Não?
Lourenço – Mas ela pagou caro pelos seus
desejos e posturas... Não pagou? Lourenço – Não, não mesmo!

Dionelia – Sim, muito caro... Mas explique Dionelia – Não se interessou mesmo por essa
melhor essa questão que vê em mim... curiosidade... ou, como queira, por esse
pequeno detalhe acerca da minha intimidade...
Lourenço – Bem... você poderia desejar ser
exemplo de uma mulher que não dá a mínima Lourenço – Não, não mesmo!
bola para o que os homens pensem sobre você,
sobre as mulheres... Dionelia – A resposta o surpreendeu? Queria
que eu fosse apenas uma máscara e que
Dionelia – Mas não é uma observação muito revelasse, muito constrangida que, sim, eu uso
pontual essa sua... É um olhar muito genérico o conjuntos delicados e rendados de sutiãs e
seu. calcinhas, sempre conjuntos delicados e
rendados de cores delicadas, cores neutras... É o
Lourenço – Eu, nas observações que tenho feito que esperava?

7
Lourenço – Na verdade, não! quando pretende levantar-se, olha para o
banheiro... levanta-se... a descarga não
Dionelia – Não? Por quê? funciona... A privada praticamente ficou
entupida. O cheiro horrível, insuportável. E o
Lourenço – Nem queira saber... todo poderoso à minha frente está sem saber o
que fazer dentro daquele banheiro. Há algum
Dionelia – Bem... posso imaginar. E veja bem... poder em quem está irremediavelmente cagado?
minha imaginação sempre foi meu ponto forte... Há algum mundo importante que eu não possa
anular e me colocar em pé de igualdade em
Lourenço – Acredito que sim, se não fosse relação a ele?
assim como poderia...
Lourenço – Vendo assim, creio que não.
Dionelia – Sabe como eu desconstruo a noção
de autoridade, da suposta autoridade de certas Dionelia – E o todo poderoso, em minha frente,
pessoas? é um homem comum, não tem poder algum. No
seu mundo importante. Vendo assim fica muito
Lourenço – Desconstruir? mais fácil negociar alguma coisa, não é?

Dionelia – Sim, como eu disse... desconstruir... Lourenço – Será que damos valor exagerado a
Como é que eu desconstruo a noção de nossos medos? Ou a certos valores?
autoridade de certas pessoas que se julgam
poderosas? Dionelia – Você tem medo de ficar cagado em
algum lugar que não seja em seu próprio
Lourenço – Sou um curioso profissional... banheiro?
Diga...
Lourenço – Você está querendo ensinar que
Dionelia – Quando vou - e todas às vezes que todos somos iguais em nossas fraquezas e que
fui recebida por alguém importante -, com um nossos medos são comuns?
cargo importante e atrás de uma mesa que o
separa do aparente mundo real para o mundo Dionelia – Você teme ser ridicularizado por
importante que ele pensa dominar, eu uso de algum defeito?
minha imaginação e o vejo nu, de barba por
fazer, suado, fazendo um esforço enorme para Lourenço – Se sou igual a alguém, como
evacuar céu cocozinho de todas as manhãs... temer?

Lourenço – É mesmo? Assim, com esses Dionelia – Você tem medo de que descubram
detalhes? seus pequenos segredos? Que invadam seu
mundo com olhares devassadores?
Dionelia – Não... é pior a cena... Eu deixo a
cena ainda pior. Eu vejo a pessoa toda cheia de Lourenço – Se ele pode, eu também posso?
si, poderosa, no seu mundo importante, aquela Não é assim?
que está ali na minha frente eu a vejo com dor
de barriga, com muita dor de barriga. Dionelia – Desagrada sentir-se menos que os
Desesperada com sua dor de barriga, quase outros? Fica desconfortável quando o olham
sujando suas calças, desesperadamente com com piedade? Ou com um certo ar irônico? Ou
uma incontrolável dor de barriga. Ele, o sujeito um olhar de repulsa ou de ódio? Sentiu-se
importante de seu mundo importante, vai para o olhado com nojo?
primeiro banheiro disponível... e nesse banheiro
não há papel higiênico... e ele está na casa de Lourenço – Enfrentarei qualquer resistência
algum conhecido também importante... e, sem temer nada.

8
Dionelia – Mas você é um merda, sabia? comandos sobre seu comportamento e sei como
você reage a cada estímulo. Skinner serviu para
Lourenço – Sou igual a você. Se sou, você é alguma coisa, meu querido!
igual a mim. Nossos olhares nos igualam.
Lourenço – Sei, sei sim. Sei que isso é mera
Dionelia – Você é um perdedor. fantasia. Não, não sei. Não sei mesmo como
você tem essa capacidade de inventar
Lourenço – O jogo ainda não terminou. dificuldades e me propor saídas milagrosas.
Não vai me pegar mais assim com seus jogos
Dionelia – Você não tem saída. escusos e sem a mínima noção do que seja a
realidade por mim vivida. Ou a sua.
Lourenço – Há um ponto que você não
considerou. Dionelia – Você é um ratinho de laboratório.
Faço de você o que quiser. Skinner ensinou-se
Dionelia – Tudo está previsto para que saia tanto, nem imagina, está sabendo?
daqui com o rabo entre as pernas. Com um
chute na bunda, ganindo... Lourenço – Sabendo?

Lourenço – Mas você nem calcinha usa... Dionelia – Agora você vai se refugiar naquele
canto e vai pedir que eu pare com o que para
Dionelia – Tenho muita auto confiança. você é apenas uma brincadeira. Não é. Falo
muito sério. Não é brincadeira. Estou no
Lourenço – Você está fazendo um papel idiota. comando. Não faça cara de surpreso. Não faça.
E não me venha com esse olhar... Não consigo
Dionelia – Não é assim como você me vê. mais me comover com nenhuma reação sua de
Tenho um outro lado desconhecido, que não se um falso pedido de socorro. Você agora não tem
revela facilmente. mesmo saída. Não tem. Está todo cagado. E eu
tenho o último rolo de papel higiênico que vai
Lourenço – Além do mais, você é mera salvá-lo. Posso, também, abrir o registro de
fantasia. água e você poderá, sob o meu comando, lavar
essa merda toda que virou sua vida. Você
Dionelia – Não espere que eu capitule. Não envolveu-se em tanta merda que a única saída é
espere. mergulhar de cabeça numa grande piscina
desinfetante. Talvez, nem assim...
Lourenço – Fantasias são irreais.
Mas pare de pensar na saída que você sempre
Dionelia – Não especule sobre isso... Não encontrou de maneira fácil e descompromissada
especule. com a realidade. Pare. Não adianta mais agir
assim...
Lourenço – Se pretende estabelecer qualquer
vínculo comigo a partir de seu absurdo gosto Lourenço – Vou dar a descarga.
pelo inusitado, pelo sujo, esqueça. Comigo tem
que ser tudo às claras. Nada de vir com essas Dionelia – Antes, vai limpar-se?
falsas premissas de que somos iguais, que tenho
o mesmo medo que você. Não tenho medo de Lourenço – Vou dar a descarga...
nada. Aprendi. Foi difícil o aprendizado, mas
aprendi e sei como reagir. Dionelia – Não, não faça isso!

Dionelia – Você é um ratinho de laboratório. Lourenço – Vou sim...


Faço com você o que quiser. Tenho todos os

9
Dionelia – Não! últimos quinze anos eu me dediquei a pesquisar.
E chegou a hora de por para fora tudo o que
Lourenço – Tchau, merda! ficou represado em minha imaginação. Tenho
uma confissão a fazer. Talvez seja relevante: há
quinze anos eu não leio mais nenhum tipo de
3 – Por trás daquela máscara ficção. Não é mais minha leitura predileta.

(Lourenço volta a sentar na poltrona. Dionelia Dionelia – Você pesquisa para imaginar? Ou a
fica em pé) imaginação brota espontaneamente? Como é
que se escreve espontaneamente? É com “x”?
Dionelia - Afinal, quem é você mesmo? Você
perguntou mesmo quem sou eu? Lourenço – Eu não pesquiso para ter
inspiração. Eu pesquiso para viver. Para matar
Lourenço – Pensei que passados os primeiros minha sede por novos conhecimentos. Cada
minutos já seria possível você saber um pouco pausa em minha criação tem um motivo.
mais sobre mim. Quinze anos de espera me levaram a escrever o
livro jamais escrito! Pois não tive referências
Dionelia – Não quero saber qual será o tema do literárias para chegar nele.
seu próximo livro. Já disse. Não me interesse
saber isso. Dionelia – Como é que escreve
espontaneamente? Vamos, soletre.
Lourenço - Afinal, quem é você mesmo?
Lourenço – Seu “x” foi mal colocado?
Dionelia – Não entendo o propósito dessa
colocação. Porque insiste em saber sobre mim Dionelia – Não é com “x”, é?
se é você o entrevistado... Eu é que preciso
saber quem é você de verdade. Preciso Lourenço – Está tentando me testar?
descobrir. Ir fundo. Desvendar seu real perfil.
Dionelia – Não seria ingênua testá-lo com uma
Lourenço – Mas se não veio aqui trazer livros só palavra. Você sabe disso. Uma só palavra não
para eu autografar, afinal, quer o quê? O que possibilita que ninguém seja testado. Mas se
quer mesmo, menina? Vamos, diga. Não estou não tem “x” em espontâneo, tem circunflexo em
aqui com tempo disponível para jogar fora. espontaneamente? Tem?

Dionelia – Não me interessa nada sobre o Lourenço – Dá para esquecer essas questões
amontoado de besteiras que você guardou nos meramente gramaticais? Esqueça os acentos, os
seus livros idiotas e nos títulos mais idiotas que pontos, interrogações, reticências... Esqueça,
deu a cada um. Que idiota maior deve ser seu faça um favor! Aqui não é uma aula de língua
editor, não é? portuguesa, por favor!

Lourenço – Não me faça perder tempo, menina. Dionélia – Espontaneamente tenho que aceitar,
Eu havia avisado que estou concluindo meu está bem? Não me senti obrigada a aceitar por
livro que deverá ser lançado em dois meses. sua imposição ou desejo. Vou aceitar e ponto!
Não posso perder tempo com interrupções
absurdas como essa. Lourenço – Melhor assim, melhor assim.

Dionelia – Sua vida sempre foi assim, com Dionelia – Você agora está querendo colocar
altos e baixos? acento no meu nome? Não tem acento agudo
em Dionelia. Não tem. E não quero que acentue
Lourenço – Tenho um prazo para cumprir. Nos meu nome. Fica ridículo por aquilo que se

10
parece uma faca sobre mim. Como uma consciência não tem valor nenhum, pois não
condenação, uma faça pontiaguda incidindo sabe nada sobre nada. Apenas joga com a
sobre minha cabeça. Não quero que acentue intuição. E a intuição não existe. Ela é fruto de
meu nome. uma série de coincidências e não leva nada a
bom termo. Não leva. Quando apela para ouvir
Lourenço – Está bem... foi apenas um erro de sua consciência, ela aparece viciada, disforme,
digitação. Sei que não tem. Digo, que você não inquieta e, sobretudo, veja bem, estou
quer, está bem assim, Dioneia... Perdão... afirmando, sobretudo sua consciência aparece
Dionelia! Perdão... equivoquei-me. irreal. A consciência não é uma capa que
vestimos quando temos necessidade de sair na
Dionelia – Você fica provocando minha chuva. Pode-se pensar que ela vai livrar nossa
paciência, querendo testar meus limites de roupa de pingos da chuva. Mas ela não livra
tolerância, não é? Tolerância leva acento nada. A chuva é forte. Um temporal está se
circunflexo, está bem? Tem acento. Ponto final. aproximando. Além da água que cai em todas as
direções, tem o vento que é muito forte. Ele vai
Lourenço – Eu sei... tenho um corretor rasgar qualquer capa... não há guarda chuva que
ortográfico que é automático aqui, se esqueceu? resista. Seu capuz já voou para longe. Escorre
Ele não perdoa até meus erros de digitação. Não no meio fio uma lama intensa, vermelha.
perdoa. Vermelha da sujeira e do desespero de quem foi
arrastado pelas tsunamis do oriente, pelas
Dionelia – Mesmo assim é bom reforçar essa encostas dos morros que rolaram sem cerimônia
lembrança. Digo, essa regra. Sem acento, pois. para a cerimônia de adeus de tantos inocentes
desprotegidos. A lama domina tudo e sua
Lourenço – Não sei o que deu em minha cabeça consciência não tem proteção eficaz contra a
aceitar conceder uma entrevista. Eu tinha lama, entendeu?
absoluta certeza que ia dar merda esse nosso
encontro. Tinha absoluta certeza. Veja só no que Lourenço – Você não me pega com seus
deu! truques...

Dionelia – Ainda tem tempo de desconsiderar Dionelia – Além da lama, há um forte cheiro.
sua posição inicial. Mas vai me fazer esta Um cheiro insuportável que exala não da sujeira
descortesia de cancelar a entrevista? que agora domina tudo, mas o cheiro, sim, esse
cheiro que vem do fundo de sua alma.
Lourenço – Se você continuar a estimular
pensamentos idiotas e sem sentido, pode ter Lourenço – Já disse. Seus truques não me
certeza que cancelarei a entrevista pegam. Não tente me enredar com eles.
imediatamente. Eu disse: imediatamente.
Dionelia – O cheiro, não é o cheiro do ralo. O
Dionelia – Você não me parece um homem cheiro é da sua alma fétida. Podre.
movido pela coragem. Não me parece mesmo! Inconsequente. Insustentável. Você é um ser que
nunca poderia ter ganhado vida. Não falo da
Lourenço – Ah, como você gosta de me vida que se leva a partir da fecundação,
provocar, não é, menina? Como aprecia levar- desenvolvimento do feto, do nascimento, da
me a questionar isso, aquilo outro, não é? Está amamentação, do crescimento, da infância,
perdendo seu tempo. Domino a situação. Tenho juventude, amadurecimento... Você já nasceu
pleno domínio sobre a situação. podre e pobre de todos os sentimentos e dos
afetos possíveis. Você nasceu apodrecido
Dionelia – Ah, pensa... pensa só... Tem porque nasceu com a alma podre. Como pode
consciência de que tudo está sobre seu ter um corpo são quem tem uma alma podre?
comando, não é? Não comanda nada. Sua Quem pode ter uma vida saudável se veio das

11
profundezas do esgoto do mundo? Nojento, Ato II
fétido, desagradável, repugnante. Infecto,
pustulento. 1 – Um chorinho para o inominado

Lourenço – Já disse, não adianta querer (Dionelia sai de cena)


dominar nossa conversa com essas agressões. Já
disse: está perdendo seu tempo, menina. Lourenço – Tenho que chamar as coisas pelos
seus próprios nomes. Não me adianta inventar
Dionelia – Se você me chamar de menina mais subterfúgios, criar metáforas, conceber
uma vez sou capaz de esbofetear você... Um alternativas. Em resumo: Tenho que considerar
bom tapa no meio de sua fuça! que estou irremediavelmente quebrado. Ah,
quebrado é mera figura de linguagem. Estou
Lourenço – Menina, menina... suas palavras, mesmo falido. Arruinado, falido e sem mínimas
antes de me deixarem abatidos, me dão vida. condições de encontrar saídas. Por onde ir?
Fico mais forte quando você insinua agredir-me Falta-me crédito. Não. Falta-me nome para ter
além das palavras torpes que me dirige. Você crédito, o que é muito diferente. Faltam-me
me dá vida ao agredir-me assim. Dá mais vida, credores. Quem emprestaria algo a mim? Falta-
será que não percebe? me enxergar possibilidades. Falta-me vontade.
Sim, sempre me faltou vontade para tantas
Dionelia – Alma nascida da mais baixa coisas. Quando tive oportunidade de fazer
depressão do inferno... Alma nascida dos opções, faltaram-me opções. Quando tive
infernos mais profundos e na podridão dos opções, o que me faltou? Nem vai acreditar:
sentimentos mais mesquinhos... faltou-me tempo. Quando tive tempo, o que
aconteceu? Demorei e sem tempo adicional,
Lourenço – Veja, ganhei mais vida, assim... nada parece ter espaço para acontecer. Sem
espaço, não há como expandir nada. Sem
Dionelia – Alma nascida dos mais indesejáveis expansão, tudo ficou mais confinado, contido
dos sentimentos... no problema em si. Voltado para dentro, tudo
começou a ruir internamente. Por dentro, não
Lourenço – Estou mais forte. aparentando nada por fora, os problemas só
conseguiram aumentar de tamanho. Então o que
Dionelia – Alma parida pelos dejetos de seres me restou além de chorar? Eu tinha lágrimas
inomináveis... suficientes? Não há lágrimas em quem não tem
olhos. Não há sal para salgar nada. Faltou água.
Lourenço – Forte, a força está mais evidente. Faltando água, tudo era seco por si só. Em si,
enxuto. Em si, escasso. Em si, perplexo. Em si,
Dionelia – Excremento do excremento. convexo. Em si, sem nexo. Em si, reflexo. Em
Putrefação dos vermes que comem vermes... si, posto em chama. Chama que não acendia
mais o sexo. Sem fazer. Nem possibilitava
Lourenço – Veja, ganhei vida! renascer. Chama que não ardia, nem chamava.
Nem assinalava, falava, lavava, levava ou
(fim do primeiro ato) embalava. Não resmungava, nem abaixo ou
acima uma oitava. Sem som, sem tom, sem rima
ou clima. Mera esgrima de uma espada sem
estima. Sem ponta, sem afronta, sem conta,
nada desponta, nada monta ou remonta, tudo
num faz de conta, que não satisfaz. Nem se
permite audaz, posto fugaz, sendo eficaz apenas
um mote contumaz que termina numa mera
ruína. Ah, pobre menina, menina dos meus

12
sonhos! Onde andas, menina pobre do meu jamais pude ver ou ter acesso. Escasso o tempo,
desatino, fruto deste incerto destino, do volume escasso se faz o meu lamento. Lamento, vai
corroído do livro paladino, do sibilino arrastar você dizer. Sim, lamento, seu tempo acabou... E
de correntes corroídas pelo canto, pelo hino do onde estou? Aqui? Não, não mesmo. Chora,
desespero. Ah, por onde andas menina? filho da ingratidão, projeto inacabado, postura
Facínora desalmada. Quem fingiu ser amada, na que jamais se mostrou ereta, sempre torta,
desesperada e derradeira despedida, destas entre sempre triste, sempre abatida, caída, deixada de
idas e vindas perdeu-se no tempo, distanciou-se lado por não representar nada. Apenas fiasco,
na lembrança, ficou presa no passado que nunca decepção, desastre, naufrágio.
existiu, visto ser um mero fruto da imaginação
inconsequente que agora cria um choro para o Não me chame para voar. Faltam-me asas. E a
que nasce sem nome e que sem nome jamais que imagino ter, não tem penas. Apenas, o que
renascerá. tenho, são mágoas e estas, fazem-me afogar em
água rasa, essa que sem sal tenta escorrer dos
Tenho que chamar as coisas pelos seus próprios meus olhos.
nomes. Seria um ato de coragem? Não há
voragem na fome de quem se auto consome. Se Quer que eu olhe para onde?
sobra vontade, falta oportunidade. Exibindo-se
exuberante, perde-se nas coisas frívolas e Impossível! Meu rosto não tem olhos, eu já
descartáveis. Trata-se de portas abertas da havia dito. Não tenho olhos e, se os tivesse,
imaginação, mas cadê inspiração para levar para que serviria enxergar apenas o seu
adiante um tema, ou ter um lema para indicar desprezo.
uma jornada, um apostolado, uma revolução,
um motim, um sem fim de desejos ou de Vou, vou sim, terminando o que nem deveria ter
sonhos? Nada, nada mesmo para chamar de começado. E assim, dito tudo, ou desejado
meu. Nem ser seu o que em mim termina, ouve dizer, encerro meu pranto, o que quis ser um
doce menina... Houve um tempo em que nada chorinho, mas que sem poder ter nome, ficou
queria ouvir. Entre ir e vir, desestruturava apenas, outra vez, na intenção fora de tom.
planos, planava auspiciosas aventuras e nas
inimagináveis venturas, encontrava-me Um forte abraço, obrigado.
completamente só. Longe de tudo. Longe,
sobretudo, dos fatores mínimos de Não, não se sinta obrigada a nada. Mas, por
sobrevivência. Ah, doce menina de tantos favor, eu lhe peço, apenas acenda a luz do
sonhos resumidos em desesperança! Doce fruto cenário e revele a todos que tudo isso é mero
de desejos obscuros, posto serem apenas ilusão. jogo de cena ou quem sabe o que isso possa
Embora aqui tenha apenas que andar às escuras, mesmo ser!
sem luz para indicar um canto, uma janela, uma
porta, uma saída ou um ralo de todo esse esgoto 2 – Vem de volta pro aconchego
que escorre dentro de uma consciência sem
limites de ser abjeto, vil, imundo. (Dionelia enxuga o suor no rosto de Lourenço.
Traz uma camisa limpa para ele que a veste
Ah, doce menina! Você me deu opções? sem pressa, enxugando também, antes, todo o
Quantas foram às noites em que perdido no meu seu tronco. Com uma nova camisa, Lourenço
próprio suor, onde eu me afogava não era nem sai de cena)
em rios, mares ou piscinas. Eu afogava-me na
lama. Na lama ensanguentada do seu desprezo. Dionelia – Nem a mim ele poderia pedir ajuda.
E ele, fruto do quê? De um choro que tentei Como posso ajudar quem não sabe do que
compor. De um tema que poderia ter sido de necessita? Oferecer algo? Nem pensar. Sugerir
Pixinguinha. Ou de quem com ele dividiu uma possibilidade? Seria louca se isso fizesse.
compassos e passos cadenciados da beleza que Possibilitar que ele veja algo em sua frente?

13
Como? Ele disse repetidas vezes que nada mais temer nada diferente do que você já viveu.
consegue enxergar. Simplesmente dar, dar ou Venha de peito aberto. Venha disperto. Venha
oferecer alguma alternativa... Nem pensar, já disposto a recomeçar. Venha permitindo-se dar
disse... Nem pensar. Ele não é homem para outra vez um primeiro passo. Sei, sei sim que
aceitar as coisas assim tão facilmente. Ele sente toda caminhada longa e difícil começa com um
falta de dor. Portanto, só pela dor disse que irá primeiro passo. Porque, então, temer um
aprender. Mas se a dor é tanta, se tanto seu passinho só à frente. Um só passo. Venha!
coração se sente apertado, ele fica engasgado Recomece.
com o prato predileto de suas refeições diárias:
ratos, sim ratos. Ratos fritos, ratos ensopados. 3 – Reencontro com um copo com água
Ratos na salada. Ratos em escabeche. Souflê de
ratos. Ratos gratinados, ratos esfolados, à (Dionelia sai de cena. Lourenço volta com uma
milaneza. Ratos empanados. Ratos em sushis, calma e segurança ainda não vistas)
ratos em sashimis, ratos rotos, ratos em risotos,
ratos em pizzas, ratos salpicados sobre folhas Lourenço – Tenho que parar de pensar besteira
apodrecidas que há muito deixaram de ser e caminhar até a cozinha para comer alguma
verdes. Ah, há mais ratos preparados de forma coisa. Acho que hoje ainda não bebi nenhum
especial. Ratos em quibes, misturados com copo com água. Nem fome eu tive. Parece que
quibebes, não apenas em comes e bebes, em estou com azia. Acho que alguma coisa que não
salgadinhos de festas baratas, em croquetes ou comi me fez mal. Será possível ficar enjoado
em esquetes de um insensato palhaço por algo que jamais experimentamos?
despudoradamente sem graça. Sem verve. Sem
alma, sem chama. Beberei um copo com água. Não precisa estar
gelada. Tem apenas que ser água. Não da fonte
Vim para tentar descobrir quem é esse limpa, ou aquela que veio de algum rio não
entrevistado que não aceita revelar que é um poluído. Água cristalina. Nem precisa ser água
contumaz devorador de ratos. Até ratos vivos! da mina. Pode mesmo ser água da bica
contaminada, já que aqui nem mais tenho água
Antes eu imaginava que todos nós fôssemos encanada. A água se foi pelos canos corroídos.
obrigados a engolir sapos. Sim, engolir sapos.
Metaforicamente ter que, sempre, engolir sapos. Não é força de expressão. É sim a representação
Mas os sapos engolidos são meros petiscos de da mais pura verdade. É minha realidade.
um festim para Babel. O que eu não sabia é que
sapos não fazem parte da dieta exata de quem Não, não é sua, minha querida. Não é sua. A
apenas aprendeu a sonhar e nada consegue culpa é toda minha. Você sabe. Já deixei bem
realizar. Sim, sapos não estão mais na ordem do claro que, mesmo sem poder, certas coisas, em
dia. Nem no cardápio. Nem na dieta. Nada mais certas épocas de nossas vidas, temos que
disso de dizer a todos os pulmões: Estou com o assumir. Sim, eu disse: Assumir. Tenho que
saco cheio de ter que engolir sapos todos os assumir meus erros. Finalmente tenho que
dias! aceita-los reais, já que existiram sempre em
meu percurso de descaminhos.
Não... sapos estão fora de questão! Caíram de
moda. Não é contemporâneo engolir sapos! Cadê a água? Pode vir num copo. Pode vir
numa jarra. Pode vir como vier. Só não venha
Sem sapos para consumir, nem ter o que como tormenta. Nem em ferramenta de tortura.
engolir, o que resta ao homem que se perdeu em Nem que venha na madrugada quando
devaneios? começarei a ter calma para dormir uns poucos
segundos.
Vem, meu amor. Vem de volta pro aconchego!
Vem, meu amor, venha sem medo. Venha sem Que as águas não venham para me arrancar da

14
cama ou para me levar bem longe daqui, acaba, não traz o sol do dia seguinte, sol de
arrastando-me entre pedras, paus, pessoas, bonança, nem faz evaporar as águas que farão o
animais, objetos, carros, sonhos e árvores que ciclo se manter, água, terra, sol, vapor, nuvens,
foram ceifadas pela inconsequência de tantas chuva, água, terra, sol, vapor, nuvens, chuva...
pessoas. Pela incompetência de outros, mas pela O ciclo, em nós, não se completa. Há um dreno
minha própria. Pelo meu descaso, minha em nós. E aqui, desprovido de água, quem de
omissão. nós pode espargir sentimentos que não de
mágoa. De água, nada. Só de mágoa. Gotas não
Cadê a água? Pode me trazer um pouco de existem. O orvalho deixou de ter função. Se
água, contra regra? Pode entrar em cena sim. você pensa que transpira algo próximo de água,
Pode vir até aqui e me trazer um desses algo líquido, se engana. Você transpira apenas
copinhos que a produção deixou aí na coxia. dor e sofrimento. Uma dor sufragada por falsas
preces e lamentos compungidos pela
Venha, entre, me dê um copo com água... desesperança. Um dor salgada que faz ainda
mais forte você sentir sede. Sentir vontade de
Pode entrar... Ninguém vai vaiá-lo por isso. embeber-se por uma água benta, benfazeja,
Ninguém vai vaiá-lo. Não permitirei que o benéfica, bem vinda. Salpicadas, aqui e ali, essa
vaiem em cena aberta. Se quiserem, que vaiem dor salgada não quer cessar. Mas pode me
quando tudo terminar, quando o pano cair, o confortar, pois se sinto o sal, sinto saudade. E
som deixar de ser ouvido e a luz deixar de saudade é sentimento de quem está vivo. E é
iluminar o pouco de ilusão que aqui pudemos vivendo que as coisas podem se resolver.
sentir. Podem, sim... podem se resolver e obter, quem
sabe, uma solução. Sem sol, sem dor, sem sal...
Venha, traga-me água, por favor, contra regra!

(Dionelia entra com um copo plástico com 4 – Fragmentos de uma mente quase lúcida
água. Lourenço toma. Pede mais. Dionelia
afasta-se e volta com outros dois copos (Lourenço ajoelha-se e ergue os braços)
plásticos com água. Os dois bebem e jogam os
copos vazios no palco) Lourenço – Neste momento em que aqui
ajoelho, não presto um preito de respeito ou de
Dionelia – Nenhuma água fará sua sede aplacar. gratidão. Não sou um homem de fé. Meu gesto
Você não necessita de água. Sua sede é outra. é uma forma, um jeito do mais puro desrespeito,
Você sabe o que pode saciar essa sede de afronta, de devassidão. Estou ajoelhado não
interminável. Nem todas as águas do mundo para suplicar. Mas para provocar. Não quero
escorrendo por sua goela vai impedir de você que todas as forças do bem ou do mal se unam
ter mais sede. Nenhuma água. Nenhuma bebida, para me punir. Nem, tampouco, para me salvar.
nada líquido. Nada que escorra para dentro de O gesto que aparenta submissão não é o que
você diminuirá sua sede. Sua sede também é a aparenta. Nada é o que parece ser. Nada é. Nada
minha. Ampliamos nossas sedes ao aparente tem cara de verdade. Nada é real, nem
convivermos os mesmos infortúnios. Sua sede lúcido. Lúcida seria a verdade se ela fosse real.
amplia em mim a vontade de beber o que não A verdade não existe na dimensão do que
conheço. E, em você, amplia o que de mim imaginamos. O real é inadmissível porque a
também não se identifica e que chega até você verdade não existe. Acreditam que isso possa
por forças que desconhecemos. Essa aridez, ser uma falácia? A verdade só existe no mundo
esse ressecamento, essa drenagem que não se da ilusão e da mentira. E a mentira não
interrompe por nada, tudo isso não faz o tempo contradiz a verdade, nem essa a falsa noção do
melhor, nem a chuva cair com mais parcimônia. real. A realidade, a que vivo, fruto talvez de
Não, a chuva vem forte, mas essa água não é noites mal dormidas, de bebidas fortes, de
água boa para se beber. A tormenta depois que pinga, de uísque, de vodca, de conhaque, de

15
gim, de rum ou de cachaça não rechaça o que Dionelia – Sei onde posso ir. Reconheço meus
mais afogueia meu coração. O que faz arder em limites. Eu aprendi, se esqueceu.
mim tanta agonia, infelicidade e desgraça, não é
pecado. O que me faz padecer, suar frio em Lourenço – Aprendeu apenas o que lhe ensinei.
noites insuportáveis de inferno, é a inquietação. E pensa que o pouco que aprendeu seja
Essa desdita. Você, vendo-me assim, inquieto, suficiente para suplantar-me.
gemendo, pode questionar se é válido expor
tamanha agonia. Não. Não é válido nada. Este Dionelia – Não estamos aqui em disputa de
desinfeliz, miserável, intranqüilo bem que quem sabe mais ou sabe menos. Aquele jogo
poderia parar com seus lamentos, não é? Mas inicial de se esconder, de gato e rato, acabou.
aqui não quero promover uma prova dos nove Não há mais nenhum rato em cena. Você
com novenas não rezadas. Nem com blasfêmias devorou todos. Caçou a todos com precisão.
e profanas músicas tocadas em festins sem Levantou de todos os cantos a sujeira e
sentido. O que quero aqui mostrar, se você me removeu peças, móveis, cortinas, baús,
permitir, é que eu tenho o direito de ajoelhar- cenários, roteiros, diálogos, tapadeiras,
me, de levantar os meus braços e, neste praticáveis... descobriu onde os ratos estavam,
aparente momento do mais puro desespero, os grandes, as ratazanas prenhes, os ratinhos
apenas representar o que em mim, agora é tão pelados. Você causou um rebuliço e desnudando
natural. Represento aqui, ajoelhado e com todas as raças de ratos, foi, um a um, espetando
braços em posição de clemência, uma mera para ter uma quantidade suficiente que vai lhe
provocação. Você, sim, você que se julga permitir preparar o grande jantar de sua festa.
importante demais, imbatível, você que se diz Ou seria de sua vingança?
corajoso, você teria a humildade de reconhecer
que ganhei voz e que me fiz presente sem Agora pode preparar, ao seu modo, as receitas
contar com nenhum movimento seu para me mais saborosas com seus ratos prediletos.
iluminar e dar vida?
Lourenço – Você vai ter a humildade de pedir
(Dionelia entra e ajuda Lourenço a se levantar) que eu a ajude, agora?

Dionelia – Se eu não o conhecesse bem teria Dionelia – Que tipo de ajuda imagina que possa
que aplaudir sua patética cena. Mas ela não me dar?
passa de um mero e sem sentido jogo de cena.
Eu fui ajudá-lo a se levantar apenas para que Lourenço – Alguma ajuda eu reconheço ser
você vá para o seu canto e espere as ordens que possível...
terá que obedecer. Apenas por isso. Vá, fique
onde quiser, mas saia do meio do palco. Agora é Dionelia – Qual?
minha vez. Não vou apelar para gestos
tresloucados, frases de efeito, nem para usar de Lourenço – Posso abrir a porta para que você
artifícios que façam a platéia ficar em dúvida se saia.
vê mesmo o que vê ou se tudo não é apenas
improvisação. Improvisação barata, eu não Dionelia – E eu sairia por que motivo?
temeria em afirmar.
Lourenço – Você tentou se disfarçar, mas não
Lourenço – Você não pode me acusar de nada. conseguiu.

Dionelia – Nem você a mim. Dionelia – Disfarce? Bebeu além da conta, foi?

Lourenço – Você pensa que pode controlar Lourenço – Não me enganou desde o primeiro
todas as situações, apenas mostrando-se momento. Pensa que acreditei em tudo o que
simpática. Não pode! me falou...

16
Dionelia – Mas eu não falei nada. O que disse Lourenço – Você, sim, você...
foi tudo fruto do que você sugeriu, talvez tenha
imaginado, quem sabe... Dionelia – Eu...

Lourenço – Minha oferta ainda está em pé... Lourenço – Dionelia, sim, você, não enrole
Posso abrir a porta para que saia. mais, responda de uma vez.

Dionelia – Já estou do lado de fora. Veja bem. Dionelia – Eu... eu vim...

Lourenço – Não, pensa que está do lado de Lourenço – Complete...


fora. Você saiu daqui para esse lado, mas esse
lado é dentro, não é fora. Veja bem, preste Dionelia – Eu vim...
atenção!
Lourenço – Termine...
Dionelia – Não estou me sentindo presa. Posso
ir para onde desejar. Dionelia – Eu vim aqui para me oferecer como
o prato principal de seu almoço de amanhã...
Lourenço – É o que você imagina. Está
completamente iludida com sua posição. Lourenço – Acorda, Dionelia... Acorda... O rato
Iludida. Não percebe nada? aqui sou eu...

Dionelia – Perceber o quê? Que você tenta me


induzir a um erro?
©Rogério Viana
Lourenço – O erro não é meu e não induzi Curitiba – Paraná – 18 de janeiro de 2011
nada.
Hoje começou nublado, choveu, fez sol, choveu um
Dionelia – Você ficou o tempo todo querendo pouco, há pouco... e agora o sol brilha. E estou feliz.
manipular meus sentimentos e se esqueceu do
que eu vim fazer aqui. Pode rememorar um
pouco? O que eu vim fazer aqui?

Lourenço – O que você veio fazer? Está


tentando me enrolar, é isso?

Dionelia – Eu? Enrolar você... Sem chance.

Lourenço – Dionelia... responda com clareza: o


que você veio fazer aqui?

Dionelia – Eu?

Lourenço – Dionelia... o que você veio fazer


aqui?

Dionelia – Eu...

Lourenço – Você...

Dionelia – Eu...

17

You might also like