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Luis Arrieta

Poeta do Movimento

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Luis Arrieta

Poeta do Movimento

Roberto Pereira

São Paulo, 2010

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GOVERNO DO ESTADO
DE SÃO PAULO

Governador Alberto Goldman

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo


Diretor-presidente Hubert Alquéres

Coleção Aplauso
Coordenador Geral Rubens Ewald Filho

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No Passado Está a História do Futuro

A Imprensa Oficial muito tem contribuído com


a sociedade no papel que lhe cabe: a democra-
tização de conhecimento por meio da leitura.
A Coleção Aplauso, lançada em 2004, é um
exemplo bem-sucedido desse intento. Os temas
nela abordados, como biografias de atores, di-
retores e dramaturgos, são garantia de que um
fragmento da memória cultural do país será pre-
servado. Por meio de conversas informais com
jornalistas, a história dos artistas é transcrita em
primeira pessoa, o que confere grande fluidez
ao texto, conquistando mais e mais leitores.
Assim, muitas dessas figuras que tiveram impor-
tância fundamental para as artes cênicas brasilei-
ras têm sido resgatadas do esquecimento. Mesmo
o nome daqueles que já partiram são frequente-
mente evocados pela voz de seus companheiros
de palco ou de seus biógrafos. Ou seja, nessas
histórias que se cruzam, verdadeiros mitos são
redescobertos e imortalizados.
E não só o público tem reconhecido a impor-
tância e a qualidade da Aplauso. Em 2008, a
Coleção foi laureada com o mais importante
prêmio da área editorial do Brasil: o Jabuti.
Concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL),
a edição especial sobre Raul Cortez ganhou na
categoria biografia.

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Mas o que começou modestamente tomou vulto
e novos temas passaram a integrar a Coleção
ao longo desses anos. Hoje, a Aplauso inclui
inúmeros outros temas correlatos como a his-
tória das pioneiras TVs brasileiras, companhias
de dança, roteiros de filmes, peças de teatro e
uma parte dedicada à música, com biografias de
compositores, cantores, maestros, etc.

Para o final deste ano de 2010, está previsto o


lançamento de 80 títulos, que se juntarão aos
220 já lançados até aqui. Destes, a maioria foi
disponibilizada em acervo digital que pode
ser acessado pela internet gratuitamente. Sem
dúvida, essa ação constitui grande passo para
difusão da nossa cultura entre estudantes, pes-
quisadores e leitores simplesmente interessados
nas histórias.

Com tudo isso, a Coleção Aplauso passa a fazer


parte ela própria de uma história na qual perso-
nagens ficcionais se misturam à daqueles que os
criaram, e que por sua vez compõe algumas pá-
ginas de outra muito maior: a história do Brasil.

Boa leitura.
Alberto Goldman
Governador do Estado de São Paulo

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Coleção Aplauso
O que lembro, tenho.
Guimarães Rosa

A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa


Ofi cial, visa resgatar a memória da cultura
nacional, biografando atores, atrizes e diretores
que compõem a cena brasileira nas áreas de
cinema, teatro e televisão. Foram selecionados
escritores com largo currículo em jornalismo
cultural para esse trabalho em que a história cênica
e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída
de maneira singular. Em entrevistas e encontros
sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e
biografados. Arquivos de documentos e imagens
são pesquisados, e o universo que se recons-
titui a partir do cotidiano e do fazer dessas
personalidades permite reconstruir sua trajetória.

A decisão sobre o depoimento de cada um na pri-


meira pessoa mantém o aspecto de tradição oral
dos relatos, tornando o texto coloquial, como
se o biografado falasse diretamente ao leitor.

Um aspecto importante da Coleção é que os resul-


tados obtidos ultrapassam simples registros bio-
gráficos, revelando ao leitor facetas que também
caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e bio-
grafado se colocaram em reflexões que se esten-
deram sobre a formação intelectual e ideológica
do artista, contextualizada na história brasileira.

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São inúmeros os artistas a apontar o importante
papel que tiveram os livros e a leitura em sua
vida, deixando transparecer a firmeza do pen-
samento crítico ou denunciando preconceitos
seculares que atrasaram e continuam atrasando
nosso país. Muitos mostraram a importância para
a sua formação terem atuado tanto no teatro
quanto no cinema e na televisão, adquirindo,
linguagens diferenciadas – analisando-as com
suas particularidades.

Muitos títulos exploram o universo íntimo e


psicológico do artista, revelando as circunstâncias
que o conduziram à arte, como se abrigasse
em si mesmo desde sempre, a complexidade
dos personagens.

São livros que, além de atrair o grande público,


interessarão igualmente aos estudiosos das artes
cênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutido
o processo de criação que concerne ao teatro,
ao cinema e à televisão. Foram abordadas a
construção dos personagens, a análise, a história,
a importância e a atualidade de alguns deles.
Também foram examinados o relacionamento dos
artistas com seus pares e diretores, os processos e
as possibilidades de correção de erros no exercício
do teatro e do cinema, a diferença entre esses
veículos e a expressão de suas linguagens.

Se algum fator específico conduziu ao sucesso


da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –,

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é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o
percurso cultural de seu país.

À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um


bom time de jornalistas, organizar com eficácia
a pesquisa documental e iconográfica e contar
com a disposição e o empenho dos artistas,
diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a
Coleção em curso, configurada e com identida-
de consolidada, constatamos que os sortilégios
que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filma-
gem, textos, imagens e palavras conjugados, e
todos esses seres especiais – que neste universo
transitam, transmutam e vivem – também nos
tomaram e sensibilizaram.

É esse material cultural e de reflexão que pode


ser agora compartilhado com os leitores de
todo o Brasil.

Hubert Alquéres
Diretor-presidente
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

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A Imprensa Oficial homenageia,
in memoriam,
Roberto Pereira, o autor deste livro.

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Apresentação

A certeza intuitiva não pode ser


alcançada por análise intelectual
Albert Einstein

O ano de 2008 me trouxe, muito curiosamente, três


pedidos que, se bem ligados ao meu trabalho, não
me tinham sido nunca solicitados antes. Um por parte
de Willhelm Araújo, bailarino do Balé da Cidade de
São Paulo, que também desenvolve criações em vídeo/
imagens, querendo fazer registros espontâneos du-
rante ensaios e montagens, e entrevistas organizadas
com depoimentos sobre meu pensamento em dança.
Outro, pela Inês Bogéa, diretora-artística-adjunta da
São Paulo Companhia de Dança, para a série docu- 11
mental de biografias Figuras da Dança, transmitida
pela TV Cultura, com registro cronológico do meu
trabalho e depoimentos e comentários de perso-
nalidades do teatro em geral. E este, pelo Roberto
Pereira, para a coleção Aplauso, uma entrevista/
conversa/charla gravada em vários longos encontros,
que Roberto deveria redigir posteriormente em
primeira pessoa.

Como é de meu costume, imediatamente aceitei. De-


pois, pensando mais friamente, considerei que além
de não ter nenhuma importância o que eu poderia
contar, não saberia realmente recordar tantos fatos
e situações de minha vida. Também não queria con-
tinuar invadindo as atenções dos que com paciência
me escutavam. Eu já fazia isso coreografando.

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Quis, então, recusar. Mas também pensei que não
tinha direito a isso, já que essas pessoas tinham feito
esses convites com tanto interesse e consideração.
Sem esquecer também que às vezes a timidez e a
modéstia são formas da soberba. Ao igual que nas
montagens, me lançava ao imenso vazio e negro do
desconhecido. A única coisa que eu reconhecia em
tudo isto era o mesmo medo de sempre.

Sim, posso assegurar que as entrevistas, as leituras


e as correções têm provocado em mim uma revisão
de tempo, espaço e atos comparáveis a uma terapia.
Mas rever, corrigir, tudo isso era igual aos ensaios.
Procurando o gesto que mais me expressa e o que
mais me dribla. Aliás, a releitura desses textos me fez
12
entender por que sempre Ismael Guiser recusava-se
a deixar alguma coisa escrita sobre sua vida, seus
pensamentos e seus métodos.

A vida, como a dança, é movimento, mudança. A


cada instante estamos num lugar diferente.Portanto,
temos um ponto de vista diferente a cada instante.
Vemos a vida de maneira diferente a cada instante,
porque a evolução nos coloca num lugar diferente.
Nos modifica o olhar. Os fatos são os mesmos. Somos
nós que os percebemos de ângulos diferentes. Nas
palavras de Borges, independentemente de como
os fatos “realmente” foram, o importante é como
nós os enxergamos e os lembramos. E existe um
realmente imutável?

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As ideias que variam são verdadeiras.
Um furacão não persiste uma manhã toda.
Um aguaceiro não persiste um dia todo.
Quem os criou? – A Natureza.
A Natureza mesma não é invariável:
Menos, portanto, o Homem.

Lao Tsé - Tao Te Ching – XXIII

Esse exercício de revisitação levou-me não só até os


primórdios de minha vida, senão muito além disso.
Levou-me até tempos e lugares e dimensões que este
organizado Luis de hoje insiste em não lembrar. Artis-
ta, xamã, arte, iluminação. Feliz ou ingrata a este meu
limitado entender, sei que foi, é e será a experiência
certa e justa e necessária. Rito de passagem.
13
Sabia no meu primeiro contato com a dança que
noções de espaço/tempo iriam se modificar. Não
imaginava tanto e como. Definir a ordem de como
tudo vai ser contado é só uma escolha circunstancial.
Jamais poderia afirmar qual a cronologia certa. E
também não importa.

Por outro lado, conto fatos que sei que de forma


alguma podem me representar. Eles são as imagens
projetadas no lado brilhante do espelho. Eu gostaria
de falar-lhes das impressões deixadas no seu lado
opaco. Mais eu não sei falar essa língua. La noche me
sirve para encontrar todo lo que extravié por culpa de
la luz (Nemer Ibn El Barud). Ademais, fui criado numa
sociedade moral e religiosa que é a grande defesa
contra a experiência de Deus (C.G. Jung).

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Terminada a leitura do texto que Roberto escrevera
com tanto carinho, atenção e paciência, viajei para
Buenos Aires para passar alguns poucos dias com mi-
nha mãe. Sentia-me com as lembranças em carne viva,
estimuladas ainda mais pelos cenários da minha cida-
de. Logo que cheguei, num cartaz em frente à esteira
das bagagens, sorria-me Nacha Guevara num anúncio
do seu musical Eva. A partir daí, todos os passos na
cidade portenha despertaram vozes esquecidas. Em
casa, após o almoço, mamãe lendo meu silêncio,
como de costume, rasgando alguns poucos acordes no
violão, cantou-me uma canção popular que ela gosta
especialmente, repetindo emocionada o refrão com
sua voz fininha e gasta: Resistirei! Resistirei! Resistirei!
Já de volta, ao encaminhar-me no aeroporto de São
Paulo para as filas do setor de documentação fiquei
14 confuso: Estrangeiros, Mercosul, Brasileiros?

Dois agradecimentos e duas desculpas.

Tenho que agradecer a estas três pessoas que, queren-


do ou não, me “obrigaram” a fazer este Caminho de
Santiago (del Estero?) para atrás (ou para dentro, o
que é o mesmo) e me permitiram tomar contato com
tanto saber adormecido. Permitiram-me entender as
palavras de Goethe: Todas as coisas são metáforas.

Tenho que me desculpar por todos aqueles que


tendo sido tão importantes na minha vida e não os
mencionei. Por pouco espaço nestas páginas. Por
esquecimento mesmo. Ou porque sempre temos a
certeza de sermos perdoados por aqueles que mais
nos amam.

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Tenho, por último, que agradecer à terra do Brasil
(minha segunda casa e virginiana como eu), que fez-
se solo fértil, ágora propícia e egrégora condutora
para esta minha passagem.

Finalmente, quase envergonhado, cito as palavras


de São Tomás de Aquino: Tudo que escrevi é palha.

Luis Arrieta

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A Luis Pablo Arrieta, pai do Luis,


artista do confeito.

A Tina Pereira, minha irmã, artista da música.


In memoriam

Agradeço ao Luis, por desejar comigo esse livro;


a Ana Teixeira, Antonio Carlos Cardoso, Arnaldo
Alvarenga, Dalal Achcar, Edy Wilson, Helena Katz e
Marika Gidali, pela pronta disposição em ajudar; a
Silvia e Edna Soter, pelos dias de paraíso em Mam-
bucaba; a Rubian Gois, pela assistência fundamental
na pesquisa; ao Alexandre e às minhas pretas Nara e
Fanny, por estarem sempre ao meu lado.

Roberto Pereira

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Introdução

No começo do mês de janeiro desse ano de 2009,


Luis me telefonou, no auge de sua crise existencial,
deflagrada por seu computador. Quando digitava a
palavra coreografia, ou coreografar, tudo aparentava
estar correto. Mas era só ele se atrever a conjugar o
verbo, que a versão de seu Word não reconhecia o
que havia sido digitado. E indicava o erro, sublinhan-
do a palavra com aquela linhazinha vermelha.

Como o verbo coreografar não poderia ser conju-


gado por Luis Arrieta? Qual palavra indicaria mais
ação, ou melhor, qual palavra poderia ser mais
verbo que coreografar, sobretudo nas mãos dele? 19
Luis estava inconsolável.

Foi este Luis que conheci. E com quem tive o prazer


de conviver os poucos dias que ficamos juntos, de-
dicados ao projeto desse livro. Na verdade, foram
quatro encontros, nos meses de outubro e novembro
de 2008. Três em sua casa e um na minha. Todos lon-
gos, demorados, regados a café, quando estávamos
começando as entrevistas, e a vinho, quando já es-
távamos jogando conversa fora. Em ambos os casos,
eu adquiria material fértil para meu texto.

E não esqueço dos bolos, da pizza, biscoitos, pudim,


que nos acompanhavam. Tudo para que ficássemos
ainda mais felizes com aqueles momentos.

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Quando cheguei pela primeira vez em seu aparta-
mento, em São Paulo, fiquei absolutamente certo
de que só mesmo naquele edifício poderia morar
alguém como Luis. Não era qualquer edifício. Mas
um autêntico exemplar kitsch assinado pelo arquiteto
João Artacho Jurado, de 1959. Estávamos em plena
Avenida Higienópolis, no famoso edifício Bretagne.

Fomos, então, fazer um tour pelo condomínio. A


mistura evidente de estilos dava chances para que
Luis e eu nos divertíssemos com tudo aquilo. Mo-
derno, nouveau, déco e clássico. Tinha para todos os
gostos. Passamos pela sala de piano, pelo salão de
festas, piscina e terminamos lá em cima, na cobertura,
avistando uma São Paulo imperiosa, contundente.
20
A sala de seu amplo apartamento não foi nosso des-
tino final. Como sempre acontece nesses encontros
em que se conta um pouco da vida, ficamos o tempo
todo na cozinha. Esse sim era o ambiente propício
para desfiar lembranças. E delas, sorrir, rir, chorar.
Fizemos tudo isso juntos.

Nesse livro, portanto, fui uma espécie de intruso em


tudo aquilo. Única maneira de eu poder dar forma ao
texto que começa nas páginas seguintes. Meu gravador
era uma arma apontada para o Luis, sem dó. Precisava
arrancar dele tudo que fosse preciso e precioso, além
de tudo o que já é precioso em sua criação em dança.
Não sei se consegui plenamente. Jamais saberei. Mas
saboreei cada minuto daqueles encontros.

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Afinal, estava na frente de Luis Arrieta, coreógrafo
– ícone de uma época da história da dança de São
Paulo, época justamente em que eu chegava, vindo
de uma cidade do interior, entusiasmado com os es-
tudos. Isso era 1986. Assistia a tudo do Balé da Cidade
de São Paulo, companhia que ele dirigia. E foi sobre
um de seus balés que me atrevi a escrever a primeira
crítica de minha vida, que nunca foi publicada, mas
que me indicaria o ofício que eu seguiria anos mais
tarde. Mostrei o texto a Helena Katz, e ela o presen-
teou. Era seu aniversário. Fiquei todo cheio. Esse foi
uma espécie de primeiro contato.

Vinte anos depois, nosso contato se deu de outra for-


ma. Mas sempre permeado pela dança. Estávamos ali,
21
frente a frente, reunindo emoções que se misturavam
com dados precisos, datas, nomes, lugares. Tentamos
ser minimamente cronológicos para nos assegurar de
que nada nos escaparia, algo absolutamente insano e
falível. Sabíamos disso. Não somos bobos nem nada.
Mas, mesmo assim, fomos percorrendo ano a ano as
investidas coreográficas desse argentino mais brasi-
leiro que conheci. Nem o sotaque de um portunhol
preciso e exuberante arranha essa imagem.

Esse livro é, então, assim. Seguiu as lembranças do


Luis como ele achava que deveria ir, tateando-as.
Fiz apenas traduzir isso na linguagem que conheço
e que modestamente balbucio quando tento narrar
uma vida tão rica quanto a dele.

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Tomara que o leitor capte esse meu desejo. Esse nosso
desejo. Já que nós dois soubemos estar comprome-
tidos até o último fio de cabelo nesse projeto. Em
dança, não há como ser diferente disso.

Antes de acabar essa introdução, um recadinho: Luis,


você precisa atualizar seu computador. No meu, já é
possível conjugar o verbo coreografar. Mas, nem por
isso, sinto que sei usá-lo tão bem quanto você! Nem
num texto nem na dança. Quem sabe um dia você
não me ensina?

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Luis Arrieta em São Paulo, 2001

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Aos 4 anos, 1955

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Capítulo I
Em Buenos Aires

Nasci no subúrbio de Buenos Aires, no dia 3 de se-


tembro de 1951. Signo de virgem com ascendência
em touro. Filho de Olga Figueroa e Luis Pablo Arrieta.
Meu nome: Roberto Luis Arrieta. Arrieta significa
“feito de pedra”, em basco. E Luis, luz. Numa tradu-
ção livre: luz feita de pedra. Luz materializada.

Meu pai, falecido em 1994, filho mais novo de quatro


irmãos, foi o único nascido na Argentina, pois toda
sua família era da Espanha, de origem basca. Não
cheguei a conhecer meus avós paternos, Eleuteria e
Marcelo porque, quando nasci, já estavam mortos. Do
lado de mamãe, temos origem bem argentina, bem 25
índia. Assim, represento exatamente o que por lá se
acostumou chamar de criollo, ou seja, a mistura de
espanhol com índio.

A família de minha mãe era de Santiago del Estero,


uma província ao noroeste do país, bem pobre, onde
impera o calor e o clima seco. A ascendência é dos
índios Diaguitas, os Calchaquíes, que imagino de-
vam ter algo a ver com o que foi se ramificando dos
incas. Isso porque minha avó Camila falava algumas
palavras da língua quíchua, uma língua incaica que
ela misturava em seu espanhol de propósito. Mas
detestava traduzir. Era uma espécie de segredo dela.

Minha avó, com quem convivi muito, não morava


conosco, mas ficava com frequência em nossa casa.

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D. Olga, sua mãe

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D. Luis Pablo, seu pai

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Apesar das mães dizerem que amam igualmente seus
filhos, minha mãe era, sem dúvida, sua filha predileta.
Ao mesmo tempo em que era fascinada por ela. E
meu avô, que não era oficialmente seu marido por
não ter se casado com ela, se chamava Pablo Enriquez.

Já aqui no Brasil, conheci um site argentino de lite-


ratura, que homenageava meu avô materno Pablo.
Através dele, fiquei sabendo, de forma mais deta-
lhada, vários fatos que já havia ouvido muitas vezes
contar à minha família materna. Um deles, é que meu
avô, desde criança, sempre teve uma vida bastante
dramática, quase teatral. Lá em Santiago del Estero,
existe um rio, o rio Dulce, que, como em toda região
árida, portanto pobre e seca, permanece seco quase o
ano inteiro, levando toda uma população a morrer de
28 fome. E, cada vez que vem a chuva, esse rio transbor-
da e estraga o pouco que as pessoas têm... trata-se,
portanto, de um velho panorama já bem conhecido.

Contam que quando Pablo tinha 9 anos de idade, sua


mãe, ou seja, minha bisavó, e todos os seus filhos,
tentaram atravessar esse rio e morreram afogados.
Apenas ele sobreviveu. Órfão, foi levado para vários
lugares para ser criado, acabando inclusive num con-
vento, de onde fugiu. Logo se tornaria uma criança
muito revoltada e desde muito cedo sempre muito
indignada com o que percebia sobre as diferenças
sociais que o circundavam e sobre o excesso de poder
de algumas pessoas daquela região.

Evidentemente, com a chegada das primeiras notícias


do socialismo, em 1900, meu avô passou a ser comu-

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D. Camila, a avó materna

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Com a mãe e as irmãs em Mar Del Plata

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nista e muito atuante nessa corrente esquerdista que
se formava na Argentina. Tanto assim, que seus filhos
levaram nomes emblemáticos dessa luta: minha mãe
se chama Olga, meu tio, Vladimir, minha tia, Libertad.

Meu avô tinha várias mulheres, embora fosse casado


oficialmente apenas com Maria. Cada uma morava
numa casa diferente e eram cientes da existência das
outras. Mas, segundo dizem os textos desse mesmo
site, minha avó Camila seria sua preferida. Imagino
que sim, porque ela era belíssima. Apenas não era a
primeira e nem a oficial, mas certamente a mais espe-
cial. E isso para ele era encantador. Ele era um índio.

Camila vinha de uma família de quatro irmãos, dois


homens e duas mulheres. Seus três irmãos, apesar de
toda aquela pobreza, conseguiram estudar, tanto que 31
minha tia-avó Achila chegou a ser diretora de uma
escola e secretária de cultura de Santiago del Este-
ro. A única que ficou sem estudo foi Camila, que se
tornou mãe ainda muito jovem, tendo seu primeiro
filho com Pablo aos 15 anos.

Meus tios, os irmãos de minha mãe, sobretudo as


mulheres, sempre demonstraram um certo ressen-
timento quando falavam de meu avô, pois sempre
reclamavam que ele teria se dedicado demais à polí-
tica, à militância e ao socialismo, e reservado pouco
tempo para cuidar deles. Exatamente por isso, ele foi
muitas vezes preso. Numa dessas vezes, levaram-no
para Ushuaia, no território nacional de Tierra del Fue-
go, sul da Argentina, a mais de 3 mil km de Buenos
Aires, onde estavam as prisões políticas de segurança

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máxima e onde ele apanhou muito. Segundo meus
tios, ele teria morrido em consequência dessas surras,
desses espancamentos, de tortura. Quando criança,
eu ouvia contarem que ele não teria fígado de tanto
que apanhou.

Certa vez, perguntei à minha avó Camila sobre meu


avô Pablo, querendo perceber um pouco qual era
a sua impressão sobre ele, até para ver se eu teria
alguma outra imagem diferente daquela que tinha a
partir de meus tios. A única coisa que me disse, num
suspiro, foi: Ah, ele era tão lindo...

Curiosamente, mesmo sendo católica, rezando dia-


riamente às seis horas da tarde, indo à missa todos
os domingos, Camila levava essa vida de segunda (ou
32 terceira) mulher com muito orgulho. Segundo minha
mãe, ele teve muitos filhos. Só com Camila teve nove.
Com outra teve mais seis, e mais outros tantos.

Com todos os seus filhos, ele costumava organizar nas


praças da cidade peças de teatro. Nelas, figuravam
a personagem do patrão, que era dono de uma fa-
zenda, e seus trabalhadores. Ele fazia o patrão e seus
filhos, os trabalhadores. E tudo girava em torno do
fato de que o patrão se alimentava, enquanto seus
empregados morriam de fome. Terminada a cena,
ele vinha logo em seguida com um discurso repleto
de questionamentos: Por que eles podem tanto e
nós, trabalhadores, campesinos, não podemos nada?

Todo esse mundo de minha família sempre esteve


envolto em um clima mágico, misterioso, que iria

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reaparecer em vários momentos de minha vida e de
várias formas. Minha avó Camila, por exemplo, era
extremamente sensitiva, coisa normal se levada em
conta sua ascendência indígena. Para ela, era muito
comum perceber, quase ver, quase ouvir, coisas que
estão fora do alcance da maioria das pessoas. Certa-
mente ela ficaria horrorizada se isso fosse apontado
como algo que tivesse a ver com bruxaria ou com
espiritismo, já que era tão católica. Mas esse seu dom
sempre chegou de alguma forma até mim, de formas
muito curiosas.

Há muitos anos, montei um trabalho a partir da


consagrada obra de um compositor argentino, Ariel
Ramirez, a Missa Crioula, que a compôs no intuito
de preservar os ritmos musicais da cultura Guarani,
um dos formadores da identidade cultural argentina. 33
Essa coreografia ganhou o título de Terceira Oração
ou Oração de las madres de la Plaza de Mayo e foi
feita para um grupo formado quase só por mulheres e
por apenas um rapaz. Havia um momento em que as
mulheres apareciam vestidas de macacão vermelho,
como operárias. À medida que, por causa dos tiros,
elas iam caindo mortas, uma por cima da outra, ao se
amparar mutuamente, elas arrancavam esse macacão
e por baixo aparecia uma mãe reclamando a presença
de seu filho. Em um determinado momento o único
elemento masculino que eu tinha dançava com este
macacão, que se ampliava quase como um poncho,
um manto vermelho, que aparecia como um símbolo.

Depois de muitos anos, fiquei sabendo que meu avô


teve uma experiência muito parecida com essa na

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Terra do Fogo: um companheiro seu contou que ele,
sendo torturado e após apanhar muito, ficou quase
inconsciente. Parece que nesse estado de inconsci-
ência a mãe dele teria aparecido e pedido a ele que
nunca desistisse de sua luta: Atari huauque!, ou seja,
“levanta, irmão!” em língua quíchua. E o envolveu
em um poncho vermelho. De alguma forma, tudo
isso chegou até mim, mesmo eu tendo nascido em
Buenos Aires, em um apartamento, num ambiente
urbano e numa época tão distante da do meu avô.

Por outro lado, mesmo sendo tão especial, tão sen-


sitiva, Camila mantinha a casa, assim como todas as
outras mulheres de meu avô. Trabalhava na terra,
plantando abóbora e tudo o que se podia tirar da-
quela região tão árida. Ela também era costureira e
34 costumava fazer casas de botões dos coletes de seda
de smokings que eram vendidos numa loja no centro
da cidade. Além disso, bordava também monogramas
com as iniciais de quem comprava esses smokings,
todos homens muito ricos da região. Tratava-se
evidentemente de um contraste enorme: num lugar
extremamente pobre, minha avó ganhava a vida
bordando smokings.

Quando ficava em casa, conosco, na hora de dormir,


sentada à beira da cama, ela soltava o coque e pente-
ava os cabelos, coisa bem típica das senhoras daquela
época. Fazia isso no escuro, porque dormia no quarto
comigo e com minhas irmãs. Mesmo naquela escuri-
dão, eu percebia como ela ficava sentada, escovando
os longos cabelos. Lembro que ficava fascinado pela
cor prata de seus cabelos. Um branco prata.

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Certa vez, perguntei por que ela tinha os cabelos
daquela cor, que eu achava tão linda, e ela me disse:
“Não sei, acho que é por causa da lua cheia...” e me
contou que como sua família era muito pobre e em
casa não tinha luz elétrica, ela aproveitava as noites
de lua para costurar. Depois de pôr as crianças para
dormir, colocava a mesa para fora da casa, no chão de
terra, cobria-a com um pano branco, lavava-se toda
para não sujar o tecido e ali ficava quase a noite toda
costurando. Essas são as imagens que tenho de minha
família, e que são extremamente teatrais, poéticas.
Essa é minha ascendência.

Camila foi a única avó que conheci. E sempre me


lembro como ela era, a um só tempo, de uma ex-
trema doçura, misturada com uma força interior 35
inacreditável. Um acontecimento na vida dela muito
curioso ilustra bem essa força: certa vez, uma de
minhas tias, que morava em um apartamento em
Buenos Aires, tinha um cão pastor-alemão, mas foi
impedida de continuar com ele por causa de uma
regra adotada em seu condomínio. Assim, leva-
ram o cão para casa de minha avó, que já estava
numa idade bem avançada, porque lá tinha um
terreiro grande onde ele poderia ficar. Um dia, ela
foi alimentá-lo e ele não deve tê-la reconhecido e
destroçou sua mão. Camila foi levada ao médico
que, após dar alguns pontos no corte profundo que
sofrera, afirmou que, por causa da idade, sua mão
iria, infelizmente, ficar bastante desfigurada e que
dificilmente recuperaria os movimentos.

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Então, Camila pediu para uma nora que a ensinasse
a fazer crochê. Lembro-me que, pouco tempo depois,
todos nós ganhamos um cobertor tecido por ela. E
ainda como alguns de seus filhos tocavam violão
enquanto cantavam músicas folclóricas argentinas,
ela decidiu reaprender a tocar também. Não era algo
absolutamente novo para ela, que já havia tocado em
sua adolescência, parando apenas porque teve seu
primeiro filho. Depois de um certo tempo, fazendo
crochê e tocando violão, recuperou totalmente os
movimentos da mão, que acabou ficando apenas
com uma marca mínima, quase imperceptível. E ela
ainda fez questão de retornar ao consultório daquele
mesmo médico e dizer a ele: Nunca diga para uma
pessoa o que ela pode e não pode fazer!

36 Entretanto, ela fazia tudo isso sempre de uma forma


quase angelical. Ou seja: era um touro por dentro e
de uma suavidade incrível por fora. Essas duas forças
chamaram-me a atenção em sua personalidade. Tanto
que as poucas vezes que a vi chorar foram as que mais
mexeram comigo. Isso, porque, quando chorava. era
algo extremante comovedor e quase inconcebível,
porque o gesto do choro acontecia em um silêncio
absoluto. E ela ficava luminosa.

Outro momento relacionado à minha avó que me


marcou muito está ligado, de certa forma, à mi-
nha profissão: foi quando a vi dançar nas festas de
nossa família, que reunia seus filhos e outros tan-
tos parentes, que a chamavam, sem distinção, de
“mama”! Essa dança era sempre uma dança típica,
folclórica, da Argentina. Enquanto ela preparava a

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comida, geralmente um churrasco com empanadas,
meus tios tocavam violão e cantavam. A certa altura,
quando o clima já era de festa, sempre pediam: Mãe,
vamos dançar! Lembro-me, então, que ela amarra-
va o avental de lado na cintura e dançava com um
guardanapo na mão como se fosse um lenço. Era la
zamba, uma dança argentina, bem sincopada, mas,
ao mesmo tempo, lenta, charmosa e elegante. Para
mim, todo comportamento físico dela era muito
enigmático, porque, ao mesmo tempo que vinha de
uma origem extremamente humilde, tinha um modo
de se mover muito requintado, que nunca consegui
entender direito.

***

Um pouco antes de eu nascer, por causa das difi- 37


culdades de sobrevivência naquela região, muitos
de minha família resolveram se mudar para Buenos
Aires, onde havia a possibilidade de se conseguir um
trabalho e com isso condições melhores para criar os
filhos. Ao chegar à grande cidade, Camila, que tinha
ido junto, foi trabalhar como doméstica e alguns de
seus filhos foram colocados ainda pequenos em casas
de família para trabalhar, porque era a única maneira
possível de se ter algum sustento, algo comum para
quem pretendia tentar a vida numa cidade como
aquela. Desse modo, todos os meus tios não tiveram
oportunidade de estudar, tendo apenas começado o
primário, como foi o caso de minha mãe.

Papai, que tinha escola primária completa, logo


começou a trabalhar. Embora adorasse futebol e

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tivesse até chegado a jogar em um clube de segunda
divisão, logo teve que abandonar sua paixão para
se dedicar a algo mais seguro. Aprendeu, então, a
profissão de confeiteiro. Quando nasci, papai já era
mestre-pasteleiro, pois pastel na Argentina tem a
ver com confeitaria. Seu novo ofício não deixava de
ser curioso: um homem grande e forte, com mãos
grandes e fortes, que tinha extrema docilidade para
enfeitar doces e confeitos. Um verdadeiro contraste.
Logo ele passou a dominar essa arte e seus doces
enfeitados se tornaram perfeitos. E conhecidos em
Buenos Aires.

Assim, meus pais reuniam duas características muito


fortes e que me foram passadas em minha educação:
por um lado, minha mãe, com toda a ascendência
38 socialista herdada de meu avô Pablo, que por mais
que não tivesse sido ensinada em casa, ela a levava
no sangue e, de alguma forma, a gente captava isso;
por outro, papai com uma ideia muito clara do que
era moral, do que era correto, ao mesmo tempo em
que afinava seu gosto e suas habilidades manuais
para os confeitos que preparava.

Para exemplificar bem isso, lembro que minha mãe


me contou que, um dia, os patrões do meu pai co-
meçaram a substituir a manteiga usada nos doces e
croissants feitos por ele por margarina, produto mais
barato que começava a aparecer no mercado. Um dia,
ao sair da confeitaria, ele avistou na porta um cartaz
anunciando: Croissant de manteiga. Meu pai deu
meia-volta e comentou com seu patrão: Temos que
trocar aquele cartaz, porque utilizamos margarina

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agora, ao que o dono da confeitaria deu de ombros
e recomendou que ele não se preocupasse com
aquele “detalhe”. E meu pai retrucou, incisivo: Ou
você troca já aquele cartaz, ou não volto mais aqui.
Sou eu que faço os croissants! O que estava por trás
disso eram conceitos praticamente inacreditáveis nos
dias de hoje. Mas na época dele era assim. E, afinal
de contas, aquele era o seu trabalho, do qual ele se
orgulhava muito.

Meu balé Do homem ao poeta foi dedicado a ele.


Era um trabalho a partir da obra Carmina Burana, do
compositor alemão Carl Orff, que montei para a Cisne
Negro Cia. de Dança, de São Paulo, em 1983. Nele,
tentei traçar um paralelo entre os textos profanos
e as Odes Elementares de Pablo Neruda. Numa das
partes, que se chama A ode ao pão, todos os baila- 39
rinos vêm caminhando do fundo do palco e o único
movimento que fazem é abrir as mãos, mostrando-as
espalmadas ao público. Isso me remetia ao símbolo da
mão de meu pai fazendo pão, aquela mão branca de
espanhol. Aquela mão branca suja de farinha. Aquela
mão sábia, mágica.

Eu costumava ir muitas vezes no local onde ele


trabalhava e ficava admirando a velocidade com
que preparava os doces ao mesmo tempo em que
conversava com a gente. Nunca o vi pesar nada. Ele
ia conversando e pegando os ingredientes com a
mão e misturando. Mesmo acostumado a grandes
quantidades, fazia questão de ser econômico. Como
essa era sua profissão e como tinha pleno domínio
dela, era um virtuose nos detalhes: as sobras, que

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normalmente se joga fora, eram recuperadas e trans-
formadas em novos produtos, num processo quase
sem-fim. E isso era reconhecido, claro, pelo dono do
estabelecimento. E por essa razão meu pai era tão
solicitado, já que se tratava de um empregado ideal.

E isso se estendia em casa também: lembro-me que se


minha mãe havia cozinhado beterraba, ele fazia um pu-
dim vermelho com aquela água que sobrava, e que nós
achávamos lindo! Era criatividade sobre criatividade.
Qualquer coisa que sobrava, ele ia logo aproveitando.

Havia dois livros muito velhos de receita que ele usava.


Não sei se estão perdidos ou se ainda existem. Lembro
que meu pai sempre gostava de relê-los, quando ficava
com dúvida sobre alguma coisa. E outra atividade que
40 meu pai adorava era ler o dicionário. Fazia isso todos
os dias após voltar do trabalho. Lia página por pági-
na. Palavra por palavra. Meu Deus, que maneira de
adquirir cultura! Naquela minha época, os dicionários
tinham informações sobre muitas coisas, eram quase
uma enciclopédia. E essa era a maneira que meu pai
encontrou para se instruir, mesmo cansado depois de
um dia inteiro de trabalho, que o fazia sair às 5 horas
da manhã de casa e retornar lá pelas 5 da tarde. Jornal,
ele quase não lia. Uma ou outra notícia sobre política
já era o suficiente. Para ele, político, padre e militar
eram tudo a mesma merda. Ah, ele lia sobre esporte,
sobretudo futebol, sua grande paixão.

Nas poucas horas que podia ficar conosco, em casa,


ele sempre me ajudava a resolver problemas da es-
cola, sobretudo os de matemática. Mas, na verdade,

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ao fazer isso, ele estava me ensinando muito mais.
Diante de um problema, nunca me dava a solução,
mas caminhava comigo na busca de seu entendimen-
to. Assim, me mandava ler e reler o mesmo texto até
que aquilo fizesse algum sentido para mim. Isso foi
fantástico porque era uma maneira de desenvolver
um processo de investigação interno, que, claro, eu
usaria mais tarde na composição coreográfica. Esse
caminho não era, evidentemente, o mais fácil. Às
vezes eu até chorava, querendo logo a resposta. Mas
ele era implacável.

Isso foi muito importante porque hoje estou usando o


que desenvolvi desde aqueles tempos. Tudo que faço
hoje na dança e na minha vida reflete o que aprendi
com meus pais. Uma herança. Porque nasci dessa mis-
41
tura: uma mamãe morena e um papai branco. E todos
os valores embutidos aí, nessa combinação tão rica.

Pensando agora nessa herança, numa livre associa-


ção, lembro da primeira vez que me lancei a querer
dançar como um índio. Foi uma das primeiras vezes
que me senti extremamente livre, mesmo estando
na frente de um monte de bailarinos. Comecei a me
mexer como índio e percebi que não tinha vergonha
de fazer aquilo. Claro que eu poderia me sentir um
tanto ridículo executando aqueles passinhos, mas,
pelo contrário, tive uma imensa identificação com
aquilo. Uma identificação imediata. Inexplicável.
Como eu, garoto criado dentro de um apartamento
em Buenos Aires, poderia carregar de alguma forma
aquelas informações?

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Com a mãe e as irmãs

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Com o pai e a irmã Pochi em Olavarría

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Reconheço agora que existe algo que se transmite
muito além da carne, e é dessa maneira que eu pude
entender um pouco a dança. Uma dança que passa
por todos os músculos, pelo sangue, pelos sentidos. E
nessa minha dança existe alguma coisa, por trás, pela
frente, um lugar que eu não sei por onde, mas que a
faz acontecer. Um modo de possuí-la e de utilizá-la,
parafraseando livremente Lao Tse, no texto XI de seu
livro Tao Te Ching:

Trinta raios cercam o eixo


O uso do carro está no seu vazio
O jarro é feito de barro moldado
O uso do jarro está no seu vazio.
Fazem-se portas e janelas para a casa
O uso da casa está no seu vazio.
44 Portanto,
O ser serve para ser possuído
E o não-ser para ser utilizado

***

Estamos em plena década de 1950, em Buenos Ai-


res. Tenho duas irmãs. A mais velha, Dora Susana,
que chamamos de Pochi, três anos mais velha que
eu, mora há muitos anos em Melbourne, Austrália.
Casou-se com um italiano que vivia na Argentina
desde criança, Giacinto Salvatore Racchi, infelizmente
já falecido. Eles tiveram dois filhos gêmeos: Verônica,
que mora em Sidney, e David, que reside em Múrcia,
perto de Alicante, entre Granada e Valência. Ele é
designer gráfico, e inclusive já concebeu graficamente
alguns programas de dança. E minha irmã mais nova,

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Olga Beatriz, que chamamos de Betty. Ela se casou
com Horacio Ferro, jovem do nosso bairro, com quem
teve seu primeiro filho, Lisandro. Em seguida, viajou
também para Melbourne, indo ao encontro de Pochi.
Lá nasceu seu filho mais novo, Santiago. Ficou pou-
co longe de seu país. Voltou e hoje vive em Buenos
Aires com seus dois filhos, bem pertinho de nossa
mãe. Aliás, elas moram no mesmo bairro onde passei
toda minha infância e juventude: Lanús. Um típico
bairro de classe média, que fica a uns 30 minutos
do centro da cidade de ônibus. Para o apartamento
em que minha mãe vive até hoje, fui com apenas
um ano e meio de idade. Um apartamento antigo e
cheio de histórias da nossa família, impregnadas em
suas paredes.

Desde o início, minha mãe trabalhou como domés- 45


tica, assim como sua mãe Camila. Cuidava das casas
e das crianças das famílias. Com sorte, sempre pôde
contar com trabalho em ótimas famílias, muitas delas
tradicionais de Buenos Aires e com quem mante-
mos relações até hoje. Não à toa, meus padrinhos
de batizado são pessoas dessas famílias para quem
minha mãe trabalhou. Logo que se casou com meu
pai, entretanto, passou a se dedicar ao lar e apenas
esporadicamente fazia algumas coisas em casa para
ajudar mensalmente, como lavar e passar roupas.
Gostava, sobretudo, de passar uniformes para mé-
dicos, que naquela época usavam roupas e aventais
engomados. Achava bonito o resultado do seu tra-
balho, todo branco.

***

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Lembro-me de ter sido calado desde criança, algo
bastante comum em toda minha família, que era
bastante silenciosa. Hoje em dia, eu até grito, solto
alguns palavrões, mas fui educado para falar em um
tom de voz suficiente para se ouvir, um dom que fui
perdendo aos poucos. Toda a casa se mantinha sem-
pre muito silenciosa. Papai deitava cedo porque acor-
dava cedo. Mas nós, eu, minha mãe e minhas irmãs, ao
contrário, fomos acostumados a dormir tarde, o que é
um costume de Buenos Aires, onde meia-noite ainda
se via criança acordada pelas casas. Mas, como meu
pai já estava dormindo, nos acostumamos a andar
pela casa primando pelo silêncio absoluto para não
acordá-lo. Assim, tudo era extremamente silencioso.

Mesmo de dia, e confesso que nem sei bem por que,


46
tudo era também silencioso. Falava-se pouco. E justa-
mente por isso aprendi a ler aquela casa através dos
movimentos, através dos gestos. Tenho ainda a nítida
sensação de quando criança observar todos estes
movimentos de uma perspectiva de uma criança, que
vê as coisas de baixo. E ler todas essas informações
contidas nos movimentos de cada um dos integrantes
de minha família. Na hora de jantar, por exemplo,
a televisão era desligada, mesmo ainda sendo uma
grande novidade naquela época. E esse hábito de se
falar muito pouco aguçava os sentidos para a percep-
ção dos pequenos gestos de cada um à mesa. E aquilo
se tornava para mim quase que uma compilação de
estudos do movimento. Possivelmente tratava-se ali
do meu primeiro curso de composição. Sem que eu
me desse conta disso, naturalmente.

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Logo essa minha atenção passou a se espalhar por
todos os momentos e todos os cômodos da casa. Meus
pais, por exemplo: eles tinham uma relação aparen-
temente pouquíssimo afetuosa. Raras vezes vi gestos
que sinalizassem algum afeto entre eles. Ao contrário,
tudo soava em um tom extremo de muito respeito, o
que, ao mesmo tempo, não significava menos amor,
tanto que ficaram juntos durante todo o tempo, até a
morte de meu pai. E eu aprendi a ler aquela economia
do gesto, da intenção. Uma economia que transpare-
cia sua verdade. Mas absolutamente contida. Exata.

Mesmo acostumado com o silêncio, eu adorava tudo o


que era de alguma forma teatral. Quando estávamos
de férias, no verão, podíamos ficar na rua até tarde
e eu gostava muito de contar histórias terríveis aos
meus amigos, todos da minha idade. Na verdade, o 47
que eu gostava mesmo era sentir como o modo com
que eu contava minhas histórias os atingia, o que
eu fazia com requintes de detalhes e suspenses. E
ficava bem feliz quando constatava que meus obje-
tivos haviam sido atingidos. Mais feliz ainda quando
ficava sabendo mais tarde que os pais dessas crianças
pediam para minha mãe que me proibisse de contar
aquelas histórias, que muitas vezes não as deixavam
dormir à noite. De alguma forma, desde cedo, eu já
estava lidando com essa habilidade de atingir o ou-
tro, tão fundamental no ofício de coreografar, uma
característica de quem está num palco.

Esse gosto por contar histórias, na verdade, teve sua


origem na escola. Sempre estudei em escola pública,
porque na época eram as melhores. Ir para uma escola

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48

Olga Figueiroa e Luis Pablo Arrieta, seus pais, em Bariloche

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particular significava ter problemas de disciplina ou
de assimilação. E, em minhas escolas, tive a sorte de
ter podido contar com excelentes professores. Assim,
eu simplesmente adorava ouvir como eles contavam
a matéria. Sim, porque para mim eles não apenas
ensinavam, mas contavam. Como se conta histórias.
Acho que a primeira lição que aprendi de meus mes-
tres foi justamente esse gosto em contar histórias. Eu
reparava no modo como eles falavam, no tom de voz,
na postura, no olhar. E registrava tudo na cabeça,
para mais tarde usar com meus amigos da vizinhança.

Dessa habilidade em contar histórias, logo se desen-


volveu a vontade de montar pequenas peças teatrais
em casa, quando eu tinha mais ou menos 10 anos de
idade. Nosso apartamento tinha dois dormitórios, um
dos meus pais e outro que eu dividia com minhas irmãs. 49
Nele, havia uma espécie de cama suspensa que servia
para quando minha avó vinha dormir conosco. Era só
abaixá-la e pronto. Porém, na maioria das vezes, ela
ficava suspensa e fechada com uma cortina. Claro que,
para minha imaginação, e, sobretudo, levando em
conta nosso tamanho de criança, aquela cama havia
se tornado ideal para um pequeno palco, contando
inclusive com uma boca de cena razoável. E era ali
onde eu fazia minhas primeiras peças teatrais: vestia
minhas irmãs com figurinos confeccionados por mim
com jornais velhos, colocava flores na cabeça, deter-
minava todas as falas, quando elas deveriam aparecer,
quando avançavam, quando recuavam... Até os agra-
decimentos eram devidamente ensaiados por mim.
Uma de minhas irmãs lembra até hoje que eu, como
diretor, decidia tudo. E que a elas restava apenas me

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obedecer. As duas eram praticamente minhas escravas,
mas nem se davam conta disso, tamanha era a minha
capacidade de persuasão. E eu também entrava em
cena, fazendo todos os papéis que sobravam.

Como público, convidava as crianças do bairro. Bem,


convidar não era exatamente o termo. Na verdade, eu
cobrava ingresso que podia ser um brinquedo quebrado
ou algo assim. E novamente os pais deles se queixavam
aos meus, dizendo que os brinquedos de seus filhos
simplesmente desapareciam de um dia para o outro.

Nosso apartamento tinha também um pequeno pátio.


Nos dias de sol, minha mãe estendia os tapetes que
ficavam do lado de nossa cama e aquilo rapidamen-
te se transformava em cenário para mim. Adorava
50
brincar com eles. E minha mãe não se importava
com isso. Construía cidades, cenários mirabolantes,
imaginava o movimento de todos os personagens,
enfim, já estava lidando com as questões da cena o
tempo inteiro em minha infância.

Se até então eu nunca havia imaginado que poderia


ligar-me à dança e ela ainda não tinha aparecido em
minha vida de forma efetiva, em contrapartida, tive
sempre muita afinidade com tudo que era teatral. E
isso se intensificava ainda mais, graças a um privilégio
que tínhamos naquela época, que era a possibilidade
real de uma família de operários poder se dar ao luxo
de ir pelo menos uma vez por semana ao cinema, e
às vezes também ao teatro. Algo inimaginável hoje
para uma família de operários argentina.

***

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Luis pequeno, na charrete, em Santiago del Estero

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Numa época, meu pai criava pombos no terraço, che-
gando inclusive a ganhar medalhas em competições de
pombos-correio. Minha irmã ainda guarda uma pulseira
com todas elas. Mas como meu pai era muito prático
também, certo dia chegou à conclusão que dava muito
trabalho criar esses pombos, que logo se transforma-
ram no jantar da família. Na verdade, quem chegou a
saboreá-los fomos eu, meu pai e minha mãe. Minhas ir-
mãs, chatas para comer, se recusaram terminantemente.

Depois disso, o interesse de meu pai mudou de


pombos para canários. Comprou uma gaiola enorme
que tinha quatro pés imensos e lá dentro ficavam 30
canários que cantavam o tempo todo. O espaço em-
baixo dessa gaiola, como num passe de mágica, logo
se transformou para mim em uma carruagem e ali eu
52 brincava com minhas irmãs. Como éramos um tanto
miudinhos, magrinhos, cabíamos perfeitamente na-
quele espaço. E, logicamente, era eu quem decidia
como era a carruagem, o que se fazia lá, qual era o
percurso da viagem, quem eram os personagens...
Elas só tinham que entrar ali embaixo e ficar quietas.
Ah, e me obedecer.

Às vezes, eu fazia como se estivesse filmando tudo


aquilo e me jogava no chão e fingia seguir com mi-
nha câmera imaginária a carruagem que passava.
De alguma forma, sempre via as coisas de baixo para
cima e imaginava como elas se mexiam. Gostava de
ver a perspectiva das formas, de imaginar novos ân-
gulos. Penso que é o que faço até hoje. E faço hoje
do mesmo jeito, só que isso agora se tornou minha
profissão. Em alguns ensaios, entrefecho os olhos

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para desfocar as imagens, criando traços e manchas.
Ou caminho pela sala para ver de outro ponto de
vista, para surpreender-me com as outras leituras
contidas naquilo que estou fazendo, revelando tantos
outros Luises que não imagino. Por outro lado, em
todo meu período de infância, não tive a sensação
de ter sido criança. Aliás, não me lembro de ter tido
essa sensação até hoje. Das duas uma: ou ainda sou
uma criança, ainda olho as coisas com o olhar que via
antes. Ou não cresci, ou já nasci velho.

Não me lembro de ser ligado a nada e nem a outras


pessoas. Acho que nem muito à família também.
Nessa época em que estudava, a prefeitura de Bue-
nos Aires oferecia acampamento fora da cidade, nas
férias de verão, para as crianças que estudavam em
escolas públicas. Minha irmã mais velha foi a primeira 53
de nós a ir num acampamento só de meninas, que
distava duas horas da cidade. Foi uma experiência
desastrosa: no terceiro dia tiveram que buscá-la de
volta, porque chorava muito. Já eu, menor que ela,
fui a outro acampamento bem mais distante, a 800
km de Buenos Aires, perto de Bahía Blanca, onde
nasceu o coreógrafo e meu futuro amigo Oscar Araiz.
Lá tem uma praia belíssima, com muito vento. Um
clima quase desértico, com dunas e tudo. Passei 15
dias ou mais por lá, sem o menor problema, adorando
descobrir novas paisagens. E quando acabou, logo
queria voltar de novo. Não tinha aquele apego à
família como minha irmã.

Nessas colônias de férias, aproveitava para exibir meus


dotes artísticos que afloravam dia a dia. No final da

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tarde, nos reuníamos em torno de uma fogueira com
todos os professores. Esses encontros tinham o nome
de peña, e eram uma espécie de círculo social recrea-
tivo, momento de confraternização entre todos. Logo
enxerguei ali uma oportunidade de me apresentar:
cantava e dançava sem o menor pudor. Não me lembro
bem o que seria essa dança. Acho que eram músicas
e danças folclóricas argentinas e espanholas, porque
na Argentina temos muita ligação com a nossa cultura
popular e da Espanha. Até hoje vejo meus sobrinhos e
seus amigos se reunirem para cantar músicas folclóri-
cas, mesmo que misturadas com rock ou outros ritmos
mais atuais. Desde cedo, na escola ainda, conhecíamos
muitas danças – zamba, chacarera, gato, malambo,
cueca, e deve ter sido esse o meu primeiro repertório
nos acampamentos que frequentava. Na verdade,
54 nunca aprendi corretamente ou academicamente es-
sas danças ou coreografias folclóricas, o mesmo com
as típicas, ou seja, o tango. Mais tarde, as coreografei
porque as via de criança nas reuniões familiares, no
jeito diário do meu povo e, principalmente, porque
era assim mesmo que eu as queria.

Pensando bem, coisas muito curiosas vinham daí: se,


por um lado, eu era muito tímido e calado, quando
tinha que fazer algo assim, me apresentar cantando e
dançando, fazia sem titubear. E melhor: se me manda-
vam organizar essas apresentações com meus colegas,
o prazer era ainda maior. Na escola, por exemplo, gos-
tava de me apresentar nos espetáculos de fim de ano.
Lembro-me que, no último ano da escola primária,
eu deveria ter uns 12 anos, minha professora estava
grávida. Diante de sua impossibilidade de organizar

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a festa de encerramento do ano e do nosso curso,
me ofereci para fazê-lo. Ainda hoje me impressiona
o meu atrevimento quando o assunto era apresen-
tação de música e dança. Quando o assunto era arte.
Sempre fui atrevido. Apenas perguntei a ela: Quer
que eu faça? Quer que eu organize tudo? Acho que
não dei muita chance para ela me negar esse pedido
quase que impositivo. E logo tratei de chamar os
alunos de todas as turmas. Organizei tudo e fiz um
belo espetáculo de fim de ano, com textos, poemas,
músicas e danças. Lembro que, mesmo contra a minha
vontade, fui obrigado a cortar algumas partes já que
aquele “espetáculo” se alongava muito. Desde cedo
já não conseguia fazer coisas curtas.

Nessa mesma época, quando tinha uns 9 anos, minha


mãe me perguntou se eu não gostaria de aprender a 55
tocar acordeom. Como eu tinha muito tempo livre,
poderia aprender alguma coisa. Bem em frente à
minha casa, morava um professor que ensinava acor-
deom e bandoneon. Seu nome era Benito Suarez.
Eu, assim como toda criança daquela época, achava
bandoneon um tanto cafona, porque era coisa de
tango e tango era coisa de gente idosa. Optei, então,
pelo acordeom. Logo me deram um instrumento de
presente para que pudesse estudar em casa. E tenta-
vam me incentivar, afirmando que eu era talentoso.

Comecei os estudos musicais entusiasmado. Mas a


prática diária, uma condição nesse caso, me parecia
tediosa e aquilo tudo ganhou ares de obrigação,
já que eu tinha que me obrigar a estudar as lições,
como solfejo e exercícios técnicos. Eu preferia ficar

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improvisando e brincando com os sons, criando efei-
tos sonoros, ou seja, lidando com o aspecto criativo
da coisa. E meu professor de imediato reconheceu
meu talento, e passou a adotar uma postura de me
explicar tudo como se eu fosse um adulto. Tenho
certeza que ele não via uma criança em mim. Hoje
reconheço que aqueles primeiros conhecimentos em
música me ajudaram na minha futura carreira.

Quando comecei com a escola secundária, uma


espécie de ginásio, parei um pouco com as aulas
de acordeom. Dos cinco anos do secundário, os
primeiros quatro no Colégio Almirante Guillermo
Brown, e o último na Escuela de Comercio Abraham
Lincoln. Nesse nível de estudo, era possível escolher
três linhas: bacharelado, comercial (para ser perito
56 mercantil) e industrial. Essas três linhas orientavam,
então, a escolha dos cursos superiores mais tarde, em
três grandes áreas: uma mais administrativa, outra
mais humanística e outra mais ligada à engenharia.
Escolhi, meio sem saber direito por que, me formar
como perito mercantil. Acho que sempre fazia essas
coisas sem saber muito a razão. Meio intuitivamente.

Durante todo meu período de escola, tanto primária


quanto secundária, sempre fui bom aluno, com boas
notas. Mas, na verdade, não me lembro nunca de ter
estudado efetivamente. Minha vontade sempre foi
a de entender imediatamente o que vinha dos meus
professores. Naquela época, por exemplo, estava-se
iniciando a adoção do ensino da matemática moder-
na nas escolas. Nossos professores tinham que ensinar
ao mesmo tempo em que aprendiam aquela novi-

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dade e faziam isso absolutamente apaixonados pela
nova descoberta que estavam fazendo e de algum
modo seduziam os alunos com essa paixão. E estou
falando de matemática! E, embora eu nunca tenha
me dedicado como deveria aos números, sempre tive
as maiores notas. Acho que devo creditar um pouco
desse meu empenho ao fato de ser um autêntico
virginiano, que tem como característica o gosto pelas
ciências exatas. Basta lembrar que o verbo de virgem
é analisar, perscrutar.

Toda a coisa da lógica sempre me atraiu muito. Tudo


o que envolvia reflexão, raciocínio, representava uma
imensa diversão para mim. E, ao mesmo tempo, eu
era um aluno que estava constantemente envolvido
com a turma da bagunça. Sempre gostei de sentar
com as meninas, pois ao mesmo tempo que eram 57
bagunceiras, eram muito espertas, inteligentes. E isso
continuou depois: nas companhias de dança em que
trabalhei, sempre fiquei do lado das pessoas diverti-
das, até um pouquinho bagunceiras, mas sempre as
melhores bailarinas.

E a dança? Onde entrava a dança em tudo isso? Ela


veio entrando em todos os momentos de minha vida,
mesmo que não diretamente. Minha observação da
movimentação e dos gestos das pessoas de minha
família já era uma forma de dança. As histórias que
eu contava, as peças de teatro em casa, os espetáculos
na escola que eu organizava... Tudo era um caminho
de dança que já se delineava aos poucos.

***

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A escola sempre representou para mim um labora-
tório de novas experiências, quase todas artísticas.
Lembro-me que se pedia muito aos alunos que fizes-
sem todas as ilustrações dos trabalhos sobre os temas
que estávamos estudando, independentemente da
disciplina. Eu adorava fazer isso. Nem sei se desenha-
va bem, mas creio que para idade que eu tinha, nunca
tendo frequentado um curso de desenho, conseguia
alguns resultados que me satisfaziam e que arranca-
vam elogios dos meus professores.

Lembrando de tudo isso, o que me chama a atenção


hoje é que todos os meus desenhos eram enormes.
Nos cadernos comuns, por exemplo, eu precisava fazer
numa folha em separado, dobrar e colar nas páginas, já
que sempre fazia desenhos imensos. Se eu gostava já de
58
fazer longos espetáculos na escola, que precisavam ser
encurtados para não chegar a 5 horas de duração, gos-
tava também de tudo que tivesse uma perspectiva de
algo que deveria ser visto de longe, de algo grandioso.

E essa minha habilidade foi-se desenvolvendo aos


poucos. Se havia uma festa de aniversário, e os en-
feites deveriam ser feitos, eu logo me candidatava.
Adorava copiar os motivos do Walt Disney, como
Peter Pan, A Bela Adormecida, A Branca de Neve
e todos aqueles contos e filmes que eram moda na
época. E tudo era imenso. Não podia ser diferente.
Mas era um imenso pelo menos para o meu tamanho.
Era a sensação que eu tinha. E era também o meu
inegável atrevimento de fazer sempre essas coisas
nesses tamanhos. Nunca fiz nada pequeno, nunca.

***

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Nós, mesmo sendo filhos de operários, íamos
toda semana ao cinema. Nas terças ou quartas-
-feiras era o dia das damas, ou o Lady Day, como era
conhecido. Nesse dia, o cinema custava mais barato, e
minha mãe, logo depois do almoço, fazia um lanchi-
nho, colocava tudo numa sacola e íamos todos assistir
a três filmes seguidos. Geralmente, era apresentado
um filme americano, um espanhol e outro argentino.
Todos, na verdade, relativamente velhos. Nenhum
lançamento importante. Mesmo assim, esse era um
programa que adorávamos fazer todos juntos.

Desde cedo, eu já tinha o hábito de ir ao cinema.


Todo aquele ambiente, com as poltronas, a tela,
enfim, tudo aquilo se tornava familiar para mim. E
essa sensação ficava ainda mais forte porque assistí-
59
amos aos filmes comendo os sanduíches que minha
mãe havia preparado, quase como num piquenique.
E, assim, as horas passavam e saíamos geralmente
à noite de lá: eu, minha mãe, minhas duas irmãs e
quase sempre alguma vizinha, já que fomos muito
sociáveis no bairro.

Tinha uma família que residia perto de nós, no mesmo


quarteirão, que nos marcou de forma especial. Era a
família Sánchez Zambrana, vindos da Andaluzia, na
época do governo franquista. Carmita e Pepe e suas
três filhas se tornaram nossos amigos. Por coincidên-
cia, suas filhas tinham quase as mesmas idades da
gente: Silvia, a mais nova, Adele, que regulava com
minha idade e a mais velha, Chiqui, nome carinhoso
que vinha de Chiquita.

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Com elas, tive a grata oportunidade de conhecer mui-
tos costumes daquele povo, sobretudo suas danças.
Tanto que hoje, por exemplo, mesmo sem nunca ter
feito dança flamenca, tenho conhecimento daquilo,
desde a impostação física, os detalhes de movimentos,
tudo. Acho que era porque eu havia convivido de
certa forma com a fonte, coisa que até hoje me serve
demais no meu trabalho como coreógrafo.

Até o modo como eles falavam o espanhol, com


aquele sotaque carregadíssimo da Andaluzia, ex-
tremamente exagerado e um tanto nasalado, me
interessava. Eles tinham o hábito de falar muito, às
vezes quase gritavam, sempre com uma movimen-
tação grandiloquente e gestos amplos. Tudo isso,
claro, me chamava a atenção porque era a exata
oposição de como tudo acontecia em minha casa,
60
onde imperava o silêncio, o movimento contido, o
controle. Tudo era diametralmente oposto na casa
dos Sánchez Zambrana. Era uma espécie de algazarra,
e havia sempre motivo para se cantar e dançar. Uma
casa alegre. E contagiante.

Na época da Semana Santa, por exemplo, como meus


tios tocavam violão e minha mãe tinha bumbo em
casa, algo bem típico do folclore argentino, e eu tinha
que tocar acordeom, mesmo detestando, reuníamo-
nos todos no apartamento deles, que era bem menor
que o nosso. Lá, se juntavam umas 50 pessoas, todas
cantando, festejando, enquanto se cozinhava mui-
to, o tempo todo. Isso era típico deles, dos mouros:
aquele frio de inverno, a casa toda fechada, cheia
de gente e aquele cheiro forte de comida, de fritura,
tudo misturado. Era uma festa.

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E o modo como eles contavam das festas da Semana
Santa e das maneiras de cantar as Saetas, músicas
cantadas nessa parte da Andaluzia, me fascinava.
Acompanhadas unicamente por tambores, as Saetas
eram feitas como as músicas dos repentistas brasi-
leiros, ou seja, eram livres, espontâneas, imediatas.
Vinha a procissão com a imagem da Virgem cheia de
facas de ouro cravejadas de diamantes, fincadas em
seu coração, ladeada de velas, trazida pelas pessoas
com capuzes que iam fazendo os ritmos marcados,
passando pelas ruazinhas antigas da cidade. Conta-
vam que os balcões das casas ficavam cobertos por
mantos pretos e seus moradores suplicavam cantando
uma graça, algo quase como uma marcha fúnebre.
Toda vez que me contavam isso, ficava impressiona-
do. Aquilo era divino, em todos os sentidos.
61
Isso me fez lembrar também o modo como nossa fa-
mília festejava a Semana Santa. Minha mãe e nós três
tínhamos o costume, quase uma superstição, de visitar
sete igrejas nessa ocasião. Naquela época, a missa de
ressurreição era à meia-noite. Entrávamos na igreja,
que não tinha luz, apenas uma ou duas pequenas
velas no altar para não ficar totalmente escuro. As
imagens ficavam todas cobertas por um tecido roxo
e quando dava meia-noite, o sino começava a bater
forte. Assim, desde o átrio até o altar, vinha o bispo
caminhando pelo corredor com seu séquito. Muito
incenso no ar. À medida que iam entrando na igreja,
o coral começava a cantar aleluia pela ressurreição,
acompanhado pelo órgão. E então as cordas eram
puxadas para fazer cair os tecidos dos santos, que
surgiam como se nos olhassem lá de cima. Nesse exa-

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to momento, todas as velas e as luzes eram acesas.
Fantástico. Toda essa forma de ritual, de espetáculo,
de alguma maneira me alimentou muito.

Outra lembrança que também me alimenta são


nossas idas ao teatro. Em Buenos Aires, existe uma
avenida central chamada Avenida de Maio, repleta
de prédios de arquitetura art nouveau e que até
hoje estão bem-cuidados. No início do outro século,
muitos espanhóis vindos da região de Galícia logo se
instalaram naqueles arredores e essa avenida passou
a contar com dois ou três teatros especializados em
espetáculos típicos da Espanha. Eram as chamadas
zarzuelas, um gênero equivalente à opereta alemã,
ou algo mais modesto, e que tem um enredo meio
falado e meio cantado, inventado e adaptado pela
62 corte espanhola, que adorava apresentá-la nas
reuniões da nobreza.

Na Argentina elas se transformaram em espetáculos


que falavam um pouco sobre cada região da Espanha,
com suas danças e músicas. E, às vezes, faziam uma
espécie de viagem ao redor do mundo, apresentando
em quadros os diversos países e suas culturas, como
também acontecia aqui no Brasil, com os teatros de
revista. Além das zarzuelas, vinham também espetá-
culos de canto e dança, muitos deles mostrando cos-
tumes e culturas regionais, como um cartão turístico
de varias partes da Espanha.

Minha família, típica família de operários, se dava


ao luxo de assistir, talvez em um dia mais barato,
as zarzuelas sempre que era possível. Sem dúvida,

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tratava-se de um programa especial para nós. Como
nunca tivemos automóvel, íamos de ônibus até um
ponto e completávamos o percurso a pé, o que
gostávamos muito de fazer. Caminhar à noite em
Buenos Aires, sobretudo no centro, era felizmente um
hábito comum e elegante. Íamos eu, minhas irmãs e
minha mãe.

Meu pai raramente nos acompanhava, porque além


de ser pouco dado a esses programas sociais, tinha
a desculpa de que precisava acordar bem cedo para
trabalhar, lá pelas 4h30 da manhã. Mas, um programa
que ele não perdia, além do seu preferido, o futebol,
eram as apresentações do Holliday on Ice, no Luna
Park, ao que sempre nos levava com entusiasmo e
admiração, assim como nos levava a parques de di-
63
versão e aos circos que visitavam a cidade.

Além das zarzuelas, assistimos aos muitos espetácu-


los de dança espanhola. Numa dessas ocasiões, tive
a oportunidade de ver Antonio Gades, ainda muito
novo, quando ainda era apenas um bailarino de uma
companhia. Mas seu nome nunca me saiu da cabeça,
desde o primeiro momento que o vi. O principal te-
atro da Argentina, o Teatro Colón, frequentávamos
pouco. Ou quase nunca. Não me lembro de ter visto
algum balé nele na minha infância. Os concertos
eram mais comuns, sobretudo em sessões especiais
durante o dia, como atividade da escola. Peças de
teatro infantil raramente assistíamos. O gosto era
mesmo voltado para os musicais com danças folcló-
ricas argentinas e espanholas.

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Mas o curioso disso tudo é que hoje percebo que fico
mais emocionado ao lembrar dos cultos da igreja do
que do teatro. Penso que no teatro as pessoas estão
sentadas, lendo um programa e possivelmente fa-
lando banalidades, enquanto aguardam a peça. Na
igreja, as pessoas estão no escuro, rezando o terço
juntas, o incenso sendo passado assim, na cara, um
silêncio sepulcral. Tudo isso teve sempre um impacto
em mim muito maior do que o teatro. Ali, não se é
só um observador. Todos são intimados a participar:
cantando, levantando-se, orando em pé, escutando
o sino, se ajoelhando, abaixando a cabeça... Aquilo
era visceral. Era feito para comover as pessoas, no
sentido primeiro da palavra comoção. Aquilo era feito
realmente com o intuito de provocar os ânimos, de
provocar a alma.
64
Um outro elemento importantíssimo de minha in-
fância, que contribuiu de forma definitiva em minha
formação artística, foi o rádio. Como entrávamos no
colégio às 7 horas da manhã, imagino que acordá-
vamos por volta das 6. Depois que minha mãe nos
acordava, ela ligava o rádio que estava sempre sinto-
nizado numa estação nacional dedicada a programas
de cultura. Ouvíamos a hora oficial, depois algumas
notícias e as previsões do tempo, até que chegava a
hora das músicas. Aí, ouvia-se de tudo: música erudita,
popular, folclórica e típica. Chamávamos folclórica o
que tinha a ver com o campo, e típica o que tinha a ver
com a vida urbana, estilo que teria no tango sua maior
representatividade. Assim, na hora do café da manhã,
me acostumei com a Nona Sinfonia de Bethoven, se-
guida da canção El dia en que me quieras, com Carlos

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Gardel e Zamba de mi esperanza com Mercedes Sosa.
Tudo misturado. Tudo convivendo harmoniosamente
junto. Dessa forma, todos os estilos de música foram
apresentados a mim de um modo que pude reconhecer
a qualidade de cada um, independentemente do que
estava sendo tocado. Isso me permitiu desde sempre
não ter nenhum preconceito com música. Ela estava lá,
todos os dias pela manhã. E eu sem perceber, já vinha
amadurecendo minhas percepções.

***

Eu estava adiantado no colégio por causa da época


do ano em que nasci. Pela idade que eu tinha, deveria
esperar o ano seguinte para poder ser matriculado. Só
que quando comecei, em companhia de outras crian-
ças pequenas do bairro, a passar as tardes com uma 65
professora especialmente contratada para cuidar de
nós, ela logo convenceu minha mãe a colocar-me na
escola. Eu deveria ser muito esperto com a idade que
eu tinha. Convencida, minha mãe não teve dúvida:
mentiu sobre minha idade e conseguiu que eu fosse
matriculado na escola antes do tempo permitido.
Assim, me formei na escola secundária com 17 anos,
quando a maioria se formava com 18.

No último ano, então, comecei a trabalhar como


office boy ou cadete, como se chama essa profissão
por lá. Tratava-se de uma decisão minha que logo foi
acatada por todos da família. Eu estudava de manhã,
entre sete da manhã e uma da tarde, ia para casa,
almoçava, e das duas até as sete horas, dedicava-me
à minha nova atividade.

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Como office boy, fui trabalhar com um vendedor
de artigos elétricos, como tomadas, fios, lâmpadas,
esse tipo de coisa. Ele precisava de uma pessoa que
o ajudasse, recebendo os pagamentos, preenchendo
as notas fiscais, controlando os cheques. Aprendi
todas essas tarefas rapidamente, afinal eu faria
qualquer coisa para me ocupar durante as tardes.
Um dos motivos era bastante importante: esse era
justamente o período em que aconteciam as aulas
de Educação Física no colégio e, por sorte, eu não
precisava frequentá-las, porque estava trabalhando.
Mas o verdadeiro motivo era outro: eu simplesmente
de-tes-ta-va aquelas aulas.

Esse desinteresse por essa disciplina pouco tinha a ver


com minha relação com meu corpo. Não me lembro
66 de ter sido exibicionista e nem de ter grandes pro-
blemas com ele. Mas na época da adolescência, da
puberdade, pelo fato de estar adiantado na escola,
ficava sim um tanto envergonhado nas poucas aulas
de Educação Física que frequentei. Sobretudo nos
vestiários, quando eu tinha que tirar a roupa. Acho
que era porque eu não tinha pelos, nem debaixo dos
braços e nem pentelhos. Era novinho, com meus 11
anos, enquanto todos os coleguinhas já tinham seus
12 para 13. Para criança, isso já era muita diferença.
Lembro de todos com muitos pelos, orgulhosos por
já estarem se tornando homenzinhos e eu ali, sem
nenhum pelinho para contar vantagem. Era uma
espécie de timidez do pelo que me assaltava. Lembro
que cheguei a raspar a penugenzinha minguada que
eu tinha, porque tinham me garantido que se raspas-
se, cresceriam pelos mais vistosos rapidamente... Que

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besteira, meu Deus... Até hoje não tenho muitos pe-
los. Acho que por descendência de minha mãe índia.

Mas nas aulas de Educação Física havia a parte de


ginástica rítmica, com polichinelos ou coisas assim,
que eu achava mais interessante. Isso porque era, de
alguma forma, mais organizado: filas, contagem, um
início, um meio e um fim. Eu conseguia encontrar um
pouco mais de lógica naquilo. Mas na hora de jogar
basquete ou futebol, o momento constrangedor sem-
pre vinha à tona: ninguém me escolhia para o time,
simplesmente porque eu era mesmo péssimo jogador.

Outra coisa que odiava era o tal corredor polonês:


todos os alunos apostavam corrida e o último que
chegasse deveria passar por um corredor formado pe-
los colegas, que batiam nele. Cheguei a ver meninos 67
ensanguentados depois daquela brincadeira estúpi-
da. Uma manifestação machista de brutalidade, que
me produzia um mal-estar enorme. Mas continuava
a participar, engolindo a seco tudo aquilo, porque
se não as consequências poderiam ser ainda piores.

Eu não gostava de nenhuma atividade física. Curio-


samente. Sempre fui magrinho, mesmo mais tarde,
na dança. Quando criança, eu era um espaguete:
panturrilha e coxa eram a mesma coisa. No quinto ano
da escola secundária, por exemplo, fui reprovado por
faltas, já que trabalhava à tarde. Mas o pior era minha
inabilidade com os esportes, o que me fazia ficar de
recuperação e ter que prestar exame complementar
durante o período das férias. Acredito que fui o único
da escola a ser reprovado em Educação Física naquela

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época. Já meu pai adorava assistir futebol nos fins
de semana. Umas poucas vezes, chegou a me levar
com ele, mesmo que eu não demonstrasse lá muita
vontade para isso.

***

Eu tinha uma colega na escola secundária chamada


Maria Inês Fernandez, de família espanhola, de quem
gostava muito e de quem gosto muito até hoje.
Nunca perdemos o contato. Quando eu trabalhava
como office boy, até as 7 horas da tarde, como se diz
na Argentina, antes de ir para casa, passava na casa
dela, que morava perto de nós, num casarão velho.
Durante toda tarde, enquanto eu trabalhava, Maria
Inês ficava fazendo o resumo da lição que havíamos
68 tido pela manhã. Quando eu chegava, sua mãe me
trazia café com leite e um sanduíche, porque já sabia
que eu estava a tarde inteira trabalhando e, por isso,
faminto. Enquanto comia, Maria Inês lia para mim to-
dos os resumos que ela havia feito e, no dia seguinte,
se tínhamos prova, eu tirava dez, e ela não. Até hoje
ela se lembra disso. E a gente sempre ri quando ela
conta. Mais uma vez, penso que eu conseguia regis-
trar melhor as informações que me chegavam através
do ato de ouvir, mais do que pela leitura.

Hoje, Maria Inês ainda mora em Buenos Aires. E é


ainda umas das poucas pessoas daquela época que
ainda encontro, além de Nora Rio, que se sentava na
carteira de trás, com Maria Inês, e que sempre me
ajudava a sair do sufoco nas provas de inglês, para o
que não tinha nenhum talento, até hoje. Aliás, ela vai

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uma ou duas vezes por semana ficar com minha mãe,
para conversar, ajudar, fazer algumas compras, essas
coisas. Como é formada em psicologia, acho bom que
faça companhia à minha mãe. E quando vou visitá-la,
tenho sempre a chance de ouvir as mesmas histórias
de nossa adolescência, o que é um prazer.

***

Existe uma passagem dos meus tempos de escola secun-


dária que sempre conto para os bailarinos com quem
estou trabalhando: havia uma professora da disciplina
de Direito Civil, que tinha uma miopia muito forte e
usava óculos com lentes grossíssimas. Como nossa sala
era pequena, e eu estava sempre sentado nas primeiras
filas com as meninas mais bagunceiras, elaboramos
um plano sofisticadíssimo para incomodar a tal pro- 69
fessora. Algo de pura maldade. Coisa de adolescentes.
Todos juntos, sérios e fingindo concentração no que
ela nos dizia, executávamos um pequeno movimento
pendular com o tronco, de um lado para o outro, bem
lentamente. A professora, em sua miopia cavalar, tinha
então a impressão de que a sala estava balançando, o
que lhe causava uma certa tontura, ou um mareado,
termo que passou a batizar nossa brincadeira. Aquilo
era realmente uma bagunça. Basta imaginar o efeito
de todos os alunos vestidos iguais, de terninho e gra-
vata, fazendo aquele pequeno movimento, bem sutil.
O efeito era preciso e im-pla-cá-vel. A professora ficava
perturbadíssima e mandava que parássemos imediata-
mente com aquilo. E retrucávamos, dizendo que não
estávamos fazendo nada. Que estávamos quietos. Meu
Deus, tamanha era nossa crueldade...

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Mas o mais impressionante no mareado era nossa
sincronicidade absoluta: todos faziam juntinhos o
movimento. Ninguém errava. E olha que não tinha
contagem, nada. E por que conseguíamos isso? Por-
que entendíamos perfeitamente qual era o efeito que
deveríamos produzir. Isso é, para mim, o que se pode
chamar de dança de conjunto. E essa era, com certeza,
minha primeira aula dessa dança de conjunto. E por
isso conto essa história sempre para os bailarinos,
para que eles entendam exatamente o efeito que se
quer causar com aquela dança.

***

Terminado o ano, com meus quase 18 anos, troquei


de emprego, mas não de trabalho. A Argentina sem-
70 pre foi uma grande exportadora de cereais e grandes
empresas do setor estão sediadas em Buenos Aires,
sobretudo na região central, ali pelos arredores da
Avenida Corrientes e el bajo, o baixo, a parte baixa,
antigo reduto de tangueros e, à noite, devido à sua
proximidade ao cais do porto, uma zona repleta de
night clubs. Fui trabalhar numa delas como office
boy. A diferença dessa vez era que, além de trabalhar
dentro da firma, onde eu tinha até uma escrivaninha,
também trabalhava fora, fazendo alguns serviços de
rua. Sempre muito alinhado, de terno e gravata, eu
era responsável pela parte de entrega de materiais
e também organizava os arquivos, repletos de armá-
rios, onde eu organizava os contratos, ordenando-os
pelos números, já que naquela época ainda não se
podia contar com computador. Eles até já existiam,

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enormes, com rolos, cartões perfurados, mas não
funcionavam dentro da empresa, mas, sim, em outro
prédio, e pertenciam a uma empresa que prestava
serviço de computação para outras empresas.

Sempre tive iniciativa nos meus trabalhos, desde o


primeiro emprego. Sempre fui voluntarioso. E isso
certamente era o que me distinguia dos meus co-
legas, dos outros cadetes. Nessa segunda empresa,
por exemplo, coloquei rapidamente um monte de
trabalho atrasadíssimo em dia, mesmo antes que me
mandassem. Procurava sempre ser competente no
que escolhia fazer e aquilo tudo relacionado a ar-
quivos me parecia sempre muito lógico, quase óbvio.

Certo dia, novos funcionários contratados chegaram


para esta multinacional e, entre eles, mais dois cade- 71
tes. Então, automaticamente, me pediram que eu os
instruísse. Ou seja, passei a ser uma espécie de chefe
deles, e isso tudo em questão de meses. Comecei,
então, a dirigi-los, determinando o que e como deve-
riam executar cada tarefa, o que me deixou pratica-
mente sem nada para fazer. Claro, pois aquele serviço
uma só pessoa daria conta tranquilamente. Assim,
comecei a tirar proveito da situação e passei a fazer
coisas mais simples, como entregar algum contrato
fora da empresa e esperar pela assinatura. Por pura
iniciativa minha, enquanto guardava as cópias dos
contratos, que eram milhares, nos arquivos, comecei
a recalcular as tarifas e impostos pagos na Bolsa de
Cereais. Com isso, acabei descobrindo vários erros
nesses cálculos, e informei ao chefe de sessão, que
logo me incumbiu de verificar todos os contratos e,

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caso apresentassem erros, eu deveria consertar junto
à Bolsa. Dessa forma, separava diariamente alguns
contratos que deveriam ser verificados, e com Jorge
Xavier, meu subalterno preferido, saíamos à rua
para resolver os problemas e depois aproveitávamos
a tarde para passear pela bela Buenos Aires central,
tomar café ou até um cinema.

Nesse momento, ano de 1969, eu já tinha terminado


a escola secundária e estava sem saber que curso
fazer na faculdade. Foi justamente um período em
que caí numa profunda depressão que eu não iden-
tificava como tal, pois nem sabia o que era isso. Eu
sempre tinha sido desse jeito: melancólico, solitário,
triste. Sem mais nem menos, numa tarde depois do
trabalho, me hospedei num hotel da Avenida de
72 Maio e tive meu primeiro impulso tomando com-
primidos. Acordei no hospital com Jorge Xavier ao
lado da cama me perguntando: Loco, que hiciste?
Quando me recuperei e quis voltar ao trabalho, eles
me deram aviso prévio e me tiraram da empresa. Não
me queriam mais. Sem dúvida, um golpe para mim.
Em casa nada se comentou sobre o ocorrido. Em casa
era sempre silêncio.

***

Era uma depressão que, de certa forma, eu havia


captado no ar daquela cidade que era Buenos Aires.
Tudo ali encerrava uma tendência depressiva imensa.
Não é por acaso que as letras dos tangos se referem
o tempo inteiro a morrer, ao sofrimento, à solidão. E
não estou falando de um compositor ou outro, mas

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de um povo inteiro, de uma cultura. E o tango, nós
argentinos sabemos, exprime exatamente o senti-
mento do nosso povo.

Depois do trabalho ou nos fins de semana, por


exemplo, se eu e meus amigos íamos a um cinema ou
assistíamos a uma peça de teatro, obrigatoriamente
íamos depois a um dos tantos cafés que existem na
cidade e ali falávamos um pouco de literatura, ou o
que pensávamos sobre um determinado texto recém-
lançado que havíamos lido. Tudo isso era muito bom
e comum, mas de alguma forma um ar depressivo
tomava conta de todos nós, quase como uma moda.
Sem me dar conta direito, acabei sucumbindo a esse
jeito de ser meio melancólico, tedioso, cinza, que
estava no ar de Buenos Aires.
73
Passados poucos meses, viajei para Mar del Plata,
um balneário turístico ao sul de Buenos Aires, cidade
onde nasceu aquele que fez do tango não só a dança
e o canto dos argentinos, mas que soube reunir os
sons da cidade e do sentimento portenho com extre-
ma precisão e detalhe: Astor Piazzolla. E lá, durante
um inverno extremamente frio e melancólico, tive
outra crise de depressão. Acho que tudo ali era ainda
pior que minha cidade. Só para se ter uma ideia, na
praia principal dessa cidade, foi esculpida numa pedra
a figura de Alfonsina Storni, poetisa argentina que
se suicidou andando para dentro do mar... momento
que foi poeticamente registrado na canção Alfonsina
y el mar, gravada por Mercedes Sosa. Sua estátua
estava lá, como que nos lembrando todo o tempo
de sua morte, de sua tristeza e solidão.

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Tudo acontecera semelhante à primeira vez: hotel,
comprimidos, hospital. Só que mais intenso. Tanto
que fui obrigado a ficar internado num hospital
psiquiátrico por mais de um mês. Minha querida tia
Dora, irmã de minha mãe, que morava nessa cidade,
foi avisada. Ela, então, imediatamente comunicou
minha família, e se dedicou a me cuidar, indo me
visitar sempre que podia. Minha mãe também via-
jou algumas vezes para me ver e, logicamente, não
conseguia esconder a dor e a preocupação que tudo
aquilo lhe causava.

Foi uma época muito forte, que me proporcionou


uma aprendizagem importante. Mesmo sendo mo-
desto, era um ótimo hospital público. Foi uma época
dura para mim e, claro, para todos de minha casa,
74 que acabaram sabendo da fase difícil que eu passava.
Fizeram certamente tudo o que estava ao alcance
deles para me ajudar. E se eu sempre quis parecer
independente, decidido, nesse momento não hesitei
em mostrar meu lado extremamente carente, meu
lado vulnerável. E aceitei todas as ajudas.

Hoje, considero todo esse episódio uma experiência


psicológica transfiguradora, voltando-me inteira-
mente para dentro nessa época, abrindo-me para
o inconsciente e mergulhando nele. Ao voltar a
Buenos Aires, senti que uma considerável mudan-
ça tinha acontecido em mim, mesmo sem poder
ainda descrevê-la.

Mas hoje consigo reconhecer que esse foi um perí-


odo muito interessante para mim. Tão interessante

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que o diretor da ala psiquiátrica do hospital, doutor
Jorge Smith, um senhor careca e baixinho, simpati-
zou-se comigo e propôs que eu fizesse umas sessões
no consultório particular dele. Ele era um homem
de aguda inteligência e perspicácia. Apesar da mi-
nha idade, tratava-me de igual para igual e tivemos
conversas profundas e inteligentes que me ajudaram
muito, assim como experiências de hipnose muito
fortes e marcantes.

Dentro desse hospital, acabei vendo situações inten-


sas. Assisti gente morrer, convivi com pacientes com
problemas mentais, outros com problemas de alcoo-
lismo. Lembro-me de uma madrugada, dentro da psi-
quiatria, em que vi uma freira correndo, desesperada,
tentando localizar um médico pelo telefone. E um
paciente em estado de convulsão delirante. Impulsi- 75
vo, e como sempre oferecido, automaticamente me
levantei da cama disposto a ajudá-la. Ela me ordenou
que voltasse para cama imediatamente. Antes de ir, a
vi subindo em cima daquele paciente, sozinha, numa
última tentativa de controlá-lo. Uma imagem forte,
sem dúvida, que nunca saiu da minha cabeça.

Nós tínhamos muita atividade lá dentro. E a principal


delas era o desenho, material que depois era usado
pelos psicólogos em suas interpretações sobre nosso
estado. Como eu estava sempre bastante lúcido, me
ofereci para ajudar as enfermeiras e rapidamente
passei a auxiliá-las no controle dos medicamentos
dos pacientes. Não que eu assumisse toda essa res-
ponsabilidade. Elas apenas me davam as bandejinhas
com os nomes, tudo separadinho, e eu passava pelas

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camas, chamando a atenção, dando ordens a todos.
A mesma coisa de sempre, ou seja, esse desejo, esse
ímpeto em querer fazer, querer ajudar, querer orga-
nizar, querer mandar. Daí em diante, começaram a
me dar uma autorização para sair do hospital durante
o dia. Assim, eu podia ir à casa de minha tia e voltava
à noite para dormir. Quase como uma prisão em regi-
me semiaberto. Até que finalmente me foi dada alta.

Um pouco antes disso tudo, eu havia começado a


namorar uma moça em Buenos Aires, Norma Sánchez,
mais velha que eu, que tinha voltado da Espanha após
a separação de seu marido. Um namoro um tanto es-
tranho, mas éramos mesmo namorados. Lembro que
ela ficou chocadíssima quando soube do ocorrido,
pois jamais desconfiaria que eu tivesse essa tendên-
76 cia. Sempre fui muito brincalhão, sobretudo com ela.
Durante a internação, recebi um presente seu, um
livro, que eu tenho até hoje e que gosto muito de ler
e reler: Tao Te Ching de Lao-Tsé. Quase não entendo
o que está escrito lá. Mesmo assim, cada vez que leio,
alguma coisa se modifica em mim.

***

De volta a Buenos Aires, comecei a procurar empre-


go novamente. Comecei a trabalhar numa empresa
prestadora de serviços, recebendo por hora. Estra-
nhamente, essa foi uma época em que trabalhei
muito. Era, talvez, uma reação. Lancei-me com todo
o empenho ao trabalho e logo comecei a ganhar
muito dinheiro, por causa desse esquema de receber
por hora. E havia ainda o fato de que eu morava com

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minha família, uma economia no meu orçamento em
relação à moradia e à alimentação.

Nesse momento, comecei a pensar em cursar uma


faculdade. Prestei vestibular para o curso de direito.
Passei. Fiz meio ano e parei. Depois foi a vez do curso
de arquitetura, que durou para mim apenas três ou
quatro meses. Por fim, comecei a estudar cenografia,
na Universidad de El Salvador, uma instituição priva-
da, e uma das mais importantes em Buenos Aires até
hoje. Comecei e novamente parei. Nunca cheguei a
completar sequer um ano nos três cursos que tentei.
Mas como eu mesmo custeava meus estudos, meus
pais apenas me cobravam que eu terminasse algum
curso um dia. Mas eu ainda não havia encontrado
minha profissão, meu ofício. 77

Paralelamente a todas essas tentativas, eu continu-


ava sempre a ir assistir filmes. Adorava ir ao cinema.
Alguns deles eram filmes de dança: O lago dos cisnes,
filme russo com Maia Plissetskaya, e Romeu e Julieta,
com Galina Ulanova. Mas o filme que me causou o
maior impacto foi Morte em Veneza, de Luchino
Visconti. E não era um filme de dança.

Assisti também a alguns espetáculos da companhia de


Oscar Araiz, do Teatro San Martín, que sempre gostei
muito. Ele havia formado o Ballet Contemporâneo
de la Ciudad de Buenos Aires, com sede naquele
teatro, nosso teatro municipal, enquanto o Teatro
Colón era nosso teatro nacional, pois estava sediado
na capital do país.

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Outra oportunidade que tive de entrar em contato
com a dança vinha através dos programas de uma
emissora de televisão oficial argentina dedicada às
artes, no canal 7. Eles sempre exibiam balés, e me lem-
bro muito de assistir a uma filmagem que não lembro
se foi transmitida ao vivo de uma apresentação de
Rudolf Nureiev em O quebra-nozes no Teatro Colón.
Essa sim foi uma imagem poderosa para mim. Não me
lembro se ele saltava, se ele girava, se ele levantava
a perna, nada disso. A única coisa de que me lembro
era da imensidão do palco do Colón, um enorme
candelabro no lado esquerdo, e que ele entrava em
cena correndo, de malha branca, e depois terminava
caminhando em direção ao público. O impacto foi
violentíssimo. Mesmo pela televisão. Tive a sensação
de, pela primeira vez em minha vida, estar vendo
78 um animal se mexendo. Eu ainda não tinha 20 anos,
e aquilo imprimiu em mim algo que eu ainda não
conseguia dar nome. Mas que aos poucos reconhecia
sua existência.

***

Eu tinha um colega, e ainda hoje um amigo, Miguel


Ángel Ibáñez, que sempre me acompanhava ao cine-
ma e ao teatro. E com quem eu sempre tomava um
café para discutir o que havia acabado de assistir. Ele
sempre me cobrava: Ah, Luis, você já viu tal filme?
Ou tal peça? Já leu tal livro? Se ainda não leu, você
é um bruto! Essa espécie de cobrança intelectual era
típica da Argentina naquela época. E ele, como bom
argentino, não fugia à regra. Mas eu não era assim.
Isso não fazia parte do meu temperamento. Como

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gostava da companhia dele e como ele sempre me
cutucava, me instigando a assistir isso e aquilo, ia com
ele e, no fim, acabava achando o programa ótimo.

Um dia, fomos assistir, também no Teatro San Martín,


Romeu e Julieta, coreografia de Oscar Araiz. Era 1970.
Essa mesma versão seria montada também, quatro
anos mais tarde, para o Ballet do Theatro Municipal
do Rio de Janeiro. Pois bem, não sei exatamente se
sempre fui ingênuo ou extremamente ignorante. E
dou graças a Deus por isso. Enfatizo: dou graças a
Deus por essa minha primeira ingenuidade ou ig-
norância porque elas me permitiram naquela época
que eu tivesse uma abertura imensa a respeito de
tudo que eu recebia como novidade. Eu era poroso,
disponível. E isso fez a total diferença em tudo o que
eu construiria em dança mais tarde. 79

Lembro que, após assistir à encenação de Romeu e


Julieta, fiquei com uma sensação estranha de que
eu sabia fazer tudo aquilo. Desde dançar, fazer os
figurinos e cenários, pensar na iluminação, abrir e
fechar as cortinas, enfim, tudo. Eu sabia fazer. E essa
sensação não vinha de um suposto pedantismo. Era
quase vital em mim. E o mais curioso: eu nem atinava
que era necessário antes de tudo aprender a dan-
çar, que aquilo era algo que se aprendia. E também
nem sabia da existência da figura do coreógrafo.
Pensava que havia apenas um diretor, acostumado
que estava com o mundo do cinema. E que os baila-
rinos já sabiam fazer aquilo desde criança. Talvez eu
acreditasse que eles, antes de abrir a cortina, liam a
peça Romeu e Julieta, combinavam o que deveriam

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fazer e a partir disso cada um sabia exatamente
como proceder em cena. Uma maravilha, não? Não
deveria ser mesmo assim?

Esse meu amigo, que se encarregava de me desburri-


zar um pouco, me explicou que existia um coreógrafo,
como se formavam os bailarinos, e todo o universo
que se escondia por trás daquela cena de dança.
Mas nada disso era tão importante quanto aquela
sensação que havia me invadido. Hoje em dia sou
muito amigo de Oscar. Sempre conto essas coisas
para ele, que morre de rir. Tornar-me amigo dele foi
um presente que a vida me deu. Assim como aquela
oportunidade de ficar frente a frente com a dança.
Pela primeira vez.

80 ***

E eu seguia trabalhando por serviços prestados, mas,


agora, para uma empresa conhecida, a Lever, que
fabrica produtos de higiene pessoal e limpeza do-
méstica. Eu era responsável pelo controle dos dados
do estoque no depósito de mercadorias da central de
Buenos Aires, o que, definitivamente, não era pouca
coisa. Fazia manualmente todo o controle de entrada
e saída de mercadorias, que era comparado com as
informações que vinham da empresa contratada de
computação, uma novidade para a época. Como ela
não funcionava no mesmo prédio, seus dados sempre
vinham depois dos meus, feitos à mão, na ponta do
lápis. Logo meus cálculos passaram a servir para ve-
rificar se os dados do computador estavam corretos
e não o contrário. Algo curioso.

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Fiquei mais de um ano nessa empresa, até que um dia
o diretor da minha seção, um velhinho que parecia
um papai-noel, ótima pessoa, me disse: Olha... Luis,
você sabe que confio em você! Nem controlar seu
serviço e verificar se está tudo certo, preciso. Mas a
central da empresa está me cobrando, perguntando
por que eu tenho um empregado recebendo por
hora, o que custa muito caro. Defendi sua permanên-
cia conosco, Luís, e eles retrucaram, dizendo: já que
ele é tão competente, por que não o contratamos?
Claro, fiquei bem feliz com isso. Afinal de contas,
era o resultado do meu empenho. E também era um
bom sinal que aquelas nuvens mais carregadas que
passaram sobre minha cabeça tempos atrás haviam
se dissipado definitivamente.

Mas o melhor ainda estaria por vir. Esse mesmo 81


chefe completou a conversa dizendo que eu era
muito gabaritado para ficar apenas no estoque e
que a empresa, disposta a me contratar, me queria
trabalhando na gerência, não como gerente, claro,
mas ali, ao lado daquelas pessoas importantes. Passei,
então, a trabalhar numa linda sala, toda em estilo
inglês. Para chegar até ela, atravessava várias salas,
onde havia muita gente escrevendo à máquina, até
que chegava à minha seção, imensa, com apenas três
escrivaninhas. Uma delas era minha.

Acho que eles viram em mim um futuro promissor.


Mesmo sem falar inglês, eu era muito bem apessoa-
do, me vestia bem e era educadíssimo. Eles queriam
aos poucos ir me formando, para que eu fizesse uma
carreira lá dentro.

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Por coincidência ou não, uma das primeiras coisas
que me pediram foi um levantamento dos gastos nos
três últimos anos com investimentos em espetáculos
e eventos culturais. As pastas que eu abria tinham
como título: Espetáculos e concertos com orquestra
do Teatro Colón, Espetáculos e concertos no Lago de
Palermo. Curioso que tenha sido justamente essa área.
E eu estava feliz. Fazia esse trabalho aprendendo a
gostar do chá que nos serviam em porcelana inglesa.
Definitivamente, um novo mundo se abria para mim.

Mas, diferente do que imaginava, esse novo mundo


não seria exatamente naquela empresa. Um dia, esse
meu amigo Miguel me telefonou no trabalho: Luis,
estão abrindo as inscrições para a escola de Oscar
Araiz. Acho que vou me inscrever. Você não quer ir
82 também? E eu respondi, sem demonstrar muito en-
tusiasmo: Tá... se você puder, me inscreve também...
Na verdade, nem pensei muito a respeito, mas aceitei
mecanicamente o que o destino me propunha. Algo
novo que eu poderia ao menos experimentar.

A companhia de Oscar Araiz tinha aberto uma es-


cola voltada apenas para rapazes, devido à carência
histórica na hora de se formar o elenco masculino.
Era a Escuela del Ballet Contemporáneo de la Ciudad
de Buenos Aires, um curso intensivo, de dois ou três
anos no máximo, focado em rapazes que já tinham
uma certa idade e que, após esse primeiro estágio
de aprendizagem, pudessem integrar a companhia.

Chegou o dia da prova de seleção dos candidatos. Era


o mês de março de 1972, e eu tinha 20 e 1/2 anos.

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Naquela época, a companhia não trabalhava mais no
Teatro San Martín, mas no Teatro Cervantes. Em Buenos
Aires, todos esses teatros estão perto uns dos outros,
e o Cervantes é aquele que fica na esquina do Teatro
Colón. Um teatro pequeno, todo em estilo cervantesco,
com salas maravilhosas, bem ao gosto espanhol antigo.
Cheguei, me dirigi até a secretaria para verificar se meu
nome estava na lista. O atendente conferiu e me disse:
Está tudo certo. Você pode subir para se trocar. Trocar
o quê? perguntei. Meu Deus, tal era a minha ignorân-
cia... Não trouxe roupa, um uniforme, nada?!, ele me
perguntou espantado. Não sabia que tinha que trazer,
respondi com aquela cara de tonto.

Bem, vendo que não tinha mesmo jeito, me recomen-


dou que subisse e perguntasse se eu poderia fazer
a prova com aquela roupa mesmo. Quando estava 83
subindo, quase atropelei uma pessoa na entrada
do elevador. Era Oscar Araiz. Ele me olhou de cima
abaixo e perguntou: Você veio fazer a audição? Vim,
respondi, mas não tenho roupa. Tudo bem, suba do
mesmo jeito. Eu ainda não sabia quem era ele. Não
sabia quem era aquele jovem tão bonito, que um dia
se tornaria um dos meus melhores amigos.

Chegando numa sala linda, fiquei espantado com o


tanto de gente que estava ali tentando uma vaga.
Uma vaga que para mim nunca havia sido realmente
desejada. Lembro que muitos rapazes tinham algum
conhecimento em dança, o que me tornava ainda
mais estrangeiro naquele lugar. Fomos todos dividi-
dos em grupos. E à nossa frente ficava uma mesa com
Oscar e os professores que nos avaliariam.

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Era mesmo uma sala bem grande, onde ensaiava a
orquestra. Num canto, havia um piano de cauda.
E a sensação que eu tinha de ser estrangeiro ali se
esmaecia rapidamente. Era uma sensação indelével,
que não esqueço jamais.

Ao observar que eu não havia ido devidamen-


te preparado para a prova, me pediram sim-
plesmente que tirasse os sapatos, arregaçasse
a calça e tirasse minha camiseta. Fomos, então,
colocados de frente para a barra, pés parale-
los, em sexta posição. Ilse Wiedmann era quem
coordenava tudo.

Ilse, com seus quase 40 anos de idade, havia estudado


84 na escola do Teatro Colón, onde logo depois passou
a fazer parte do corpo de baile, nos anos 50. Depois,
foi a principal assistente do coreógrafo americano
John Neumeier, quando ele formou sua companhia
em Hamburgo, na Alemanha. Era uma argentina de
origem austríaca. Sempre morou em Buenos Aires,
sua cidade natal, mas também passou muito tempo
dançando em Stuttgart, onde foi colega da brasileira
Márcia Haydée, com quem regulava a idade. Até hoje
são muito amigas. Foi nessa época que conheceu
Neumeier, ainda bailarino de Stuttgart, como ela.
Quando ele foi chamado para formar a companhia
em Hamburgo, fez questão que Ilse o acompanhas-
se. Depois de um bom tempo trabalhando com ele,
resolveu voltar a Buenos Aires e permanecer com a
companhia de Araiz.

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Lembro-me que colocamos a mão sobre a barra e
ela nos pediu que fizéssemos um tendu para frente,
estendêssemos a perna e em seguida curvássemos
o tronco para trás, em um cambré. E eu então me
estendi longamente, num suspiro interno, sentindo
um prazer enorme naquele movimento. Até hoje
tenho essa sensação viva em mim. Uma sensação
extremamente emocionante. Parecia que naquele
momento eu estava ali inteiro, sem me dar conta
ainda do que aquilo representaria mais tarde. Num
instante, senti o corpo perder seus limites, flutuando
no espaço imenso da sala e o peito rasgado liberava
revoada de pássaros. Nunca mais iria esquecer essa
sensação. Era como nascer.

Não sei mais ao certo o que nos mandaram fazer


depois. Acho que tiraram a barra, e enquanto a pia- 85
nista tocava, pediram que caminhássemos no ritmo
atravessando a sala. De todos os rapazes, separaram
uns 20, apenas. E me disseram: Amanhã você começa.
Lembro até hoje: minha primeira aula foi no dia 13 de
março de 1972. Meu amigo passou na prova também.

Para as aulas, me instruíram que roupa eu deveria


usar. E que as comprasse ali mesmo por perto, onde
havia muitas casas que vendiam artigos para balé.
Na Argentina, tênis é chamado de sapatilha também.
Quando me disseram que era necessário comprar
uma, apontei para os pés de Oscar, que naquela
época usava tênis, perguntando se seriam iguais às
dele. Não, responderam, sapatilha de meia-ponta!
Sem saber direito o que aquilo significava – meia-
ponta? – atravessei a rua e comprei.

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No dia seguinte, fui até a empresa e comuniquei que
só poderia trabalhar de manhã, porque à tarde eu
começaria um curso de balé. Disse isso assim, como
se diz normalmente qualquer coisa, sem me dar
conta do que aquilo poderia representar para eles.
Lembro da cara dos meus superiores, estupefatos.
Claro, responderam que não, que isso não seria de
forma alguma possível. Então apenas retruquei que,
desse modo, estava deixando a empresa, que não me
interessava mais trabalhar ali.

Cheguei em casa e comuniquei à família: Vou começar


a fazer balé. Assim mesmo, apenas comuniquei uma
decisão que eu havia tomado e que não precisava
do consentimento prévio de ninguém. Meu pai não
disse nada. Ficou sério. Acho que veio tudo à cabeça
86 dele, todo aquele machismo latino. Já minha mãe,
bem mais objetiva e pragmática, disse: Desde que
não seja mais uma coisa que você começa e não ter-
mina, tudo bem. Veja se faça e termine uma coisa ao
menos. Ou seja: ninguém falou: Que maravilha que
vai fazer balé!! Mas também ninguém me proibiu de
nada. Estava bem assim.

E as aulas começaram. Depois de uma semana, os pro-


fessores voltaram a fazer uma nova seleção na turma
e só deixaram dez rapazes. Meu amigo saiu. Eu fiquei.

As aulas eram gratuitas. Ilse era nossa professora


de técnica de balé clássico. Depois, durante o ano,
tivemos também aula de dança moderna com Renate
Schotellius, uma alemã já falecida que morou muito
tempo na Argentina. Assim, desde que comecei na

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dança, o destino me colocou nos melhores lugares e
nas mãos dos melhores profissionais. Nunca procurei
conscientemente nada. Simplesmente fui conduzido
ao que hoje considero o melhor. Se eu não conse-
gui ser melhor, foi minha a falta de talento e não
pelo que o destino me ofereceu. A partir daí, tudo
começava a mudar na minha vida. Minha maneira
de sentir, ver, pensar e, consequentemente, minha
maneira de me movimentar. Tudo. Aquelas aulas de
técnica eram minha libertação e representaram para
mim um divisor de águas.

Passei a viver com o dinheiro que havia juntado em


meus trabalhos de prestação de serviço. Era uma boa
quantia, que permitia me dedicar integralmente às
aulas, ao menos no princípio. Em casa, me disseram
assim: Aqui você tem comida e teto para dormir. Mas, 87
passagem para pegar ônibus, um trocado para comer
um lanche ou para ir ao cinema, isso é com você.
Assim, tive que me adaptar rapidamente às novas
condições. Nada que fosse um sacrifício para mim,
tão encantado que estava com esse novo universo.
Precisaria apenas economizar. Antes, tinha o hábito
de comprar sempre muita coisa. Naquela época,
usava-se terno e gravata Pierre Cardin. Era o que se
considerava elegante para um jovem em Buenos Ai-
res. E eu saía assim: terno alinhado, sapato de marca,
camisa bem-cortada. A partir daquele momento, não
comprei mais nada. O dinheiro tinha que ser contado
para durar um tempo que se mostrava longo demais.

Nós alunos nos trocávamos no camarim. Eu era, como


sempre, extremamente tímido. Ficava quieto, só ou-

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vindo o que meus colegas conversavam. Foi aí que
comecei a saber que existia um tal de balé clássico,
uma tal de dança moderna, um tal de jazzdance.
Esse, por exemplo, era discriminado por aqueles que
se dedicavam estritamente ao balé. Havia alguns de
nós que já faziam teatro de revista, sobretudo para
ganhar dinheiro e poder se sustentar. E eram consi-
derados pela turma como uma espécie de bastardos.
E eu nem conhecia todas essas coisas, todas essas
divisões e estilos. E todos esses preconceitos também.

Depois de prontos, para ir até a sala que ficava dois


andares acima, tínhamos que passar por um corre-
dor onde estava a sala de ensaio da companhia. No
trajeto, podíamos dar uma espiada pela porta, que
tinha aquele visor de vidro. Oscar sempre estava lá,
trabalhando com seus bailarinos, gente como Gus-
88
tavo Mollajoli, Bettina Belomo, Julio López, Tony
Abbot, Daniel Angrisani, Norma Binaghi, Ana Maria
Stekelman, Mauricio Wajnrot, Freddy Romero, Irma
Baz, Hugo Travers, Mirtha Amat, Estela Arcos, Cristina
Barnils, Enriqueta Fálagan, Esther Ferrando, Susana
Ibáñez, Virginia Martínez, Guillermo Borgogno, José
Carlos Campitelli, Raul Córdoba, Julio César Guínez,
Pedro Ridolfo. Ou seja, bailarinos vindos do teatro
Colón, do Teatro Argentino de La Plata, ou de teatros
do interior da Argentina ou do exterior. Bailarinos
maravilhosos. Eu via uns nas pontas dos pés, outros
na meia-ponta, outros descalços, outros de sapato.
Oscar nunca teve preconceito de nada. Eles formavam
uma companhia em que a ligação artística primava,
não a igualdade física, nem os grandes virtuosismos,
mas a comunhão artística. Todos estavam imbuídos
naquilo que se fazia de uma maneira muito profunda.

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Tive certeza disso, depois de muitos anos, em 1993,
quando fui coreografar para o balé de Genebra.
Muitos bailarinos da época dele me diziam: Araiz
conseguiu fazer desta companhia uma companhia
com alma. Sim, ele conseguia dar uma alma artística
ao grupo com que trabalhava, e foi desta maneira
que passei a aprender e a entender a dança. E é
desta maneira que ainda entendo a dança, a profis-
são da dança. Não sei se consigo fazer isso tão bem
como ele, mas pelo menos é desta maneira que eu
a entendo. Um movimento profundo de todos os
envolvidos. Um modo de compartilhar experiências.
Um modo de como aquilo tudo deve funcionar, para
que ao chegar ao palco, chegue também à alma
de quem está assistindo e provoque alguma coisa.
Senão, nada faria sentido. Não me lembro de ficar 89
apaixonado por nenhum deslumbre técnico, mesmo
sabendo reconhecê-lo. O que emanava da maneira
de ser feita a dança foi o que sempre me atraiu. E
isso, aprendi com Oscar.

***

Foi um ano muito rico, em todos os sentidos, pelo


que aprendi diretamente ou indiretamente. Ilse
Wiedmann soube nos ensinar dança de uma maneira
fantástica, porque ela sabia muito bem o desnível
que havia entre nós todos da turma. Uns já sabiam
alguma coisa e outros, como eu, não sabiam nada.
Ela então optou por partir do zero e isso foi ótimo.
Mesmo tendo sido rápido, foi ótimo.

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Eu era um excelente aluno, porque sabia me deixar
dirigir, permitia que o professor me conduzisse ao
que ele achasse que era o melhor para mim. Lembro
que, logo quando comecei, meus colegas falavam
para eu ir fazer outras aulas com eles fora dali. An-
tes de me decidir, consultei minha professora e ela
simplesmente me respondeu que ainda não era o
momento, que eu esperasse que ela me sinalizaria
quando isso seria bom para mim. Então não fui
com meus colegas. Acatei de imediato o que Ilse me
recomendou e não encarava isso como privação de
minha liberdade, mas como uma entrega total de
discípulo ao seu mestre. Eu confiava intuitivamente
que ela saberia me encaminhar no universo da dança.
Só quem se sabe internamente livre é que pode se
entregar totalmente ao mestre...
90
Penso que esses primeiros momentos são aqueles em
que aprendemos mais, porque estamos mais capaci-
tados à entrega. Propositalmente, escolho a palavra
“entrega”. Não se trata de abdicação de liberdade.
Nunca tive problema com esse tipo de coisa. Sempre
tive minha liberdade, até nos planos mais íntimos.
Sempre soube quem eu era, desde criança. E sempre
soube até que ponto poderia falar ou não o que eu
era. Até hoje, muitas vezes prefiro calar porque sei,
dentro de mim exatamente aquilo que quero. E sei
que ninguém me tira o que eu quero aqui por dentro.
E isso é minha maior liberdade.

As liberdades “externas” não existem. São liberda-


des enganosas. Apenas as “internas” importam. E
saber disso vem desse processo de aprendizagem.

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Aprendizagem de dança, de técnica de dança. E meu
trabalho hoje é consequência daquilo que aprendi
quando comecei. Porque a primeira impressão é a
que mais importa. Sempre disse isso ao meu amigo
Ismael Guiser. Dizia que os grandes mestres como
ele, Tatiana Leskova, Yellê Bittencourt, esses grandes
mestres, artistas, é que deveriam dar aulas para as
pessoas que estão começando. Sei que pode parecer
um pouco cruel para eles, sei que para o professor
pode ser terrível dar essas aulas, mas seria a melhor
impressão que essas pessoas iniciantes poderiam ter.
Em geral se faz o oposto: a primeira impressão que
as pessoas têm vem com menos aprofundamento.
Depois se passa o resto da vida corrigindo essa im-
pressão errada e o trabalho é redobrado. Eu tive a
sorte de ter as melhores impressões desde o início.
91
As aulas começavam às três e meia da tarde e acon-
teciam no próprio Teatro Cervantes. Se algum aluno
chegasse atrasado, um minuto que fosse, mesmo que
já estivesse trocado e mesmo que a aula não tivesse
efetivamente começado, Ilse dizia: Está atrasado.
Volte amanhã! O aluno não entrava, porque a aula
era às três e meia em ponto. E pronto. E só podíamos
faltar três dias. Esse era o nosso limite. Se o aluno o
excedesse, perdia sua vaga no curso.

As aulas eram diárias, e a maioria era de técnica clás-


sica, com Ilse. Quando vinha a professora de dança
moderna, Renate, o que mais me impressionava era sua
extrema precisão de movimentos e sua lucidez intelec-
tual e física. Outra professora que também dava aula
era Ana Maria Stekelman, que já veio várias vezes ao

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Brasil. Na época, ela dançava na companhia de Oscar.
Era a bailarina que tinha o maior domínio da técnica
Martha Graham na cidade. Suas aulas eram fantásticas.

Como o curso era no período da tarde, pela manhã


eu fazia algum trabalhinho para ganhar uns trocados.
Ou então aproveitava para me exercitar. Por questões
estritamente econômicas, evitava sair com os amigos,
coisa que fazia com frequência antes de começar o
balé. E, quando saía, ia para algum café com eles, sen-
tava à mesa, mas não pedia nada, mesmo que tivesse
vontade. Nunca vivi isso como um drama. Tudo era
tão lógico pra mim, que isso também fazia sentido.

Depois de uns meses, nós alunos ficamos sabendo que


nossos professores e a pianista estavam sem receber
92 salários. E, por isso, o curso foi encerrado antes do
tempo previsto. Não tinha incentivo financeiro que
precisava, como tudo que era público naquele país.
Assim, as aulas aconteceram de março até dezembro
daquele ano. Chegou uma hora em que eles disseram
que já não era mais possível continuar daquele modo,
sem receber por dois anos, já que havia uma primeira
turma antes da minha.

Essa primeira turma era também formada só por


rapazes. Eram uns oito ou nove. Entre eles, havia um
brasileiro de quem me lembro muito bem: Rubem da
Silva, um mulato que eu achava lindo e que adorava
cantar. Eu gostava de escutá-lo falando espanhol,
com aquele sotaque brasileiro. Havia ainda um ou-
tro brasileiro, Toni Abbot, vindo de Porto Alegre e
que dançou durante muito tempo em Buenos Aires,

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principalmente na companhia de Oscar. Voltou para
o Brasil e hoje mora em Santos, onde é professor de
dança. Naquela época, ele já estava na companhia,
e o Rubem era aluno da primeira turma.

Nossa pianista, uma senhora chamada Carola Arias


Blanco de López, depois de uns meses, passou a vir
com uma tipoia segurando um dos braços e assim
tocava apenas com uma mão. Certo dia, estávamos
executando um passo simples, trinta e dois temps
levés na primeira posição, quando um dos rapazes
parou. Ilse se virou para ele e perguntou por que
ele havia parado. Ele respondeu que estava um
pouco cansado, com gripe. Ela, então, parou a aula
imediatamente e nos fez uma revelação: Vocês, por
acaso, sabem por que a Carol toca apenas com uma
mão? Porque ela está muito doente. Ela não recebe 93
faz quase três anos e está aqui todos os dias tocando
para vocês. Nós nos olhamos mutuamente, absoluta-
mente desconsertados com aquilo que acabávamos
de ouvir. E Carola emendou: Nosso país está tomado
por atentados, guerrilhas e essas desgraças políticas. E
sabem por que continuo tocando para vocês? Porque
sou contra a violência. Tirar a música de vocês, que
precisam aprender a dançar, seria uma violência!

Essa era a minha aula. Essa era a minha professora.


O que aprendi com ela foi muito além do que hoje
chamamos de técnica de dança. Para mim, sempre foi
muito clara a diferença entre técnica clássica e balé
clássico. Sei que podem parecer, mas, definitivamen-
te, não são a mesma coisa. Como estava fazendo aula
com Ilse Wiedmann, que trabalhou com Neumeier

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e que nessa época estava trabalhando com Oscar,
imagino que as aulas de balé clássico deles estavam
voltadas antes para promover em nós uma estrutu-
ra básica, mais do que construir um estilo de balé
clássico. Até porque, eles não faziam balé clássico
em seu sentido cênico. O que queriam era que nós
adquiríssemos uma consciência do que estávamos
fazendo, desde o início. E uma consciência ampla,
mais geral possível.

Tempos atrás fui assistir a um espetáculo de dança,


aqui mesmo em São Paulo. Quando li a ficha técnica
no programa, confesso que achei curioso: Professor
de técnica clássica: fulano de tal; professor de técnica
moderna: sicrano; professor de consciência corporal...
Professor de consciência corporal? Como assim? As
94 aulas de balé clássico ou de dança moderna não são
para consciência corporal? Para que serve qualquer
aula, de clássico ou de moderno ou contemporâneo,
senão para consciência corporal? Fiquei pensando:
será que não entendi nada até agora?

***

Um dia, depois de uns três meses de curso, minha


professora me permitiu finalmente que fizesse aulas
extras de dança, fora da escola. Fui então encaminha-
do à aula de Eduardo Helling, professor que havia
estudado com ela e que lecionava num estúdio par-
ticular da cidade. Os estúdios particulares eram quase
sempre ruins, geralmente situados em prédios velhos,
com salas adaptadas, cheias de colunas no meio. E
assim era a sala onde Eduardo dava suas aulas. Achava

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tudo aquilo ótimo. As aulas eram pagas, porque em
Buenos Aires não havia o costume de conceder bolsa
de estudo para rapazes, como acontece no Brasil. Não
me lembro de ninguém que deixasse o aluno fazer
aulas gratuitamente, por mais talentoso que fosse.

Quando chegou o fim do ano, Ilse quis montar uma


espécie de aulinha para mostrar a Oscar e a seus
assistentes o que tínhamos aprendido naquele curto
espaço de tempo. Não que ele desconhecesse de todo
o que fazíamos em aula: às vezes assistia a uma aula
ou outra, sempre de um jeito tímido e falando pouco.

Cruzávamos com ele pelos corredores. E eu ouvia


aqueles comentários típicos dos bailarinos a res-
peito dos coreógrafos: Ele é terrível!! ou coisas do
gênero. Engraçado. O destino me fez amigo dele.
95
Tenho aprendido muito com Oscar, principalmente
quando fica hospedado em minha casa. Ele vai para
a cozinha e, enquanto prepara um jantar para nós,
conversamos sobre tudo. Acho que aprendo com ele
ainda mais nesses pequenos momentos do dia a dia.
Sinto um carinho imenso por ele, que é extremamente
carinhoso comigo. Acho que deve ter orgulho de eu
ter começado lá na escola dele. E eu nem cheguei a
dançar em sua companhia... Ah, e é preciso que eu
conte: ele cozinha muito bem!

Pois bem, Oscar veio assistir nossa aula e então


propôs que cada um de nós fizesse uma pequena
composição coreográfica. Tempos depois ela acon-
teceu. Cada um mostrou o que tinha feito. Aquele
brasileiro da outra turma, Rubem da Silva, também
se apresentou. Não me lembro da parte dançada

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do solo dele, porque certamente não seria mesmo
de se lembrar. Mas me lembro de um momento em
que ele parava e começava a cantar Ave Maria, de
Gounod. Ele tinha uma voz linda!

De tudo, o que era mais inesquecível era a cara de


Oscar quando terminamos de nos apresentar. Era hor-
rível. Certamente porque o que a gente tinha apre-
sentado deveria ter sido horrível também. Claro! Não
poderia ter sido diferente: éramos ainda muito crus.

Eu fiz meu solo. Estava na moda, na época, aquela


versão com sintetizador da música de Bach, feita
pelo músico norte-americano Walter Carlos, que,
mais tarde, após sua mudança de sexo, ficou co-
nhecido como Wendy Carlos. Era uma das primeiras
96 vezes que música feita com sintetizador surgia, e
ele/ela era uma pioneiro(a) do primeiro instrumento
idealizado por Robert Moog. Resolvi, então, usar
essa versão eletrônica para minha primeira aventura
nesse universo de coreografar. Primeira aventura
era modo de dizer, pois que eu já tinha feito aquilo
muitas vezes, sem saber que estava coreografando,
na infância e na adolescência.

Minha dança, se é que se podia chamar aquilo de


dança, tinha um percurso bastante delineado, que
eu repetia várias vezes e que lembrava o desenho
da letra eme. Quando terminei, cheguei até a ouvir
alguns poucos elogios de gente que tinha achado
interessante. Mas Oscar me perguntou: Que curioso!
Por que você escolheu este caminho? E eu respondi,
no auge de minha ingenuidade, mas com toda minha

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sinceridade: Compus essa sequência em meu quarto
de dormir, que divido com minhas duas irmãs. Como
ele tem três camas, paralelas umas as outras, contava
apenas com esse espaço entre as camas e os criados-
mudos para me mover. Por isso o formato do percurso
lembrava a letra eme. Até hoje ele se lembra disso.
E até hoje a gente ainda dá boas risadas sobre essa
minha primeira “coreografia”.

***

Fico pensando quando desisti das três faculdades que


iniciei. Fico pensando na diferença que foi quando
entrei nesse novo universo que se apresentava para
mim: a dança. Deveria ser como o ato de nascer:
não se pergunta se se quer ou não nascer. Apenas
se nasce. E minha incursão na dança foi exatamente 97
assim, algo sem escolha. Algo absolutamente vital.

E não era ruim porque era sem escolha. Era um fato.


Algo que senti apenas com a dança. Nem sabia se
ela iria me tornar alguém famoso, ou feliz, ou rico,
ou pobre. Não. Nada disso me passava pela cabeça.
Era apenas a dança. E também porque me fazia des-
cobrir meu próprio corpo, tanto tempo apagado de
mim mesmo. E, apesar de ter sido uma descoberta
relativamente tardia, aos 21 anos de idade, mesmo
assim, era fascinante constatar o que meu corpo
poderia expressar.

Nesse sentido, sempre me vem à cabeça, sobretudo


quando estou coreografando, algo importantíssimo
que Ilse me falou certa vez durante uma aula: Luis,

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no dia em que souber exatamente o que é frente,
trás e lado, você será um grande bailarino. Quando
ela me disse isso, eu era novo e devia certamente ter
achado uma tolice. Meu Deus, quem que não sabe o
que é frente, trás e lado? Qualquer pessoa que anda
na rua sabe. Só depois de muito tempo, comecei a
perceber a sutileza daquilo: frente, trás e lado em
relação a quê? A quem? O que estava por trás desta
frase, na verdade, era uma provocação. Ela estava
dizendo: Descubra você o que é sua frente, seu atrás
e seu lado! E isso fez, e faz, todo o sentido na relação
que se estabelece na dança. Uma relação de tempo e
uma relação de espaço. E uma relação com o outro.
O outro que está em cena com você. E o outro que
te assiste. Um sentido de respeito a mim, de saber
quem eu sou. Só assim poderia saber o que é frente,
98 lado, trás. Até hoje, os exercícios me servem para
descobrir esse ponto de repouso eterno que existe
dentro de cada um de nós. Depois, por acréscimo,
automaticamente, se sabe mais sobre a relação tempo
e espaço. A relação com o outro, a cena e a relação
com quem assiste.

***

Coincidências ou não, tudo isso é sempre curioso: na


mesma época em que vim para o Brasil, minha irmã
mais velha, já casada, estava planejando ir para a
Austrália, num momento em que o país estava recep-
tivo a pessoas de fora. Eu sempre contava a ela sobre
minhas aulas de balé, sobre minha professora, do
que eu tinha aprendido, enfim, da minha nova vida.
E minha irmã me contava de uma mulher, uma tal

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de Laly, do consulado australiano na Argentina, que
ajudou-a a levantar toda a papelada de imigração.
Descobrimos mais tarde que Laly e Ilse eram irmãs!
Ilse sempre dizia que era Laly quem deveria ter feito
balé, porque tinha o pescoço longilíneo, esguio, e
pés com colo, enquanto ela era o oposto. Mas Laly
resolveu estudar diplomacia. E Ilse foi fazer dança.
Estávamos lidando com as mesmas pessoas, ao mes-
mo tempo, em lugares tão próximos e diferentes.
Curioso... Parece que existe um destino já armado e
que só na distância podemos reconhecê-lo, quando
temos nosso ponto de vista ampliado.

Ilse era uma jovem senhora. Hoje está em Buenos


Aires, aposentada. E às vezes ministra algumas aulas
para os bailarinos do Teatro Colón. Uma grande
professora, com certeza. Minha primeira professora. 99
Minha querida professora.

***

Oscar tinha estreado um balé um ano antes, que


se chamava A Rainha de Gelo, baseado num con-
to de Hans Christian Andersen, sobre uma lenda
dinamarquesa muito bonita. Oscar usou música de
Tchaikovsky, numa estrutura típica de balé clássico.
Era longo e em três atos. Stravinsky tem uma ópera
de 1928, baseada nesse mesmo conto, O Beijo da
Fada, que compôs homenageando Tchaikovsky, a
quem admirava.

No início do balé, havia uma cena em que os bailari-


nos faziam uma flor de gelo que se abria em cânon

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e de onde surgia a tal Rainha de Gelo. No final, a
mesma flor se fechava, novamente em cânon. Para
essas duas cenas, Oscar precisava de muita gente e por
isso usava também alguns alunos da escola. Ao fim do
meu primeiro ano na escola, ele resolveu reapresentar
esse mesmo balé, no Teatro Coliseu, e novamente
precisou contar com seus alunos. Quando os ensaios
começaram, Oscar se deu conta que precisaria de mais
dois alunos. Veio então até a nossa turma e escolheu
dois rapazes. E eu não era um deles.

Quando a seleção terminou, Ilse, que já era minha fã,


me disse: Vá você também. Mas ele não me chamou...
retruquei. Você vai e fala que eu mandei você ir e
pronto. Claro, não ousei desobedecê-la. Fui. Cheguei
à sala dele e falei que tinha sido a senhora Ilse que
100 havia me mandado. E Oscar apenas disse: Tudo bem,
aprenda seu lugar. Até hoje, não sei por que motivo
acabei entrando para fazer essa cena. Mas, de qual-
quer modo, fazia o cânon com todo meu empenho.
Simplesmente adorava fazer aquela dança. Adorava
estar em cena, entre os bailarinos da companhia. Já
me sentia um bailarino, de certa forma. E viajava
dentro de mim fazendo aqueles movimentos. Mesmo
sabendo que era ainda tão cru. E que precisaria de
meses para me preparar realmente para aquilo.

Essa não foi a primeira vez que subi ao palco. Na


metade deste ano, tive outra oportunidade para isso.
Joaquín Pérez Fernández, um homem muito famoso
da dança na Argentina dos anos 50, fazia seus espetá-
culos viajando pelos países da Europa, apresentando
a dança e a música dos países latino-americanos e

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principalmente da Espanha, seu país de origem. Seus
espetáculos eram muito famosos e ele chegou a se
apresentar para as cortes de várias rainhas do mun-
do. Ele teve seus dez anos de glória e depois acabou
ficando em Buenos Aires, quase esquecido.

Um de seus filhos, Quiqui, apelido que vinha de


Joaquín, estudava balé em nossa escola, na turma
anterior à minha. Além de dançar, ele também
cantava e tocava. Na verdade, fazia de tudo, tocava
instrumentos, guitarra, piano, bumbo, pandereta,
fazia dança folclórica argentina, dança folclórica
espanhola, enfim, tudo.

Nesse ano de 1972, o Centro Gallego, em comemo-


ração ao Dia de Galícia, convidou o pai dele para
fazer um espetáculo no Teatro Colón. Eram sempre
101
espetáculos grandiosos, com muita gente em cena.
E Quiqui me perguntou se eu não queria participar.
Não ganharíamos nada. Não passava mesmo pela
minha cabeça que eu deveria ganhar alguma coisa,
mas acredito que recebemos uma ajuda de custo no
fim das apresentações. Assim, comecei minha carreira
em pleno palco do Teatro Colón! Fazia uma dança de
conjunto, outra dança com tamancos, danças espa-
nholas, folclóricas, enfim, dançava muito e de tudo.
Ah, e fazia também um travesti. Numa das cenas, que
se chamava Velorio del angelito muerto en Tiempo
‘I Chaya, algo típico do folclore do norte argentino,
a morte de uma criancinha era narrada através de
canções. Nesse momento, entrava em cena o que lá
se chamava las lloronas, as carpideiras. Essas três ve-
lhas carpideiras eram três homens vestidos de preto.
E eu era uma delas. Que coisa! Estreei como travesti!

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Adorei participar daquele espetáculo. O que mais
me lembro de tudo isso foi quando a cortina se
abriu pela primeira vez. Nunca vou me esquecer
desse primeiro momento. Já estávamos em cena e
como no Colón o palco é muito grande, e o fosso
da orquestra também é muito grande, aliás, todas
as proporções daquele teatro são imensas, não se
consegue enxergar nem mesmo a primeira fila da
plateia. Só se vê um buraco negro à frente. Mas se
ouve, e se sente, de forma implacável, a respiração
das pessoas. Algo como uma boca de lobo aberta!
Assim, quando a cortina se abriu pela primeira vez
e ouvi esse som, fiquei apavorado, mas, ao mesmo
tempo, estimulado. Era como se me lançasse num
vácuo. A sensação me dizia: se é para dançar, vá, se
102
jogue, vai fazer o que agora? Pensar?

***

Minha família sempre ia me assistir. Quando estreei


no Teatro Colón, todos foram me ver. E ficaram fe-
lizes, porque sentiram que algo finalmente estava
se concretizando. Claro que meu pai possivelmente
preferisse que eu estivesse jogando futebol, mas o
importante é que nem ele e nem ninguém me proi-
biram de nada. Meu temperamento não suportaria
qualquer proibição. Por princípio, nunca consultei
ninguém sobre minhas escolhas. Não por falta de
respeito, mas porque tinha claro que a decisão era
minha e as possíveis consequências também. Assim,
nada se discutia. E eles sempre foram me assistir. Ah,
e minha mãe ficava orgulhosa do filho em cena!

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Com as apresentações de A Rainha de Gelo, terminou
o ano. E terminou também a companhia. Eles ainda
trabalharam por alguns meses, mas os bailarinos já
procuravam outro lugar para trabalhar. A companhia
vivia uma crise de verbas, a mesma que havia atingido
nossa escola e causado sua extinção. Por minha vez,
procurei outra escola onde Ilse dava aulas. Só que,
desta vez, eu teria que pagar. Não havia bolsa de
estudos, nem desconto. Mesmo assim, fiz aulas com
ela, ao mesmo tempo em que tentava conseguir
algum trabalho. Mas esse trabalho teria que estar
necessariamente relacionado à dança ou ao teatro.
Isso era uma condição para mim.

Eu também conseguia uns trocados fazendo fotos


como modelo, já que era bonitinho, alto, magrinho,
usava roupas moderninhas, como jeans, por exem- 103
plo. Minha mãe ainda guarda algumas dessas fotos.
Algumas que fiz para a publicidade do tênis Flecha
apareceram em outdoors distribuídos pela cidade
toda. Eu estava ficando... “famoso”.

Na verdade, eu queria tudo. Tudo que pudesse me


colocar cada vez mais dentro daquele universo artís-
tico. Havia um grupo de teatro que estava ensaiando
um musical, e eles trabalhavam de um modo como se
fosse, hoje em dia, regime de cooperativa. Para mim,
naquele momento, qualquer oportunidade de ganhar
dinheiro, estando em cena, valia a pena. A peça era
Réquiem (para uma gota de lluvia), de Emilio Cañas,
e a coreografia era de Marta Jaramillo. Estávamos no
Teatro Avenida, no mesmo teatro onde eu havia visto
Antonio Gades dançar pela primeira vez.

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Nesse meio tempo, Oscar havia sido convidado a
fazer a coreografia de uma peça de teatro de um
autor argentino muito importante, Roberto Arlt,
cujo estilo lembra um pouco o de Nelson Rodrigues.
A peça era Trescientos Millones, escrita em 1932, e
seria encenada no Teatro San Martín, sob a direção
do importante José Maria Paolantonio. Era uma obra
forte, grandiosa, bastante delirante. E, por isso, de-
veria ter cenas de dança.

Oscar fez uma seleção de bailarinos, pois os atores já


haviam sido escalados. Entre eles, estavam Luis Medi-
na Castro, Miguel Ligero, Noemí Manzano, Alejandra
Boero e Leonor Galindo. Aos bailarinos não estavam
previstas falas, mas, às vezes, teriam que gritar ou can-
tar. Eu e alguns colegas da escola fizemos a audição
105
e Oscar nos selecionou. Fui escolhido para o elenco.
Para mim, só o fato de ser Oscar o coreógrafo, já era
uma maravilha.

Dali a 15 dias, teríamos nosso primeiro ensaio. Para-


lelo a isso, eu ainda ensaiava naquele grupinho de
teatro. Um dia antes do primeiro ensaio de Oscar,
machuquei a perna no outro ensaio. Não conseguia
sequer caminhar direito. Consegui o telefone residen-
cial dele e, num ímpeto de atrevimento, liguei à noite
para sua casa. Achei que deveria explicar o ocorrido e
que não poderia comparecer ao ensaio que se iniciaria
na manhã seguinte. E ouvi como resposta, num tom
seco, curto: Você não se machucou no meu trabalho.
Espero você amanhã no ensaio na hora combinada.
E desligou o telefone.

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Sempre lidei com gente precisa, determinada, que ti-
nha muito claro em mente o que era profissionalismo
em dança. O problema era certamente meu, eu fui o
irresponsável. No dia seguinte, não conseguia mesmo
caminhar. Mas compareci sem hesitar ao ensaio. Oscar
determinou que eu ficasse sentado e aprendesse tudo
dali, e que, quando melhorasse, deveria me juntar ao
ensaio. Achei justo ser tratado daquele modo. Era
o modo profissional. Não me sentia magoado com
aquilo. Pelo contrário: tomava aquilo como mais uma
aula. Uma aula que ensinava qual deveria ser minha
atitude perante o meu ofício.

Essa peça acabou ficando muitos meses em cartaz.


Trabalhamos bastante, sempre de quarta a domingo,
sendo que, no domingo, tínhamos duas sessões. Foi
ótimo porque, além de aprender muitas coisas, de 107
ficar da coxia estudando os detalhes da performance
da atriz principal, de já me atrever mais em cena, eu
recebia meu pagamento mensalmente. E muito bem.
Com isso, pude continuar com minhas aulas particula-
res, mesmo depois de encerrada a temporada. Fazia
aulas com Ilse e com outros professores, como Hugo
Dellavalle, que trabalhou muito no Brasil, no Rio de
Janeiro, em Curitiba e São Paulo.

Comecei a assistir com mais frequência a alguns


espetáculos de dança. Mas eu já os assistia de modo
diferente, querendo ver além daquilo que estava
em cena. Querendo ver tudo o que não vi ao assistir
Romeu e Julieta, de Oscar, pela primeira vez. Foi
nessa época que tive a oportunidade de ver Margot
Fonteyn dançar, acompanhada pelo bailarino Atílio

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Labis, e por outros solistas da Ópera de Paris, no Te-
atro Coliseo. Meu repertório de dança aumentava a
passos largos. E eu nem sequer poderia imaginar que,
no futuro, eu o dividiria com a mesma Fonteyn, em
outro país. No Brasil.

***

Nesse período, influenciado pelos colegas da turma,


comecei a me interessar por um tipo novo de aula que
logo passou a ser designado como expressão corporal.
Fazia no Teatro San Martin, teatro mais voltado para
as vanguardas, ao contrário do tradicionalista Colón.
Gostava dessas aulas. Infelizmente, fui a poucas. Mas
me encantava a possibilidade de estar com os ou-
tros, rolando pelo chão, passando a mão nos corpos
108 suados. Toda aquela magia própria dos anos 70, do
movimento hippie. Era uma descoberta e tanto.

Numa dessas aulas, enquanto rolávamos de olhos


fechados no chão e o professor nos dizia que “es-
távamos voando”, abri os olhos, olhei a sala, meus
colegas e a mim mesmo e pensei: isso não é voar. Voar
é como os pássaros. No ar. Era meu lado virginiano
não me deixando enganar. Quase como São Tomé.

Só em pensar que isso acontecia numa Argentina que


pouco a pouco se entregava à repressão, expressão
corporal se tornava quase que um ato de resistência.
Aliás, Argentina e Chile sempre foram países repres-
sivos, moral e politicamente. Talvez por isso sejam
países guerreiros. E violentos também. Lembro-me,
quando garoto, que a polícia parava as pessoas na

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rua apenas porque tinham cabelos compridos. Ou
perguntava abertamente se era homossexual. Uma
repressão enorme. Não à toa Che Guevara saiu de lá.
Não à toa escritores como Neruda se formaram em
países tão repressores. E rapaz fazendo dança na-
quela época era quase um atentado ao pudor. E, em
plena cidade de Buenos Aires, uma aula de expressão
corporal seria quase que caso de polícia.

***

Nesse meio-tempo, fiquei sabendo de uma oportu-


nidade de trabalho muito interessante. Havia na Ar-
gentina uma artista conhecidíssima, chamada Nacha
Guevara. Ela era uma espécie de show woman, e se
atrevia a ser atriz de novela, atriz de teatro, cantava
um pouco, dançava um pouco, ou seja, fazia de tudo 109
um pouco. Acredito que hoje ela deva ser apresen-
tadora de televisão.

Naquela época, mesmo sofisticada e dada a luxos


suntuosos, ela mantinha suas posições socialistas
abertamente. Adorava acompanhar as manifestações
de universitários, reivindicando posturas sociais mais
igualitárias, enquanto sua limusine ao lado a acompa-
nhava, levando seus cães de raça. Esse era seu estilo.

Bem, Nacha Guevara preparava nesse ano de 1973


um espetáculo bastante interessante, num teatro
muito antigo em Buenos Aires, chamado Margari-
ta Xirgu, localizado no bairro de San Telmo, hoje
conhecido por abrigar os espetáculos importantes
de tango da cidade. Era um teatro de estilo clássico,

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Luis Arrieta, 1972 – Buenos Aires, book para modelo

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com pinturas nas paredes e no teto, que Nacha, com
sua produção, conseguiu transformar numa espécie
de café-concerto ou cabaré-literário, belíssimo. Um
local, confortável, para umas 300 pessoas. Tiraram as
poltronas e as substituíram por mesinhas decoradas
com velas. Servia-se bebida, sobretudo champanhe.
Tudo realmente muito chique e com a cara da artista.

O espetáculo se chamava Las mil y una Nachas, num


trocadilho evidente com Las mil y una noches. Uma
bailarina, Alba Vidal, que funcionava como uma
espécie de dublê, ajudava no truque para fazer com
que a plateia acreditasse que ela estava dançando,
enquanto na verdade estava fazendo uma das 70
trocas de roupa previstas. Isso enlouquecia a plateia,
até porque as duas eram mesmo muito parecidas. E
a maquiagem tornava o truque ainda mais perfeito. 111
Havia muitas cenas, inclusive, que a própria dublê
cantava com playback. Era um espetáculo fantástico,
muito bem-organizado e dirigido por seu marido,
Alberto Favero.

Nacha era acompanhada ao vivo por uma orquestra,


que ficava num pequeno fosso, na frente do palco.
E também por cinco bailarinos, todos vestidos com
smoking, que a ladeavam em todas as cenas em que
cantava e dançava. Ela fazia também pequenos es-
quetes cômicos, sempre com um humor muito argen-
tino. Numa certa altura do espetáculo, por exemplo,
seu marido Alberto, que também exercia a função
de diretor musical do espetáculo, tocava ao piano
Clair de lune, de Beethoven, e voltando-se ao público
dizia: Adoro Clair de lune de Debussy! E o público ria

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da piada, porque tinha preparo para isso. Esse era o
tipo de humor que se fazia na cidade naquela época.

Outra cena bastante engraçada era quando ela canta-


va uma versão com texto da Valsa do minuto de Cho-
pin, em que tinha que pronunciar todas as palavras
muito rapidamente, para que coubessem na melodia.
Mas havia também outras partes menos dançadas e
mais sérias, sobretudo quando cantava as canções de
Mario Benedetti, um poeta uruguaio de esquerda,
ou recitava poemas de Pablo Neruda. Isso em pleno
ano de 1973, ano da queda de Allende no Chile! Era
um show de protesto também, dentro de toda uma
sofisticação, com um humor requintadíssimo.

E o público também participava do espetáculo. Muitas


112
vezes, inclusive, insultando-a abertamente, gritando:
Sua puta, vai lavar panela, sua filha da puta comu-
nista, ao que ela prontamente respondia. E não era
qualquer resposta. Lembro-me que, certa vez, eu che-
gava para o ensaio e a vi no camarim, de frente para
o espelho, gesticulando muito, aos gritos. Diante do
meu estranhamento, me explicou que para responder
à altura aos insultos que recebia do público, a melhor
maneira de ser espontânea e natural era ensaiar. E
muito! Que maravilha!

Bem, curioso é como cheguei a esse espetáculo. Na-


cha havia começado a prepará-lo com todo cuidado,
pois se tratava de uma grande estreia, em um teatro
especialmente adaptado para isso. Era, sem dúvida,
um grande evento, como todas as suas produções.

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Ela, seu marido, sua dublê, a orquestra e os cinco
bailarinos, já ensaiavam há cinco meses, para que
tudo ficasse perfeito. Um mês antes da estreia, um dos
bailarinos foi embora. Não sei exatamente a razão,
mas ela ficou desesperada, procurando por outro que
pudesse substituí-lo, aprendendo rapidamente todas
as marcações do show.

Fiquei sabendo disso e simplesmente apareci por lá,


no próprio teatro, me oferecendo. A coreógrafa do
espetáculo, Antoniete San Martin, passou toda uma
tarde me ensinando a coreografia, e os manejos com
uma bengalinha trucada que tínhamos que usar em
cena. Quando estávamos ensaiando no palco, Na-
cha Guevara chegou para ver como era esse novo
elemento que faria parte de seu show, ou seja, eu.
Lembro-me perfeitamente da cena: ela, sempre muito 113
exótica, magérrima, branca, muito maquiada, usando
peles, fazendo um tipo de diva hollywoodyana, che-
gou e sentou para me assistir. E eu comecei a passar
a coreografia, um tanto nervoso, obviamente. Sei
que, num determinado momento, ela saiu andando,
arrastando sua pele pelo chão, com um ar entedia-
díssimo, sem olhar para nós. Atravessou todo o palco
gritando: Peguem, peguem qualquer merda! Peguem
essa bosta! E com todo esse “incentivo”, ingressei
profissionalmente na carreira do music hall... Ela teria
certamente razão. Eu deveria ser mesmo muito ruim.
Mas ela não tinha escolha, tinha que estrear.

Com Nacha, tínhamos espetáculos praticamente to-


dos os dias, sendo que às sextas, aos sábados e aos
domingos fazíamos duas sessões. Era um sucesso. Um

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verdadeiro sucesso. E eu não só fui melhorando, como
a relação com ela foi ficando fantástica. Depois de um
curto período, já estava fazendo pequenos solos, e
logo passei a dançar todos os números com ela, subs-
tituindo o bailarino que fazia isso, quando necessário.

Trabalhei quase seis meses nesse espetáculo. Foi ótimo,


porque aprendi demais. Tive a sorte de dividir meu
camarim, que era muito pequenininho, com Julio
López. Ele era um excelente bailarino argentino, que
já havia dançado no Teatro Colón, depois no Teatro
Argentino de la Plata, tinha trabalhado no Chile com
Ernst Uthoff e tinha sido ainda solista na companhia de
Oscar Araiz durante muito tempo. Naquela época, ele
estava parando de dançar, pois era quase um senhor.
Aprendi muito com ele, em todos os sentidos. Nossa
114 convivência era, para mim, uma aula diária, principal-
mente por seu humor, sua sutileza e sua sagacidade
nos comentários que fazia. Ele me dava dicas desde
como me maquiar, me pentear, me repreendia quando
não me barbeava direito, até pequenos toques em
cena, uma mão que eu deveria movimentar de tal
jeito, um olhar mais dirigido, enfim, algo do seu vasto
conhecimento técnico da expressão física no teatro,
que eu, inexperiente, tosco, sugava a todo momento.
E que carrego até hoje em minha profissão. Agradeço
muito a ele por tudo isso. Sempre.

Não se pode esquecer que, naquele tempo, a repres-


são continuava cada dia mais intensa. Nós do elenco
fomos presos umas duas ou três vezes, simplesmente
porque saíamos do espetáculo tarde da noite. Como
era um grupo de cinco rapazes, todos com mochilas,

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alegres, sempre passava um carro de patrulha que
nos levava. Não perguntavam nada, simplesmente
nos levavam para a delegacia. Às vezes, passávamos a
noite lá. Como naquela época não havia computador,
eles não tinham como averiguar nossos antecedentes.
Resultado: acabávamos dormindo presos. Faziam
isso de propósito, simplesmente pelo fato de sermos
bailarinos, artistas. A repressão política e moral se
manifestava assim também.

E a repressão nos assombrava tanto que até nosso


espetáculo teve que ser algumas vezes suspenso,
por haver ameaça de bomba, sobretudo devido ao
caráter socialista de Nacha Guevara. Uma situação
que ia ficando cada vez mais tensa. Mas, para mim,
um trabalho que eu adorava.
115
***

Justamente nessa época do show com Nacha, uma


bailarina e atriz brasileira, Marilena Ansaldi, nos vi-
sitou e assistiu ao nosso espetáculo. Marilena, além
de bailarina, trabalhava como colaboradora e core-
ógrafa no Ballet Stagium, companhia paulistana de
dança, capitaneada por Marika Gidali e Décio Otero.

Na verdade, sua ida ao nosso espetáculo era um pou-


co mais do que meramente interesse no trabalho de
Nacha. Marilena havia sido incumbida de ir a Buenos
Aires procurar dois bailarinos: um mais experiente
e algum outro um pouco mais novo, imaturo, sem
tanta experiência. Isso porque no Brasil, e mais es-
pecificamente em São Paulo, havia uma carência de
bailarinos homens naquela época.

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Marilena chegou justamente na data em que acon-
teceu uma audição no Teatro Colón, que ela chegou
a assistir. Não encontrando nada de seu real interes-
se, saiu perguntando aqui e ali sobre lugares onde
poderia conhecer outros rapazes dançando. Assim,
alguém deve ter falado de mim e do grupo de ra-
pazes que faziam o show de Nacha Guevara. E lá foi
ela nos assistir.

Quando terminou o espetáculo, ela nos procurou no


camarim e me perguntou: Onde você faz aula? E eu
respondi: Amanhã de manhã faço aula no estúdio
com Hugo Dellavalle. E ela me garantiu que estaria
lá, para me ver.

No dia seguinte, cedinho, ela estava realmente lá,


116 sentada numa cadeira, aguardando o início da aula,
num daqueles estúdios pequenininhos de Buenos
Aires, horríveis, sujos. Isso era fim de 1973. Quando
terminamos, ela se voltou para mim e perguntou se
eu sabia levantar uma bailarina. Antes que eu res-
pondesse, ela me disse: Vamos tentar juntos. Num
minuto, ela se levantou e fez um sissonne, e eu a
carreguei. Ela abriu as pernas e, como estava vestindo
uma calça branca justa, ouvimos o som do tecido se
rasgando. Isso certamente não seria um problema
para Marilena, não com aquele temperamento que
ela tinha. Ela simplesmente tirou a calça e, apenas de
calcinha, pediu agulha e linha para costurar. Lembro
até hoje da cena: ela sentada, em plena sala de aula,
costurando os fundilhos da calça. Algo quase inima-
ginável para nossos modos daquela época. Mas algo
que me deixou imediatamente encantado por ela.

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Nesse mesmo dia ela me fez uma proposta de ir
morar no Brasil, em São Paulo, e ingressar no Ballet
Stagium. Ela propôs e eu aceitei. Aceitei na hora. E
apenas depois cheguei em casa e comentei que estava
me mudando em alguns dias para o Brasil. Essa era
mais uma das minhas decisões.

***

Eu já havia ouvido falar do Ballet Stagium, uma


companhia que tinha se formado há pouco, em
1971. E nesse mesmo ano de 1973, soube que Oscar
Araiz tinha remontado duas coreografias para eles,
Adagietto, com música de Gustav Mahler, um pas-
de-deux dançado por Marika e Décio que mais tarde
se tornaria um clássico do repertório brasileiro, e
Concerto de Ebony, com música de Igor Stravinsky, 117
que contava com um elenco maior. Uma companhia
que tinha em seu repertório obras de Oscar poderia
me interessar, claro. Afinal, essa era a minha escola.
Alguma coisa em comum eles deveriam ter.

Na verdade, nunca havia pensado antes em viver no


Brasil. Nunca nutri nenhuma curiosidade especial pelo
país. Mas agora, puxando um pouco pela memória,
lembro que uma família do nosso bairro se mudou
para o Brasil, não sei exatamente se para o Rio de
Janeiro ou para São Paulo. Quando voltavam para
visitar Buenos Aires, eu sempre perguntava como era
tudo por lá. E lembro também que, em casa, minha
mãe conseguia, não sei bem se comprava ou se al-
guém nos dava, uma versão em espanhol da revista O
Cruzeiro, repleta de fotografias. Lembro nitidamente

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do meu encantamento ao ver as fotos de Brasília, por
exemplo. Eram essas as poucas imagens que eu tinha
do Brasil. Imagens de um país perto, mas, ao mesmo
tempo, tão exótico, sobretudo por ser o único da
América Latina onde se falava outra língua.

Quando Marilena me fez a proposta, nem sequer per-


guntei se eu teria onde morar ou quanto iria ganhar
de salário. Eu era jovem, com 23 anos, e tudo isso
se tornava irrelevante diante da possibilidade de ir
conhecer outro país, outra cultura e, acima de tudo,
fazendo aquilo que eu mais amava: dançando. Além
disso, a situação em Buenos Aires estava se tornando
cada vez mais tensa, o que, sem dúvida, pesou em
minha decisão.

118 Eu tinha ainda uns dois meses para arrumar tudo. Pedi
esse prazo para Marilena, pois ainda fazia o show com
Nacha, a quem eu tanto havia me afeiçoado. Lembro
que quando contei para ela sobre minha decisão, me
disse, sem esconder a tristeza: Que pena, Luis. Mas
acho que você faz bem, porque aqui a vida está ficando
muito difícil. Vá tentar sua vida em outro lugar. Alguns
meses depois que deixei o elenco, eles tiveram que
encerrar definitivamente a temporada, tantas eram
as ameaças sofridas quase que diariamente.

Hoje em dia, sei que ela faz programas de televisão,


além de continuar a montar seus musicais, inclusive
Evita. Era uma mulher de show. Lembro da canção
que abria o espetáculo que fazíamos juntos, cujo
texto dizia exatamente isso: Eu canto, danço, atuo,
faço tudo mais ou menos. Mas eu me viro! Ou seja, o

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próprio show era uma piada sobre ela mesma. Antes
que o público a criticasse, ela mesmo se autocriticava.
Uma profissional com quem aprendi demais.

***

Durante o período em que trabalhei com Nacha, fiz a


audição para entrar na escola do Teatro Colón e passei.
Era um curso regular voltado apenas para rapazes,
oferecido no próprio teatro, com excelentes profes-
sores. Entretanto, fiz pouquíssimas aulas, porque os
shows terminavam sempre por volta da meia-noite.
Aí, eu tinha que pegar um ônibus para casa e acabava
dormindo lá pelas duas horas da manhã. Para chegar
a tempo nas aulas, que começavam às sete da manhã,
tinha que acordar às cinco. Fiz esse esforço por um
tempo, mas desisti, porque estava me exigindo demais 119
naquele momento.

Nesses últimos meses em Buenos Aires, costumava


também fazer aulas com Ilse, Héctor Loussou e Hugo
Travers, no estúdio Stella Maris, renomada bailarina
de dança moderna, na Avenida de Maio. Lá, conheci
Roberto Agustín Giovanetti, ainda aluno, dois anos
mais velho que eu, que também estava começan-
do. Estudante de psicologia, trabalhava numa loja
especializada em música clássica. Aliás, ele era um
expert na matéria. Nossa amizade foi imediata e feliz.
Ficávamos juntos o tempo todo. Quando viajei para
o Brasil, ele veio comigo.

Comecei, então, a me organizar para essa vinda ao


Brasil. Tinha que me concentrar nessa nova vida que

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se anunciava para mim. Mesmo sendo ainda muito
cru, com apenas dois anos de dança em minha vida,
sabia que essa poderia ser uma grande chance e que
não deveria deixar escapar. Marilena, até hoje sempre
muito orgulhosa por ter me trazido para cá, gosta
muito de contar uma passagem engraçada: quando
voltou de Buenos Aires, ao chegar na sede do Ballet
Stagium, logo perguntaram: E então, conseguiu um
bailarino? Ao que ela respondeu: Não... consegui só
um rapaz. Ele é novo, não tem muita experiência.
Meio sem entender direito o que ela queria dizer
com aquilo, insistiram: Mas ele é bom? E ela falou:
Não. Ele não dança nada. Mas tem uma educação!!!

120

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A família, em Buenos Aires

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Luis Arrieta, Brasil, década de 80

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Capítulo II
Em São Paulo

Chegou o dia de vir a São Paulo. Março de 1974. Era


a primeira vez que viajava de avião em minha vida.
Ao chegar, fui direto para a casa da Marilena, que
naquela época morava no bairro do Brooklin, numa
linda casa. Ela era casada com Sábato Magaldi, co-
nhecido crítico teatral, jornalista, professor, ensaísta
e historiador, e que era também o secretário de
Cultura da cidade.

Quando cheguei, ela estava terminando de dar uma


aula individual, numa sala ali mesmo, não sei para
quem. Fiquei, então, conversando com seu marido,
que me recebeu muito bem. Nesse momento, tocou 123
a campainha: chegou Antonio Carlos Cardoso, que
há uma semana havia retornado da Bélgica, do Balé
Real de Flandres, para assumir a direção do Balé da
Cidade de São Paulo, que ainda se chamava Corpo de
Baile Municipal, do Teatro Municipal de São Paulo.

Jantamos os quatro juntos. Em seguida, fomos de


carro com Marilena até o Ballet Stagium, na Rua
Augusta, no mesmo lugar de hoje. Eles ensaiavam
pelas manhãs e à noite. E lá estavam todos: Marika
e Décio, os diretores, além de Iracity Cardoso, Ruth
Rachou, Jane Blauth e Christian Uboldi. Que coisa!
Mal acabava de chegar e já tive o privilégio de co-
nhecer todas essas pessoas! Pessoas com quem eu
ainda trabalharia muito em minha vida, em situa-
ções diversas. E, na mesma sala, Clarisse Abujamra,

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Patty Brown, Cleusa Fernández, Lalo Freitas, Carlos
Demitre, Geralda Bezerra, bailarinos mais velhos e
experientes. E as ainda muito novinhas Mônica Mion
e Beatriz Cardoso, todas em início de carreira. Nessa
noite, fiquei hospedado na casa de um bailarino da
companhia. E a cabeça girando, enlouquecida com o
mundo absolutamente novo que se formava à minha
frente, não me deixou dormir.

Logo o dia a dia da companhia começou e tive rapi-


damente que me dar conta daquele funcionamento.
Mesmo tendo admirado tanto aquilo tudo, acabei
ficando pouco tempo no Ballet Stagium. Talvez uns
seis meses, mais ou menos. O suficiente para entender
o que significava estar ao lado daquelas pessoas tão
124 geniais, sobretudo Marika e Décio.

Minha estreia na companhia foi no Teatro Muni-


cipal de Ribeirão Preto. Definitivamente, não foi a
das melhores. No trabalho Episódios, de Décio, o
cenário tinha uns fios de náilon transparentes, com
umas bolas de isopor que, de longe, pareciam estar
suspensas. Era um trio de rapazes, e eu, não sei se
pelo tamanho do palco, um pouco pequeno, ou por
meu descontrole mesmo, no primeiro manège, meu
pé enganchou num dos fios e saí arrastando o cenário
inteiro. Ao terminar o espetáculo, jurei que Marika
iria me mandar de volta para a Argentina. Não. Ela
não falou nada. Sabia certamente o risco que estava
correndo quando me colocou para dançar. Sábia
como ela só.

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Depois disso, participei de duas criações da compa-
nhia. Uma de autoria de Décio, Jerusalém, com música
de Almeida Prado, que tinha como tema Jesus Cristo
e crucificação. Usávamos maquiagens exageradas,
quase como máscaras. Comigo, em cena, estavam
Beatriz Cardoso, Cleusa Dias, Geralda Bezerra, Lalo
Freitas, Miguel Trezza, Milton Carneiro, Mônica Mion,
Sebastião Freitas, além dos diretores, Marika e Décio.
E a outra obra, de Christian Uboldi, com música de
Pink Floyd, Psicuspeculum. Novamente, os mesmos
bailarinos. Estreamos no dia 21 de maio, no Teatro
Municipal de São Paulo.

O Stagium fazia ainda alguns trabalhos na ponta, com


estilo neoclássico, como Entrelinhas, de Décio, sobre
um concerto de Serge Rachmaninov. Estreado em
1972, ainda era apresentado e eu cheguei a dançá-lo. 125
Mas, lentamente, eles investiam num outro modo de
dançar, mais contemporâneo, mais arrojado, que se
tornou sua marca mais tarde.

Para mim, sempre foi um privilégio trabalhar no Sta-


gium, um ícone da dança contemporânea paulista.
Ali, pude ter outras experiências riquíssimas, como
as aulas de teatro com o diretor Adhemar Guerra,
por exemplo. E as aulas que o próprio Décio dava.
E, quando podia fazer uma aula avulsa, pegava uma
carona na aula da Geralda Bezerra. Foi um momen-
to muito forte para mim. Novamente fui carregado
a esse lugar, como acontecia em todos os outros
momentos importantes de minha vida. Mas sempre
nos lugares certos. Primeiro com Oscar Araiz e Ilse
Wiedmann. Agora com Marika Gidali e Décio Otero.

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Ballet Stagium, coreografia Jerusalém, de Décio Otero, 1974

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Definitivamente, minha carreira começava de modo
especial. E eu intuía isso, a cada dia.

Minha relação com Marilena, e sobretudo com Marika


e Décio, era puramente uma relação de trabalho. Eu
era muito tímido. Mas me lembro ter sido na casa
dos dois onde experimentei pela primeira vez uma
feijoada, num dos primeiros fins de semana em São
Paulo. Sempre me vêm à memória as delícias que
passaram pelos meus sentidos. Cheguei em casa flu-
tuando e sonolento.

Fora esses pequenos e agradáveis momentos, era minha


timidez que imperava. Só conseguia me soltar quando
estava no ambiente de trabalho, ensaiando, fazendo
aula. Se precisavam que eu me lançasse numa impro-
128 visação, não me poupava. Pelo contrário, via naquilo
uma oportunidade de mostrar minha vontade e tudo
que tentava aprender vorazmente. Claro. Não tive o
tempo de aprendizagem antes de me tornar um pro-
fissional. As duas coisas começaram simultaneamente.

Eu era muito verde. Tive que aprender muito. Mas foi


sobretudo a minha abençoada ignorância, absoluta-
mente necessária, que me permitiu passar por tudo
naquele momento. Se eu tivesse, naqueles dias, um
pouco do conhecimento ou da percepção que tenho
hoje, tenho certeza que ficaria imóvel, diante de tan-
ta incapacidade. Mas Deus é sábio. E fui aprendendo
a me dar conta disso ao mesmo tempo em que apren-
dia, como podia, tudo o que tinha para aprender.

***

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Fui morar num apartamento com o iluminador da
companhia e o irmão dele, que fazia uma espécie de
direção técnica do palco. Eles ocupavam um quarto e
eu o outro, com meu amigo Roberto, de Buenos Aires,
na Rua Jaguaribe, perto da Santa Casa. Eu vivia um
pouco apertado, pois tinha que começar a pagar meu
aluguel e minha comida, uma novidade para mim.
Na verdade, um pouco antes de vir ao Brasil, cheguei
a morar num curtíssimo espaço de tempo em uma
pensão. Queria experimentar como seria morar fora
de casa. Mas toda vez que me apertava, corria para
casa, atrás da comida de minha mãe. Em São Paulo,
para tentar driblar um pouco o orçamento baixo
que eu contava para viver, parei imediatamente de
comer carne, por exemplo, principalmente porque o
preço era impossível para mim. Estava acostumado
na Argentina, onde se podia comer carne de ótima 129
qualidade a um preço acessível. Mas isso não repre-
sentava um sofrimento para mim. Em absoluto. Passei
a comer o que o salário me permitia. E parecia algo
lógico que fosse assim.

O que eu achei de São Paulo? No princípio era tudo


novo. Tudo me chamava a atenção. Mas, de alguma
forma, achei a cidade feia. Eu vinha de Buenos Aires,
uma linda cidade, suntuosa, com sua beleza arquite-
tônica inegável. Por outro lado, trabalhávamos tanto,
com aulas e ensaios pela manhã e no comecinho da
noite, que nem dava muito tempo de se dar conta
de como era a cidade verdadeiramente. À tarde,
logo depois do ensaio, o tempo era para um super-
mercado rápido, preparar algo para comer, deitar
uma meia hora e novamente estar na Rua Augusta

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para recomeçar as tarefas. Só me restavam os fins
de semana, quando não tinha espetáculo, para sair
um pouco e conhecer a cidade. Uma cidade onde eu,
sem ainda saber, passaria quase toda a minha vida
dali em diante.

Nas aulas avulsas no Stagium, conheci Penha Pietra´s,


que também fazia e dava aulas. Com ela conhecemos,
Roberto e eu, muitos lugares da cidade, especialmen-
te aqueles onde se poderia fazer compras mais em
conta. Um dia, ela nos convidou para almoçar em
seu pequeno apartamento, na região da Bela Vista.
Entusiasmados com a conversa, esquecemos o frango
assando no forno. Resultado: pegou fogo na cozinha
e quase no apartamento todo. Até hoje lembramos
130
disso quando nos encontramos.

***

Depois de uns seis meses, resolvi que seria interes-


sante conhecer um pouco mais de perto uma outra
companhia, o Balé da Cidade de São Paulo, que ainda
se chamava Corpo de Baile Municipal. Eles estavam
precisando de rapazes também e, então, me inscrevi
para a audição. Queria que Antonio Carlos Cardoso
me visse. E pensei comigo: se eu passar, no final do
ano peço minha demissão no Stagium e vou para lá.
Acontece que Marika ficou sabendo de minha partici-
pação na audição e me perguntou, de um jeito direto
como sempre foi seu jeito, se era mesmo verdade.
Respondi que sim. E ela, então, me disse que fosse
embora, que deixasse a companhia.

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Um clima um pouco tenso pairou entre nós durante
um certo tempo. Claro, eu não havia ficado nem um
ano com eles. Mas, felizmente, isso durou pouco.
Hoje, eles me tratam com muito carinho e muita
atenção. E sei que também são muito orgulhosos
por terem sido os responsáveis por minha vinda a
São Paulo e por eu ter começado minha carreira no
Brasil no Grupo Stagium.

***

Final do ano 1974. Passei na audição do Corpo de


Baile Municipal e fui para lá, porque achava simples-
mente que era o lugar que eu tinha de ir. Era um time
todo que acabava de se formar, por quem eu, mesmo
sem conhecer direito ainda, nutria uma curiosidade
imensa e com quem tive uma vontade de trabalhar 131
quase que inexplicável. Antonio Carlos Cardoso entra-
va para substituir Johnny Franklin, que havia estado
na direção da companhia desde seu início, em 1968.
Era outro que chegava a São Paulo pelas mãos de Ma-
rilena Ansaldi, com esforços de seu marido, o então
secretário de Cultura, Sábato Magaldi. Já intuindo o
perfil que ele gostaria de conceder ao grupo, Antonio
tratou de montar uma equipe que falasse sua língua,
que dançasse sua dança. Iracity Cardoso tornou-se sua
assistente. O espanhol Victor Navarro, o coreógrafo.
Marilena Ansaldi, a professora de balé e Ruth Rachou,
a professora de técnica de dança moderna.

Até hoje, todos dizem que o Antonio mudou o estilo


da companhia. Mudou sim. Ela já não se ocupava
mais dos balés de repertório. Mas, como convivi

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com eles exatamente nesse período de mudança,
sempre penso que o que mudou verdadeiramente
foi a maneira de entender a dança, de entender uma
outra maneira de trabalhar, um outro conceito de
espetáculo. E isso me parece fundamental, quando
se trata de uma companhia oficial de dança, de uma
companhia pública. E todo esse movimento, tão im-
portante, teve total apoio do secretário de cultura,
que vestiu conosco a mesma camisa e nos permitiu
realizar uma mudança tão profunda como essa.

Não sei se Antonio já havia me visto dançando no


Stagium até aquele momento. Depois da primeira
aula que fiz na companhia, com a Marilena como
professora, malcomparando com os bailarinos que
eles já deveriam ter por lá, acho que eles devem ter
132 pensado algo assim sobre mim: Esse aí, trabalhando
bastante, quem sabe? Claro: eu não era, em absoluto,
um bailarino pronto. Mas era um bailarino em que
se poderia apostar, se poderia investir. E fiz questão
de mostrar isso no meu trabalho diário.

Nesse momento, passei a conhecer todas as outras


pessoas com quem depois eu desenvolveria tantos
trabalhos. As mulheres eram ótimas. Grandes mulhe-
res. Sonia Mota, uma grande bailarina, Ivonice Satie...
Lembro quando Oscar Araiz veio montar Prelúdios de
Chopin, três anos depois, ele selecionou um elenco
de umas dez pessoas e entre elas Ivonice, Iracity, Sô-
nia, Ana Mondini, Mônica Mion, Umberto Silva, eu,
Demitri, e Alphonse Poulin, e outros mais que estou
certamente esquecendo. Ou seja, ele selecionou jus-
tamente aquelas pessoas que até hoje estão fazendo,

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Com Antonio Carlos Cardoso, 1980, em São Paulo

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ou fizeram alguma coisa transcendental na dança,
não só aqui, mas no mundo inteiro.

E dizer isso me faz ser pouco modesto, eu sei, porque


estou me incluindo na lista. Mas o importante é que
não era uma turma de bailarinos com grandes virtu-
osismos técnicos, se os entendemos como demons-
trações acrobáticas. Longe disso, até. Mas era uma
maneira especial de trabalhar que foi desenvolvida
ali. Até hoje sinto um orgulho imenso de dizer: Meus
colegas, de sentir-me igual a eles.

E esse trabalho de Oscar simbolizou muito para a


companhia e eu tive o privilégio de poder participar
de sua criação. Eu que, há poucos anos, era um aluno
de sua escola, na Argentina. Era uma obra pratica-
134 mente feita de solos, duos e trios, com poucas partes
de conjunto, algo bastante característico do estilo de
Oscar. Eu gostava muito de uma situação que se ins-
taurava entre nós, vinda de uma cumplicidade que, a
cada solo que estava sendo apresentado, o bailarino
que entrasse em seguida teria o comprometimento,
dentro de si, de manter aquela mesma qualidade fí-
sica de seu colega. E isso nos obrigava a encarar uma
superação constante de nós mesmos, em nós mesmos.

Essa não foi a primeira obra que dancei no Cor-


po de Baile Municipal. Havia dançado algumas
de autoria do Antonio Carlos Cardoso, como
Paraíso?, daquele mesmo ano de 1974, com música
especialmente composta por Hermeto Paschoal. Uma
mudança e tanto no estilo da companhia, pensar
aquela sonoridade absolutamente outra, arrojada,

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Com Iracity Cardoso, para revista Iris de fotografia, 1977

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136

Luis Arrieta, 1975, Ilha de Paquetá – RJ

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com aquelas panelas e todo aquele aparato do Her-
meto, em pleno Teatro Municipal e sua companhia
oficial. E a censura, tão vigente naquela época,
implicou com o ponto de interrogação do título da
obra. Sinais de mudança. Dancei obras de Marilena
Ansaldi, como Medeia, também do mesmo ano. Ma-
rilena sempre foi muito chegada aos dramalhões, às
tragédias gregas e essa não fugia à regra. Com música
de Pink Floyd, sofreu acusações de “falta de decoro”.
E dancei ainda Uma das quatro, de Victor Navarro e
mais duas de Antonio, Sem título e Soledad.

***

No ano seguinte, 1975, tive que enfrentar um pro-


blema meramente burocrático, mas que me tirou
do meu percurso e me deu a chance de ter uma 137
linda experiência. Como eu era ainda contratado na
companhia, mas era estrangeiro, todos os trâmites
relacionados ao meu pagamento eram sempre em-
perrados, o que me causava uma certa dor de cabeça,
não raras vezes. Foi então que surgiu uma oportu-
nidade de ir trabalhar no Rio de Janeiro, com Dalal
Achcar e sua Associação de Ballet do Rio de Janeiro,
uma companhia que ela havia criado já em 1956, e
que desde então contava com um elenco que vinha
se transformando.

Eu já tinha estado no Rio nesse ano, durante o car-


naval. Quando chegamos à rodoviária, pegamos um
ônibus. Depois de uma curva, detrás de uma esquina,
apareceu o Pão de Açúcar. Fiquei mudo. Nenhuma
foto, cartão, pôster, chegava aos pés daquela reali-

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dade fantástica. As cores da cidade dançavam sob
uma luz que eu nunca havia visto. À tarde, fomos ao
desfile das escolas de samba, que ainda não acontecia
na Sapucaí. Ficamos em pé todo o tempo, sobre um
único caixote de maçãs, no meio de uma multidão que
se empurrava contra uma corda de segurança. Trinta
horas depois voltamos para dormir, exaustos, sujos
e esfomeados, sentindo ainda no corpo as vibrações
das baterias. Uma experiência magnífica!

Mas voltando a Dalal. Ela precisava, como sem-


pre, de rapazes para integrar um balé que vinha
montando, a Floresta Amazônica, com cola-
boração do coreógrafo Frederick Ashton, íco-
ne da dança inglesa, e com música de Heitor
Villa-Lobos. Senti vontade de experimentar esse
138 novo desafio e então me aconselhei com Antonio,
que me disse que fosse. Fui. Fiquei um ano e meio
no Rio de Janeiro, naquela cidade maravilhosa, com
pessoas maravilhosas.

Entre tantas obras que pude dançar, mais uma vez


me deparei com Oscar Araiz, que estava montando
uma obra chamada Festival, que todo elenco adorava
dançar. Ficávamos cada vez mais amigos. Tanto que
ele chegou a se hospedar no apartamento que Dalal
reservava aos bailarinos de fora, na Rua Alberto de
Campos, em Ipanema, no mesmo prédio onde morava
Madeleine Rosay, que às vezes cruzava no elevador.
Uma noite, lembro-me bem, estávamos eu e Oscar
conversando na sala, quando ouvimos um tiro que
vinha do morro ao lado, quebrando nossa janela.
Acho que era o começo dessa coisa toda de bala

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Com Ivonice Satie, 1981

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo,
Prelúdios de Chopin, 1977, de Oscar Araiz. Acima com
Alberto Romeiro, Carlos Demitie, Iracity Cardoso e Léa
Havas. Abaixo e ao lado com Mônica Mion

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perdida. Assustadíssimos, passamos o resto da noite
andando de quatro pela sala, com medo que voasse
outro tiro. Tudo isso iria nos aproximando, eviden-
temente. Ele não era mais apenas meu professor, ou
meu coreógrafo. Era meu amigo.

Os ensaios da companhia aconteciam na escola da


Dalal, que ela mantém até hoje, na Rua dos Oitis, no
bairro da Gávea. Foi uma época glamurosa, como
tudo que Dalal faz na dança. Uma época em que ela
trouxe grandes nomes para dar aulas, coreografar
e dançar. Grandes estrelas mundiais, com quem eu
jamais sonharia dividir um dia o mesmo palco.

Encabeçando a lista de professores, um grande mes-


tre para mim, mister Desmond Doyle. Lembro que
142 fazíamos também muitas aulas com Maria Luiza No-
ronha, uma fiel assistente de Dalal e a atual diretora
da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa, primeira
escola oficial de dança do Brasil. Não poderia es-
quecer de Miriam Guimarães, excelente professora,
com quem aprendi muito. Depois vieram ainda dar
aulas para nós Oleg Briansky e sua esposa, Mireille
Briane. Ou seja, grandes mestres, com quem eu tive
o privilégio de trabalhar.

Nesse mesmo período, prestei o exame da Royal Aca-


demy of Dancing, método de ensino de Londres, que
Dalal havia trazido para o Brasil desde 1969. Ela me
incentivou e eu fiz. Contudo, a ajuda fundamental que
recebi dela estava relacionada com meu estabelecimen-
to definitivo no país. Ao lado de Márcia Kubitschek, ela
conseguiu acertar e regularizar minha permanência.

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A partir de então, passei a ter um documento de resi-
dente. Uma dádiva, sem dúvida, pois me possibilitava
trabalhar tranquilamente. Isso tudo em 1975.

Eu estava adorando viver no Rio de Janeiro. Mas tinha


a dimensão de que o ambiente em que eu vivia era,
na verdade, um recorte da cidade, já que eu morava
em Ipanema e trabalhava na Gávea. Tudo se restrin-
gia à zona sul. Então, era fácil adorar aquela linda
cidade. Ir para o trabalho, naquela rua tão bonita,
com tantas árvores, num lugar tão longe do que
sempre vivi em Buenos Aires, tudo era um prazer. Lá
estava a natureza, imperiosa. Sempre passava pela
feira, na própria Rua dos Oitis, que acontecia uma
vez por semana, com aquelas frutas lindas, frescas,
coloridas. Adorava ter que atravessá-la para poder
chegar à escola da Dalal. Saltava do ônibus ali na
praça em frente ao Jockey Clube, e ia a pé. Era muito 143
bonito, mesmo quando chovia. A natureza brilhava.
Tudo era tão rico de cores, que era a própria imagem
de trópico que eu tinha do Brasil. Para sair desse
ambiente, apenas quando tinha que ir ao centro, ao
Theatro Municipal, ou algum teatro da Praça Tiraden-
tes. Mas, efetivamente, todo o outro lado da cidade
permaneceu desconhecido para mim.

O pouco dinheiro não me permitia muitos gastos com


passeios ou visitas a lugares especiais. Mesmo assim,
assistia com meu amigo Roberto a tudo que era de
graça e, principalmente, aproveitava os fins de sema-
na para, além de ir à praia, fazer longos passeios de
ônibus circular. Acabei conhecendo muitos lugares
dessa cidade que eu amava, pela janela dos coletivos.

***

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Com Iracity Cardoso, Uma das Quatro, de Victor Navarro,
1974

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E o Rio era também uma cidade efervescente. Uma
época alucinante, aquela. Gente muito louca, festas
badaladas e luxuosas em grandes apartamentos da
zona sul. Tudo muito excitante e novo para mim. Eu
nunca tinha visto aquilo.

A dança não ficava de fora desse clima efervescente.


Nessa época, por exemplo, estava começando toda
aquela tendência do jazzdance. Foi aí que conheci
Carlota Portella, uma das grandes iniciadoras dessa
dança no Brasil. Ela dava aulas, dançava e coreogra-
fava. Tive também o privilégio de conhecer a grande
mestra Tatiana Leskova, com quem comecei a fazer
aulas e quem me acolheu com muito amor e atenção,
colocou sobre mim olhos cheios de confiança e estí-
mulo, e de quem viria a ter também sua amizade. Na
escola dela, fiz aulas também com Hugo Dellavalle, 145
que eu já conhecia de Buenos Aires. Depois conheci
Jane Blauth, que ainda estava no Rio. Eu faria ainda
muitas aulas dela em São Paulo, mais tarde. Conheci
também Klauss Vianna. Com ele, também fiz algumas
poucas aulas. Sempre gostei muito dele e sentia que
ele gostava de mim. Ele vivia elogiando a maneira que
eu tinha de dançar, o que me deixava imensamente
feliz. Nem sonharia que, anos mais tarde, eu passaria
a direção do Balé da Cidade de São Paulo para ele.

O Rio me deu essa oportunidade de conhecer tantas


personalidades da dança brasileira. Todos meus co-
legas que pareciam rodear-me de carinho e não me
deixar sentir falta de casa. Entre eles, Célio Trigo,
Claudia Araújo, com quem eu dançava a Valsa das
Flores em O quebra-nozes, Max Markstein, com quem

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dividia apartamento no Rio e depois dividiria aparta-
mento em São Paulo, e tantos outros. Coreógrafos os
quais gostava tanto de dançar – Renato Magalhães,
Gilberto Motta, o artista plástico e figurinista Nilson
Pena, a professora inglesa Gil Antony, colega de
passeios e papos... enfim, tantos.

Mas o Rio deu-me oportunidade de conhecer perso-


nalidades do mundo também. Dalal Achcar trouxe
uma dúzia de estrelas para a cidade. Isso fazia parte
de como ela pensava a dança e de como ela queria
promover essa dança nesse país. Estou falando de
Natalia Makarova e Anthony Dowell, por exemplo.
Mas a lista se estende: Margot Fonteyn, Oleg Briansky,
Cyril Atanassoff, Merle Park, Doreen Wells, Desmond
Kelly, Cynthia Gregory, Ivan Nagy, Fernando Bujones,
146 Georgina Parkinson, David Wall, Wilfride Piollet…
todos vinham atuar com participações especiais nas
coreografias da companhia de Dalal, em apresen-
tações que se iniciaram no Theatro Municipal e se
estenderam em grandes excursões por todo o Brasil.

Dançava-se, sobretudo, em ginásios adaptados,


quando a cidade não contava com um teatro que
nos comportasse. O lugar tinha que abrigar um
público de três ou quatro mil pessoas, que queriam
assistir aos balés grandiosos. Em Porto Alegre, por
exemplo, dançamos no Gigantinho. Em São Paulo,
no ginásio do Anhembi. Eram montados tablados
imensos e, para que pudéssemos fazer aulas, eram
providenciadas barras provisórias nos estádios. Algo
emocionante: todos lá, aquelas estrelas internacionais
e nós da companhia, misturados, fazendo aula juntos.

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Estávamos em 1976. No espetáculo de São Paulo,
enquanto estávamos dançando, percebi um peque-
no alvoroço nas coxias. Um certo agito ali por trás.
Era Márcia Kubitschek, que trabalhava com Dalal na
produção, correndo de um lado para o outro, pois
acabara de receber a notícia do acidente com seu pai
Juscelino, que o levaria a falecer.

Em uma dessas nossas tantas viagens também, tive a


oportunidade de conhecer a linda fazenda de dona
Sara Kubitschek, em Brasília. Todos nós da companhia
fomos recepcionados com muita distinção. E nessa
ocasião pude conhecer pessoalmente Juscelino, que
fazia questão de nos receber pessoalmente, como
um verdadeiro anfitrião, ao lado de sua esposa e de
suas filhas, Maria Estela e Márcia. Eu me dava conta
de que estava conhecendo a história do Brasil que, 147
de alguma maneira, já conhecia através de todas
aquelas fotos de Brasília que havia visto nas páginas
da revista O Cruzeiro, ainda em Buenos Aires. Agora
eu estava lá, vendo tudo aquilo pessoalmente.

***

Possivelmente participei da época mais grandiosa da


Associação de Ballet do Rio de Janeiro. Foi justamen-
te o período da montagem da Floresta amazônica,
em pleno Festival Internacional de Dança, também
organizado por Dalal, que aconteceu no Theatro
Municipal do Rio de Janeiro, em 1975. Como estrelas
principais, figuravam a grande dama da dança ingle-
sa, Margot Fonteyn, e seu partner, ainda muito novo,
o excelente bailarino David Wall. Para coreografar as

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partes dançadas pelos dois, foi chamado Frederick
Ashton, que já havia começado a trabalhar com eles
ainda na Inglaterra.

Com e experiência de ter dançado esse balé, uma


passagem me marcou muito. Estávamos fazendo os
ensaios de palco, ainda sem figurino, mas já com a
orquestra do Theatro. Fonteyn havia acabado de
chegar de viagem, indo direto do aeroporto para
lá, possivelmente ansiosa para aproveitar a oportu-
nidade de estar pela primeira vez com a orquestra.
Colocou uma roupa bem simples de ensaio, e ficou
marcando suas partes com Wall. Ao chegar a cena
final do balé, em que a floresta pegava fogo, nós,
em nossos papéis de índios, tínhamos que fazer toda
uma cena teatral, bastante dramática, correndo ater-
148
rorizados, com medo do incêndio, enquanto o palco
era tomado por efeitos especiais que simulavam essa
situação. Claro que fazíamos empenhadíssimos essa
cena, mas não sem uma certa ingenuidade e até um
quê de amadorismo.

Num momento muito rápido, porém de uma força


que até hoje não posso explicar, me virei, e dei de
cara com Fonteyn, que estava ali marcando. Só que
ela estava marcando com a experiência que ela
tinha. E com aquele rosto de uma senhora de idade,
com aqueles olhos brilhantes e gestos tão exatos
para denotar o perigo da morte e o medo da floresta
queimando, que fiquei paralisado. Meu Deus, ela
estava apenas marcando, apenas ensaiando. Essa
noite, não dormi.

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Não dormi porque me senti extremamente enver-
gonhado. Certamente me perguntava: Por Deus,
o que eu estava fazendo ali? Parece que de súbito
entendi o que minha primeira professora, Ilse
Wiedmann, havia me dito certa vez sobre saber o
que era frente, trás e lado. Saber da dimensão de
onde estava. Uma dimensão que Margot Fonteyn
estava me dando, me colocando de frente a uma
realidade até então inimaginável para mim. E isso
foi fantástico. E inesquecível.

***

Nós da companhia não dançávamos muitas peças do


repertório clássico, reservadas apenas aos bailarinos
convidados. No fim desse ano, por exemplo, Fernando
149
Bujones veio pela primeira vez ao Brasil, ainda muito
novo, se apresentar em O Quebra-nozes. Mas também
tivemos a oportunidade de ver coisas jamais apresen-
tadas por aqui, como o Pas-de-deux de Tchaikovsky,
de Balanchine, dançado pela Cynthia Gregory, tão
linda com aquele jeito americano de dançar.

Além disso, havia coreografias dos brasileiros, como


Gilberto Motta, com Messias, ainda em 1976. No ano
seguinte, Madeleine Rosay, com Mancenilha, Renato
Magalhães, com Nhamundá e Catulli Carmina, além
das coreografias assinadas pela própria Dalal, como
Com Amor, Nosso Tempo e Cenas Brasileiras. Outra
ainda dela em parceria com Miriam Guimarães,
chamada Grand finale. E ainda tínhamos Festival,
de Oscar Araiz

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Lembro que gostava muito de ficar com todo o elenco
da companhia. Tinha gente muito talentosa reunida
ali. Sempre foi um talento empresarial e artístico
da Dalal saber reunir bons bailarinos. Um deles era
Paulo de Nubila, excelente bailarino. E boas bailarinas
também, como Ana Elisa Ferraiolo, Cláudia Araújo,
Helena Lobato e Heloísa Meneses. E tantos outros
bailarinos que passei a conhecer apenas naquele
momento, pois eram todos do Rio de Janeiro. Afinal,
talvez tenha sido essa a primeira vez que trabalhei
numa companhia de nível internacional, empenhada
em apresentar aquele tipo específico de trabalho.
Com o Ballet Stagium eu havia experimentado o
profissionalismo, e no Corpo de Baile Municipal de
São Paulo também. Mas ali, eu experimentava um
ofício de dança que respirava ares internacionais,
150 num outro jeito de pensar o espetáculo, a cena.

Nesse sentido, lembro de uma coreografia de


Ashton, Meditation from Thais (An oriental
dream sequence), criada nos anos 70 com música de
Massenet, inspirada na bailarina Anna Pavlova. Era
um pas-de-deux, dançado por Merle Park e David
Wall. Nessa coreografia, havia ao fundo uma imagem
de um deus que ficava sentado durante todo tempo,
feito pelo Célio Trigo, um bailarino gaúcho muito
bonito. Ele praticamente não tinha que se mover.
Certa vez, comecei a revezar esse papel com ele.
Adorei fazer aquilo. Mesmo sem praticamente me
mover, entendi rapidamente que aquela quietude,
que a presença ali atrás determinava a presença dos
dois dançando à frente. E a coreografia terminava
com os dois bailarinos correndo para este deus, que

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os abraça. Frederick Ashton nos passava exatamen-
te as coordenadas de como seria nossa atitude em
cena. E eu me sentia tão bem fazendo aquilo que era
como se estivesse me movendo mais que os próprios
bailarinos. Afinal, estava em cena com Merle Park e
David Wall, numa coreografia de Ashton. Tudo era
uma combinação inédita para mim.

Aliás, tive o privilégio de poder travar algumas óti-


mas conversas com Fredrick Ashton graças ao seu
bom espanhol, já que ele era nascido no Equador.
Aproveitávamos para nos entreter, sobretudo, nas
viagens de ônibus até os aeroportos, durante a turnê
brasileira, e creio, eu o ajudava a acalmar um pouco
o imenso pavor que ele tinha de voar.

*** 151

No fim de 1976, quando encerramos as temporadas


previamente agendadas, não se sabia ao certo o des-
tino da Associação de Ballet do Rio de Janeiro. Para
mim, de qualquer forma, havia sido uma experiência
riquíssima ter trabalhado com todos aqueles artistas.
E isso agradeço até hoje a Dalal. Mas, aos poucos,
fui percebendo também que o trabalho com o qual
me identificava, que eu realmente queria fazer com
a dança, estava mais próximo àquele desenvolvido
em São Paulo. E, antes que se tornasse cada vez mais
difícil, e não sem sentir muita dor, tomei a decisão
de deixar o Rio de Janeiro. Curioso: nem quando
saí de Buenos Aires, senti algo parecido. Uma certa
melancolia. O Rio tinha marcado definitivamente em
minha vida algo que eu levaria para minha dança.

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Ao tomar essa difícil decisão, fui falar com Dalal, que
entendeu completamente o que eu expunha. Tudo
ficou muito bem com ela. Até porque, curiosamente,
naquela época, nós bailarinos a víamos muito pouco,
porque, como diretora da companhia, ela tinha muitas
outras preocupações. E quando acontecia, quase sem-
pre girava em torno de assuntos mais administrativos.

Com o passar dos anos, eu e Dalal fomos travando


lentamente um contato artístico que resultou numa
amizade que prezo muito. Recentemente, tive uma
demonstração desse carinho, dessa amizade dela por
mim. Em 2005, estava apresentando meu solo Tango,
na pequena sala do Teatro Alfa, em São Paulo. Dalal
foi me ver. Quando terminou o espetáculo, ela me
procurou e senti que estava visivelmente emociona-
152 da. E me disse: Agora, Luis, estou entendendo o que
você tanto solicita dos bailarinos quando coreografa.
É algo que posso ver quando você se apresenta. Não
sei bem como dizer, mas... acho que você deveria
ter um filho para que alguém ficasse com tudo isso
que você tem a dizer. Achei tão forte tudo que ela
estava me dizendo, que fiquei muito emocionado.
Sempre quando a gente se encontra, percebo um
carinho muito grande dela. E uma admiração pelo
meu trabalho, por minha atitude, por tudo. Eu me
sinto bem com ela e com o carinho dela.

***

Voltei para São Paulo, que me pareceu ainda mais


cinza que da primeira vez. Eu chegava do Rio de
Janeiro e essa impressão ficava naturalmente mais

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forte. Meu amigo Roberto, que também participara
de algumas montagens na Associação de Ballet, ficou
no Rio, trabalhando com o grupo de Klaus e Angel
Vianna, indo em seguida a Belo Horizonte, onde
atuou no Grupo Corpo, para mais tarde dançar em
Genebra, Hildelberg e Berlim.

Era o início de 1977. Voltei para São Paulo e encarei o


Corpo de Baile Municipal de São Paulo como a minha
casa. Voltei direto para lá. E Antonio Carlos Cardoso,
que ainda estava na direção, me recebeu de novo e
pareceu contente por eu ter voltado. Eu tinha 25 anos
e acreditava ter encontrado meu lugar definitivo.

Morei durante um curto período na casa de Ivonice


Satie. Morávamos eu, ela e sua filha Ana Carolina,
153
ainda pequenininha, a tia Ma, e um ajudante das
tarefas da casa. Depois consegui alugar um aparta-
mento que dividia com um colega da companhia, Max
Markstein e sua esposa, com quem já havia morado
junto no Rio.

Meu empenho, então, era para aprender todas as


obras que haviam sido montadas em minha ausência.
De Victor Navarro havia Apocalipsis e Corações futu-
ristas. De Antonio, Nosso tempo. E de Célia Gouveia,
com quem eu ainda não havia trabalhado, Pulsações.
Mas me lembro especialmente de Canções, de Araiz,
talvez por ter sido uma obra que ele havia trazido de
Buenos Aires. Essa peça era construída a partir das
Canções de Gustav Mahler, tão lindas. Eu dançava
aquilo repleto de prazer.

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Lembro também de Mulheres, só com o elenco femi-
nino, todo vestido com roupas íntimas, um escândalo
para a época. Esses eram os balés montados em 1976,
quando eu estava fora da companhia. E foi uma sur-
presa boa para mim encontrá-la com todas aquelas
novas obras, com toda aquela vontade impregnada
nos bailarinos e nos mestres. Ela parecia estar revigo-
rada, sobretudo em razão de seu novo endereço, na
Rua João Passalácqua. Depois de ter a Escola Muni-
cipal de Bailado, debaixo do Viaduto do Chá, como
sua sede, e de ter passado um tempo ensaiando no
salão nobre do Teatro Municipal e no palco do Teatro
Paulo Eiró, em Santo Amaro, finalmente a companhia
tinha sua casa, onde funciona até hoje.

Aquela era a linguagem que eu queria falar, com a


154
qual me identificava. E digo que me identificava não
só pelo estilo. Aliás, o estilo me parecia ter menos
importância naquele momento. Eu me identificava
com o pensamento que estava sendo desenvolvido
ali, naquele grupo de pessoas, entre as quais me
sentia tão bem.

Nesse ano de 1977, novas obras foram inseridas no


repertório e um acontecimento definitivo aconte-
ceria em minha carreira. Tivemos a mestra Tatiana
Leskova, com quem eu havia feito aulas de balé no
Rio, montando para nós O Galo de Ouro, ópera-balé
de Rimski-Korsakoff. De Antonio Carlos Cardoso,
apresentamos Percussão para Oito, que eu fazia com
a ótima Lea Havas, e Soledad com a bela Rosangela
Calheiros. De Victor Navarro, Opus e Era uma vez.

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Desta última obra, algumas situações curiosas ainda
me vêm à memória. Até aquele momento, tudo que
me davam para dançar continha um tom romântico,
dramático ou até mesmo linear. Na montagem de
Era uma vez, por exemplo, eu fazia o conjunto. Os
solistas interpretavam Adão e Eva e um demônio que
virava freira e, depois de um strip tease, se transfor-
mava numa drag queen com botas altíssimas, chifres
e plumas na cabeça. Sem saber ao certo o motivo, o
bailarino que fazia o tal demônio saiu da companhia
antes da estreia, embora apresentasse todo o tipo
físico para aquele papel tão exuberante. Fui escolhido
para substituí-lo. Achei ótimo. Me transformei num
enorme andrógino. Melhor, liberei-o. Num jornal da
cidade, havia uma grande coluna gay chamada Coluna
do meio, assinada pelo Celso Curi, e que entre outras
curiosidades comentava espetáculos afins. No dia do 155
espetáculo, uma grande foto central minha com plu-
mas e botas ilustrava a coluna que anunciava a estreia.

Outra situação curiosa se passava nas coxias. Como


não havia muito tempo para me trocar, fazia o que
tinha que fazer ao lado do palco mesmo, sempre
contando com a ajuda de umas das poucas pessoas
que não estavam em cena nessa hora. Sempre calha-
va de ser Solange Caldeira que, vestida de anjinho
com trombeta e tudo, se oferecia prontamente a me
auxiliar. A cena era impagável: um anjinho ajudava
o demônio a trocar seus chifres...

Mas foram os Prelúdios de Chopin, coreografados


especialmente por Oscar, que me trouxeram uma
felicidade imensa: fui agraciado com o prêmio de

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo,
Canções, de Oscar Araiz . Acima: Luís Arrieta. Abaixo e
ao lado com Mônica Mion

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo,
Canções, de Oscar Araiz . Acima: Conjunto. Abaixo com
Desireé Doraine. Ao lado Luis Arrieta

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melhor bailarino do ano pela Associação Paulista
de Críticos de Arte, APCA, nesse ano. Meu primeiro
prêmio. Que me deixou imensamente feliz. E absolu-
tamente seguro do caminho que eu havia escolhido
para trilhar em minha vida.

***

Eu ainda não tinha tido a experiência de coreografar


em uma companhia profissional. De alguma forma,
havia saboreado esse ofício, pois sempre participei
muito ativamente das criações dos outros coreógrafos.
Gostava de saber o que representava cada lugar, cada
movimento, cada ação de cada bailarino. Na verdade,
já era minha necessidade de coreografar que se ma-
nifestava em mim e que vinha desde criança, quando
160 inventava tantas coisas. Desse modo, sempre me senti
atrevidamente uma espécie de cocriador do coreó-
grafo com quem estava trabalhando. Não porque eu
inventasse esse ou aquele movimento. Mas porque
eu estava lá, presente e disponível, e isso me fazia
criador – ah, essa palavra tão pretensiosa! – com ele.

Nesse ano de 1977, Antonio teve uma ideia luminosa.


Como já era usual no exterior, mas aqui ainda era uma
novidade, ele organizou um workshop para novos
coreógrafos dentro da companhia. Além de investir
na descoberta de talentos, era uma forma encontra-
da para que nós, bailarinos, tomássemos consciência
de todos os lados da dança dentro de uma estrutura
como aquela. Que nós começássemos a perceber que
a direção da companhia, a assistência, dar aula, core-
ografar, fazer a iluminação, conceber o figurino, que

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tudo aquilo eram interfaces de um mesmo ofício. E
que era de extrema importância conhecer todos esses
interstícios, essas habilidades, que às vezes a miopia
do bailarino não o permite enxergar.

A direção organizou tudo. Os ensaios seriam fora


do horário de trabalho, ou seja, depois de nossa
carga horária de 6 horas. Quem tivesse interesse em
coreografar deveria se inscrever. E, nesse momento,
escolhiam os bailarinos com quem desejariam tra-
balhar. Aí aprendemos uma primeira lição. Se antes
achávamos injusto que sempre os mesmos bailarinos
fossem escolhidos para os papéis principais, na hora
de escolhermos o elenco, escolhíamos justamente
aqueles bailarinos apenas. Ou seja, estávamos do
outro lado fazendo exatamente a mesma coisa que
criticávamos. Antonio não perdia a oportunidade de 161
nos alertar: Mas vocês não diziam que tínhamos que
usar sempre todos os bailarinos? Não havia jeito. A
primeira escolha era sempre das mesmas pessoas. Ivo-
nice Satie e Mônica Mion, por exemplo, eram sempre
as primeiras a serem escolhidas. Sempre.

Não sei por que motivo, mas não me inscrevi no


workshop. Não pensava, naquele momento, em core-
ografar. Antonio me chamou em sua sala na direção
e perguntou se eu não iria me inscrever e respondi
apenas que não. Ele me disse, então, que achava que
eu deveria sim fazer algo. Ele já reparava em mim.
Falava para a companhia que achava interessante
como eu estava sempre adiantando o que se propu-
nha coreograficamente. Ele conhecia aquilo muito
bem e vislumbrava algo mais em mim.

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo,
Soledad, de Antonio Carlos Cardoso, Luís Arrieta e
Rosangela Calheiros

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Diante daquele ar tão certeiro, tão seguro de Anto-
nio, resolvi aceitar aquele desafio. Como eu havia
sido o último a me inscrever, e ainda meio perdido,
perguntei simplesmente quem gostaria de participar
do meu trabalho. Mas, sem deixar aquele meu espírito
megalomaníaco de lado, desde sempre tão presente
em mim, fiquei com umas 11 pessoas. E decidi tra-
balhar com o Andante da Sexta Sinfonia de Mahler.
Tudo deveria ser grandioso, desde o início.

Não consigo me lembrar exatamente quanto tempo


eu já havia trabalhado nessa minha primeira criação.
Talvez um ou dois ensaios apenas, porque não tínha-
mos encontros diários neste workshop, para que não
atrapalhasse o andamento normal da companhia.
Aconteceu então que me ligaram de Buenos Aires:
minha avó havia falecido. Lembro perfeitamente 163
desse dia. Era 19 de agosto de 1977.

Ela teve uma parada cardíaca e adormeceu. Na manhã


seguinte, descobriram que havia falecido. Curioso:
quando me ligaram para casa, logo de manhã cedo,
eu, de alguma forma, já sabia do que se tratava. Já
intuía. Recebi a notícia e imediatamente comecei a
agir. Pedi a meu colega que morava comigo que me
emprestasse dinheiro para comprar uma passagem
para Buenos Aires. Meu desejo era chegar a tempo de
estar no enterro dela, para uma última despedida. Pedi
licença na companhia. Expliquei ao Antonio que iria
faltar um ou dois dias, e ele entendeu perfeitamente.

Naquela época, como eu tinha documento brasileiro,


para sair do país, tinha que pedir permissão com uma

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certa antecedência. Era um trâmite que durava de
15 dias a um mês, mas que até então eu não havia
me dado conta. Cheguei ao aeroporto e fui direto
ao guichê da companhia comprar minha passagem.
A atendente me disse que eu teria que apresentar
documento e permissão de viagem. Que permissão?,
perguntei. E ela me disse: Você tem que solicitar isso
ao Dops. E isso leva um tempo.

Um tempo? Eu precisava ir naquele dia. Naquela mes-


ma época, estava aprendendo a dirigir, matriculado
numa na autoescola. Nesse meio- -tempo, liguei para
lá para avisar que naquele dia eu não poderia ter aula
e acabei contando o motivo. E contei, também, nem
sei muito o por--quê, da dificuldade que enfrentava
com aquela história da permissão de saída do país.
164 A mulher da autoescola que me atendia ao telefone,
me deu o telefone do Ferreira Neto, jornalista de
televisão já falecido, e insistiu que eu ligasse para ele
e explicasse o que eu estava passando. Sem hesitar,
liguei para ele que me colocou em contato direto com
um dos diretores do Dops. Resumindo a história: em
mais ou menos duas horas antes do avião partir, eu
estava com a tal permissão na mão.

Cheguei de madrugada a Buenos Aires. Fazia mui-


to frio. Quando entrei no recinto onde acontecia
o velório, vi minha mãe extremamente abatida.
No fundo, sem saber, acho que eu havia ido para
lá especialmente para ver minha mãe. Ela estava
terrivelmente abalada com a perda. Quase não a
reconheci. No dia seguinte, aconteceu o enterro.
O frio era intenso. Apenas um sol tímido, que não

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chegava a esquentar. Registrei todo o caminho que
percorremos. Tinha muita lama no cemitério, porque
deveria ter chovido dias antes. E depois registrei um
lugar com muitas pedrinhas brancas, com pinheiros
atrás. E essa imagem eu traria eternamente comigo.

No dia seguinte, voltei para São Paulo e retomei


meus ensaios. Até então nem pensava que meu balé
se chamaria Camila. Mas aquelas imagens insistiam
em ficar na minha cabeça. Falei sobre elas para os
bailarinos. Contei dos pinheiros que balançavam,
que eram pinheiros magrinhos, novos, inclinando
com o vento enquanto o sol aparecia um pouco por
trás. Contei do caminho de pedrinhas brancas. Enfim,
contei o que havia sido impresso em mim com tanta
força, no dia anterior, tão distante dali onde eu estava
naquele momento. 165

Depois de um tempo, Oscar esteve em São Paulo.


Veio montar Prelúdios de Chopin. Sempre curioso,
foi assistir a um ensaio do meu trabalho. Quando
terminou, sem que eu tivesse contado nada a ele,
imediatamente me disse que eu estava contando a
história de uma mulher. Fiquei atônito. Era um olho
muito treinado para ver composição, que fazia um
resumo certeiro, automático e objetivo do que via
em dança. Foi então que decidi colocar o título da
peça de Camila, nome de minha avó. No programa
coloquei uma frase do fotógrafo e escritor Roberto
Keppler, amigo e assíduo público da companhia: Parti
para descobrir o que existe atrás do horizonte, não
encontrei nada, mas dei a volta ao mundo. E então
chegou o dia 24 de outubro, dia da estreia dos traba-

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lhos resultantes do workshop, no Teatro Municipal.
E eu ainda nem intuía que coisas curiosas estavam
por acontecer.

Fazendo um salto na história. No ano de 1987, fui


convidado para fazer uma remontagem no Teatro
San Martín, em Buenos Aires, de algumas obras mi-
nhas. Lembro que escolhi Presenças e não sei se mais
alguma coisa. Fui, montei quase tudo, e retornei uma
segunda ou terceira vez para finalizar a montagem.
A estreia, entretanto, estava marcada para o dia 15
de agosto daquele ano. Liguei de São Paulo para
minha mãe e disse que chegaria uns dias antes para
terminar de ensaiar, colocar a obra no palco, e que
no dia15 seria a estreia. E minha mãe me disse: Não,
meu filho, não vai ser no dia 15. Vai ser no dia 19.
166 Sua avó Camila me disse.

Achei meio estranho aquilo e resolvi telefonar para


o teatro para confirmar. E eles me garantiram: Não,
Luis, vai ser mesmo no dia 15 de agosto. Cheguei
a Buenos Aires e, passada uma semana de ensaios,
eles me disseram que a data de estreia teve de ser
trocada. Seria no dia 19. Pensei: São mesmo terríveis
as mulheres dessa minha família.

Coincidentemente ou não, fazia dez anos da morte de


Camila. Um dia de manhã, para aproveitar o horário
livre, pois só tínhamos ensaios à tarde, resolvi ir ao
cemitério levar uma flor para ela e convidei minha
mãe para me acompanhar. Chegando lá, disse: Mãe,
sempre me lembro desta imagem, desta paisagem.
E minha mãe disse: Não, Luis, você está enganado.

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Essa é a parte mais nova do cemitério. Isso tudo, as
pedrinhas brancas e os pinheiros, foi colocado há uns
dois anos apenas. Antes, aqui era tudo vazio. Tudo
isso me ajudou a perceber uma sensação que a dança
sempre me trazia, que ainda não me era muito clara:
a ideia de tempo e de suas dimensões paralelas.

Quando comecei a montar a coreografia Camila, ela


não tinha nada a ver com minha avó. Eu não tinha
isso em mente. Mas a montagem se deu praticamente
toda após a morte dela. Antes eu havia feito apenas
dois ou três ensaios. Vejo isso refletido em outros
trabalhos meus: ao mesmo tempo em que tenho um
lado virginiano, preciso, organizado, planejando tudo
a ser feito, paralelamente tenho um outro, extrema-
mente inconsciente, no sentido de uma consciência
paralela, que não é caótica, mas que preciso de um 167
tempo para entender. Às vezes, até a crítica me serve
para isso. Gostava muito quando Rui Fontana Lopes,
que tem formação de psicólogo, escrevia sobre meus
trabalhos, porque sua leitura ressaltava alguns aspec-
tos psicanalíticos, e isso me parecia muito interessan-
te. Falava desses meus dois lados, de alguma forma.

Hoje, sei que minha experiência efetiva em co-


reografar vem se preparando desde pequeno.
Depois, quando entrei na dança, ela ainda con-
tinuou se preparando, continuou nesse mes-
mo processo de construção. Antes de chegar a
coreografar realmente, sempre fui muito oferecido.
No balé Mulheres, de Oscar Araiz, por exemplo, Ivoni-
ce Satie e Iracity Cardoso dançavam e eram, ao mesmo
tempo, assistentes coreográficas da companhia. Certa

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo: Camila,
de Luis Arrieta, 1977. Acima com Sonia Mota e Ana Maria
Mondini. Abaixo, conjunto

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vez, elas estavam ensaiando esse balé, ou melhor,
estavam dançando e dirigindo o ensaio ao mesmo
tempo. Uma dançava, parava e tomava nota. Então
a Ira tinha que fazer o solo e a Ivo ia e tomava nota,
se revezando o tempo todo. E eu me ofereci: Não
querem que eu sente e tome nota para vocês? Porque,
na minha cabeça, já era assim. Acho que era meu lado
virginiano me chamando à consciência. Não precisava
saber muito bem a coreografia, apenas reconhecer
como era cada parte. Se era todas juntas, era todas
juntas. Se tal parte era em cânon, é para distribuir
o movimento no espaço equidistantemente. Enfim,
estava entendendo exatamente qual era a função
de um assistente. Já o conteúdo daquilo, elas sabiam
mais do que ninguém, porque tinham trabalhado na
criação da obra. Eu, ali, poderia apenas evitar que
fizessem aquela correria louca, aquele revezamen- 169
to insano, e pudessem se dedicar a estar lá dentro,
dançando. Acho que, daí em diante, me tornei uma
espécie de assistente não oficial. Quando apresentá-
vamos essa mesma coreografia, Mulheres, que tinha
alguns efeitos de luz bem específicos, e o iluminador
não estava acostumado a lidar com dança, e ficava
apreensivo por não saber reconhecer o movimento
para entrar com o efeito certo, eu me oferecia: Quer
que eu fique ao seu lado e te avise? Como sempre,
me oferecendo. Aliás, nunca achei nada demais em
me oferecer. Achava que aquele era o procedimento
mais normal quando se trabalhava em grupo. E assim
ia aprendendo, ia burilando meu ofício.

No balé Canções, de Araiz, que eu achava e acho ainda


tão lindo, há praticamente apenas solos, duos, trios e

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dois conjuntos. Pediram que eu aprendesse um dos
pas-de-deux com uma bailarina que eu tanto admirava,
Mônica Mion. Nos tempos livres, ou enquanto os outros
estavam fazendo suas partes, eu prestava atenção e
ficava num canto da sala tentando aprender os outros
pas-de-deux, os outros solos, e tudo o mais que eu
pudesse aprender. E, cada vez que, nos ensaios, íamos
passar todo o balé e o ensaiador combinava: Bom,
vamos passar corrido, mas não vamos fazer tal parte
porque fulano está machucado, eu dizia: Me deixa
fazer? Eu entrava e fazia. E o ensaio transcorria como
deveria. Nunca pensei em fazer isso por mal. Se estava
lá, era para isso. Não pensava se estava tirando o lugar
de algum colega meu. Pensava que estava ajudando
o ensaio acontecer. Assim, passava a fazer ou a dividir
com o colega escalado as partes que não haviam me
170 mandado aprender a princípio. Sempre entendi dife-
rente toda essa história. Aproveitava o tempo livre para
aprender outro solo sozinho, pois me molestava ficar
parado. Sempre me cansou mais ficar parado.

Em Camila, decidi tudo: cenário, figurino, ilumi-


nação, tudo. Fiquei entusiasmado com o leque de
possibilidades que se abria à minha frente. Quando
estreamos, a direção do Corpo de Baile Municipal
decidiu que o meu trabalho ficaria no repertório
da companhia. Ele foi apresentado outras vezes, e
sempre compunha a noite com alguma outra obra,
já que tinha apenas 20 minutos.

Embora tivesse ficado imensamente feliz, tenho hoje


a certeza que não tinha capacidade naquele tempo de
avaliar o que realmente significava aquilo. Sabia ape-

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nas que, para chegar àquele resultado, estava usando
as informações que eu havia acumulado todo o tempo.
Se penso que, em março de 1972, foi a primeira vez que
peguei numa barra, e que em 1977 já estava coreogra-
fando para uma companhia oficial, tenho a dimensão
de que é muito pouco tempo para aprender, dançar,
viajar, mudar de país, dançar em quatro companhias,
fazer assistência de iluminação e de palco, montar
coreografia. Foi uma bênção fazer isso tudo junto. E,
depois de um tempinho, teria mais uma atividade que
se juntava a todas essas: a de professor.

Nessa época, comecei a dar aula, como forma de


melhorar um pouco meus rendimentos, fora do ho-
rário de ensaios da companhia. O primeiro lugar que
consegui para trabalhar foi na academia da Renée
Gumiel, na Rua Augusta, recomendado por Anto- 171
nio. Eu tinha uma turminha de balé clássico uma vez
por semana. E me dei conta naquele momento que
quando se começa a ensinar, na realidade, começa-se
a aprender. E isso não era nenhuma fantasia mística.
Era algo bastante lógico.

Quando conheci Renée, ela já era uma artista bastan-


te conhecida e respeitada. Sempre gostei muito dela,
de seu aspecto exótico, daquele seu sotaque carre-
gado. Nunca chegamos a ter grandes intimidades,
mas ela sempre me tratou com bastante carinho. Um
tempo depois, passei a dar aula em outra academia
que se chamava Centro de Dança e Artes Integradas,
na Rua Cubatão, no bairro do Paraíso. Era dirigida
por Cleusa Fernández, Vitória Barros e Jane Blauth,
que eu já conhecia do Rio e que havia chegado a São

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172

Retrato no Corpo de Baile do Teatro Municipal de São


Paulo, 1979

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Paulo como convidada do Grupo Stagium. Aquela
sala ampla, que abrigaria tantos artistas importantes
da dança paulistana e da dança brasileira, se trans-
formou em um lugar especial para mim, e para a
cidade. Lá, eu podia continuar aprendendo quando
fazia e quando dava aula. E logo se tornou o lugar
preferido dos rapazes do Corpo de Baile Municipal
que, em turma, ao final da tarde, faziam aula com a
mestra preferida, Jane Blauth.

Quando comecei a estudar dança em Buenos Aires,


escutava muito de meus colegas frases como: Ah, se
eu não der certo como bailarino, vou ser professor,
ou coreógrafo. Naquela época, não entendia muito
bem o que isso queria dizer. Mas confesso que, hoje,
continuo não entendendo. Naquela época não en-
tendia por ignorância. Hoje não entendo por incoe- 173
rência. Acredito que todas essas atividades deveriam
ser conhecidas profundamente pelas pessoas que se
dedicam à dança. Deveriam ser experienciadas através
de seus corpos. Por todos.

Evidentemente, quando pude realizar esse primeiro


trabalho coreográfico, fiquei com vontade de fa-
zer mais coisas, de experimentar novos desafios da
criação. Continuava dançando com a companhia, ao
mesmo tempo em que fazia um pouco de assistência.
Ajudava no que podia, porque oficialmente não tinha
cargo de assistente nem nada. Aliás, trabalhávamos
por prestação de serviço. Não pertencíamos aos
quadros do município ainda. E, como prestadores de
serviços, tínhamos que conviver com regras que iam
mudando a cada nova administração.

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174

Com Cleusa Fernández

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No ano seguinte, 1978, Antonio promoveu mais uma
vez um workshop para coreógrafos e, dessa vez, me
inscrevi imediatamente. Montei um trabalho nova-
mente com música de Mahler, o Primeiro Movimento
da Segunda Sinfonia. Escolhi trabalhar apenas com
homens, sete homens. Testemunho causou um certo
alvoroço na época, porque não era muito comum ter
apenas homens em cena. No ensaio geral, o elenco so-
freu um desfalque: um bailarino se machucou. E não
havia um substituto para ele. No dia seguinte, com
um figurino apertadíssimo e sapatos dois números
menores que o meu, entrei em cena. Eu era o único
que errava. Em seguida, essa obra também passou a
fazer parte do repertório da companhia. Mais uma
vez, não me cabia em mim, tamanha era a felicidade.

E lembro que, no terceiro workshop, do ano seguin- 175


te, eu não precisei mais me inscrever. Antes disso,
fui oficialmente convidado pela direção para criar
um trabalho.

***

Depois da experiência com Camila, fui convidado a


coreografar para outros grupos. Ainda em 1978, fiz
uma coreografia para um jovem grupo independente
de São Paulo, composto apenas por moças, chamado
Grupo Andança, que havia sido criado no ano anterior
por Lia Rodrigues, Juçara Goldstein, Cristina Brandini,
Marta Salles, Sonia Galvão, Malu Gonçalves e Silvia
Bittencourt. O que me encantou nelas era o fato delas
também estarem querendo descobrir uma maneira
diferente de trabalhar. Por exemplo, elas não tinham

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uma direção. Todas, de alguma maneira, organiza-
vam tudo, exatamente o que eu já acreditava como
deveria ser numa companhia de dança. Criei Pastoral
para elas, com as Canções de Auvergne, de Joseph
Canteloube de Malaret. Eram canções da Provence, da
França. Era uma peça de 20 minutos, muito simples e
muito feminina. Elas usavam umas sombrinhas, que
concediam um tom pastoral que eu desejava. Foi uma
ótima experiência, porque era a primeira vez que
trabalhava como coreógrafo fora do Corpo de Baile
Municipal de São Paulo. E, confesso, fiquei muito feliz
quando elas, neste mesmo ano, ganharam o prêmio
revelação da APCA.

Outra dessas tentativas foi para a escola de Ismael


Guiser. Conheci Ismael logo que cheguei a São Paulo,
176 em 1974. Ele tinha uma pequena escola na Avenida
Doutor Arnaldo, com sua sócia Yoko Okada. Essa era
sua primeira escola, bastante incômoda, em cima de
uma padaria. Era o começo de um boom da dança
aqui no Brasil, muito estimulado pelo jazz e por pro-
gramas e novelas de televisão. Nessa época, as escolas
tinham três, quatro mil alunos, números que jamais
se repetiriam depois.

No momento em que saí do Stagium e fui para o Cor-


po de Baile Municipal, conheci Ismael. Foi através de
meu amigo Roberto, que havia estado recentemente
com ele. Na primeira vez que nos vimos, ele me re-
cebeu muito bem. Contrariando o espírito de nosso
país, me deixou fazer suas aulas gratuitamente, que
eu achava muito difíceis. Aliás, Ismael, a partir de
então, passou sempre a nos ajudar quando estávamos

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com o dinheiro mais curto. Geralmente era alguma
participação numa dança para a televisão, que ele co-
reografava. Certa vez, vestidos de smoking, ladeando
uma escada, acompanhávamos a descida glamurosa
da vedete Wilsa Carla. Era um modo legítimo de
trabalhar. E Ismael me ensinava isso. Todo o tempo
que pude, fiz aula com ele. Até um dia antes de ele
morrer. Ele era um professor que, com o passar do
tempo, ia ficando melhor, como vinho.

Para fazer aulas com ele, tinha que se ter um nível


muito elevado de compreensão. Ele era fantástico.
Quem se prendia a conceitos banais de movimento,
sofreria horrores. Tudo era absolutamente preciso em
relação ao movimento, ao uso espacial, ao ritmo, aos
tempos e contratempos. Aparentemente, parecia ser
uma aula muito simples, com exercícios curtos, algo 177
que qualquer um faria. Mas, pelo contrário, eram exer-
cícios extremamente elaborados. Era uma masterclass.

Para mim, no comecinho, aquilo tudo que Ismael nos


dizia em sala de aula parecia grego. Eu insistia em
estar ali porque tinha a sorte de saber me entregar,
de saber intuitivamente que o processo de aprendi-
zagem era algo que não tinha muito que opinar, que
iria seguir decantando sozinho, para me levar a um
determinado lugar, algum dia.

Uma coincidência? Ilse e Ismael tinham sido, em


épocas diferentes, alunos de Esmée Bulnes, excelen-
te e renomada professora inglesa que morou muito
tempo em Buenos Aires. Uma família se formava.
Uma família de artistas.

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Ismael Guiser

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Com Ismael Guiser

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Sempre tive a sorte de trabalhar com os melhores
professores. Ilse e Ismael em balé clássico. Em dança
moderna, Renatte, e no Brasil Ruth Rachou e Odette
Flaks. No Corpo de Baile Municipal de São Paulo, algo
fantástico acontecia que era a evolução do ensino que
vínhamos recebendo. Tínhamos técnica clássica com
Yellê Bittencourt, que é sem duvida um homem de
grande inteligência física e metodológica; e técnica
moderna com o japonês radicado na Inglaterra, Yoshi
Morimoto, num trabalho de Graham e reminiscências
de folclore japonês que ele tinha estudado de crian-
ça. Foi extremamente importante essas presenças
porque nos permitiram uma melhor compreensão e
realização do que dançávamos. Yellê assistia às aulas
de Yoshi e Yoshi as de Yellê. Depois, os dois conver-
savam longamente, percebendo toda a unidade de
base que partilhavam. E tudo isto me influenciava
grandemente a cada coreografia que realizava.

E até hoje faço aulas de balé. Trabalho com muitos


professores e com todos sensorialmente sei mais do
que coisas novas: aprendo as mesmas de uma maneira
sempre nova.

***

Continuava como bailarino do Corpo de Baile Munici-


pal de São Paulo. Em 1978, dancei peças de Navarro,
Araiz e Sonia Mota. E ganhei o Prêmio Governador
do Estado de São Paulo como melhor bailarino.

Nesse ano, a direção da companhia estava passando


por uma sucessão de crises. Antonio havia deixado

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Ballet Ismael Guiser: Noch Einmal, de Luis Arrieta

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seu cargo por um curto período, sendo substituí-
do por Navarro, e voltou logo em seguida. Iracity
Cardoso permanecia como assistente. A companhia
tinha 28 bailarinos, 15 mulheres e 13 rapazes. E nós
tivemos um trabalho intenso. Na verdade, 1978 foi
um ano especial para a companhia, já que, apenas
no primeiro semestre, atraiu um público que somava
mais de 30 mil pessoas com seus espetáculos, graças a
uma acertada política de preços populares. Fora isso,
fizemos uma excursão pelo país, começando pelo Rio
de Janeiro e indo de Norte a Sul, apresentando nosso
repertório. E eu estava particularmente feliz pelo fato
de meu balé Camila estar incluído nele.

Ainda nesse ano, tivemos a turnê brasileira da Alvin


Ailey American Dance Theater, que se apresentou em
182
junho no Teatro Municipal de São Paulo, a grande
atração internacional do ano. Apresentaram alguns
de seus clássicos como Cry e Revelations. Para uma
reportagem de Helena Katz sobre essa estreia, no jor-
nal Folha de S. Paulo, do dia 27 de junho, declarei: Só
conheço o trabalho deles por filme, e acho lindíssimo.
Mas é muito diferente de assisti-los ao vivo. Estou
até apreensivo quanto à apresentação de hoje, mas
creio que não vou me decepcionar. O trabalho deles
é muito bom, temos sempre que aprender com uma
companhia assim. Quanto à vinda do grupo ao Brasil,
considero importantíssima. De certa forma, estimula
nosso trabalho, pois mostra ao público um trabalho
de renovação dentro da dança. Serve como exemplo
de que aquilo que tentamos fazer aqui faz parte de
um movimento mundial.

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No ano seguinte, 1979, nós do Corpo de Baile Mu-
nicipal recebemos a visita de um coreógrafo dessa
companhia, Clive Thompson, que montou Hoje é
amanhã. Esse trabalho, o que era inevitável, dialoga-
va com a linguagem de Ailey, dentro do que estava
ao nosso alcance técnico. Além disso, participei da
criação de Aquarela do Brasil e Brahms, de Antonio
Carlos Cardoso e de Daphnis e Chloé de Navarro. E,
apesar de não participar mais do workshop como
coreógrafo, em sua terceira edição, que aconteceu
no mês de outubro, no Teatro João Caetano, parti-
cipei como bailarino. No programa contávamos com
quatro trabalhos, embora eu tomasse parte apenas
de três: Concertinho de Paulo Contier, Balanços de
Ivonice Satie e a Missa do Vaqueiro, de Umberto
Silva. Ariane Asscherick assinava a outra coreografia
do programa. Sempre dancei com muito prazer co-
reografias de meus colegas. 183

Ainda em 1979, fiz para o Ballet Ismael Guiser, Children’s


corner, com música de Debussy, minha segunda obra
fora da companhia. O lado positivo desses trabalhos,
além do próprio exercício de coreografar, era o fato
de que eu começava a receber por eles, mesmo que
fossem cachês ainda bem modestos. De alguma forma,
coreografar se tornava para mim, lentamente, uma
profissão também.

Voltava a Buenos Aires periodicamente, principal-


mente nas férias de fim de ano, para passar as festas
com minha família e ficar um pouco mais por dentro
dos acontecimentos da casa. Isso fazia com que minha
saudade ficasse um pouco esmaecida.

***

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo,
Presenças, de Luis Arrieta, 1979

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Presenças foi a primeira coreografia com caráter mais
oficial que compus. Fui convidado a concebê-la e isso
era algo ao mesmo tempo novo e especial para mim.
Nesse ano de 1979, ganhamos o prêmio de melhor
obra do ano, concedido pela APCA. Usei a Rapsódia
sobre um tema de Paganini, de Rachmaninov, com
24 minutos de duração. E decidi homenagear minha
mãe. Foi um balé que a companhia dançou por muito
tempo, muito importante para mim e para a própria
companhia. Era um trabalho de muita energia, e o
público ficava muito envolvido com toda sua dinâ-
mica de movimentos.

Os bailarinos com quem eu trabalhava no Corpo de


Baile Municipal eram ótimos. Eu intuía neles a capa-
cidade de fazer muitas coisas, sobretudo porque, em
meus trabalhos, havia sempre destaque para todos. 185
Por um lado, reconhecia todas as dificuldades deles e,
por outro, tinha uma fé cega na capacidade do que
se podia realizar ali, possivelmente até muito mais do
que a fé que eles próprios tinham. Sempre achei que
eram eles – os bailarinos – os realizadores da obra,
tanto que eu raramente dancei um trabalho meu.
Dançava quando tinha necessidade, quando alguém
se machucava, ou quando havia algum problema de
emergência, mas era algo raro.

Por esse balé, recebi uma de minhas primeiras críti-


cas. Acácio Ribeiro Vallim Jr. assim escreveu para o
jornal O Estado de S. Paulo (01/07/1979): Presenças,
trabalho vigoroso e atraente de Luis Arrieta, o que
mais impressiona é, sobretudo, a inventividade do
coreógrafo. Cada sequência é uma surpresa nova,

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os grupos se harmonizam com muita beleza. Existe
no trabalho um constante diálogo de movimentos.

Fiquei ainda muito contente com outra no-


vidade. No ano seguinte, a TV Cultura estre-
aria um novo programa, chamado Corpo de
Baile, em que veicularia as obras do repertó-
rio do Corpo de Baile Municipal, com filmagens
especialmente dirigidas pelo Pipoca. O primeiro
programa a ir ao ar, em maio de 1980, apresentou
justamente Presenças.

Em 1980, fui convidado a ocupar oficialmente o posto


de diretor assistente do Corpo de Baile Municipal, já
que Iracity havia saído para trabalhar no Ballet de
Genebra, com Oscar. Como assistentes, contávamos
com Ivonice Satie e Umberto Silva. Na verdade, essa
nomeação representava apenas a oficialização de
algo que, na prática, eu já vinha fazendo. Assim,
fiz assistência de direção, mas continuava desempe-
nhando todas as outras funções, como assistente de
coreografia, coreógrafo, bailarino, além de ajudar na
iluminação, opinar sobre os figurinos, tudo.

E, novamente, me convidaram também para fazer


outro trabalho para a companhia, que se chamou da
Infância com canções de Mahler. Era um período em
que eu estava muito mahleriano. De alguma maneira,
todos os meus trabalhos sempre falaram muito de
mim, assim como acredito que todos os trabalhos dos
outros coreógrafos falem de quem os realiza. Não há
muito como escapar disso. Mas, com da Infância, isso
aparecia de forma bem nítida, estampada inclusive no

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187

Retratos 1982

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Retratos 1982

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próprio título, ou seja, o reconhecimento da infância,
da visão que eu tinha do que era infância. Claro que
essa consciência e essa percepção vinham depois que
a obra estava pronta. Dificilmente viriam antes disso.

Essa nova obra estreou em julho de 1980, num pro-


grama que tinha ainda Cantata, de Antonio, e Danças
Sacras e Profanas, de Navarro. Mas esse espetáculo
trazia a bela oportunidade de ser apresentado
com música executada ao vivo. Para da Infância,
por exemplo, tivemos o privilégio de contar com a
participação do pianista Gilberto Tinetti e do tenor
Eduardo Alvares.

Aconteceu uma coisa interessante ainda neste ano.


Naquela época, a partir da direção de Antonio Car-
doso, o Corpo de Baile Municipal não participava 189
mais obrigatoriamente das óperas da casa. Mas foi
solicitada uma participação da companhia na tem-
porada lírica desta vez. E Antonio me perguntou o
que se poderia fazer, e eu tive uma ideia, que ele
rapidamente acatou.

Embora fazendo parte da temporada lírica, não usa-


mos música ao vivo e sim gravação. Escolhi A-Ronne,
uma obra de Luciano Berio, em que ele usa trechos de
obras famosas de outros compositores, como Mahler,
por exemplo. A versão que usei era a do grupo vocal
que ficou muito famoso na época, Swinger Singers,
e esse trabalho teve como título Um retrato.

Ele tinha também um forte aspecto psicológico e


mostrava como eu estava realmente fazendo uma

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo, da
Infância, de Luis Arrieta, 1982. Acima, Monica Mion e
Carlos Demitre. Abaixo, conjunto

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Ensaio em BH com Elo, Ballet de Câmara Contemporâneo,
1982

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viagem para dentro de minha vida, desde a infância.
Um retrato era uma obra forte, da qual eu participava
também dançando. E que tinha alguma influência de
dança-teatro. Lentamente, também, eu começava
a usar muito mais o chão, algo relativamente novo
para nós. E foi também muito interessante até pelas
próprias dificuldades enfrentadas na produção desse
trabalho. Por exemplo, decidimos que cada bailarino
iria propor o figurino que deveria usar. Então, cada
um trouxe uma roupa de casa e, dentro daquilo,
escolhíamos algumas peças e depois tingimos tudo
junto, para dar uma certa unidade na tonalidade
do trabalho. Ou seja, vários novos procedimentos
estavam sendo testados por nós naquele momento,
ao mesmo tempo.

192 Novamente o Acácio Vallim escreveu sobre a estreia,


no jornal O Estado de S. Paulo (21/09/1980): “Impres-
siona em Um retrato a capacidade de Arrieta em criar
movimentos, de tal forma contemporâneos, que a
relação com a nossa época se estabelece sem dificul-
dade. Um retrato materializa no palco todo o caos
atual num depoimento poderoso e impressionante.”

Fiquei especialmente feliz porque, ao terminar o ano,


ganhei o prêmio de melhor coreógrafo justamente
por essas duas obras, Da infância e Um retrato, con-
cedido pela APCA.

Continuava como bailarino, como sempre. Participei,


por exemplo, das criações de Antonio Cardoso, Sol do
meio-dia e Cantata. Mas ainda criei mais uma obra,
de 25 minutos, Sanctus. Usei um disco que estava na

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moda e que se chamava African Sanctus. A partir de
registros africanos, recolhidos entre 1969 e 1975, no
Egito, Sudão, Uganda e Quênia, por um engenheiro de
som e o compositor e etnomusicologista inglês David
Fanshawe, tudo foi relido com orquestrações e corais,
concedendo um ar mais europeu à matriz. Cinco anos
depois, fiz uma nova versão desse balé para o Balé
Teatro Castro Alves, em Salvador, e que se tornaria
uma de suas obras conhecidas internacionalmente.

O diretor de teatro Ulisses Cruz, assim escreveu sobre


esse balé no Diário do Grande ABC (13/12/1980): Sanc-
tus de Arrieta, um belíssimo agrupamento de movi-
mentos que transmitem com inusitada emoção sua
paixão pela dança. Sanctus é, antes de tudo, isso: uma
festa de movimento de um homem apaixonado pelos
bailarinos e a dança em sua essência mais cristalina. 193
No palco, somente a luz serve como acessório para
evidenciar a magia da dança, e o bailarino é o men-
sageiro de uma energia extraída do ato de dançar.

Antes do ano terminar, trabalhei ainda com duas


companhias independentes. Fui convidado por Hulda
Bittencourt para fazer minha primeira coreografia
para sua Cisne Negro Cia. de Dança, que ainda en-
gatinhava com seus três anos de existência: Primeira
oração, com o Concerto para órgão, cordas e tímpa-
no de Francis Poulenc. Uma obra linda. Estreou em
novembro, no Teatro João Caetano, dividindo o pro-
grama com obras de Navarro. Helena Katz, na Folha
de S. Paulo (01/11/1980), escreveu: Primeira oração
nos remete ao Luis Arrieta de Presenças (...). Aqui, os
desenhos e as dinâmicas são mais requintados, mas é

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a mesma competência em explorar o espaço cênico
que retorna ao trabalho de Arrieta.

A segunda companhia foi o Grupo Casa Forte, um


grupo recém-formado por Edson Claro, com alunos
oriundos de cursos superiores de Educação Física. Fiz
Canções para uma criança morta, novamente com
Mahler. Nesse grupo, estava Paulo Rodrigues, que
mais tarde seria o primeiro-bailarino do Ballet do
Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ele tinha um
solo muito forte, com a canção talvez mais veemente
de toda obra. Como ele vinha da natação, ele tinha
um porte atlético e costas largas. Vestido de mulher,
fazia esse solo que era muito violento. O resultado
era uma cena interessante. Aquele homenzarrão
vestido de mulher... Não deixava de ser algo forte
194 para época, porque evidentemente ele não pretendia
ser uma mulher, mas tratar de uma alma masculina
vestida de mulher.

E ainda fiz um pequeno solo para minha amiga e


colega Ivonice Satie, Céu e inferno, para um docu-
mentário em curta-metragem chamado Retrato de
Ideko, de Olga Futema. Enfim, um ano que terminava
repleto de realizações. E eu nem sabia o que ainda
estava por vir.

***

Em 1981, Antonio Carlos Cardoso deixou a direção do


Corpo de Baile Municipal, após seis anos, aceitando
um convite para formar uma companhia estável no
Teatro Castro Alves, de Salvador. Diante disso, o se-

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cretário me propôs que eu assumisse a companhia.
Ao aceitar, pedi que Ivonice Satie ficasse comigo,
como minha assistente de direção, deixando claro
que eu continuaria com a proposta que Antonio
vinha desenvolvendo.

Foi uma época curta, de apenas um ano, pois durou


apenas até o início de 1982. Mas foi também uma
época de muito trabalho. Realmente foi um grande
esforço para mim, aliar tantos afazeres. E me senti
inclusive testado fisicamente, já que sempre fui uma
pessoa frágil nesse sentido. Claro, o lado administra-
tivo era sem dúvida o mais complexo, já que estava
empenhado agora em coreografar. De uma hora para
outra, tive que me preocupar com coisas absoluta-
mente novas, que incluía tudo, até pedidos de papel
higiênico, copos para café, enfim, todas essas coisas 195
bem pouco “artísticas”. Minha sorte foi contar com
Ivonice, uma excelente assistente de direção, assis-
tente coreográfica, além de uma excelente bailarina
também. Ela dançava tudo na companhia. E era uma
mulher impressionantemente batalhadora.

Quando assumi a direção, na verdade, não foi uma


grande mudança, porque eu já vinha, de certo modo,
fazendo muita coisa. Não havia se passado sequer
uma década desde que iniciei na dança e eu já estava
dirigindo uma companhia oficial. Ou seja, em menos
de nove anos, tinha exercido todas as funções: dancei,
coreografei, dirigi. E isso sem nunca ter me sentido,
até hoje, como se eu não tivesse ainda muito que
aprender. Nunca. Até hoje, faço aula de dança para
aprender. Não faço aula para me manter fisicamente.

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo:
Sanctus, de Luis Arrieta

Ballet do Teatro Castro Alves: Sanctus, de Luis Arrieta

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo,
Sanctus, de Luis Arrieta, com Paulo Contier

Ballet do Teatro Castro Alves: Sanctus, de Luis Arrieta,


com Fátima Berenguer e Marcos Napoleão

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Aliás, nesta idade não tenho mesmo nada mais que
manter. Faço realmente para aprender.

O que também me foi claro desde sempre era que eu


jamais pretenderia mudar os rumos que a companhia
havia tomado desde a entrada de Antonio. A minha
ideia era continuar com aquele pensamento que, na
minha maneira de ver, era a maneira mais profunda
e verdadeira para trabalhar.

E, nesse sentido, acumulando as funções de diretor e


coreógrafo residente, montei dois trabalhos para a
companhia nesse ano. O primeiro deles já tinha sido
pensado por Antonio e, por isso, resolvi desenvolver.
Ele pretendia fazer uma obra a partir de O Romanceiro
da Inconfidência, romance da Cecília Meirelles, de 1953.
Desta ideia, chegamos a Libertas quae sera tamen, com
198
a ajuda de Iacov Hillel, que idealizou todo o roteiro e
também desenvolveu o projeto de iluminação.

Na verdade, o time escalado para essa obra era de


primeira. Para a trilha, convidamos Egberto Gismonti,
que compôs especialmente a música. Já os cenários e
figurinos ficaram a cargo de Flávio Império, que chegou
a ganhar o prêmio concedido naquele ano pela APCA,
por esse trabalho. Na verdade, essa era sua segunda
experiência com dança, já que sua ligação maior sem-
pre foi com as artes plásticas e depois com o teatro.

E para mim, especialmente, foi um trabalho muito


importante, porque foi meu primeiro trabalho de
longa duração, de uma noite inteira, com 80 minutos.
Ele era apresentado sozinho, sem intervalo. Uma obra
de fôlego, como se costuma dizer.

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E recebemos algumas críticas. Acácio Vallim, por
exemplo, assim escreveu para O Estado de S. Paulo
(23/04/1981): “Libertas é o resultado da reunião feliz
do trabalho de profissionais de diversas áreas. Acima
de tudo Libertas empolga pelo casamento perfeito
da música de Egberto Gismonti com a coreografia de
Luis Arrieta. O resultado é um crescendo de emoções
que envolvem o espectador por completo. Alegria
autêntica impregnando o palco.”

A segunda obra do ano que fiz, Eterno Infinito,


com música de Vangelis, era como muitos dos meus
trabalhos, ou seja, solos, duos, trios e quartetos, que
se alternavam. Sempre gostei muito de usar todo
o elenco em conjunto, porque adoro as formações
de conjunto, mas, ao mesmo tempo, os usava indi-
vidualmente, tentando captar o que cada bailarino 199
tinha a me oferecer. Nessa obra, por exemplo, havia
possivelmente um aspecto psicológico, não no sentido
de lembrança, mas de um espelho encarnado nos pró-
prios bailarinos. Ou seja, como eu me via refletido em
cada pessoa do elenco. Lembro que, para isso, lancei
mão de alguns pequenos poemas muito bonitos de
um poeta árabe, chamado Nemer Ibn El Barud.

Alguns pedaços desse trabalho foram filmados pela


TV Globo, para passar no programa de comemora-
ção do aniversário da cidade de São Paulo, que seria
no dia 25 de janeiro do ano seguinte. Como era de
costume, a cada ano essa comemoração ganhava um
título e a desse ano era São Paulo, terra infinita. Ou
seja, tínhamos em comum a ideia de infinito, além
de sermos o Balé da Cidade de São Paulo. Justamente

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Ensaio de Libertas, com Paulo Contier, Guilherme Botelho
e Ray Costa

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Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo: Libertas
Quae Sera Tamen, de Luis Arrieta, com Leila Sanchez,
Paulo Contier e Julia Ziviani

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nesse ano de 1981, a companhia foi rebatizada com
esse nome, algo que já havia sido pleiteado por Anto-
nio, mas que se consolidou apenas na minha gestão.
Assim, em dezembro, nós e a equipe da emissora
fomos filmar partes desse balé no minhocão. Era
madrugada, porque eles queriam captar também o
nascer do sol. Encontramos todos às 3 horas da manhã
no viaduto. E as filmagens ficaram lindas.

Nesse ano, não convidei ninguém para coreografar


para a companhia. Tinha a intenção de montar uma
versão minha para Romeu e Julieta, com a música
de Prokofiev. Cheguei a iniciar os ensaios, e fui até
a metade do que pretendia. Mas não acabei. Esse
foi o único trabalho em toda minha carreira que
não terminei. E uma das razões foi minha saída da
202 companhia logo no início do ano seguinte. Em meu
lugar entrou, então, Klauss Vianna.

***

Entre 1982 e 1985, fiquei longe da companhia. Não


foi nada fácil para mim, mas, ao mesmo tempo, sabia
que poderia ser o momento de experimentar novas
frentes, trabalhar de outras maneiras. Logo em 1982,
fui para Belo Horizonte, onde permaneci uns seis me-
ses. Lá, pude me aproximar de Bettina Bellomo, uma
bailarina argentina que havia chegado ao Brasil pou-
cos anos antes, em 1974, como professora do Festival
de Inverno de Ouro Preto. Mas, antes disso, Bettina
já carregava um currículo invejável: havia ingressado
com 15 anos no corpo de baile do Teatro Colón, se-
gundo esforços pessoais de Alicia Alonso. Em seguida,

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foi trabalhar no próprio Balé Nacional de Cuba, para
depois alcançar o posto de primeira-bailarina do Balé
Nacional do México. Disso, voltou para a Argentina,
para trabalhar com Oscar. Hoje, sem dúvida, é uma
das melhores professoras de técnica clássica desse país.
Juntos, então, resolvemos criar um grupo pequeno
de dança, chamado Elo Ballet de Câmara Contem-
porâneo, com bailarinos da cidade. Estava feliz em
trabalhar com uma compatriota, confesso.

Para viabilizar esse projeto, resolvi me mudar para


Belo Horizonte, mesmo que por um curto período.
Era uma companhia pequena, independente, sem
recursos e com apenas 11 integrantes. Eu e Bettina
éramos os diretores. Contamos com a ajuda de Jairo
Sette e Suzana Mafra, bailarinos que vinham do Balé
da Cidade de São Paulo, e Tânia Mara, como assisten- 203
tes. E os bailarinos eram: Cristina Carvalho, Eduardo
Bactéria, Lúcia Freitas, Geraldo Vidigal, Tânia Miranda
e Virgínia Bezerra.

Para a estreia da companhia, fizemos um trabalho


chamado Nascer: ou algumas profecias cotidianas e
eternas, o qual abordava as diversas formas de nasci-
mento. Estreamos no Palácio das Artes, em novembro
de 1982. Depois nos apresentamos em outros teatros
da cidade, como o Francisco Nunes e o Santa Maria.

Desse espetáculo, um trio particularmente interessan-


te acabou ganhando vida própria e até mesmo um
nome próprio: Trindade, que seria dançado depois
por muitas companhias país afora. Na estreia, fizeram
Jairo Sette, Bettina Bellomo e Tânia Mara. E a com-

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Elo Ballet de Câmara Contemporâneo. Acima, grupo.
Abaixo com Bettina Bellomo

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Elo Ballet de Câmara Contemporâneo. Acima, grupo.
Abaixo no destaque, Suzana Mafra

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Elo Ballet de Câmara Contemporâneo

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panhia logo em seguida se desfez, vítima da falta de
recursos que sofria. Infelizmente.

Nessa mesma época, fiz alguns trabalhos fora do eixo


Rio-São Paulo-Belo Horizonte. O primeiro foi para um
grupo de Porto Alegre, o Grupo de Dança Imbahá.
Fiz Terceira oração ou Oração das mães da Praça de
Maio, obra sobre a qual já contei um pouquinho lá
no início do livro. Em Maceió, montei a coreografia
Maceió para o Grupo Íris de Alagoas, dirigido pela
bailarina Eliana Cavalcante. Falava da natureza de
lá, da areia, da praia, do mar, de tudo que foi tão
impactante pra mim, que vinha de Buenos Aires.

E, por falar em Buenos Aires, decidi, pela primeira vez,


resgatar o tango em minhas obras. Montei Tempo de
tango para a Cisne Negro Cia. de Dança. Tratava-se, sem 209
dúvida, de uma reconciliação, já que, para mim, tango
sempre foi música de pessoas mais velhas, de outras
gerações. Era um reconhecimento. E, apesar de não usar
o tango tradicional, mas as revisitações de Medeiros
e Piazzolla, era um modo de ficar mais próximo dele.

Durante sua montagem, num dos ensaios, tentei


olhar o trabalho e reconhecer nele meus pais. Para
minha surpresa, como numa visão, constatei que eles
estavam lá, mas não como adultos e muito menos
como velhos: eram crianças que dançavam entre as
cadeiras sustentando os primeiros desejos de afeto
de suas infâncias.

Em 1983, continuei aceitando convites para coreo-


grafar pelo Brasil. Era um modo de conhecer o país e

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Cenas de Trindade, de Luis Arrieta. Acima, Aurea Ferreira,
Sandro Borelli, Ana Maria Mondini. Abaixo, Lília Shaw,
Irineo Marcovechio, Nancy Bergamin

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sua dança. Devido minha estada em Belo Horizonte,
acabei conhecendo Marjorie Quast, diretora do Gru-
po Núcleo Artístico, que pertencia à sua escola, criada
ainda em 1978, e do Camaleão Grupo de Dança, de
1984. Conheci Marjorie por meio de Bettina, que já
trabalhava para sua escola dando as aulas mais adian-
tadas. Ela me recebeu abertamente, sem medos, feliz
do crescimento da dança na cidade, oferecendo seu
estudo e muito apoio para a nossa produção.

Para o Núcleo Artístico, montei uma coreografia


com música especialmente composta por Oswaldo
Montenegro, chamada Signos. Na verdade, era um
trabalho que Marjorie já havia começado a organizar
com Oswaldo, e me chamou para coreografar algu-
mas partes e fazer a direção geral. Eu experimentava,
então, maneiras diferentes de entrar num trabalho. 211
Maneiras enriquecedoras.

***

Nesse mesmo ano, ainda no início, em fevereiro, tra-


balhei novamente com a Cisne Negro Cia. de Dança.
Fizemos uma obra considerada importante para a
história da companhia: Do homem ao poeta, com
música de Carl Orff. Uma obra longa, de 75 minutos.

Na verdade, tive duas fontes que me inspiraram para


essa criação. Uma foram as Odes elementares, de
Pablo Neruda, que pensei em oposição aos textos
profanos da obra de Orff. A outra foi Il Quarto Stato,
um quadro de Pelizza de Volpedo, que traduzia as
ideias socialistas do pintor no final do século 19. Esse

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Luis Arrieta dançando Tango, de Luis Arrieta

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mesmo quadro foi usado pelo cineasta Bertolucci, na
abertura de seu filme 1900.

Hulda, diretora da companhia, me encomendou algo


assim: ela queria um trabalho em que os bailarinos
não precisassem trocar com frequência de roupa,
que não tivesse intervalo, e que pudesse ser levado
a ginásios ou lugares semelhantes. Ou seja, que pu-
desse ser apresentado em cidades que não contavam
com teatros. Bem, acatei todos os seus pedidos. Os
12 bailarinos entravam e não saíam mais do palco
durante uma hora e dez minutos. Tanto que, antes
de começar o espetáculo, eles costumavam brincar
entre si: Gente, é bom ir ao banheiro, porque agora
só depois de uma hora... Não tinha cenário. Não tinha
que trocar de roupa. E eu encarava aquele pedido
214
como um desafio. Nunca como uma limitação. Nunca
como uma restrição.

Nossa estreia foi em Curitiba e em São Paulo estrea-


mos apenas no mês de setembro, no Teatro Munici-
pal. O balé fez sucesso e seguiu sendo apresentado
muitas vezes. Não tantas vezes quanto Hulda pre-
tenderia, já que eles tiveram muitos problemas com
direitos autorais, pois as obras do compositor não
eram de domínio público.

Ainda encontrei um tempinho para coreografar em


Assunção, Paraguai, convidado pelo bailarino Miguel
Bonini. O grupo se chamava Produções Artísticas e,
para eles, fiz Paisagem em Azul.

***

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Enquanto estava trabalhando em Belo Horizonte,
com o grupo de Marjorie Quast, a direção da Rede
Manchete de Televisão me contatou, seguindo uma
indicação de Antonio Carlos Cardoso: precisavam com
urgência de um coreógrafo em sua equipe. E, daí em
diante, uma nova fase começou para mim.

A TV Manchete começava a existir. Entrou no ar pela


primeira vez em junho daquele mesmo ano, desde
então esbanjando uma opulência impressionante,
além de ser avançadíssima em termos tecnológicos.
E precisavam de um coreógrafo que montasse um
grupo de dança próprio da emissora. E eu aceitei
esse desafio.

Fiquei alguns meses indo com frequência ao Rio de


Janeiro, sede da televisão, até a estreia. Depois de 215
muitas reuniões, chegamos juntos ao conceito exato
do que eles pretendiam em relação à dança.

Na verdade, como pude reparar, a dança havia sido


levada em conta desde o início por eles. Na sede,
por exemplo, na Rua do Russel, no bairro da Glória,
havia uma ótima sala de ensaio, além de um teatro
maravilhoso, que hoje está, infelizmente, fechado. Eu
tinha condições de trabalho inimagináveis até então.

Marcamos uma audição para escolher os bailarinos.


Apareceram quase mil pessoas, algo inesperado por
nós. Uma loucura. Para mim, foi uma experiência e
tanto. Vieram muitos integrantes da companhia do
Theatro Municipal, como Ana Elisa Ferraiolo, Anto-
nio Negrero, ou seja, excelentes bailarinos querendo

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trabalhar comigo, porque me conheciam, e querendo
ter experiência em televisão.

Eu e o diretor Paulo Araújo, de show fazíamos juntos


a seleção. Tudo era filmado e ele já analisava se o
candidato era fotogênico, se funcionava bem para
a televisão, essas coisas. Tinha de tudo: tinha gente
que só sambava, gente que só desfilava, que só fazia
dança de salão... enfim, um pouco de tudo.

Ao final, escolhi 14 excelentes bailarinos, profissionais


muito interessantes. E começamos a trabalhar. Tínha-
mos aulas diárias de balé dadas por mim e, às vezes,
Jairo Sette, que já tinha trabalhado comigo em São
Paulo e Belo Horizonte, como bailarino e assistente.
Logo começamos a montar o que seriam os primeiros
216 programas de estreia. Uma das coisas que idealizei
para aquela ocasião tão especial foi uma releitura
de Tempo de tango, de Piazzolla, que eu havia feito
para a Cisne Negro Cia. de Dança.

Quem idealizava todo o visual da nova emissora era


Arlindo Rodrigues, que também dirigia o que eu de-
veria fazer. Tudo era absolutamente pensado, calcu-
lado. Até nosso linóleo tinha que ser preparadíssimo
para dança, em um tom de cinza que não cansasse a
vista. A sala tinha uma rampa em volta com 5 metros
de altura, onde foram colocados projetores e câme-
ras, caso quisessem experimentar um efeito de luz,
ou ter uma outra perspectiva. Enfim, era fantástico.

Nós da dança éramos todos bem considerados dentro


da TV. Ganhávamos bem. Tínhamos ótimos camarins

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naquele exímio prédio, projetado pelo Oscar Nie-
meyer. E eu cheguei a conhecer Adolpho Bloch, com
quem me simpatizei de imediato. Um homem culto
e interessante para se conversar.

Por um certo tempo, fiquei indo e voltando, entre


Rio, Belo Horizonte e São Paulo. Mas, quando chegou
mais perto da data de nossa estreia, aluguei tempo-
rariamente um apartamento quarto e sala no Bairro
Peixoto, perto de onde morava Tatiana Leskova.

Na verdade, um acontecimento pressionou para que


eu tomasse essa decisão. Durante um tempo, tive um
Fiat 147 e fazia com ele todas as viagens, quase sem-
pre sozinho. Numa dessas vezes, dormi na direção. E
bati naquela murada que divide a rodovia. Quase me
matei. Não aconteceu nada, mas fiquei apavorado. 217
Minha sorte foi não ter ninguém na estrada. Lembro,
então, que fui a um posto de gasolina, molhei um
pouco meu rosto, tomei um café bem forte, morrendo
de medo de voltar a dormir. Foi horrível. Depois disso,
decidi não fazer mais essa loucura e resolvi ficar no
Rio, pela segunda vez em minha vida.

Para esta abertura, fiz também um trabalho com a


cantora Watusi, que retornava de Paris, onde fazia
enorme sucesso, cantando a canção Só louco, de Dori-
val Caymmi. Esse seria o grande momento da abertura
da emissora. A parede atrás do palco do teatro tinha
rodas e por isso era possível abri-la, e dava para a pis-
cina. Fizeram, então, uma escadaria que passava por
cima dessa piscina e acabava no palco, por onde ela
vinha caminhando e cantando. Tudo coreografado por

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mim. Minha sorte foi poder contar com a simpatia e,
sobretudo, com o profissionalismo dela nos ensaios.

Ensaiávamos muito antes da estreia. Ela usava um


sapato com um salto altíssimo e um esplendor que
devia pesar uns 30 quilos. Acompanhando, 14 baila-
rinos e mais umas 40 moças e uns 20 rapazes, todos
modelos. Todos nessa escadaria, coisa típica de show
de abertura. Num dos ensaios, começou a chover. Por
nossa sorte, estávamos ensaiando sem os figurinos.
Todos imediatamente saíram correndo, porque es-
távamos num pedaço do cenário a céu aberto. Mas
Watusi continuou marcando, como se nada tivesse
acontecido. E eu fiquei ao seu lado. Eu jamais arre-
daria o pé dali. Quando acabamos, nos enxugamos
com umas toalhas e ríamos muito do estado em que
218 estávamos, ali sozinhos, naquele cenário vazio. Ela
era uma profissional.

Depois dessas experiências riquíssimas, decidi, nesse


mesmo ano, deixar a Manchete. Tudo que eu havia
experimentado lá já tinha sido suficiente para mim,
e acredito que para eles também. O meu assunto era
o palco. Era a dança. Era isso que eu sabia e queria
fazer. E eu já tinha combinado tudo isso de antemão,
ao assumir a direção do balé da emissora.

Antes de deixar o Rio novamente, participei ainda


como coreógrafo e bailarino no mesmo Tempo de
Tango que havia feito para a televisão, mas desta vez
num evento organizado por Tatiana Leskova e seu
Novo Ballet da Juventude. Sempre gostei de trabalhar
com Tatiana. E nunca recuso seus convites.

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Voltei para São Paulo. Não tinha uma casa na cidade.
Meu amigo Ismael Guiser era meu porto seguro, dei-
xando que eu ficasse num quarto em sua casa, onde
eu enfiava todas as minhas coisas enquanto ficava
pulando pelo mundo. Aliás, nesse ano, eu ganharia
mesmo o mundo.

Antes disso, porém, remontei Paisagem em azul, que


havia criado no Paraguai, para a companhia Dança e
Cia., de São Paulo, grupo estreante dirigido por Paula
Castro, cheio de gente jovem e talentosa. E fiz ainda
uma coreografia, no começo de 1984, para uma com-
panhia recém-formada em São Paulo, o Grupo Ópera
Paulista. Essa era uma iniciativa da bailarina Ângela
Nolf, do bailarino Paulo Branco, e do professor Sacha
Svetloff, que se juntaram a alguns outros colegas e,
juntos, batalharam por sua existência. Fiz Paisagem 219
com gaivotas, que estreou em diversas cidades antes
de estrear em São Paulo, no teatro Sérgio Cardoso,
apenas no começo do ano seguinte. Não vi essa es-
treia. Estava longe. Bem longe.

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Cartaz para Tango, de Gabriel Sala, Wiesbaden,
Alemanha, 1984

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Capítulo III
Pelo Mundo

Nesse ano de 1984, fui para a Alemanha. Nunca tinha


estado na Europa, e achei que esse poderia ser um
bom momento. Se alguém me perguntar por que Ale-
manha e, mais especificamente, por que Wiesbaden,
não saberia responder.

Ou talvez sim, soubesse. Fui para a Alemanha porque


minha professora Ilse Wiedmann estava trabalhando
lá, em Hamburgo, com John Neumeier. E aí minha
intenção era ir para lá e arranjar algum trabalho aqui
e ali, que me permitisse continuar viajando e conhe-
cendo coisas novas. Era um plano modesto. Quando
comentei com Ilse sobre ele, me disse imediatamente 221
que viesse para Alemanha. Na verdade, ela é quem
tinha um plano para mim.

Ela me contou sobre Anielo Angrisani, um rapaz que


havia sido bailarino da companhia de Oscar, quando
ainda se chamava Daniel, e que estava na cidade de
Wiesbaden, como assistente de coreografia da com-
panhia oficial de lá. E que poderia me ajudar. Quem
dirigia era Roberto Trinchero, outro argentino, que
morava há muitos anos na Alemanha.

Na verdade, eu nunca tinha ouvido falar dessa com-


panhia até então. Ela não fazia balés de repertório,
mas algumas obras adaptadas e outras mais contem-
porâneas, bem ao gosto de Neumeier. Achei que
poderia ser um bom destino para mim. E sabia que

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seria recepcionado por Anielo que, a essa altura, já
sabia de minha chegada através de Ilse.

Ao chegar, ele estava no aeroporto em Frankfurt


me esperando. Desde o início, foi carinhoso comi-
go, embora estivéssemos nos conhecendo naquele
momento. Lembro de apenas tê-lo visto dançar na
companhia de Oscar, além de algumas poucas con-
versas na cantina do teatro. Era um italiano, baixinho,
que sempre fazia papéis de caráter, com muito tem-
peramento, como o Mercuccio, de Romeu e Julieta.
Lindo bailarino. Bem, ele me recebeu muito bem. E
logo perguntei se eu poderia fazer aulas de dança na
companhia, porque estava já ficando enferrujado. E,
como ele era assistente, acreditei que poderia inter-
ceder por mim e autorizar esse tipo de coisa.
222
Logo na primeira semana que estava fazendo aula,
me perguntaram: Estamos com problemas com dois
bailarinos: um está doente e o outro acaba de se
machucar. Você não entraria em cena, substituindo-
os depois de amanhã, em Cinderela, um balé de
três atos? Faria pelo menos alguns trechos? Aceitei.
Afinal de contas esse era um primeiro trabalho que
estava caindo do céu para mim e eu não poderia dar
as costas. E seria interessante poder conhecer essa
versão assinada por Trinchero.

Passei horas com Anielo assistindo ao vídeo do balé,


tentando absorver umas coisas. O que pude apren-
der, aprendi em uma tarde. Na manhã seguinte,
ensaiei e, à noite, já era hora de ir ao palco, sem
ter experimentado o figurino, nada. Minha sorte

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é que lá é tudo tão organizado que eles te vestem
perfeitamente. Cuidam de tudo. Coisas típicas de
companhias estatais de Primeiro Mundo, que eu
ainda não tinha experimentado.

Além de Anielo, eu não conhecia ninguém. E nem


sequer conseguia guardar direito o nome das pessoas,
quase todos alemães. Sem falar alemão e balbuciando
um inglês de índio, me lancei nessa aventura. Lem-
bro, então, que tentava decorar minhas marcações
tentando guardar as características físicas de quem
estava perto. Com tão pouco tempo para aprender
uma coreografia, tinha que lançar mão desses tru-
ques. Então marcava: Tenho que ficar atrás deste
que é ruivo e do loirinho. Ao chegar à noite, para
o espetáculo, tive uma surpresa: estavam todos de
peruca e vestidos iguaizinhos. Minha marcação tinha 223
sido em vão. Rezei para que tudo desse certo... E deu.

***

Essa minha primeira incursão na companhia foi sem


nenhum contrato, tudo combinado informalmente.
Era mesmo uma emergência, apenas. Mas, logo em se-
guida, me ofereceram a possibilidade de me contratar
para que eu ficasse até o fim da temporada, em julho
daquele ano. Aceitei. Foi bom porque pude conhe-
cer outras cidades da Alemanha, e outros países, ao
mesmo tempo em que trabalhei muito, dancei muito.

Aos poucos, fui conhecendo melhor Trinchero. Como


éramos dois argentinos, passamos a conversar com
frequência e logo comecei a frequentar sua casa. En-

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Tango de Gabriel Sala, Wiesbaden, Alemanha, 1984

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tão, pude contar que eu já era relativamente conheci-
do no Brasil, que coreografava e que já tinha dirigido
uma companhia oficial de uma cidade como São
Paulo. Daí em diante, passamos a discutir os projetos
coreográficos que ele estava desenvolvendo e senti
que ele achava que eu teria pretensões naquela com-
panhia. Tanto assim, que me ofereceram um contrato
como solista. Foi quando senti que deveria esclarecer
que não era exatamente aquilo que desejava. Que
não tinha aquele anseio.

Quando decidi voltar ao Brasil, estava cheio de


energia e com vontade de fazer coisas novas. Havia
passado muito tempo sem coreografar e isso, de cer-
ta forma, já estava me fazendo falta. Era o que me
importava de verdade. E não apenas dançar.
226
Em Wiesbaden, tive a oportunidade de acompanhar
algumas obras criadas especialmente para a com-
panhia. Não estar na posição de coreógrafo era um
exercício de lidar novamente com a troca de lugar,
com a troca do ponto de vista. Eu dançava no corpo
de baile. Logo, tinha que participar da criação como
grupo: entrar nas filas, ficar no lugar onde nos co-
locavam, cuidar para que todos os braços ficassem
na mesma altura, esse tipo de coisa. Mas achava
interessante voltar a perceber o que nós, bailarinos,
realmente pensamos. Nós, os intérpretes. Voltar a
perceber o que achamos que estamos fazendo e na
realidade não estamos, nossa demora em registrar o
que o coreógrafo nos apresenta pela primeira vez,
no primeiro ensaio. Enfim, gostei de saber que tinha
a capacidade de trocar de lugares. Isso me dava uma
mobilidade no exercício mesmo de coreografar.

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Luis Arrieta, 1984, Wiesbaden, Alemanha

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Voltei para o Brasil. Voltei para São Paulo, que sentia
já como sendo minha cidade. E voltei precisando de
trabalho, urgentemente.

***

Em 1985, recebi um convite para trabalhar com o


Balé Teatro Castro Alves que, na época, passou a se
chamar Companhia de Dança da Bahia, apenas por
um curto período. Quem estava à frente da direção
era Lia Robatto.

Ela me telefonou, perguntando se eu não gostaria de


fazer um trabalho com eles. Logo me veio à mente mi-
nha coreografia Sanctus, que eu havia criado há cinco
anos para o Balé da Cidade. Pensei que poderia, a
228 partir dela, fazer algo mais longo, de uns 90 minutos.
Tinha certeza que seria um trabalho que combinaria
perfeitamente com o estilo da companhia.

Lia aceitou minha proposta e fui para lá. Eu ainda


não havia trabalhado com essa companhia que, na
época, contava com o elenco original de sua primeira
formação. Um elenco praticamente todo da Bahia,
e que, também por isso, se movimentava de uma
maneira toda especial.

O curioso, entretanto, foi que no mesmo dia em


que cheguei, Lia me apresentou para os bailarinos
e, em seguida, me comunicou que, nesse mesmo
dia, estaria deixando a direção. Confesso que me vi
numa situação constrangedora, pois quem havia me
convidado para trabalhar estava deixando o cargo.

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Mesmo sabendo que era algo premeditado por ela,
que queria sair deixando a companhia trabalhando
em algo que ela acreditava, mesmo assim, me senti
um tanto constrangido.

Naquela época, o maître da companhia, que estava


desde o início de sua formação, era Carlos Moraes, um
gaúcho que havia se mudado para Salvador ainda em
1971, e que dançou no Ballet do Theatro Municipal
do Rio de Janeiro. Carlinhos era o grande responsável
pela formação da maioria dos bailarinos da cidade.
Diante do impasse sobre a direção da companhia,
aceitei exercer com ele essa função. Percebia que não
seria adequado aceitar sozinho esse tipo de coisa,
pois eu mal conhecia o ambiente, as pessoas, nada.
Queria conhecer a companhia e o melhor modo para 229
isso acontecer, em meu caso, era coreografando para
ela, era estar em sala de aula, no dia a dia.

Foi uma experiência fantástica. Fiquei com eles


uns dois meses, durante a montagem de Sanctus. E
mesmo meu trabalho em relação à direção não era
nada oficial. Momentos depois, Carlinhos assumiu
oficialmente, permanecendo em exercício até 1987.

E nossa parceria, minha com Carlinhos, posso dizer,


deu certo. A companhia fez um grande sucesso com o
trabalho que desenvolvemos naquele curto período.
E pude também contar com a assistência de alguns
bailarinos, como Eliana Pedroso, Maria Freitas e
novamente Jairo Sette, que me acompanhava em
mais essa jornada.

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Os bailarinos rapidamente se identificaram com o
que eu havia proposto coreograficamente. Sanctus
virou uma espécie de ícone da companhia. Tornou-
se representativo da expressão deles, possivelmente
pela origem africana da música, pelo caráter tão
rítmico das danças e porque encerrava uma série de
considerações físicas e espirituais que têm muito a
ver com a cultura deles.

Até hoje eles mantêm esse trabalho no repertório da


companhia, tendo sido inclusive levado recentemente
nas apresentações que fizeram na Europa. Na Alema-
nha, por exemplo, costumam chamá-lo de “Revelation
da Bahia”, citando a obra clássica do mestre Ailey. E
como se tornou muito conhecido lá, Sanctus é sempre
exigido no programa. Antonio, que depois voltou a
assumir o cargo de diretor, sempre me contava que,
230 toda vez que ele concedia entrevistas no exterior sobre
a companhia, ao mencionar Sanctus, os jornalistas fala-
vam do espírito da Bahia, do movimento, de uma mais
pura essência do espírito baiano. E, inevitavelmente,
acabavam perguntando: Quem é o coreógrafo? De
onde ele vem? E Antonio conta que respondia, pre-
vendo a reação: É Luis Arrieta, um argentino...

O resultado dessa versão completa de Sanctus sempre


me pareceu um acerto para a companhia. E, como
uma das provas disso, recebi o prêmio do Conselho
Estadual de Cultura da Bahia pelo trabalho. Quando
terminou sua montagem, logo depois de algumas
apresentações, não quis ficar em Salvador. Tinha
outros compromissos assumidos e não queria criar
vínculos naquele momento.

***

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Nesse mesmo ano, voltei a trabalhar com a Cisne Negro
Cia. de Dança. Eu já tinha uma história sendo constru-
ída com aqueles bailarinos que tanto admirava. Entre
eles, Beth Risoléu, uma grande bailarina, uma das mais
importantes da dança contemporânea desse país. Ela
sempre dançou meus trabalhos com uma força, uma
qualidade e um rigor realmente admiráveis.

Dessa vez, resolvi prestar uma homenagem à colônia


japonesa. Mais do que isso: resolvi observar como é a
nossa visão sobre o Oriente, sobretudo em São Paulo,
cidade onde vivem mais japoneses depois do próprio
Japão. Apenas nessa cidade pude travar contato mais
definitivo com a cultura japonesa, pois em Buenos
Aires ela não era assim tão representativa como aqui.
Aliás, em minha cidade natal, lembro-me apenas de
um colega do ginásio, Jorge Tamashiro, filho de flo- 231
ricultores, que havia me mostrado por primeira vez
música folclórica do Japão. Assim, além desse meu
colega e de todos os outros de origem japonesa com
quem eu já havia trabalhado, eu estava homenage-
ando especialmente também Ivonice Satie, Suzana
Yamauchi e Yoko Okada. Foi um trabalho que gostei
muito de fazer. Explorei bastante o uso de elementos
cênicos como leques, mesas, cadeiras, panos, malas
e usei música japonesa numa versão ocidentalizada,
justamente para tratar do que eu desejava. O título
que dei foi Unmei que, em japonês, significa Destino,
nome pelo qual a obra ficou mais conhecida.

O crítico Rui Fontana Lopes, assim escreveu na Revista


Dançar daquele ano: Em Destino, Arrieta faz uma
reflexão sobre as polaridades, múltiplas e complexas,

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232

Unmei / Destino, de Luis Arrieta, 1985, Cisne Negro Cia.


De Dança, Marco Aurélio Nunes

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entre Oriente e Ocidente. Dinâmicas musicais apro-
veitadas com grande felicidade, cânones utilizados na
justa medida, momentos de indescritível genialidade
coreográfica. O efeito total do balé é poderoso. Destino
é balé-teatro e a cena está sempre em primeiríssimo
plano. Luz, figurinos e adereços – todos concebidos pelo
coreógrafo – estão amalgamados com o movimento, a
dança e a música, fazendo de Destino um espetáculo
majestoso e imponente em sua simplicidade e limpidez.

Já Helena Katz comentou na Folha de S. Paulo


(15/06/1985): “Foi um encontro perfeito. De um lado,
Luis Arrieta, o coreógrafo que colore os movimentos
a partir das intenções diferentes de cada gesto. Do
outro, uma cultura que abre espaço para o detalhe
porque sabe que a aparência do geral tende a con-
fundir os espíritos: a cultura oriental. (...) Destino
revela em Arrieta um coreógrafo especial, seguro no 233
manejo das técnicas de composição e no uso dos ou-
tros recursos cênicos. Tanto a iluminação, primorosa,
quanto os figurinos, confirmam isso. Não são muitos
os que conseguem escrever poesia com movimentos.
Arrieta, em Destino fez isso.”

Nesse mesmo ano criei um trabalho para o Ballet


Ismael Guiser chamado Abraço com o Concerto para
oboé, violino e cordas em sol menor, para as come-
morações do tricentenário de Bach no Centro Cultural
São Paulo. Um trabalho curto, de 15 minutos, que
compunha um espetáculo com outras coreografias e
que estreou no Teatro Sérgio Cardoso em julho. Voltei
também a Maceió, pela segunda vez, e coreografei
Colheita, para o Grupo Íris de Alagoas.

***

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Antonio Carlos Cardoso foi convidado para dirigir o
Balé da Cidade de São Paulo novamente em 1985.
Assumiu no dia primeiro de julho. Mas, na verdade,
tratava-se do último ano de uma administração e no
ano seguinte começaria uma nova. Sem dúvida, era
um momento muito difícil para se assumir a direção
de uma companhia pública, mas ele enfrentou esse
desafio. E um de seus primeiros atos como diretor foi
me convidar para coreografar. Eu voltava para essa
companhia que sempre teve uma significação especial
para mim e da qual estava distante há anos. E chegava
a ela, novamente, pelas mãos do meu amigo Antonio.

Decidi montar nada menos que A Sagração da Prima-


vera, de Stravinsky, cuja coreografia original, de 1913,
era de Nijinsky. Um desafio e tanto. Mas que decidi
encarar de frente. A Sagração era uma obra que eu
conhecia há muito tempo. Acredito que desde criança
já deveria ter escutado algumas vezes e depois tomei
contato com a versão de Oscar, e depois a de Béjart,
Pina Bausch, e tantas outras. Trata-se de um clássico.

Apesar de vir de Buenos Aires, uma cidade onde


ainda se pode notar as mudanças climáticas, dife-
renciando as estações, nada é igualável ao impacto
que tive com a chegada da primavera quando vivi na
Alemanha. Do apartamento em que morava até o
teatro era perto, percurso que eu sempre fazia cami-
nhando. Atravessava todos os dias um parque muito
grande, pisando na neve, com água gelada, algo
extremamente solitário. As árvores secas pareciam
ter garras ressecadas, negras e cinzas. Com chegada
da primavera, num instante, de um dia para o outro,

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Ballet da Cidade de São Paulo: Sagração da Primavera, de


Luis Arrieta, 1985

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essas árvores começaram quase que obscenamente
a brotar, como se fossem espinhas. Os animais que
estavam escondidos durante todo o inverno saíram e
faziam sexo descontroladamente. A grama começava
a querer aparecer por baixo de uma neve que era
escura, misturada com lama. E toda essa imagem era,
ao mesmo tempo, nojenta e extremamente violenta.
Somente aí pude entender o porquê da violência da
música de Stravinsky. E, muito motivado por essa
violência, tive vontade de fazer a minha versão de A
sagração da primavera.

Sempre pensei que eu, latino-americano, vivia em


um continente em que a natureza estava muito mais
presente que no Velho Continente, a Europa. Mas
236
fui descobrir a força dessa natureza justamente lá.
A natureza e a violência desta natureza, que eu não
tinha ainda registrado na América virgem.

Mas naquele momento eu estava em São Paulo. E


só poderia pensar uma Sagração completamente ur-
bana, em que não existissem árvores, mas prédios. E
as pessoas seriam as tais folhas ressecadas que caem
desses prédios, algo extremamente dramático. E essa
foi minha maneira de fazer a Sagração.

Quis convidar Flávio Império, com quem eu já havia


trabalhado, para fazer meus cenários e figurinos. Não
foi fácil encontrá-lo. Procuramos muito por ele e não
conseguíamos localizá-lo. Depois, ficamos sabendo
que ele estava muito doente e em pouco tempo fa-
leceu. Dediquei, então, o programa de estreia a ele.

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De alguma forma, ficamos felizes porque Cecília
Cerroti, uma assistente do Flávio, nos ajudou. Fiquei
ao lado dela e juntos fizemos tudo, até porque eu
desejava algo bem simples. Usamos apenas bonecos,
aliás, muitos bonecos, e um andaime em cena. Nos
ensaios, esparramados pela sala inteira, tínhamos
uns 60 bonecos, que acabaram ficando “íntimos” dos
bailarinos da companhia. Às vezes, alguém levava
um boneco até a cantina e deixava lá, sentado numa
cadeira. Outras vezes, entrava um bailarino na sala e
falava Bom-dia! a eles. Chegamos um dia a não saber
mais quem estava vivo e quem era boneco.

E, como a proposta era que os bailarinos se movimen-


tassem também como bonecos, estávamos de alguma
forma querendo provocar mesmo essa confusão. Em
cena, às vezes jogávamos um boneco para o alto e 237
o público poderia achar que era uma pessoa, outras
vezes um bailarino começava a cair do andaime,
parecendo boneco. Enfim, uma mistura que embara-
lhasse um pouco as percepções. Essa era a proposta.
A imagem de corpos despencando de andaimes como
folhas que caem no outono, uma imagem forte. E,
por baixo da roupa, eles tinham uma túnica vermelha
que representava a vida, a árvore que floria no último
instante de sagração.

O programa, que estreou em novembro no Sérgio


Cardoso, contou na abertura com Cantares, de Oscar,
uma obra que ele havia coreografado para o Ballet
de Genebra três anos antes. E eu me sentia orgulhoso
por dividir a mesma noite com meu professor, meu
amigo e agora meu colega de profissão.

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Rui Fontana Lopes, no Jornal da Tarde (11/1985), escre-
veu: Com seu novo balé, Arrieta se afirma definitiva-
mente como um grande artista de nível internacional.
Sua concepção teatral da Sagração da Primavera é
inteiramente original e possui um impacto poderosís-
simo. A coreografia jamais se deixa devorar pelo poder
da partitura: nesta Sagração, gesto, movimento e mú-
sica estão sempre unidos e solidários. O balé de Luis
Arrieta contém uma enorme força dramática e teatral:
Sagração é um balé aflito, angustiante e violento. A
imensa força da música encontrou uma equivalência
justa e precisa na quase brutalidade da coreografia e
na imponente concepção teatral do balé.”

***

O ano de 1985 acabou e Antonio decidiu que não


238
desejava mais permanecer na direção da companhia.
Ele não via perspectivas com as mudanças políticas
que iam acontecer nas eleições deste ano. Era Jânio
Quadros quem estava na prefeitura de São Paulo. O
mesmo que, em 1954, havia encerrado abruptamente
as atividades do Ballet do IV Centenário, uma das
maiores iniciativas na área da história dessa cidade,
desse país. E, assim, mais uma vez, o Balé da Cidade
ficou acéfalo. Na verdade, Cleusa Fernandez susten-
tava um pouco como podia aquela estrutura, nesses
períodos de transição. Sempre muito bem, aliás.

Nesse meio-tempo, fui convidado a fazer outros


trabalhos e fiquei muito feliz com a possibilidade
de retornar a Salvador. Lá, para o Balé Teatro Castro
Alves, montei Mandala, usando o Bolero de Ravel.
A inspiração, além das próprias mandalas, veio da

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Ballet do Teatro Castro Alves: Mandala, de Luis Arrieta

Ballet de Wiesbaden: Mandala, de Luis Arrieta

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música, totalmente circular, ou melhor, espiralada. O
Bolero é uma mandala. Ele é todo construído assim.
E eu queria realizar um trabalho que refletisse um
pouco esse processo de construção. Isso, porque, mui-
tas vezes, as mandalas são construídas em terrenos
sobre os quais as pessoas vão desenhando à medida
que caminham. E era isso que desejava coreografar.

Quando fui fazer este trabalho, na verdade tinha em


mente montar algo com música de Alberto Ginastera,
Cantata para América Mágica, uma obra muito bonita
para percussão e uma cantora soprano dramática.
Uma obra difícil, que mostrava uma face moderna
do Ginastera. Cantada em espanhol, com algumas
palavras astecas, carregava um caráter indígena, no
sentido de verdadeiros proprietários da América, das
240 raças que habitaram primeiramente a América. Pensei
em usar apenas o elenco feminino. Pois bem, cheguei
para fazer este trabalho, mas, como de costume,
sempre levo comigo outras músicas, porque gosto de
ficar ouvindo e até mesmo porque, às vezes, abrem
outras possibilidades que eu não havia imaginado.

Naquela época, era Carlinhos Moraes quem estava


dirigindo a companhia. No primeiro ensaio, ao mes-
mo tempo em que estávamos trabalhando na sala de
aula, a orquestra estava tocando o Bolero. E a música
invadiu nosso ensaio, de forma avassaladora. Num
outro dia, estava conversando com Carlinhos. En-
quanto me escutava, ele batia a mão no ritmo exato
do Bolero e aquele pequeno gesto ficou na minha
cabeça. E, por fim, um dia ele me levou para jantar
e quando paramos no sinal, no carro ao lado estava

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Ballet da Cidade de São Paulo: Cantata para América
Mágica, de Luis Arrieta

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tocando também o Bolero. Me virei imediatamente
para ele e disse: Como vamos fazer outra coisa se o
Bolero está nos chamando aos gritos?

Mandala é uma obra muito complicada. Está baseada


numa mandala de origem sânscrita, Mandala de
Çîcakra, que tem 16 pétalas. Usei, então, 16 bailari-
nos. Aliás, são 16 pequenos solos, que se engancham
aos poucos e lentamente a mandala vai se mostrando
ao público como ela é. Na verdade, ela já existe antes
de começar o balé, ela já está formada como dese-
nho. Eu apenas evidencio cada parte deste desenho
e como cada bailarino vai formando a parte de um
todo. Isso tudo em vários estágios. O estágio mais
externo, que acontece no chão, o estágio intermediá-
rio, com movimentos à meia altura, e a parte interna
242 com um arremate que organiza tudo e volta a jogar
a mandala, agora com uma nova frente.

Para os bailarinos é muito interessante: se não se con-


centrarem, é fácil perder a trama que se estabelece.
Não há como copiar do colega. Isso porque proponho
um dos sentidos da mandala: a concentração. São
desenhos que, pela observação, despertam o sentido
da atenção e da concentração dos bailarinos e do
próprio público.

Quando a companhia da Bahia apresentou Mandala


no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, aconteceu
um fato que evidenciava esta verdadeira intenção do
trabalho. Nessa época, começava-se a usar CD para
fazer o som dos espetáculos, sempre contando com o
risco de alguma hora ele parar ou pular. Quase che-

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gando ao final da obra, o som simplesmente sumiu e
os bailarinos tiveram que continuar dançando quase
por um minuto sem música. Estavam extremamente
concentrados ante um público emudecido, que per-
cebia o que tinha acontecido. Continuaram tecendo
a trama intrincada dos desenhos da composição, até
que a música voltou, no ponto exato da coreografia
em que os bailarinos estavam e, diante do rosto feliz
do elenco, o público rompeu em aplausos.

Estreamos nesse ano de 1986. Mais tarde, outras com-


panhias também dançaram Mandala, como o próprio
Balé da Cidade de São Paulo. E recebi crítica de Helena
Katz, no jornal O Estado de S. Paulo (23/08/1986): Uma
obra-prima, Mandala é deslumbrante. À ousadia de
coreografar o Bolero, de Ravel (música que traz – ou
melhor, trazia – o selo de Béjart), Arrieta responde 243
com a grandeza do seu talento. Béjart teve uma sa-
cada de gênio. Arrieta também. Com o sentido má-
gico das mandalas, a obra invade a sua emoção pela
epiderme mesmo. O poder do diagrama criado por
Arrieta nos torna cativos. Trata-se de um coreógrafo
com sensibilidade de um poeta.

Em Belo Horizonte, voltei a trabalhar com Marjorie


Quast, mas agora coreografando para seu Camaleão
Grupo de Dança, sua companhia profissional que exis-
tia há dois anos. A qualidade evidente de seus bailari-
nos tinha uma grife conhecida: Bettina Bellomo. E isso,
para mim, tornou o trabalho bem mais fácil. Para eles,
criei Encontro no espaço, com música de Villa-Lobos,
arranjada por Egberto Gismonti, e Marco Antônio
Araújo, que conheci pessoalmente e que havia falecido

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há pouco. Estreamos em junho de 1986, no Palácio das
Artes. Luis Sorel escreveu no jornal O Globo, do Rio
de Janeiro (09/08/1986): Encontro no Espaço, o novo
balé do talentoso coreógrafo Luis Arrieta, assinala
uma inquestionável evolução do Camaleão. Todo o
balé é cercado de sensibilidade e bom gosto, tendo,
ainda, produção cuidada nos mínimos detalhes. É um
‘balé sensorial’, em que os estados de espírito fluem
em direção ao âmago da alma humana.

Mas foi Helena Katz, na Folha de S. Paulo (27/8/1986)


quem reconheceu detalhes importantes da obra: (...)
Arrieta confirma que há poucos capazes de dese-
nharem um palco com a sua inspirada espacialidade.
Principalmente o início e o final da obra servem como
ilustrações dessa sua aptidão incomum. Luis Arrieta
244 pratica sua acuidade nos 360 graus do palco. Propõe
um acontecimento único e, em seguida, o faceta em
dez outros, uma matriz gerando sua continuidade na
multiplicação transformadora. E o gesto primeiro se
torna outro quando recuperado adiante.

***

Em 1986, a Secretaria de Cultura de São Paulo me


convidou para retomar a direção do Balé da Cida-
de de São Paulo. Tive que me organizar e dividir
meu tempo. No primeiro semestre, deveria ainda
cumprir compromissos assumidos anteriormente,
e novamente Cleusa Fernández, minha diretora
assistente, tomou pé da coisa. Assumi realmente
a direção no segundo semestre que, desta vez, se
estendeu até fins de 1989.

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A companhia não estava bem. Estava bastante perdi-
da, desmotivada, os bailarinos fora de forma, preci-
sando re-unir-se novamente em torno de um projeto,
de um desejo. E a situação financeira também não
andava como deveria, com salários atrasados e uma
demora para conseguir condições materiais mínimas
de trabalho. Notei isso imediatamente.

A primeira coisa que pensei foi nas aulas que a compa-


nhia deveria fazer. Tinha certeza que elas poderiam
dar uma unidade ao grupo novamente. Para mim,
aula sempre foi um ótimo momento de reencontro
para uma companhia, mais do que meramente um
momento para aquecer ou trabalhar os músculos.

Trabalhei com o elenco que já estava. Não havia


passado pela minha cabeça refazer ou mudar nada 245
nesse sentido. Primeiro, por questões práticas, como
a ausência de verba. Depois, porque sempre acreditei
que as pessoas que ali estavam queriam trabalhar.
Possivelmente, essa atitude tenha contribuído muito
para minha fama de exigente. Mas ela faz parte da fé
que tenho em minha capacidade de ajudar a despertar
o que às vezes está adormecido nas pessoas, em todos
os sentidos: físicos, musculares, musicais, artísticos.

Justamente por isso, sou sempre muito mal-inter-


pretado. Considera-se quase como um defeito ser
exigente. Nunca entendi assim. Jamais trabalharia
com alguém que não me exigisse nada. E sei que
tudo isso é o que vai se desenvolvendo no trabalho
diário, nos ensaios. E vamos também limpando os
preconceitos que nos impedem de chegar ao máximo

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do rendimento que podemos ter como artistas. O que
me faz exigente é a imensa fé na capacidade latente
em cada um deles. São meus irmãos. Todos eles.

Elaborei, então, um programa para reestrear a com-


panhia, que exigisse deles um bom preparo físico,
um bom desempenho técnico, sem esquecer o as-
pecto artístico, musical e humano, já que estávamos
investindo nisso. Algo para reestruturar as bases. A
noite abria com Trindade, um extrato de uma peça
maior que eu havia coreografado em 1982, para o
Elo Ballet de Câmara Contemporâneo, de Belo Hori-
zonte. Vários elencos dançaram esse trio, como Áurea
Ferreira, Carmen Balochini, Beatriz Cardoso, Mônica
Mion, Nancy Bergamin, Lilia Shaw, e os rapazes Irineu
Macovechio e Bebeto Cidra.
246
Para completar a noite, tive vontade de criar especial-
mente para eles o Magnificat, de Bach. Uma obra de
conjunto, com muitos solos, duos e trios, característicos
do meu trabalho. Gosto muito de companhias que pos-
sam, ao mesmo tempo, dançar em conjunto e possam
ter solistas. Uma coisa faz crescer a outra. Só posso ser
um grande solista se conheço bem um conjunto e só
posso fazer um bom conjunto se sou um bom solista.

Magnificat exigia exatamente isso da companhia. Foi


um trabalho prazeroso para mim e para todos os baila-
rinos, que dançavam com muita alegria durante todos
seus 45 minutos, contagiados pela música de Bach. O
tema era o momento da anunciação. É o momento de
um novo nascimento. E, simbolicamente, para nós, era
também um novo nascimento da companhia.

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E aquele era um programa muito esperançoso, sem
dúvida. E que deu certo. A companhia entendeu rapi-
damente o que eu propunha. E os professores traba-
lharam no mesmo sentido. Dois grandes mestres: Ady
Addor e meu amigo Ismael Guiser. Sempre achei im-
portante ter homens e mulheres à frente dos ensaios.
Era muito bom os dois gêneros presentes, porque a
companhia é feita desse jeito. Tínhamos também as-
sistente homem e assistente mulher, Tony Callado e
Lilia Shaw. Ela ainda está na companhia. Tony faleceu.
A sala da companhia hoje leva seu nome.

Estreamos em novembro no Teatro Sérgio Cardoso,


porque nesta época o Teatro Municipal de São Paulo
estava fechado para obras de restauração.

Durante o tempo que permaneci na direção, a compa- 247


nhia cresceu muito. Acho mesmo que foi uma de suas
épocas mais brilhantes. Passamos a dançar com muita
qualidade, com muito profissionalismo. Os bailarinos
entraram em forma. Mas tínhamos um empecilho
terrível que era a falta de espaços para se apresentar.
Estávamos impedidos de nos apresentar fora de São
Paulo, devido a uma portaria do então prefeito Jâ-
nio Quadros que proibia os corpos estáveis de viajar,
devido a um acidente com a orquestra num palco da
cidade paulista de Americana. Então, sem nossa casa,
o Teatro Municipal, tínhamos pouquíssimas opções,
como o Sérgio Cardoso e Cultura Artística, dois únicos
teatros com estrutura e tamanho para nos receber.

Foi então que resolvemos dançar, apesar de tudo


isso, no ano que viria. Extraímos alguns solos e duos

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Ballet da Cidade de São Paulo: Magnificat, de Luis
Arrieta, 2004. Conjunto

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Ballet da Cidade de São Paulo: Magnificat, de Luis
Arrieta, 2004. Acima, conjunto e abaixo, Tiago Menegaz

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Ballet da Cidade de São Paulo: Magnificat, de Luis
Arrieta, 2004. Acima, conjunto e abaixo Yasser Diaz e
Robson Luorenço

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Ballet da Cidade de São Paulo: Magnificat, de Luis
Arrieta, 2004, com Anderson Braz

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que poderiam caber em espaços menores e fomos
atrás de oportunidades para nossas apresentações.
Afinal, nada seria mais frustrante do que não poder
mostrar o que estávamos preparando. Com a ajuda
da Cleusa Fernández, conseguimos muita coisa, como
apresentações em colégios ou lugares semelhantes.
Foi um ano de 1987 em que atingimos a média de cem
apresentações, algo muito bom para a companhia.

***

Eu às vezes participava dos espetáculos como bai-


larino. Se tinha um programa com solos ou duos,
de câmara, estava em cena. Pouco, mas dançava. O
que eu não abria mão era de sempre fazer aula com
a companhia, ou eu mesmo de dar aula, coisa que
252
sempre gostei de fazer. Fazia também assistência,
programa de luz, ajudava a decidir o figurino. E fazia
por prazer, ninguém me obrigava.

Se não tinha como contratar um iluminador, eu fazia


os planos de luz. Se não tinha como contratar core-
ógrafo, continuava eu mesmo coreografando. Nós
fazíamos os desenhos de figurino que eram sempre
muito simples, baseados em malhas com algum ade-
reço. Variávamos as cores e tudo estava bem. Não
tínhamos grandes condições de produção. A época
não estava para isso. E, mesmo assim, aquele foi um
dos momentos mais brilhantes da companhia, por-
que essas dificuldades acabavam nos unindo ainda
mais. E nós nos apresentávamos praticamente nus,
em todos os sentidos.

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Magnificat, por exemplo, tinha um figurino muito
simples: um macacão de malha com um tecido entre
as pernas. E o cenário era apenas um vitral, que conse-
guimos emprestado, por empenho de Cleusa. Ela fez
uma pesquisa e acabou chegando até um senhor que
morava na Avenida Paulista, num prédio em frente à
Gazeta: Conrado Sogernicht Filho. Pediu emprestado
um dos vitrais que ele tinha feito para uma igreja no
interior de São Paulo e que, como não tinham sido
pagos, não haviam sido entregues.

Esse senhor era filho de uma família de artesãos


que havia feito os vitrais do Teatro Municipal, da
Fundação Álvares Penteado, da igreja de São Fran-
cisco, entre outros monumentos. Ele nos emprestou
uma peça, para nossa felicidade. Escolhemos um dos
santos, muito bonito. Artesanal. No dia de montar o
253
cenário, o vitral chegou praticamente desmontado,
em blocos. Veio um rapaz e terminou de fundir os
chumbos nas bordas e montou tudo. Uma obra de
arte conseguida pela boa vontade das pessoas. E isso
tudo nos fortalecia, de certo modo.

Os críticos também souberam observar com precisão a


fase que a companhia estava passando. Helena Katz,
no jornal O Estado de S. Paulo (07/11/1986), reconhe-
ceu o prazer que tínhamos em dançar Magnificat: O
que conta, neste Magnificat é o prazer de dançar.
Os bailarinos dançam antes da música começar, e
continuam dançando quando ela silencia. Como a
luz que passa pelo vitral, a dança surge em jorros
contínuos, e se estabelece como senhora daquele
espaço. As composições dos pequenos grupos são as
mais preciosas deste lindo desfile de movimentos.

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E Rui Fontana Lopes, um pouco mais tarde, escreveu
para o Jornal da Tarde (01/10/1987): Talento e de-
dicação com que Luis Arrieta tem dirigido o grupo
nos últimos meses. O programa se completa com
Magnificat. Arrieta não deixa de explorar uma única
fuga, um único cânon, um contraponto sequer da
fantástica partitura de Bach. Magnificat é prodigiosa
em sua inesgotável invenção e profunda beleza. Mas
o que realmente importa é o delicado sentimento de
religiosidade que encharca a obra. Arrieta estabelece,
em dança, o mesmo sentido de devoção que a música
de Bach propõe ao ouvinte.

***

Eu chegava sempre cedo à sede da companhia. Con-


254 feria todos os afazeres da direção e então me lançava
ao trabalho que mais gostava: ia para a sala onde
estavam os bailarinos. Nessa época, nossos ensaios
eram da uma hora da tarde em diante. Seis horas de
trabalho. E também tínhamos expediente aos sába-
dos, com uma carga horária menor, de três horas,
com aula mais curta e ensaios em que geralmente
passávamos o programa corrido.

Durante esse tempo, tentei, mas não consegui, con-


vidar alguém para coreografar para a companhia.
Pensamos numa remontagem de Quarup, de Décio
Otero. Ou mesmo alguma criação dele. Pensamos no
Ismael, ou mesmo no Victor. Em todos os casos, tinha
que ser alguém de São Paulo, para não precisar pagar
hotel, passagem, essas coisas. Acabamos remontando
alguma coisa de Victor, muito mais pela boa von-

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tade dele, que deve ter cobrado o mínimo. Depois,
remontei Mandala, para uma apresentação especial
dedicada à empresa que estava fazendo a restauração
do Teatro Municipal. Era um modo de ganhar uma
ajuda deles, que pagaram nosso figurino.

Aliás, não se refazia os figurinos. Eram sempre os


mesmos, restaurados. Dos profissionais que nos aju-
daram, ninguém chegou a trabalhar de graça, mas
contávamos com a boa vontade de muitos deles.
Quem muito nos ajudou foi Murilo Sola, cenógrafo,
figurinista e artista plástico já falecido. Ele conseguia
muita coisa de graça porque tinha amizade com
pessoas de lojas. Conseguia tecidos e trabalhava
muito com materiais que sobravam nas tecelagens.
Ele tingia, retingia, franzia, engomava, e tudo fica-
va uma maravilha. Ele era um artista. Era amigo da 255
companhia, da arte, da vida.

Neste ano de 1987, montei obras pequenas, como o


solo Tango. Eu nem cobrava mais pelas obras, simples-
mente as dava para a companhia, para que tivéssemos
peças pequenas para alguma apresentação fora.

E a companhia crescia. Alguns professores foram


convidados a trabalhar conosco por períodos curtos.
Carlos Moraes, por exemplo, estava na cidade traba-
lhando com outro grupo, e aproveitou para ficar um
tempo conosco. Yellê Bittencourt, um dos grandes
professores do Brasil, ficou mais tempo. E também
Neide Rossi. Os fixos eram mesmo Ady e Ismael.
Mas gostávamos de variar, para dar um descanso ao
professor, que, às vezes, também tinha algum com-

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promisso. E também porque, às vezes, na ausência de
um professor se aprende muita coisa. O bailarino tem
a chance de aplicar todo o conhecimento aprendido
com um professor na aula de outro. E o bom professor
estimula isso.

E, assim, a companhia amadureceu técnica e artisti-


camente, tanto o elenco feminino quanto o mascu-
lino, uma dificuldade histórica no Brasil. E por isso
mesmo achei que seria o momento para termos uma
obra só com homens, e outra obra só com mulheres:
montamos Berimbau e Cantata para América Mágica,
respectivamente. As duas, ainda nesse ano de 1987,
integraram um programa que estreou em setembro,
contando com Magnificat para fechar a noite. E am-
bas com figurinos assinados pelo Murilo Sola.
256
A ideia foi boa porque criou, de imediato, uma
cumplicidade a mais entre os bailarinos. Montei
paralelamente os dois trabalhos, mas terminei pri-
meiro o das mulheres. Elas iam sempre para a sala
de baixo, a menor da sede da Rua João Passalácqua,
e trabalhavam sozinhas incansavelmente. Sobretudo
para entender fisicamente a música de Ginastera,
extremamente difícil, complicada de contar, com
linhas melódicas feitas pelo canto da soprano, e uma
orquestra de percussão com 56 músicos. Esse era o
trabalho que eu pretendia montar em Salvador, mas
que foi substituído por Mandala. Pois as bailarinas
ensaiaram tanto essa peça, que passaram a conhecê-
la musicalmente muito mais que eu. Tinham um
domínio daquilo que também não era nada fácil
tecnicamente. Isso era interessante, porque tanto o

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trabalho quanto o próprio texto da obra falavam da
força dessa mulher latino-americana. E elas estavam
mesmo deslumbrantes, fortes. Não posso deixar de
nomeá-las: Ana Verônica Coutinho, Carmen Baloqui-
ni, Mônica Kodato, Jeanete Guenka, Miriam Druwe,
Nancy Bergamin, Lilia Shaw, Luciana Checchia, Áurea
Ferreira, Luciana Porta, Lumena Macedo. Mas era
Mônica Mion quem, de alguma forma, se destacava
para mim. Ela era a Har-Mônica. Lembro que já a vi
tropeçar e cair em cena. Quando assisti à filmagem
disso, em slow motion, constatei que, até na hora de
cair, a Mônica caía harmonicamente. Era um dom.

Berimbau era o encontro masculino, extremamen-


te atlético, vigoroso, um tour de force esgotante.
Todos tinham que estar em forma para executar
aquilo, porque eram 20 minutos sacudidos. Durante 257
os ensaios e mesmo durante os espetáculos, as bai-
larinas depois de dançar a Cantata, corriam para se
trocar para poder ficar nas coxias, sentadas, assistin-
do à performance dos rapazes. O figurino era uma
malha inteira, quase toda branca, com listras que,
de alguma maneira, traziam a imagem do arco do
berimbau. Para as mulheres, Murilo Sola usou ainda
tecidos tingidos, belíssimos, amarrados com couro,
que compunham muito bem a imagem telúrica que
eu queria dar.

Helena Katz, numa crítica intitulada Nem tudo está


perdido, comenta esse programa no jornal O Estado
de S. Paulo (16/12/1987): “Enquanto Cantata é para
dentro, Berimbau expande-se para fora. Os corpos
repercutem, se tornam flexíveis, ficam secos – são

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Acima, Agnaldo Fonseca, Ajaz Vianna, Jamildo Alencar.
Abaixo, conjunto

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Ballet do Teatro Castro Alves: Berimbau, de Luis Arrieta

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Ballet do Teatro Castro Alves: Berimbau, de Luis Arrieta

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pedaços do próprio instrumento. E acontece uma
mistura atraentíssima de fontes típicas entre o car-
nal e a capoeira. Um enriquecimento precioso num
coreógrafo cada vez mais sutil e sensível, cujos poros
filtram cada dia mais aquilo que nos envolve. São
duas criações importantes, que deveriam permanecer
sempre juntas. Ajuda sua compreensão.”

***

Ainda nesse ano de 1987, fui para Buenos Aires tra-


balhar com o Ballet Contemporáneo do Teatro San
Martín, companhia criada por Oscar Araiz em 1968.
Era um convite feito por Norma Binagni, umas das di-
retoras da companhia que, naquela época, era dirigi-
da por um triunvirato: Norma, Alejandro Cervera, que
havia começado sua carreira na dança junto comigo,
261
na turma da escola de Oscar, e Lisu Brodsky, minha
colega na montagem da peça Trescientos Millones.

Nesse momento, ele não estava mais, pois dirigia a


companhia de Genebra. A ideia era remontar Pre-
senças, que eu havia feito para o Balé da Cidade. E
essa foi uma das minhas poucas saídas da companhia,
desde que tinha assumido sua direção. Fui umas
duas ou três vezes a Buenos Aires, montava, voltava,
montava, voltava, até que o balé finalmente estreou.

Outra saída do país nesse ano foi mais uma viagem


a trabalho: fui para o Balé Nacional de Cuba montar
Presenças, Trindade, e o solo Tango, que eu costuma-
va dançar. Organizei uma data que poderia estar lá
sem comprometer os trabalhos aqui, remontei tudo
em 20 dias e voltei.

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Cuba foi uma experiência muito interessante. Senti
como se fosse um reencontro de muita coisa que,
de alguma maneira, era familiar a mim. Familiar no
sentido dos pensamentos de minha avó, de coisas
que eu admirava.

Naquela época, por razões históricas, Cuba estava


realmente muito pobre. E não havia voos diretos do
Brasil para lá. Era necessário ir antes ao Peru, e de
lá tomar um avião da companhia cubana. Como os
países sul-americanos estavam sofrendo um surto de
meningite, e a vacina vinha de Cuba, país altamente
desenvolvido em medicina, ao chegarmos em Lima,
tivemos que esperar por três dias, pois o avião estava
sendo utilizado para transportar essas vacinas.
262
Esses três dias foram difíceis, porque era uma épo-
ca de guerrilhas no Peru. Praticamente não saímos
do hotel. Ficávamos olhando da janela uma cidade
destruída pelos atentados, um povo sofrido. E foi re-
confortante quando chegou um avião da companhia
cubana, que nos levou até Havana.

Ao chegar lá, tive que me deparar com a realidade


cubana. O aeroporto era muito simples, praticamente
um galpão. Mas, ao mesmo tempo, tudo muito orga-
nizado. Ao desembarcar, havia uma pessoa me espe-
rando com um carro que me levaria ao hotel. Carro
russo, aquele Lada. Tudo muito modesto. Mas nada me
impressionava. Venho de uma família muito simples e
sabia o que era aquilo. Então, nada que me impressio-
nasse mal, e muito que me impressionasse bem.

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Achei ótimo ver a cidade sem propaganda, limpa,
sem anúncios de refrigerante, de nada. Limpa. Um
calor terrível. Fiquei hospedado no Hotel Presidente
que, na época áurea, deve ter sido um luxo, mas que
naquele momento apresentava sinais de decadência
evidentes. Mas, nem por isso, menos interessante.
A janela do meu quarto dava de frente para um
colégio, e eu podia ver o dia a dia das crianças. Im-
pressionaram a disciplina, a ordem, a pontualidade,
a organização, coisas que admiro muito e que podia
captar de minha janela.

Do hotel, logo em seguida me levaram para o Gran


Teatro de La Havana – García Lorca. Lindo teatro de
estilo espanhol, mas também sem manutenção. Na-
quela mesma noite, pude assistir à apresentação da
companhia fazendo partes do repertório clássico. A 263
diva Alicia Alonso dançava o segundo ato de O lago
dos cisnes. Uma experiência maravilhosa tê-la visto
dançar naquele teatro que era sua casa.

No segundo dia, fui à companhia para trabalhar,


para conhecer os bailarinos. Alicia me recebeu pes-
soalmente. Ela já tinha reservado um horário espe-
cialmente para isso. Uma atenção impressionante,
uma delicadeza, uma cortesia.

Eu levava para ela lembranças de Ady Addor, que havia


sido solista daquela companhia. Mal falei o nome de
Ady e ela me interrompeu dizendo: Ady é a bailarina
mais bela e mais feminina que já vi em toda minha
vida. Isso não era pouco. Definitivamente não era pou-
co. Era o reconhecimento de uma artista que algumas

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vezes não o tem em seu próprio país. Confesso que
fiquei emocionado. Andando pela galeria do teatro,
me deparei com um retrato seu. Me senti orgulhoso.

Assisti a várias aulas da companhia quando cheguei.


Eram mais ou menos 160 bailarinos entre solistas,
primeiros-bailarinos, corpo de baile 1 e corpo de
baile 2. Eu deveria vê-los e escolher com quem gos-
taria de trabalhar. Eles faziam aula separados, até
por uma questão de espaço. E eu os assistia com
uma assistente do lado, tomando nota dos nomes,
escolhendo comigo o elenco.

Eu havia pensado muito sobre a escolha das peças


que remontaria lá. Trindade, por exemplo, montei
nas pontas, porque eles tinham domínio daquele
trabalho técnico. Selecionei um primeiro-bailarino,
uma primeira-bailarina e uma primeira-solista, algo
absolutamente incomum. Não se podia misturar bai-
larinos com posições hierárquicas diferentes assim, e
eu não sabia. A direção precisou autorizar essa minha
escolha. A solista era uma bailarina excelente, era
uma primeira-solista e poderia dançar ao lado de um
primeiro-bailarino sem qualquer problema. Como
não tenho dificuldade em me adaptar ao sistema
das companhias, aceitei naturalmente esse tipo de
exigência. Sempre achei que fazia parte de minha
função adaptar-me.

Foi uma experiência muito rica no trabalho efetivo com


a companhia, mas também nas pequenas coisas do dia
a dia. Eu gostava muito de passear pela cidade, nos
tempos livres que tinha. Meus ensaios eram pela manhã

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265

Ballet Nacional de Cuba, 1987, com Caremia Moreno e


Ofelia González

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e no fim da tarde, de um dia repleto de atividades dos
bailarinos que começavam a trabalhar às 9 da manhã,
em grandes salas, mas com instalações muito precárias.

Lembro que gostava de passear pelo bairro onde


estava hospedado, que se chamava Vedado, e onde
estavam todas as mansões que, pelo menos naque-
la época, se encontravam num estado totalmente
decadente, acabadas, decrépitas, subdivididas por
dentro para poder abrigar muitas famílias. Poucas
dessas mansões estavam impecáveis, por terem sido
ocupadas por alguma embaixada.

Outra coisa que me chamou a atenção foi um dia em


que me trocava num único vestiário masculino, um
grande banheiro, com bancos, com alguns armários
266 e as duchas. Estava me trocando e vi um primeiro-
bailarino puxando a água do piso com um rodo.
Perguntei: Vocês têm gente que faz limpeza? E ele
respondeu: De um dia para o outro, sim. Mas, duran-
te o dia, se eu tomo banho e fica tudo molhado, é
bom que meu companheiro quando entre encontre
o banheiro seco. Uma postura incrível.

Ainda outra passagem interessante: eu ensaiava Trin-


dade no fim do dia, com o primeiro-bailarino, Rafael
Padilla, e com as duas bailarinas, Ofélia González e
Dagmar Moradillo. Perguntei a ele, querendo come-
çar uma conversa: E hoje, você trabalhou muito? E
ele respondeu: Não, hoje tive uma pausa à tarde, e
aproveitei e fui a tal lugar. Não entendendo a que
ele se referia, perguntei: O que é isso? Um lugar
aonde vamos para treinar tiro ao alvo, respondeu.

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Um primeiro-bailarino atirando... Sim, porque eles
viviam uma ameaça contínua de invasão, pelo menos
naquela época.

Fazendo um contraponto com essa imagem, lembro


do dia em que Rafael, num gesto carinhoso, em nosso
último ensaio, trouxe um presente para mim: lavada e
passada, a velha camiseta que sempre usava, e que me
fez, certa vez, elogiar como ela lhe caía bem. Com seu
porte de dancer noble, entregou-a para mim. Era como
um príncipe dos grandes balés entregando flores.

O que me parecia interessante foi a sensação de estar


olhando o mundo por um outro lado. Quando assisti
à televisão, que também era fraquíssima, acostumado
que estava com os padrões daqui, notei que se falava
de todas as maravilhas da União Soviética. Fiquei 267
sabendo de festivais de música, de rock, de música
moderna, música contemporânea, tudo que estava
acontecendo em Moscou. Todos os desfiles de moda
na Ucrânia, grandes novidades artísticas, pintores,
exposições. Já sobre os Estados Unidos, só se mostrava
assassinatos, pessoas morrendo de fome na rua, de-
sempregados, coisas assim. Eu estava vendo o mundo
de outro lado, mesmo sem ter ido para o Leste.

E fiquei impressionado com a relação de todos com o


trabalho. Na companhia, solistas, por exemplo, che-
gavam e trabalhavam. Lembro que, como os ensaios
de Trindade eram ao final do dia, certa vez falei para
eles: Vocês podem apenas marcar. Sobretudo em
Trindade, um adágio cheio de portés e movimentos
lentos. E o bailarino, um excelente partner, me disse:

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Não. Nunca dancei antes segurando duas bailarinas
ao mesmo tempo. Tenho que treinar! Para ele, aquilo
era uma novidade. E isso exigia trabalho.

Fiquei sabendo que Dagmar pediu asilo na Espanha


no ano seguinte. Já Ofélia, tive a sorte de encontrá-la
muitas vezes no Brasil. Era uma primeira-bailarina!
Revezava os primeiros papéis com Alonso. Madura,
era ao mesmo tempo uma aluna dedicada e entregue.
Numa oportunidade, durante um ensaio de Trindade,
pedi que ao abrir seu port de Brás, iluminasse a sala
com seu olhar. Ela me respondeu: Claro! E o fez. Ela
realmente iluminou o espaço. Fiquei paralisado. Ela
olhou para mim e começou a rir como uma criança.

Fiquei uns 20 dias em Cuba. Não pude ficar para a


estreia, porque eu tinha um problema de data com
268
o Balé da Cidade. Mas deixei tudo estruturado com
a assistente, chamada Carênia Moreno, excelente
profissional. Ela já não dançava mais e hoje é uma
professora muito conhecida, porque viaja muito.
Certa vez, encontrei-a dando aula no Teatro Colón.

Certo tempo depois, fui a Buenos Aires visitar minha


família. Meu pai ainda era vivo. Ele então me mostrou
um pequeno recorte de jornal que guardava, supe-
rorgulhoso. Alicia Alonso tinha passado por lá para
se apresentar e, numa entrevista, teria declarado: Já
que estou em Buenos Aires, quero valorizar muito o
trabalho de um coreógrafo argentino que está apare-
cendo, Luis Arrieta. Tudo me emocionou. A declaração
de Alonso. Mas, sobretudo, o orgulho de meu pai.

***

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No ano seguinte, 1988, fiz também mais duas viagens
interessantes. A primeira delas foi a Lausanne, Suíça.
Recebi um convite para compor o júri na primeira
edição da Lausanne Competition – The New Chore-
ographes – Phillip Morris Prize. Era um convite de
Maurice Béjart a mim, pois ele estava ligado a esse
evento. Mais tarde, soube que Ilse Wiedmann, minha
primeira professora, trabalhando na Europa com
Neumeier, havia sugerido meu nome.

Funcionava assim: através da companhia de Béjart,


com patrocínio da Phillip Morris, eles abriram um
concurso para novos coreógrafos do mundo todo.
Receberam cerca de uns 500 vídeos, que foram se-
lecionados por Márcia Haydée e Neumeier. Desse
montante, ficaram apenas cinco coreografias.
269
Por ser aquela a primeira edição, certamente se pre-
ocupando em ser politicamente corretos, escolheram
um jovem coreógrafo de cada região do mundo: um
representando a América Latina, um representando
os Estados Unidos, um a Europa, um a Ásia, e um a
Suíça, claro. Esses cinco selecionados foram convida-
dos a vir a Lausanne e montar sua coreografia com a
companhia de Béjart. Cada obra não poderia exceder
15 minutos de duração.

O trabalho para o qual fui convidado era justamente


assistir a essas cinco peças e escolher a melhor. Da
América Latina, o coreógrafo era brasileiro, Cláudio
Bernardo, bailarino cearense que já residia na Europa.
Éramos 22 jurados, assim divididos: 11 críticos e 11
artistas, entre os quais estavam pessoas como Alvin
Ailey, Maguy Marin e Rosella Hightower.

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Nós do júri tínhamos poltronas separadas, para que
evitássemos comentários durante as apresentações.
Não tínhamos que escrever nada, apenas assinalar
com um xis naquele que seria o escolhido. Ao termi-
narem as apresentações, nos levaram imediatamente
para uma sala fechada, reservada para o júri compos-
to pelos onze artistas e outra sala ao lado para o júri
composto pelos 11 críticos.

Tínhamos que resolver tudo muito rapidamente, por-


que a televisão estava transmitindo ao vivo. E o que
me chamou a atenção foi o seguinte: nós, com Rosella
Hightower, que presidia o júri, fizemos a votação e
como resultado chegamos à conclusão de que não
havia apenas um melhor, e que seria interessante
dividir o prêmio possivelmente entre dois ou três
270 daqueles cinco jovens coreógrafos. O único que não
receberia nada, pois não teve nenhum voto nosso,
seria o rapaz dos Estados Unidos. Ficamos sabendo
depois que o júri de críticos, por unanimidade, havia
considerado o melhor coreógrafo justamente esse
rapaz norte-americano. Que coisa estranha esses dois
mundos, fiquei pensando.

Não lembro como se decidiu esse prêmio. Sei que,


quando terminou, nos levaram para jantar num lugar
lindo. Em cada mesa havia um cartaz com um nome
de uma coreografia de Béjart. Eu fiquei na mesa do
cônsul brasileiro, além de outras personalidades bra-
sileiras, como minha amiga Jânia Batista, importante
solista da companhia de Béjart, com quem já tinha
dançado na Associação de Ballet do Rio de Janeiro,
e também um pas-de-deux de Paquita, montado por

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Eric Valdo para a escola de sua mãe, Helfany Peçanha,
de Niterói. Eu estava rodeado por aquelas pessoas...
E mais importante ainda: estava representando o
Brasil. Béjart falou muito bem com todos, porque
domina vários idiomas. Para mim, foi um privilégio
ter podido conversar com ele, e também com Maguy
Marin, coreógrafa francesa que tanto admiro.

Como já tinha combinado, antes de regressar a São


Paulo, encontrei com Ilse em Paris, cidade que eu ain-
da não conhecia e que ela fez questão de me mostrar
tudo. Foram três dias maravilhosos em Paris. Assisti-
mos, a convite de Béjart, à estreia sua de Souvenir
de Leningrado. E, a convite de um dos curadores do
Concurso de Lausanne, jantamos deliciosamente num
restaurante que, muito tempo depois, numa matéria
da TV Cultura, descobri ser o Maxim´s. 271

A segunda viagem do ano foi um retorno à cidade de


Wiesbaden, na Alemanha. Fui convidado pela com-
panhia com a qual havia trabalhado como bailarino
há quatro anos, para fazer um trabalho. Na verdade,
o convite havia partido de Gabriel Sala, bailarino ar-
gentino/alemão, que estava à frente de sua direção
e quem eu já conhecia da primeira vez em que estive
lá. Importante bailarino da companhia, com Aniello
Angrisani, se tornou meu amigo, e cúmplice.

Montei Mandala oder der Weg nach innen (Man-


dala ou o caminho para dentro), um trabalho que
misturava algumas peças que eu já tinha montado,
terminando com Mandala. Fiquei lá durante dois me-
ses, num processo intenso, porque era um espetáculo

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grande, longo, de uma hora e meia de duração. Dos
colegas de minha época, já não estava mais ninguém.
Na Europa, eles costumam renovar constantemente
os elencos. Mas havia alguns brasileiros, como Wlamir
Nápoli e Carlos Demitre, alguns argentinos, como
Marta Steinhebel, importante primeira-bailarina
que também se tornou minha amiga fraterna, assim
como alguns do Leste Europeu. Essas companhias
são sempre cosmopolitas, com gente de toda parte.

Era um momento muito difícil porque a companhia


sofria com o estado de saúde de Aniello Angrisani,
aquele que havia me hospedado na primeira vez. Era
uma época que não se tinha ainda muitos remédios
para sua doença, não sabiam como tratar. E voltan-
do às coincidências da vida, que nunca acho que
272 são realmente coincidências: Aniello, que tinha ido
me esperar no aeroporto na primeira vez que fui à
Europa, voltava a ele pelas minhas mãos. Após seu
falecimento, quando sua família voltava da Europa
com suas cinzas, fui ao aeroporto acompanhando e
as levava no colo. Levei-o de volta para casa.

***

Retornei a São Paulo e voltei imediatamente ao


trabalho. Estava saudoso de tudo aquilo. E o melhor
era que o Teatro Municipal estava reabrindo, depois
de tempos em reforma. Montei, então, uma obra
especial para a ocasião com o Balé da Cidade, que se
chamou Mar de homens. Era o primeiro espetáculo
de dança que acontecia naquele palco depois de sua
reabertura. Por isso mesmo, nos deparamos com tudo

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ainda muito cru. Por exemplo, todos os excelentes
aparelhos de computação da nova iluminação não
podiam ser devidamente utilizados porque não havia
pessoal treinado. Uma pena.

Mar de Homens me marcou porque foi quando co-


nheci a música do compositor estoniano Arvo Pärt,
que me deixou de imediato absolutamente encanta-
do. Fizemos uma peça longa, de 90 minutos, apenas
com a música dele. Os figurinos ficaram a cargo de
Murilo Sola e a iluminação de Iacov Hillel. O artista
plástico Carlos Araújo pintou um quadro especial-
mente para esta oportunidade, usado para traduzir
o balé no cartaz e no programa.

Foi um trabalho em que mergulhamos profundamente,


eu e todo o elenco e a equipe. Ficamos muito envol- 273
vidos pela musicalidade de Pärt, e atentos ao que ele
dizia sobre sua própria música, que tem um caráter
religioso, no sentido de religar, de algo que se conecta.
Trabalhamos com os alunos da escola da Verônica Cou-
tinho, que compunham uma espécie de grupão, uma
massa, enquanto um pas-de-deux acontecia entre eles,
como se fosse uma nave num mar. Num dos elencos,
Mônica Mion e Sandro Borelli dançavam juntos, e mais
umas 60 meninas faziam um cânon interminável.

Mas o que eu mais gostava desse trabalho era a ideia


de um tempo esgarçado. Tinha que se ter paciência,
que se lutar contra a ansiedade. Inclusive no aspecto
visual, porque o palco tinha na frente uma tela feita
de plástico cristal, além de outras camadas que o
recortavam atrás, de outros tipos de plástico, com

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diferentes opacidades. Essas telas produziam uma
distorção visual, pois era assim que eu imaginava
como se enxergava debaixo d’água. Lembro que os
fotógrafos sofriam com isso, porque a luz que incidia
no corpo produzia um brilho que, ao refletir no plásti-
co, ou ao passar por ele, produzia um efeito estranho.

No início, muitas pessoas que assistiram ao espetáculo


falavam que demorava um tempo para que o olho se
acostumasse com aquilo. E muitos disseram ter saído
meio que atontados, embalados por aquele tipo de
música e pela imagem aquosa. Certamente foi uma
das vezes que tivemos mais público na temporada
toda. Todos os dias, colocávamos cadeiras extras, além
de eu ir pessoalmente para fora do teatro, acalmar
aqueles que não haviam conseguido entrar: Gente,
274 desculpa, vamos ver se amanhã conseguimos, voltem
amanhã, por favor. Eu a-do-ra-va fazer isso.

Tivemos críticas, claro, mas que nunca haviam destoado


tanto umas das outras como desta vez. Algumas fala-
vam muito bem do trabalho e outras falavam horrores.
Era a primeira vez que tive certeza como uma contro-
vérsia como essa alimentava nosso sucesso. Quem fazia
crítica na época era Helena Katz, Ana Michaela e Rui
Fontana Lopes, que, definitivamente, não apreciou o
espetáculo. Elogiou apenas o elenco. Era época de elei-
ções municipais. No início do ano seguinte, ele assumiu
o cargo de diretor artístico da companhia.

Ana Michaela, na Folha de S. Paulo (10/08/1988), escre-


veu: A forma renovada do grupo se manifesta em todos
os aspectos em Mar de Homens: coreografia, escolha

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da música, cenários e figurinos, iluminação, apresen-
tação gráfica do programa e cartaz e performance dos
bailarinos. Luis Arrieta alcança em sua linguagem core-
ográfica uma síntese baseada na união da sensibilidade
e de uma técnica clara e objetiva em sua elaboração. O
resultado chega a uma limpeza minimalista, onde as re-
petições dos movimentos se renovam e se intensificam a
cada instante. Mar de Homens é um mar indiscriminado
onde olhos atentos podem vislumbrar um ser luminoso
emergindo. Do amontoado de seres-humanos-rochas
emergem seres ávidos por vida.

Helena Katz, numa frase, resumiu muito bem o que


pretendi, em sua crítica para O Estado de S. Paulo
(02/09/1988): Ao se voltar para o exterior, Arrieta che-
gou mais perto da síntese entre sutileza e sofisticação
que perpassa sua obra. Mesmo quem não penetra 275
na profundeza desse mar é banhado pelo poderoso
estado de ser mar que foi construído.

Foi um espetáculo e tanto. Tanto que ganhamos o


prêmio da APCA como melhor espetáculo do ano.
Para a cerimônia de entrega, no ano seguinte, Rui
telefonou-me para que eu fosse receber o prêmio.
Achei que, sendo um prêmio que englobava toda a
companhia, deveria ser o atual diretor a recebê-lo.
E assim foi.

Terminado o ano, terminou também a administração


do município. Com as eleições, tudo mudou. Eu estava
na lista de quem deveria deixar o cargo. Mas nunca
ninguém da nova administração comunicou-me que
meu contrato não seria renovado. Minha sorte foi ter

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pegado meus objetos pessoais logo no fim do ano. E
partir para outras possibilidades. Que existiam, graças
a Deus. E ao meu trabalho.

Deixei a companhia em forma, restaurada. Disso,


tenho absoluta certeza. Na direção seguinte, fui cha-
mado para remontar alguns trabalhos, como Mandala,
Trindade e Presenças. Mas, naquele momento, meu de-
sejo era mesmo trabalhar novamente como free lance.

***

Em 1989, trabalhei com quatro diferentes companhias


em Belo Horizonte, cidade que era praticamente mi-
nha segunda casa. Para o Grupo Primeiro Ato, de Suely
Machado, fiz um trio, Adeus, com Quarteto para Piano
276 em Lá Menor de Mahler, uma obra pouco conhecida
do compositor, embora muito bonita. Era um trabalho
curto, de 13 minutos, que eles faziam muito bem.

Depois, montei Inconfidência para a Cia. de Dança


do Palácio das Artes. A ideia era comemorar os 200
anos da Inconfidência Mineira e o centenário da Re-
pública. Não à toa, estreamos no dia 7 de setembro
daquele ano.

A companhia estava passando por um momento de-


licado, de retorno. Quem estava à frente da direção
era Marjorie Quast, minha amiga e com quem eu já
havia trabalhado com frequência. No curto período
em que ficou, ela me chamou para coreografar. Em
seguida Tíndaro Silvano assumiu e meu trabalho seria
o primeiro de sua gestão.

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Grupo Primeiro Ato: Adeus, de Luis Arrieta, com Raquel
Pires, Marcos Tó e Yara Cerqueira

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Fizemos Inconfidência, a partir do roteiro de Geraldo
Carneiro. Mais uma vez, usei música especialmente
composta por Gismonti. Curioso que este tema, tão
específico daqui, tenha me tocado tanto. Conheço
apenas dois trabalhos de dança sobre ele e os dois
são meus: Inconfidência e Libertas quae sera tamen.

A história era a mesma, mas contada de maneira


diferente. Era outro espetáculo, com outra compa-
nhia. Foi uma ótima experiência. O grupo respondeu
muitíssimo bem.

Uma de suas apresentações foi em Ouro Preto. O es-


petáculo foi montado no pátio externo da Igreja de
São Francisco, cuja pintura do teto estava passando
por uma restauração. Foi um belo momento.
278
O pátio era imenso e, ao redor, nas ladeiras, casas
com as pessoas nas varandas, encostadas, assistindo.
A igreja tinha uma torre onde estava o campanário.
Saindo dela, colocamos rendas muito bonitas que
vinham do alto, descendo até o chão. E a abertura
era pela porta principal, que se abria, e os bailarinos
saíam lá de dentro. E isso aconteceu no fim da tarde,
quando começava a escurecer. Assim, o espetáculo
começava com o crepúsculo e terminava no escuro,
pois durava mais de uma hora. Uma imagem linda.

Mas outras das coincidências que me acompanham


pela vida: quando cheguei ao Brasil, ganhei um car-
tão-postal reproduzindo uma cena do mestre Ataíde,
de Nossa Senhora cheia de anjos em volta. Era uma
daquelas pinturas do barroco mineiro, extremamente

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coloridas e tão bonitas. Até hoje guardo comigo esse
cartão, que já está todo amassadinho. Serve para me
proteger. Bem, quando estávamos nos maquiando
e nos vestindo dentro da igreja, numa quase pro-
fanação maravilhosa, estava meio escuro lá dentro,
com pouca luz para que os bailarinos pudessem se
pintar. Foi então que peguei o espelho para retocar
um bailarino e, quando viro e olho para cima, rapi-
damente, reconheço a obra de mestre Ataíde que
estavam restaurando, e que estava comigo há tanto
tempo. Não me contive e comecei a chorar. Jamais
imaginei que em cima de minha cabeça estava algo
que admirava tanto. E, com essa sensação, abriram-se
as portas e os bailarinos começaram a dançar. Isso foi
Inconfidência Mineira.

Por fim, tive também meu primeiro encontro com a 279


companhia Compasso, um grupo pequeno, profissio-
nal, que saía da escola de Lúcia Vieira. Montei uma pri-
meira versão de um trabalho que chamaria Palhaços,
com música de Francis Poulenc, e que ganharia uma
versão completa mais tarde com outra companhia.

E, ainda em Belo Horizonte, novamente com Marjorie


Quast, fiz meu quarto trabalho na cidade naquele ano:
SOS Brasil, com o grupo de sua escola, o Núcleo Artístico.

Sempre gostei de trabalhar com os mineiros, ab-


solutamente talentosos para a dança. Sempre me
senti em casa, lá. Mas isso é fácil, em se tratando da
hospitalidade mineira.

***

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Nesse ano de 1989, ainda, fiz um trabalho para o
Ballet Ismael Guiser, Trívio, com música de Rachma-
ninov, que fazia parte de uma série de trabalhos de
trios e que giravam em torno do número 3, que havia
se iniciado com Trindade.

Trívio fiz para meu amigo Ismael. Ele teve durante um


bom tempo sua companhia, um grupo de câmara, sem
bailarinos fixos que recebiam por apresentação. Mas
já estava Daniel Lupo, um lindo bailarino argentino,
que faleceu. Quem trouxe Daniel para o Brasil foi
Cláudia Raia. Ele era bailarino de show, de jazz, em
Buenos Aires, e a Claudia ia com frequência para lá,
estudar no Conservatório de Dança do Teatro Colón
e fazer shows. E ela também era aluna do Ismael.

280 Uma lembrança de Cláudia: quando fui montar Pre-


senças em Buenos Aires, ela estava fazendo algum
trabalho por lá. Telefonei para um amigo, Miguel,
que há tempos não via, uma das poucas pessoas que
ainda conheço na cidade. Aquele que havia me levado
pela primeira vez fazer dança e depois virou comis-
sário de bordo das Aerolineas Argentinas. Combinei
um café com ele, mas pedi que fosse num lugar mais
reservado, para que pudéssemos conversar tranqui-
lamente. Fomos, então, num daqueles cafés bem
típicos de Buenos Aires, na redondeza dos teatros, e
escolhemos um cantinho bem discreto para sentar.
Mal entramos e sentamos, adentrou o recinto Cláu-
dia Raia, muito nova ainda, mas já aquele mulherão,
com um macacão de estampas de leopardo colado ao
corpo e botas acima do joelho. Ou seja, algo nada
impossível de não se ver. Quando ela entrou, todos

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olharam. Sem exceção. Seria impossível algo diferente
disso. E ela, lá da entrada, gritou, abrindo um sorriso
imenso: Luuuiiiis!!! E Miguel, um tanto surpreso, me
disse: Você não queria algo discreto?

Cláudia deve ter conhecido Daniel Lupo num teatro


de revista, ou numa aula de jazz, não sei. Muito tem-
po depois ele ficou doente, permanecendo internado
por um longo período. Ela, já famosa, ia visitá-lo
várias vezes, sempre demonstrando seu carinho por
ele. E a clínica inteira parava quando ela chegava. Ele
também não conseguiu se salvar. Além de lindo bai-
larino, era um amor de pessoa. Ismael tinha adoração
por ele, pela dedicação que ele tinha ao trabalho, à
dança. Tudo que montei ali, Daniel dançou.

Em 89 também voltei para o Caribe, mas agora do 281


lado americano. O convite vinha através de Vanessa
Ortiz, bailarina excepcional que havia conhecido em
Wiesbaden. Porto-riquenha, casada com bailarino
brasileiro, Albecio Tavares, me colocara em contato
com Ana García, diretora artística do Ballets San Juan.
Para eles remontei: Abraço, Trindade, e o solo de
Tango. Lamentavelmente ela acabara de ter filho e
não pôde dançar. Mesmo assim, o elenco era ótimo,
e tive o prazer de trabalhar com Andrés Lewowicz,
bailarino venezuelano contratado especialmente
para essa temporada. Experiente e maduro, Andrés
era claro em tudo que fazia.

O toque especial nessa montagem foi a assis-


tente Sandra Jennings, conhecida como Sandy,
ex-bailarina da companhia de Balanchine, profunda

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conhecedora e remontadora oficial de muitas de
suas obras. Ela era inteligente, capaz, ativa, e muito
louca. Estava lá também contratada para essa tem-
porada, fugindo da mídia que a perseguia, pois havia
tido um filho com o ator William Hurt. A criança,
com então seus 5 anos de idade, estava lá com ela.
O menino ficava na sala dos ensaios e corria entre
os bailarinos enquanto eu montava as coreografias.
Muitas vezes vimos fotógrafos montados nas árvores
da rua, tentando registrar pela janela da sala algu-
ma situação curiosa. Corríamos, então, para fechar
as cortinas, e algumas vezes chegamos inclusive a
suspender o ensaio.

Numa oportunidade, era dia 30 de abril, após o ensaio


da tarde, ela veio tomar alguma coisa no hotel onde
282
eu estava hospedado. A areia da praia chegava até
o jardim onde estávamos sentados, e resolvi colocar
um pouco de música. Como estava trabalhando
Abraço, de Bach, também tinha outras obras desse
compositor comigo, entre elas o Concerto para dois
violinos. Imediatamente Sandy reconheceu a música
e gritou: Hoje é aniversário da morte do George, de
Balanchine, logicamente. Levantou-se inebriada com
o copo na mão e dançou toda a coreografia que,
mesmo marcando sobre a areia e sob o céu estrelado
do Caribe, executava com conhecimento de causa. Foi
um espetáculo à parte. Creio que Balanchine deve ter
amado também. Seu filho, exausto de brincar o dia
inteiro, dormia num sofá.

***

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Anos 90. E eu continuava com meus trabalhos pelo
Brasil afora, o que adorava fazer. Conhecia pessoas
novas, artistas, culturas.

Logo no começo do ano, a Cia. de Dança do Palácio


das Artes, de Belo Horizonte, através de seu diretor,
Tíndaro Silvano, me convidou novamente para traba-
lhar com eles. A companhia estava em ótima forma,
devido ao trabalho intenso de Tíndaro e de Patrícia
Avellar. E eles queriam um espetáculo de noite in-
teira, que pudesse ser apresentado com orquestra.
Diante disso, propus um projeto arrojado: O Pássaro
de Fogo, de Stravinsky, em sua versão completa. E
eles aceitaram.

Montar esse balé foi importante em muitos senti-


dos. No sentido plástico, coreográfico, e também 283
no que se referia aos bailarinos e principalmente à
orquestra. Eu não sabia de um dado interessante:
toda vez que uma obra é tocada inteira pela primei-
ra vez em um país, isso é registrado em arquivos na
Suíça. E era a primeira vez que se tocava a versão
completa de O Pássaro de Fogo no Brasil, por uma
orquestra brasileira.

Foi emocionante. Sobretudo porque foi uma volta


àquelas coisas feitas quase artesanalmente, com as
quais estava acostumado. E, naquele momento, com
as dificuldades advindas do Plano Collor, ter conse-
guido erguer aquela produção foi quase um milagre.

A orquestra não estava completa e o maestro Emílio


de César, que regeria a peça, residia em Brasília. Pelo

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284

Cia. de Dança do Palácio das Artes: O Pássaro de Fogo, de


Luis Arrieta

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menos duas ou três vezes por semana, ele ficava o
ensaio todo ao meu lado, para entender exatamen-
te o que eu pretendia. Uma dedicação rara de se
ver. Mas o que mais me emocionou foi quando ele
me contou que, em uma passagem da música, num
único momento, quando está terminando uma das
cenas, tem um contrafagote, que toca três notas. A
orquestra não tinha contrafagote. E ele, diante desse
impasse, tinha que descobrir de que maneira faria es-
sas três notas. Então, o músico do fagote pegou uma
cartolina e recortou três alturas diferentes. Como as
notas eram bem separadas, ele tinha três pedacinhos
de cartolina que colocava no instrumento e fazia as
três notas para dar o som mais parecido possível com
o do contrafagote. Dou um valor incrível a esse tipo
de coisa. As pessoas realmente queriam que aquilo
acontecesse. O maestro e os músicos da orquestra. 285

Um dia, estávamos no ensaio de palco, passando o


balé inteiro, mas utilizando música gravada. Fiquei
espantado quando vi a orquestra inteira sentada
na plateia nos assistindo. Como eles não poderiam
nos ver nos espetáculos, porque estão no fosso, re-
servaram aquele dia de ensaio para conhecer nosso
trabalho. A orquestra toda, em peso. Emocionante.

Possivelmente, pessoas que não são da área acham


que isso deveria ser normal. Aliás, deveria mesmo
ser normal, mas sabemos que não é assim. Sempre
digo que o público perde momentos maravilhosos da
dança que são o dia a dia dela. O público, no fundo,
vê o resumo final da coisa. Mas o que se trabalha no
cotidiano, qualquer coisa, uma coisa simples, às vezes

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um tropeço que causa graça e a partir daí sai uma
brincadeira, o processo de construção dessa pequena
coisa tão simples, tão frágil que é nosso espetáculo,
lamentavelmente o público perde.

Outras colaborações importantíssimas foram além


do elenco: Lydia del Picchia, assistente que sabia im-
pregnar-se de cada cena com conhecimento e alegria,
Raúl Belém Machado, cenógrafo e figurinista com
quem eu já havia trabalhado no tempo do grupo Elo,
empenhou-se ao máximo para acompanhar minha
proposta. E todos os outros funcionários do teatro.

Ainda em Belo Horizonte, com a Meia Ponta Cia. de


Dança, criada um ano antes por Marisa Monadjemi,
fiz um trabalho que se chamou Wa’ya, em parceria
286 com Tíndaro Silvano, coreógrafo e professor, com
quem tive, tenho e terei muitas parcerias e cumpli-
cidade, o que faz prazeroso e fácil nosso trabalho.
E, voltando a São Paulo, Rui Fontana me convidou
para fazer uma criação para o Balé da Cidade.
Escolhi trabalhar com a Suíte nº 1 para dois pianos,
Opus 5, de Rachmaninov. Dediquei Ausência a
Graham Bart, lindo bailarino inglês, que se afogou
numa ressaca do mar, no Rio de Janeiro, quando
estava casado com Ana Botafogo. Não o conheci
muito, mas de alguma forma precisava estar perto
de minha amiga Ana. E essa seria minha maneira
mais verdadeira de fazer isso.

Por outro lado, na hora que fui avisado do acidente


fiquei sabendo das circunstâncias. Ele e o iluminador
André Botto foram até a pedra do Leme, porque

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Graham dizia amar o mar. Uma grande onda da
ressaca os carregou. Graham era exímio nadador,
enquanto André não sabia nadar. O mar ficou com
aquele que o amava. Devolveu André às pedras. Eu
não conseguia deixar de pensar nisso!

Fizemos este espetáculo com música ao vivo. Quem


preparou a obra foi Gilberto Tinetti e Paulo Gori. Os
dois pianos ficavam no fosso da orquestra à meia al-
tura, o que permitia o público ver as duas coisas, balé
e orquestra. Começava com uma imagem congelada
feita pelos bailarinos. Não tinha cenário: uma imagem
em tom de azul e verde, como água, uma imagem
de uma onda subindo com um corpo de um homem
em cima e uma mulher que o olha num canto. A obra
termina num allegro muito forte, num golpe de uma
onda, e então aparece a mesma imagem do início. 287

Ana Botafogo não assistiu à estreia. Tinha um com-


promisso. Logo que pôde, veio. Foi uma grande emo-
ção. Ela foi recebida com todas as honras que merece.
O próprio Rui foi apanhá-la no aeroporto. O camarote
principal estava reservado para ela. Lembro que, além
de mim, estavam Rui e Emilio Kalil, então diretor do
teatro. Depois da apresentação, sentimos que ela
queria ficar sozinha e nos retiramos do camarote.
Foi um espetáculo forte para ela. Um espetáculo que
gosto muito, dificílimo, que os bailarinos dançaram
maravilhosamente bem.

Eu já havia guardado essa obra de Rachmaninov


em meus alfarrábios por muito tempo. Sempre quis
coreografá-la. Mal o Rui me convidou, cheguei em

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Com Ana Botafogo

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casa, coloquei o CD para tocar e vi a coreografia intei-
ra à minha frente. Ela estava pronta em mim. Nunca
montei algo tão difícil como Ausência. O bailarino
tinha que ter um conhecimento técnico de Martha
Graham e de balé clássico impecável.

Ady Addor sempre me cobra que eu remonte essa


peça. Não sei se há alguma companhia disposta a
encarar esse desafio. São danças de conjunto com bai-
larinos colados um ao lado do outro, para produzir um
efeito de água agitada o tempo inteiro. Uma ressaca.
Para isso, tem que se ter um controle técnico preciso.

E foi para o grupo de câmara de Ady, que em 1990,


remontei Palhaços, ainda em sua primeira versão.
Ali conheci Gisele Bellot, bailarina disposta a novos
rumos a quem eu encontraria novamente no Ballet 289
Ismael Guiser. Ela participou de muitas das minhas
montagens, sempre entregando-se totalmente ao
que eu propunha. Dançamos juntos Tango e Nuestros
Hijos. Hoje é minha professora.

Em Caxias do Sul, com o Grupo de Dança Raízes, co-


mandado por Sigrid Nora, remontei Palhaços, agora
em sua versão completa. Foi o último espetáculo dan-
çado pelo grupo. Para elaborar o cenário e o figurino,
foi chamada uma ótima artista da cidade, Beatriz Ba-
lem Susin, com quem me dei muito bem. E a estreia foi
em dezembro. O ano terminava e as atividades desse
grupo também. Para sempre, infelizmente.

Ainda nesse ano tive a experiência de trabalhar com


a companhia mais antiga do país, o Ballet do Theatro

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Municipal do Rio de Janeiro. Era uma honra, para mim,
poder estar com todos aqueles artistas que eu tanto
admirava há tempos. Quando cheguei, Tatiana Lesko-
va era a diretora, prestes a deixar o cargo. Não era a
primeira vez que isso acontecia comigo. E encarei meu
trabalho, que era o que me importava. Remontei para
eles Tempo de Tango. Com o Balé Teatro Guaíra, outra
companhia oficial com a qual trabalhava pela primeira
vez, remontei Presenças, desta vez com música ao vivo,
sob a regência do maestro Osvaldo Colarusso, tendo
ao piano Maria Elisa Risarto.

Marjorie Quast criou nesse ano um novo grupo em


Belo Horizonte, Menestréis da Dança. Em setembro,
apresentamos outra versão de SOS Brasil, que agora
passou a se chamar apenas Brasil. A estreia foi no
290 Palácio das Artes. A ideia era pensar como se deu a
fusão de elementos religiosos africanos e europeus no
Brasil. Das 12 coreografias do espetáculo, nove eram
minhas. E, ao meu lado, como coreógrafos, estavam
Carlota Portella, Holly Cavrell e Paulo Buarque.

O ano se encerrava e eu havia percorrido o país, tra-


balhando, sobretudo, com suas companhias públicas.
Conhecia todas elas, suas qualidades, seus problemas,
suas especificidades, sua dança. E isso fazia de mim
um artista um tanto raro, que circulava em tantos
ambientes distintos. E eu sabia disso.

***

Mal o ano novo começava e eu já recebia convites de


trabalho. 1991 prometia. O primeiro deles foi feito

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pelo Carlos Trincheiras, que dirigia o Balé Teatro
Guaíra. Ao retornar àquela companhia criei Estância.
A música era de Alberto Ginastera, que a havia com-
posto especialmente para dança tempos atrás, usando
ritmos folclóricos argentinos. Uma obra musical curta,
de uns 15 minutos, mas a coreografia chegava a 20 mi-
nutos, usando silêncios e ecos. E coreografei também
um pas-de-deux, Pavana para uma infanta defunta,
com música de Ravel. Escolhi o elenco: Eleonora
Greca e Jair Moraes, que se revezavam com Márcia
Castro e Sérgio Oliveira. Como quis homenagear esses
bailarinos dei a obra de presente para eles. E todo
esse programa também foi com música ao vivo, sob
a regência do maestro Alceo Bocchino.

Fui convidado mais uma vez pelo Balé da Cidade de


São Paulo e escolhi montar Les Noces, de Stravinsky. 291
Ainda não tinha muita familiaridade com aquela
maravilha de música. Já havia visto a versão original
de Nijinsky em vídeo, e a de Kylian também. Mas era
diferente estar diante dessa obra, para que eu desse
a ela a minha versão. Os figurinos foram feitos por
Renata Schussheim, uma artista plástica, cenógrafa
e figurinista argentina que trabalhou muito com Os-
car. Ela estava pela cidade por algum outro motivo e
aproveitamos a ocasião para convidá-la.

Lembro que o elenco trabalhou com afinco cada


compasso, cada movimento. Rui acompanhava com
entusiasmo o trabalho. Kalil não poupou esforços
para conseguir uma produção realmente impecável.
Dois assistentes de primeira acompanharam essa e
outras montagens na época do Rui: Suzana Mafra,

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Estância, de Luis Arrieta, pelo Ballet Ismael Guiser, 1992

Estância, de Luis Arrieta, Ballet Teatro Guaira, 1991, com


Rui Alexandre e Regina Kotaka

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Pavana para uma Infanta Defunta, de Luis Arrieta, em
montagens de 1993 e 2000. Acima com Gustavo Lopes e
Lilia Shaw e abaixo com Karla Couto e Rodrigo Giése

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velha conhecida e companheira do meu trabalho, e
Sérgio Funari, que soube entregar-se e absorver cada
ensaio. Sérgio divide hoje seu tempo entre a direção
de palco de algum espetáculo e seu consultório de
dentista. A piada irresistível: é ele hoje quem me deixa
de boca aberta. Literalmente.

Depois fui para Natal, convidado por Edson Claro,


para trabalhar com a Acauá Companhia de Dança,
ligada à universidade federal de lá, que já não existe
mais. Era mais uma vez um trabalho que pretendia
aglutinar pessoas de educação física com a dança,
que havia sido iniciado por ele em São Paulo. Diante
do meu encantamento pelas dunas de areia de lá,
montei Tempo de dunas.
294
Aconteceu uma coisa curiosa. O papa João Paulo II,
em sua terceira visita ao Brasil, passou pela cidade.
Eu estava hospedado num hotel na via costeira, que,
literalmente, cai para o mar, belíssimo. Em frente,
existe uma estrada e, depois, apenas dunas e dunas
de areia. No meio de todas essas dunas, existe um
centro de convenções oficial que, às vezes, devido à
movimentação das areias, chega a ficar escondido.
O papa iria rezar uma missa, como faz em todos os
lugares que visita. Então, nesse dia, nem pensamos
em trabalhar, porque tudo estava parado. Resolvi,
então, ficar no hotel, assistindo à missa pela televi-
são, quando disseram que ele iria ao encontro dos
bispos da cidade no tal centro de convenções. Saí
do hotel e fiquei parado na estrada da via costeira,
esperando que ele passasse.

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Nunca vou me esquecer daquela imagem: uma hora
da tarde, aquele sol escaldante, aquele calor, e no
perfil contra o céu azul das dunas próximas, brancas e
brilhantes que queimavam, um batalhão de soldados
com metralhadoras. Além deles, não tinha ninguém,
só umas três ou quatro pessoas paradas. E, de repen-
te, passaram vários carros cheios de militares e, logo
atrás, o papamóvel, com aquela caixa de vidro, com
dois homens de terno, com armas para fora. João Pau-
lo II estava todo de branco, com a roupa engomada,
imaculado. Quase transparente. Passou acenando, e
fez a curva a uns 5 metros de mim. Não sei bem por
que, mas me lembrei da coreografia A Mesa Verde,
de Kurt Jooss.

Do calor tórrido das dunas de Natal passei para as


295
serras nevadas de Saint Gallen, na Suíça. Por indica-
ção de Ricardo Fernando, bailarino de Brasília com
quem havia trabalhado no Rio, em meus tempos da
TV Manchete, a diretora da companhia de dança da
cidade, Marianne Fuchs, me convidou para remontar
algumas de minhas obras, no intuito de completar
um programa. Remontei: Adeus, Trindade e Palhaços.
Foi um tempo agradável de trabalho, com a pequena
cidade praticamente submersa em tanta neve, como
eu nunca tinha visto. Silenciosa e tranquila, só se agi-
tava às vezes com os testes de alarme que nos faziam
interromper os ensaios e, sem sequer pegar as bolsas,
correr para os bunkers na praça em frente ao teatro.
Nunca tinha vivido essa situação.

***

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Nesse mesmo ano, fiz dois duos para duas compa-
nhias. Para Cláudia Araújo, de Niterói, fiz um pas-de-
deux com música de Arvo Pärt, Ofertorium. Eu já a
conhecia desde os tempos da Associação de Ballet do
Rio de Janeiro. Ela era uma linda bailarina. E, nesse
duo, ela dançava com Servo Campos, um bailarino
também de Niterói. Para o Ballet Ismael Guiser, criei
Andante, com música de Bach, para Daniel Lupo e
Patrícia Alquezar. Algumas vezes, cheguei a dançar
também esse duo com Patrícia.

Mas uma novidade em minha carreira ainda estava


por vir: depois de diversas tentativas frustradas, re-
cebi, finalmente, uma bolsa para fazer uma criação
coreográfica da Fundação Vitae. O projeto que havia
apresentado dessa vez girava em torno de solos, duos
e trios. Chamava-se: Um, dois e três – Luis Arrieta por
Luis Arrieta. Era uma sensação diferente aquela, de
receber para eu fazer um trabalho meu, sem estar
ligado a qualquer companhia. E soube saboreá-la
como deveria. Isso eu soube.

Convidei bailarinos da cidade, de vários lugares,


com os quais me indentificava – Ana Maria Mondini,
Beth Risoléu, Clarice Abujamra, Irineu Marcovecchio,
Ivonice Satie, Laudnei Delgado, Mônica Kodato, Mau-
ricio Martins, Mauricio Ribeiro, Mônica Mion, Nancy
Bergamin, Nilson Soares, Patrícia Alquezar e Suzana
Yamauchi. E alguns convidados de Belo Horizonte:
Karla Couto, Rodrigo Giése, Lina Lapertosa e Lair As-
sis. Um time de primeira, enfim. Eu também dançava.
Claro! E eu iria perder essa festa?

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297

Ofertorium, de Luis Arrieta, com Claudia Araújo e


Servo Campos

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A música de câmara foi ao vivo. O maestro Gil Jar-
dim, que também tocava, convidou alguns de seus
melhores alunos formandos da escola de música da
USP, todos muito bem-preparados por ele, para cada
uma das peças. Já todas as partes de piano foram
preparadas pelo maestro Gilberto Tinetti. Ou seja,
pude contar com música de primeira qualidade. E
tudo feito contando com a boa vontade das pessoas,
porque certamente a bolsa não cobriria jamais esses
gastos. No máximo, conseguia dar uma ajuda de
custo aos bailarinos.

Mas contávamos com a preciosa ajuda da produtora


Anelise Godoy, esposa do maestro Gil, que, com seu
empenho, conseguiu cartazes, programas, flores e
tantas outras coisas que fazem parte da produção
298 de um espetáculo.

Apresentamos o resultado no ano seguinte, 1992,


no Teatro Sérgio Cardoso. Era um espetáculo longo,
com quase três horas de duração e dois intervalos.
Mesclei algumas peças já compostas com outras
criadas especialmente para o projeto. Entre as novas,
estavam Oração, um solo dançado por Maurício Ri-
beiro, que só ele que conseguiria fazer, por ser quase
um atleta, e que só foi apresentado nessa ocasião;
Outono, uma obra dançada apenas pelas mulheres,
com os choros de Villa-Lobos tocados pelo violonista
Edelton Gloeden, músico muito importante daqui
do Brasil. Era uma cena bonita: ele ficava sentado
em uma cadeira, e as cinco bailarinas, Mondini,
Beth, Clarice, Patrícia e Suzana se movimentavam
como se estivessem enlaçadas entre suas pernas e a

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cadeira, e cada uma ia saindo para fazer o seu solo
sucessivamente. Disso surgiu outro trabalho inédito,
Dois Clarinetes, um duo para Patrícia e Maurício, que
também nunca mais foi levado; Ocean, com música
especialmente composta por Gil Jardim e Jether
Garotti, que foi apresentado em outras oportunida-
des no Memorial da América Latina, criado para Beth
e Laudnei; Cisne, um solo que eu fazia com a música
de Saint-Saëns, que ficou conhecidíssima através do
solo magistral de Michel Fokine para Anna Pavlova, A
morte do cisne, do comecinho do século anterior; e,
por fim, La valse, com música de Ravel, para Kodato
e Irineu. Entre as obras já conhecidas pelo público,
estavam Palhaço, que fazia Ivonice, Tango, que fazia
Nancy, Andante, Pavana, Adeus, Trivio, Trindade e
Malambo, de Estância.
299
Todos os dias, mudávamos a ordem do programa. As
peças eram as mesmas, mas gostávamos de trocar a
sequência em que eram apresentadas, pois não eram
feitas separadamente, com aplausos no meio. Não.
Isso seria muito fácil para nós. Elas eram, de alguma
maneira, interligadas. Só que ficava a cargo de cada
bailarino saber como entrar em cena e começar sua
peça e também como sair de cena e terminá-la. Isso
sem prévia combinação, claro, o que tornava tudo
ainda mais instigante. Eu podia fazer isso com aquelas
pessoas, todas extremamente experientes e criativas.
Era delicioso ver como quem estava começando sua
parte ia esboçando o movimento em cena, ao mesmo
tempo que tomava para si algum movimento da obra
anterior, e emendava com o que viria a seguir. E, de
certo modo, os músicos acompanhavam esse processo

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e se alternavam em cena para executar cada peça.
Tudo era muito bonito.

E fui trabalhando como sempre aqui e ali, como já esta-


va acostumado. Duas criações: para o Balé Teatro Castro
Alves, fiz De mar e areia, com música de Gismonti; para
o Balé da Cidade, fiz A espera, um trabalho bem intros-
pectivo, lento, para tratar da ideia da espera, usando
alguns temas de Villa-Lobos, em versão para piano.

E fiz também algumas reposições em companhias.


Para o Palácio das Artes, remontei Pavana para uma
infanta defunta, que depois de muito tempo, em
2000, montei também para o Ballet do Theatro Mu-
nicipal do Rio de Janeiro, com Nora Esteves e Bruno
Cezário, alternando com Betina Dalcanale e Paulo
Rodrigues. Gostava muito da Nora com o Bruno.
Gostava do contraste da juventude dele com a ex-
periência dela. Remontei Estância para o grupo do
Ismael. Algumas vezes eu também me apresentava
sozinho, não em espetáculos meus, mas entrava em
alguns lugares, em que me oferecia para participar.
Nunca tive problemas com isso. Nunca.

Em 1992, Rui Fontana, que ainda estava à frente


do Balé da Cidade, me pediu que remontasse para
a companhia La valse, que ele havia visto no meu
espetáculo Um, dois e três e também Pavane. Para o
Palácio das Artes, remontei La valse também, além
de Tango, De mar e areia e Trindade, ou seja, um
programa de solos, duos e trios. E eu me apresentava
nesse espetáculo também, com meu Cisne, ou algu-
mas vezes com o Tango.

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301

Ballet do Teatro Castro Alves: De Mar e Areia, de Luis


Arrieta, com Armando Pereno, Flexa II e Augusto Omolú

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Marcello Avellar, crítico de o O Estado de Minas (1993),
escreveu: La Valse é um pas-de-deux que brinca com
a interpretação do corpo – os rostos trabalham com
máscaras estáticas que são substituídas por outras
máscaras estáticas numa sucessão ao mesmo tempo
engraçada e trágica. Obra que, a partir da estilização
e da corrupção de passos de valsa, apresenta uma an-
gustiante contradição entre conflito e necessidade.”

As novas criações do ano incluíram o Balé Teatro


Castro Alves, para quem criei um duo, Beijo I, com
um adágio de Bach. Para a Cia. Profissão Dançar, um
grupo de jazzdance de São Paulo, que vinha de uma
academia de dança, Steps, de Cecília Oliveira e Regina
Dragone, fiz Willis Now, com música do The Art of
Noise, um grupo de rock progressivo. Era um desfile
302 de moda de noivas, que no início estavam mortas e
que se levantam para dançar com um homem que era
um jogador de beisebol. Uma citação clara ao balé
Giselle. Esse trabalho só foi apresentado com essa
companhia e nunca mais. E o grupo logo em seguida
se desfez. Mas o que gostei mesmo foi a experiência
de ter trabalhado com bailarinos de jazz. E essa não
seria a última vez.

Em 1993, a direção do Balé da Cidade de São Paulo


mudou novamente. Quem assumiu foi Ivonice Satie,
que me convidou para fazer a remontagem da Sa-
gração da Primavera, em comemoração aos 80 anos
da primeira versão de Nijinsky. Fizemos exatamente
a mesma coreografia que eu havia criado antes, só
que, dessa vez, com cenários e figurinos de Murilo
Sola. Apresentamos no Teatro Municipal, com or-

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Com Ivonice Satie

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questra tocando ao vivo. Para eles, criei também um
balé com música de Bach, Concerto para 4 Pianos e
Orquestra de Cordas, um concerto de Vivaldi que Bach
transcreveu. Era um trabalho muito dinâmico, em
que eu brincava um pouco com sequências de dança
clássica e da técnica moderna de Martha Graham.
Chamava-se Warm up.

***

Um grande convite, ainda em 1993. O Ballet du Grand


Théâtre, de Genebra, me convidou para trabalhar
com eles. Era uma indicação de Iracity Cardoso, que
tinha acabado de sair dessa companhia para assumir
a direção do Ballet Gulbenkyan. A princípio, preferia
ter feito uma remontagem, em se tratando de um
304
elenco que não conhecia. Mas a condição era que
fosse uma estreia. Decidi, então, prestar uma home-
nagem ao compositor argentino Alberto Ginastera,
que havia falecido há 10 anos, na Suíça. Fizemos, en-
tão, Pampa, com o Concerto para Harpa no 25, tocado
divinamente pela orquestra de La Suisse Romande,
sob a regência de David Porcelijn.

Para os figurinos, pude contar com o talento de Mu-


rilo Sola, que se encontrava na Suíça comigo, embora
ele já estivesse muito doente. Apesar de estar debili-
tado, não parava um minuto no teatro e na cidade.
Estávamos hospedados juntos e sempre me esperava
no fim dos ensaios com algum presente que tinha
comprado durante seus passeios. De volta ao Brasil,
ainda vestiu Willis Now, nosso último trabalho juntos.

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Luis Arrieta em Genebra, 1993

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Foi muito interessante trabalhar lá. Oscar já não
estava, tinha saído há alguns anos. Quem dirigia a
companhia era Gradimir Pankov. O programa ainda
contava com mais duas obras, uma honra para mim,
porque tive a imensa sorte de estar ladeado por
Jiri Kylián e Mats Ek, dois grandes coreógrafos que
sempre admirei. Adorava fazer aulas de balé com
eles. Fazíamos todos juntos com a companhia. E eu
me sentia em casa.

No Journal de Genève, Gazette de Lausanne, da Suíça


(15/10/1993), Michèle Pralong escreveu uma crítica
sobre nós, intitulada Magnífico pas-de-trois: Luis
Arrieta, Jiri Kylián, Mats Ek: Os três coreógrafos con-
vidados para abrir a temporada de Dança no Grand
Théâtre acertaram em cheio. E especificamente sobre
306 meu trabalho, escreveu: Pampa (...) uma criação agra-
dável aos olhos, sóbria e serena, evocadora do vento
dentro da natureza argentina. Verdadeiramente uma
encantadora música dos corpos.

Uma surpresa que me deixou muito feliz em Genebra


foi a visita da minha irmã Pochi, da Austrália, que
estava a caminho da Espanha. Ela assistiu à estreia.
Com seu jeito extrovertido, logo ficou amiga de todo
elenco. E voltávamos caminhando do teatro para
casa, à noite, com o sol ainda iluminando as ruas e
os telhados da bela cidade no verão suíço.

Nesse ano, compus também um trio para os primeiros-


bailarinos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Ana
Botafogo e Marcelo Misailidis, e o solista Hélio Bejani:
Tango trio. Essa pequena peça, de apenas dez minu-

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No Ballet du Grand Théâtre de Genebra, 1993

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Luis Arrieta em ensaio

No Ballet du Grand Théâtre de Genebra, 1993, Pampa,


de Luis Arrieta

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tos, com música de Piazzolla, foi encomendada para a
comemoração de 300 anos da cidade de Curitiba, em
um espetáculo grandioso, que contava também com
o tenor José Carreras e a Orquestra Sinfônica Brasilei-
ra. Foi realizado no Parque das Pedreiras, num palco
imenso, conhecido como Pedreira Paulo Leminski,
onde cabem orquestra e companhias de balé.

Lembro que tivemos o privilégio de poder contar com


Arthur Moreira Lima ao piano, nos acompanhando.
Havíamos feito alguns ensaios com ele no estúdio de
Emílio Martins, em Copacabana. Só que o piano de
um estúdio dedicado a acompanhar aulas de balé é
um modesto piano de armário. Mesmo assim, Arthur
tocou sem nenhum constrangimento. Não apenas
uma... senão muitas vezes. Um artista.
309
***

No ano seguinte, trabalhei pela primeira vez com a


carioca Carlota Portella, que eu já conhecia de minha
época na Associação de Ballet do Rio de Janeiro, da
qual ela também era bailarina, além de professora
e coreógrafa da escola de Dalal. Para seu Grupo Va-
cilou Dançou, fiz a primeira versão de Noch einmal,
com música de Philip Glass, sobre um Concerto para
violino e orquestra. Usei apenas o segundo e terceiro
movimentos. No ano seguinte, cheguei a fazer com
os três movimentos, mas com o grupo do Ismael.

Nessa oportunidade, foi também a primeira vez que


trabalhei com a Rosa Magalhães como figurinista,
por quem me apaixonei à primeira vista. Fomos apre-

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sentados na casa de Carlota e a afinidade entre nós
foi imediata. Acho a Rosa fora de série. Uma artista
rica em todos os sentidos, com uma capacidade, com
um conhecimento da profissão, com um domínio do
métier impressionantes. Só posso falar coisas mara-
vilhosas de Rosa Magalhães, com quem trabalhei em
outras oportunidades.

Nesse ano de 1994, também coreografei e dirigi um


trabalho com o Camaleão Grupo de Dança, chama-
do Telas, novamente com música especialmente
composta por Oswaldo Montenegro. Marjorie
Quast, a diretora, queria uma obra que transitasse
pelo mundo das artes. Algumas partes foram co-
reografadas por mim, mas, na verdade, fiz mesmo
310 uma direção geral do trabalho.

Enquanto isso, minha peça Sanctus havia se tornado


um hit no repertório do Balé Teatro Castro Alves.
Fui algumas vezes a Salvador para revisar sua re-
montagem, burilar aqui e ali alguns detalhes, algo
habitual. Isso era necessário porque desde sua cria-
ção completa para essa companhia, ainda em 1985,
todos os anos ela era inúmeras vezes apresentada.
Muitas vezes na Europa, Ásia e Estados Unidos.
A companhia e eu recebemos diversas críticas, de
várias partes do mundo. Camile Hardy, da histórica
e conceituada revista americana Dance Magazine
(dezembro de 1993) escreveu: “Sanctus, por Luis
Arrieta, mostra o formidável dom do coreógrafo
para a criação de movimentos.”

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Ballet do Teatro Castro Alves: Noch Einmal, de Luis
Arrieta

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Ballet do Teatro Castro Alves: Noch Einmal, de Luis
Arrieta. Acima, Leonard Henrique

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Na Alemanha, duas críticas também. No jornal Was
(28/05/94), Elisabeth Hoving escreveu: Sanctus, uma
grandiosa oração de corpos. Um exemplo da har-
monia entre o clássico e o exótico, a civilização e a
natureza pura, é a explosiva coreografia de Sanctus,
um hino ao mundo além do visível. E Lars Ludwig von
der Gonna, do Jornal Recklinghausen, no mesmo dia:
Sanctus... Do mais fundo da alma vivencia-se uma
confissão que se concentra espantosamente autên-
tica no essencial. (...) É espantoso que este gesto seja
mostrado com naturalidade, coisa que muitos dos
nossos autossuficientes ‘esclarecidos fazedores’ de
teatro não teriam coragem de fazer. É a comovente
síntese dos sonhos humanos com um único credo.

Essa era uma amostra de que meu trabalho caminhava


em seu entendimento internacional. Que isso seria 313
mesmo possível. O que me deixava extremamente feliz.

***

Minha relação com a Argentina é minha família,


alguns poucos amigos da infância e da adolescên-
cia e Oscar. Em 1993, fui passar as festas de fim de
ano com eles, Natal e Ano-Novo. Minhas duas irmãs
também estavam, a mais nova, que morava em Bue-
nos Aires, e a mais velha, vindo especialmente da
Austrália para estar conosco.

Foi tudo muito simbólico. Passamos o Ano-Novo na


casa de parentes, algo não muito comum em minha
família. Meu pai, já nesta oportunidade, comen-
tava que não estava se sentindo muito bem, que

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Bettina Bellomo e Renato Bertolino

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Grupo de Dança Camaleão: Encontro no Espaço, de Luis
Arrieta, conjunto

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possivelmente no ano que vem ele teria que fazer
alguma intervenção cirúrgica, ou algum tratamento
um pouco mais específico. Acho que, na verdade, ele
não sabia muito bem que estava tendo problemas de
coração. No início de 1994, ele não passou bem. Eu
e minha irmã da Austrália viajamos novamente para
Buenos Aires, porque ele havia sido internado, para a
colocação de um marca-passo. Em seguida, teve uma
pequena melhora. Mas, em agosto, veio a falecer.

Nesse exato dia, eu estava em Salvador para fazer


uma banca de júri numa audição para uma compa-
nhia. Era um domingo e garoava bastante. Eu deveria
viajar de Salvador para o Rio de Janeiro, para dar
um acabamento em Noch einmal, para o grupo de
Carlota, que estrearia em pouco tempo. Estava ainda
316 no hotel, pela manhã, esperando a condução que
me levaria ao aeroporto. Ainda não sabia de nada.

Enquanto estava esperando, fiquei olhando pela ja-


nela, porque já estava chegando minha hora. Olhei
para baixo e vi uma pessoa que reconhecia de algum
lugar. Mas, naquela hora, seu nome não me vinha à
lembrança. Num impulso, num ímpeto, coisa nada
normal em mim, desci as escadas e fui falar com ele.
Quando fiquei frente a frente, reconheci: Você é
músico! E ele me respondeu: Sou o Naná Vasconcelos.
Prazer, sou Luis Arrieta, sou coreógrafo e já coreogra-
fei uma obra sua, Berimbau. E trabalhei com outras
músicas também. Em seguida, ele me deu um abraço
e nós dois começamos a chorar. E nos desculpamos
mutuamente a emoção que nos tocava. Era uma situ-
ação totalmente inexplicável aquela. Mais ou menos

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naquela hora, meu pai estava falecendo. Imediata-
mente, Naná me convidou para o quarto dele, uma
suíte no mesmo hotel. Lá, havia uma bandeja sobre a
mesa cheia de frutas. Enquanto eu comia, ele pegou
o berimbau e começou a tocar e a cantar para mim.

Passado um tempo, que nem sei precisar quanto,


pedi desculpas, mas precisava ir embora, porque já
estava chegando minha condução. Cheguei ao Rio e
era quase noite. Na manhã seguinte, entrei na sala
da escola da Carlota e pouco antes de começar o
ensaio, ela me chamou num canto e me disse que
Ismael havia acabado de telefonar: haviam ligado
para ele de Buenos Aires, comunicando que meu
papai falecera no dia anterior. Chorei muito. Carlota,
um tanto assustada, me perguntou se eu preferia ir
para o hotel. Não. Eu preferi trabalhar. Fui para a 317
sala e falei: Vamos começar!

Curiosamente, esse trabalho fala exatamente de uma


pessoa que quer passar para um outro lugar. A dança
toda era construída dialogando com uma parede de
luz, muito bem-idealizada pela iluminadora Deise
Calaça. Por ela, o último bailarino deveria passar,
mas percebe que só conseguiria fazê-lo despido, pois
a roupa era uma casa e, naquele lugar, havia espaço
apenas para o tamanho exato daquela pessoa. Então
ela fica nua e faz a passagem.

Na verdade, eu já esperava aquela situação. Tinha


acabado de ver meu pai num estado muito precário
de saúde. Ligava sempre para lá, e ficava sabendo das
notícias, nem sempre as melhores. Mas não pensava

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que iria ser assim tão rápido. Não fui a Buenos Aires
me despedir dele. Já não daria mais tempo. E não
haveria sentido.

Ele foi cremado e guardaram as cinzas em um túmulo


de algum conhecido, pois minha família não possui
um. Meu pai havia pedido para minha irmã que,
quando falecesse, fosse cremado e que suas cinzas
fossem levadas para a cidade dele, Olavarria, provín-
cia ao sul de Buenos Aires, e jogadas sobre o campo
de futebol do time El Fortín, que ele havia ajudado
a fundar, para quem costumava jogar na sua juven-
tude e para o qual, mais tarde, torcia. Ele adorava
mesmo futebol. E teve de abdicar de seu sonho de
ser jogador profissional para sustentar a família. Eu
não tive que abdicar de nada em minha vida. Tive a
318 oportunidade de brincar com sonhos. E devia isso, de
certa forma, ao meu pai.

***

Continuei acreditando que o trabalho seria a melhor


maneira de lidar com aquela perda tão triste. E me
lancei a ele, como sempre fiz em minha vida.

Montei uma nova versão de Les Noces para o Balé


Teatro Castro Alves, e fiz questão que, no programa,
constasse sua tradução em português: As bodas. O
mesmo figurinista de Sanctus, Afonso César, traba-
lhou novamente comigo e, juntos, elaboramos algo
que trouxesse a imagem do que seria um casamento
dentro do candomblé. Eram roupas cobertas de bú-
zios e colares, um figurino belíssimo. E a companhia

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dançava belissimamente essa obra. Os ritmos de
Stravinsky logo encontraram eco nos bailarinos da
Bahia. Aquela música, que poderia parecer de início
tão estranha, logo foi reconhecida por seus corpos.

Remontei Estância e Pavana para o Balé Nacional do


Paraguai, uma companhia que fazia um trabalho de
dança moderna e contemporânea. Yoko Okada, que
eu já conhecia por sua parceria com Ismael Guiser,
era co-diretora da companhia com Graciela Meza, e
me fez o convite. Era uma companhia pequena, com
muitos chilenos, já que o país deveria ter poucos bai-
larinos. Mas eu adorava conhecer novas companhias,
e dessa vez não havia sido diferente.

E isso continuaria. Voltei a Genebra, para trabalhar 319


com Beatriz Consuelo, bailarina brasileira importan-
tíssima, cujo filho dança hoje na companhia do Merce
Cunningham. Ela tinha uma escola particular e, com
os alunos formandos, organizara uma pequena com-
panhia, chamada Balé Júnior. Como havia conhecido
meu trabalho com o Grand Ballet, no ano anterior, me
convidou para montar alguma obra para seu grupo.
Decidi, então, por remontar três duos extraídos de De
mar e areia, as três canções de Villa-Lobos, da obra A
Floresta do Amazonas, na versão tão bonita de Ney
Matogrosso, Assis Brasil e Wagner Tiso.

Terminava o ano de 1994. Um ano difícil, de perda.

***

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Cheguei hoje do Rio de Janeiro. É dezembro de 2008.
Estreamos ontem à noite, no Teatro Maison de Fran-
ce, o trabalho Suíte Floral, mais um dos encontros que
realizam Ana Botafogo e a pianista Lilian Barretto.
Nesse espetáculo, criei coreografias e fiz também a
direção. Volto muito feliz desse encontro.

Eu já havia trabalhado antes com as duas, em Três


momentos do amor, um espetáculo que já tem sete
anos. Éramos três coreógrafos, Renato Vieira, Heron
Nobre e eu. Mas neste, tudo era mais enxuto, com
menos pessoas em cena: três músicos, um celista, um
percussionista e um gaitista, Ana, Lílian e o bailarino
Joseny Coutinho, seu colega do Ballet do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro. Hélio Bejani assinou
algumas das coreografias e fez assistência de direção,
320 enquanto Inês Pedrosa fez assistência de coreografia.

A montagem foi bastante rápida. Foi feita para o


público se deleitar, porque se trata de um espetáculo
extremamente simples, até ingênuo, que fala sobre
as estações do ano. Mas não ficamos restritos às esta-
ções climáticas. Explico isso no programa: Dizer que
vivi tantas estações, só multiplicando por quatro os
anos da minha vida, é uma mera probabilidade ma-
temática. Estações. As reconheço presentes em cada
dia e as vejo andar paralelas e cruzando-se em cada
sentimento que me sulca. Colhi flores desabrochadas
de calor tórrido enquanto caía seco de desesperança
no leito gelado. A cada manhã acorda-me com um
beijo uma delas e todas elas me conduzem pelo dia
carregando-me as mãos, os pés e a alma. Das mãos
e dos pés destas duas almas (que tanto a nos contar

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têm sua música e sua dança), nos chegam mais do
que alegóricas as estações – verão,outono, inverno,
primavera, reconhecidas, respeitadas, e aceitas em
cada instante das nossas vidas, verdadeiras, constan-
tes e fiéis como a natureza.

É a maneira de como vemos o espetáculo. Fizemos ob-


viamente pequenas citações das Quatro estações, de
Vivaldi, e estão presentes também algumas estações
portenhas de Piazzolla, além de temas como Somente
um coração solitário, uma canção de Tchaikovsky que
se refere à solidão do inverno.

Em nossas conversas com toda equipe, chegamos à


conclusão que vivemos um momento de exaltação a
tudo que é ecológico, mas que devemos começar a
respeitar a presença da natureza e as estações dentro 321
de nós mesmos. Respeitar nossos próprios processos,
nossos ciclos biológicos, nossas rugas. E aceitar que,
possivelmente, a partir daí tudo pode ser mais fácil.

E realmente foi um encontro muito feliz. Nos invade


uma alegria imensa poder realizar esse espetáculo,
sobretudo num momento extremamente difícil
economicamente para as artes no país. E o público
percebe essa harmonia.

Esse é o último trabalho que criei antes de finalizar


esse livro. Fiquei pensando em todo esse processo,
de levantar cronologicamente todas as minhas ati-
vidades profissionais, tudo certinho sobre o que fui
fazendo a cada ano. Às vezes, meu lado mais pessoal
explodindo, como a passagem sobre o falecimento

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do meu pai. Mas, paralelamente a tudo isso, cada
criação, cada montagem ou remontagem, cada apro-
ximação com cada grupo, tudo isso me lembrou a
possibilidade do encontro com artistas maravilhosos.
Não apenas bailarinos, mas também compositores,
artistas plásticos, iluminadores, roteiristas, diretores
de teatro, técnicos de teatros, porteiros de hotel, re-
cepcionistas, enfim, todos. Como viajei e viajo muito
para trabalhar, conheço muitas pessoas e isso é muito
rico. São praticamente as famílias que tenho aqui no
Brasil. É impossível falar de todas as pessoas, citá-las
nominalmente. Mas queria falar de algumas e devo
começar pelo Ismael Guiser, que conheci em São Paulo
e que foi um dos meus grandes amigos.

Conheci Ismael no fim de 1974. A partir daí, mesmo


322 morando fora do país e depois voltando, foi crescen-
do uma amizade muito forte entre nós. Uma amizade
até muito ligada pela língua e pela origem em co-
mum, sem dúvida. Mas o que me encantava no Ismael
era sua lucidez, seu brilho, sua agilidade mental. Eu
não podia bobear nenhum segundo nas conversas
com ele, que pareciam um jogo de pôquer: são fra-
ses que, começadas, não precisavam ser terminadas,
porque o outro já havia entendido. Eram deliciosos
os encontros com ele. E com toda admiração artística
mútua, tínhamos uma grande amizade.

Outro amigo: Afonso César, que fez meus figurinos de


As bodas, Bolero e Sanctus, as produções da Bahia. E
Carlos Sérgio Borges, um artista plástico do Rio Gran-
de do Norte, de Natal, que trabalhou muito comigo.
Pessoas com quem converso periodicamente, com

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quem me sinto bem quando estou próximo. Outros
encontros fantásticos, como Ana Botafogo, Dalal
Achcar, Tatiana Leskova. E Ivonice Satie, saudosa
e grande colega. Iracity Cardoso, Antonio Carlos
Cardoso, dois grandes amigos. Muita e muita gente.

Também duas mulheres que têm sustentado minha


vida de maneira decisiva: a chilena Inélia García, uma
das introdutoras do método Pilates no Brasil e Sonia
Cavalcanti, mãe de seis filhos e avó de cinco netos.
As conheci em fins dos anos 1980. Fazia as aulas do
Ismael com Sonia que retomava à prática que tinha
abandonado quando sua prole começara a nascer.
Apresentei uma a outra. Sonia se encantou com o
trabalho de Pilates, fez sua certificação e ainda re-
tomou a faculdade e se formou em Educação Física.
Hoje é professora importante do método. 323

Com incrível talento nas mãos, Sonia pintou, bordou,


costurou, consertou, desenhou muitos figurinos para
meus balés, ajudou-me em tudo, o inimaginável. E
ainda mais: ela e Inélia cuidaram de mim quando,
em 2000, fiquei internado em estado muito grave,
por mais de um mês. Com a pouquíssima consciência
que tenho desse período, posso lembrar das rosas
vermelhas que Inélia me levava, tentando me con-
tagiar com sua energia. E lembro também dos olhos
entre assustados e duvidosos de Sonia. E mesmo com
tudo parecendo acabar, elas não me abandonaram.

O pintor Carlos Araújo, que há anos não vejo, o ma-


estro pianista Gilberto Tinetti, que sempre esteve
próximo, pessoas que vêm de um encontro artístico

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e que se tornaram meus amigos. Agradeço muito
minha profissão que me permite fazer isso.

Agora mesmo, com a estreia de ontem, no Rio, encon-


trei muita gente. Bailarinos do Theatro Municipal, da
Companhia de Ballet da Cidade de Niterói, Carlinhos
de Jesus, gente que foi nos prestigiar. Vão ficando
as relações, que são também relações pessoais. E
aqui, neste livro, às vezes também me pego falando
de coisas extremamente pessoais, mas entendendo
que isso faz parte do jogo. Um jogo cujas regras são
recriadas a cada momento. Um jogo vivo. E repleto
de emoções sempre novas.

***

324 Estávamos em 1995. Fui para o Rio Grande do Norte


trabalhar com o Ballet Municipal de Natal. Na verda-
de, foi um belo reencontro com Roosevel Pimenta,
seu diretor, que eu havia conhecido quando de mi-
nha primeira turnê pelo Nordeste com o Corpo de
Baile Municipal de São Paulo. Montei Fragmentos
da Página 5, com música de Villa-Lobos. Um trabalho
pequeno, com uma produção extremamente simples,
com ótimos figurinos e cenários de Carlos Sérgio Bor-
ges. Uma companhia com poucas condições, mas que
mesmo assim conseguimos fazer um belo espetáculo.

Ainda em Natal, agora com o Grupo da Universidade


do Rio Grande do Norte, dirigido por Edson Claro, fiz
um trabalho que coloquei o nome de Noch viel mal,
expressão em alemão que inventei. Me atrevi ser um
neologista, e em alemão!

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Este foi um trabalho que gostei de fazer. Os bailari-
nos dançavam praticamente o tempo inteiro numa
rampa altíssima, com rodas, o que fazia mudar o
tempo todo a orientação do palco. Usamos música
de tambores japoneses e, de vez em quando, surgia
por trás o adágio do Concerto número um para piano
em si bemol de Tchaikovsky. Os ensaios não foram os
mais fáceis, sobretudo por causa da rampa. Não era só
subir e descer sobre ela, mas, às vezes, dançar. E aí os
bailarinos tinham que encontrar uma outra referência
de verticalidade. E fomos descobrindo, juntos, formas
de isso poder acontecer. Descobrimos, por exemplo,
que quanto mais tensos, menos funcionava. Ou nos
entregávamos a essa nova topografia ou caíamos
como um pedaço de carne no chão. E isso desarmava
os bailarinos. E os unia ao mesmo tempo.
325
Montei também para o Ballet Ismael Guiser a versão
completa de Noch einmal, que havia começado com
o grupo da Carlota Portella. Novamente contei com
os figurinos da Rosa Magalhães. E, logo em seguida,
Antonio Carlos Cardoso me chamou para trabalhar
com ele no Balé Teatro Castro Alves.

Ele estava querendo fazer um trabalho que tivesse


como tema os orixás. Convidamos Egberto Gismonti
para compor a música e chamamos a Rosa Magalhães
para idealizar o figurino, que, a essa altura, já traba-
lhava em sintonia absoluta comigo.

Durante o processo de criação, aconteceu uma coisa


interessante: como sempre faço, tentei aprender um
pouco sobre o tema do qual eu trataria em minha co-

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reografia. Ingenuamente, comecei a ler alguns livros
sobre os orixás. Era uma ingenuidade de ignorante,
que acreditava poder compreender algo daquele
universo tão complexo com pouca leitura.

Para continuar a contar isso, preciso dar um salto no


tempo. Quando fui morar no Rio de Janeiro, para
trabalhar com Dalal Achcar, lembro que, no prédio
ao lado em que nós morávamos na rua Alberto de
Campos, vivia uma argentina de Córdoba, de origem
judaica, que tinha morado muito tempo no kibutz em
Israel. Era uma senhora alta, de olhos azuis, cabelos
longos e encaracolados, lembrando um desenho de
Klimt. Chamava-se Rute Zefes e era seguidora do
filósofo e esoterista russo George Gurdjieff.

326 Sempre nos encontrávamos na praia e era sempre


muito agradável conversar com ela, uma pessoa di-
vertida e espirituosa. Numa oportunidade, comentei
que nunca tinha lido a Bíblia e ela me disse: Ah...
você nunca leu a Bíblia judaico-cristã? Então vou te
dar uma que eu tenho. E, logo no dia seguinte, me
deu um exemplar em espanhol de presente, que te-
nho até hoje sobre minha mesa, quase desmanchado
de tanto manuseio. Como bom virginiano, um dia
decidi ler a tal Bíblia. Sentei, com um papel e um
lápis em punho, abri na primeira página e comecei a
ler e a tomar nota. Desde a primeira página. Palavra
por palavra. Pretendia entender intelectualmente
tudo ali. Logo compreendi a minha estúpida arro-
gância. E uma tremenda ingenuidade, sem dúvida.
Sabe-se que muitos estudiosos dedicam toda uma
vida a estudar a Bíblia e chegaram à conclusão de

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que muito ainda deveria ser estudado, para que
pudessem começar a entender alguma coisa.

Euzinho já queria de primeira entender tudo. E ainda


fazer anotações. Pretensão e ingenuidade juntas. E
uma grande arrogância também. Logicamente, de-
pois da segunda página, deixei de lado o papel e o
lápis. E decidi o seguinte: quero acreditar que algum
lugar dentro de mim vai compreender alguma coisa.
E li aquela Bíblia do início ao fim, mais de três vezes.
Li tudo. Até os dados catalográficos. Tudo. Coisa de
virginiano, sem dúvida. E gostava de ler em voz alta.
Descobri o prazer de se ler em voz alta lendo a Bíblia.
Parece que produz um eco que faz o texto voltar a
entrar em mim. E isso não é nada de outro mundo.
Toda religião sabe disso.
327
Desta mesma maneira foi como comecei meus estu-
dos sobre os orixás. Carlinhos Moraes, outro grande
amigo que descobri com a dança, me passou algum
pequeno livro sobre o assunto, que li. Mas logo
compreendi que essa leitura serviria apenas como
desencargo de consciência. Para que eu não come-
çasse aquele trabalho na mais absoluta ignorância.

Pensei, então, que os orixás são a presença da natureza,


e eu também sou filho da natureza. Seguramente eles
habitariam de algum modo também em mim. E seria
através da dança, um elemento importantíssimo para
os orixás, a maneira que eu teria para descobrir isso.

Quando comecei o processo de montagem, fui me


movimentando, fui coreografando e nunca falei para

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Ballet do Teatro Castro Alves: Orixá, de Luis Arrieta. Ao lado
Fátima Berenguer e Marcos Napoleão, demais, conjunto

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os bailarinos algo como: Hoje vamos trabalhar Xangô,
ou Agora vamos trabalhar Iansã, ou Iemanjá. Não.
Mas os bailarinos, que naquela época eram quase
todos baianos, conheciam muito bem o assunto. Aliás,
muitos deles vinham das danças folclóricas. E muitos
deles eram, se não pais de santos, devotos, com algu-
ma relação com o candomblé. E enquanto íamos tra-
balhando sozinhos, e eu pedia: Vamos passar a parte
da dança que vem de trás... e eles falavam entre si: A
parte de Oxalá Guia. Aquilo foi me deixando muito
feliz. De alguma maneira, eles estavam reconhecendo
algumas coisas que eu estava conseguindo traduzir
sem praticamente copiar nenhum movimento das
danças folclóricas, até porque não saberia realizá-lo.

Eu já havia ido a terreiros em outras oportunidades.


330 Voltei a ir para fazer esse trabalho. Carlinhos sem-
pre me levava a lugares interessantes, não aqueles
conhecidos turisticamente. Às vezes, a gente andava
de carro mais de uma hora para chegar a um bairro
bem periférico, para participar daquelas cerimônias
que iam começar depois da meia-noite, em casinhas
muito simples. Nada de espetacular, mas autêntico.

Ou quantas vezes o próprio Carlinhos, que fala


ioruba, fazia algum comentário, ou falava alguma
expressão para mim, assim, do nada. Aquele gaúcho,
que dançou muito no Rio de Janeiro e se mudou para
Salvador, fala ioruba. Ele ficou tão interessado pela
cultura afro-brasileira que se dedicou a estudar com
afinco. Lê livros nessa língua. Já presenciei conversas
dele com mães de santo nessa língua. Como também
já o vi dar aula de algumas danças dos orixás.

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O interessante é que Carlinhos, pelo conhecimento de
dança clássica que tem, consegue estruturar cada uma
das partes, ou cada um dos passos daquelas danças
e traduzi-las de maneira extremamente metódica.
Não sei se haverá outra pessoa com esta capacidade.
Muitas pessoas sabem dançar, mas não sei se teriam
capacidade de destrinchar aquilo didaticamente.
Sempre digo a ele que deveria fazer um registro
disso, pois é a pessoa que tem condição de fazê-lo.
Além do mais, Carlinhos tem uma categoria dentro
do candomblé. Ele foi iniciado, fez a cabeça.

Orixá ficou como eu queria. E sempre fico feliz com


isso. Gideon Rosa, no jornal A Tarde, de Salvador
(09/12/1995), escreveu: Produção grandiosa em porte
e significado Orixá inova por não apresentar um vo-
331
cabulário impregnado de movimentos extraídos do
folclore. Revela-se ao público como um espetáculo
capaz de prender a atenção pela sutileza de gestos e
recusa em trabalhar com ideias que já fazem parte do
imaginário popular. A coreografia começa falando do
primeiro encontro do homem e da mulher, depois do
mundo e, finalmente, após a festa dos homens eles
transformam-se em deuses, em orixás. É um traba-
lho extremamente sofisticado. O coreógrafo evitou
entregar-se à tentação do descritivo e construiu uma
dimensão inovadora no que se refere ao trabalho
com o tema. Realiza, em cena, uma transposição
que não se propõe a ser reconhecível. Ao contrário,
pretende-se deixar apanhar na emoção do homem
que tem a capacidade de criar, transformar e, às
vezes, virar deus.”

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E, assim como Sanctus, esse espetáculo foi apresen-
tado em vários lugares, em vários países. No Joyce
Theatre, em Nova York, a receptividade foi fantástica,
como me contou a própria Rosa, que esteve presente
na estreia. Não poderia ser diferente, pois eu contava
com aqueles bailarinos cujos corpos, de alguma ma-
neira, reconheciam de forma imediata toda aquela
informação. Essa era a diferença vital nesse trabalho.
O programa era dividido com Berimbau, o que com-
punha uma bela noite, orgânica.

Recebemos crítica. O New York Times (31/07/1996)


publicou o seguinte texto, assinado por Jack Anderson:
O programa foi uma prova de que a dança moderna é
uma linguagem internacional que pode aceitar sota-
ques de quaisquer regiões onde ela floresça. (...) Berim-
332 bau origina-se das formas tradicionais de arte marcial
brasileira. Sete homens estáticos em poses congeladas...
libertavam-se destas formas esculturais em explosões
selvagens de corridas, quedas e saltos e quando vão ao
chão na parte final parecem atletas ao mesmo tempo
exaustos por seus esforços e triunfalmente conscientes
de que seu desempenho foi vencedor. Orixá, dança
dramática e simbólica, um espetáculo que nos encanta
e nos prende pela magia. Os dançarinos movimentam-
se como ondas por um palco coberto de folhas até o
ponto em que é fácil para nós acreditar que todos estão
possuídos por forças sobrenaturais. Corpos caem como
se estivessem mortos e surgem, de repente, como numa
ressurreição. Ver Orixá é como contemplar um universo
em estado de metamorfose perpétua.

***

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Áurea Hammerli, primeira-bailarina do Theatro Mu-
nicipal do Rio, dirigia também a Companhia de Ballet
da Cidade de Niterói. Nesse mesmo ano de 1995, me
convidou para trabalhar com eles. Era a chance que
eu tinha de conhecer mais uma companhia oficial
brasileira. E aceitei, claro, propondo criar Na floresta,
usando novamente a música de Villa-Lobos, A floresta
amazônica, na versão de Wagner Tiso, Assis Brasil e
Ney Matogrosso. O figurino e o cenário foram mais
uma vez assinados por Rosa Magalhães. Para compor
esse mesmo espetáculo, remontei para Áurea e Paulo
Rodrigues, Pavana para uma infanta defunta, que eu já
havia feito em outros lugares. Um duo para bailarinos
de categoria. Eles o eram e o dançaram belissimamente.

Continuei trabalhando em Minas Gerais no espetácu-


lo Telas, com a Marjorie Quast. Eu já havia feito esse 333
espetáculo no ano passado, mas dele foi tirado um
extrato que batizei como O toque, um duo dançado
sobre um cubo, que foi apresentado numa home-
nagem aos 75 anos do Royal Academy of Dance e a
Margot Fonteyn, em Belo Horizonte.

Em 1995, cumpria-se também dez anos do faleci-


mento de Flávio Império, o artista plástico com quem
eu havia tido o privilégio de trabalhar em 1981, na
coreografia Libertas, quae sera tamen, para o então
Corpo de Baile Municipal de São Paulo. O Sesc Pom-
péia resolveu prestar uma homenagem a ele, com
uma grande exposição no centro de convivência,
Flávio Império em cena. Havia uma parte com muitos
plásticos transparentes, dispostos como se fossem
cortinas sucessivas, e nesses plásticos vinham textos

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contando partes de sua vida. Outra parte mostrava
seus figurinos, outra com suas obras plásticas. Enfim,
uma grande e interessante exposição.

Eles me contataram, porque sabiam que eu havia


trabalhado com Flávio. Perguntaram se eu gostaria de
participar da exposição e se teria alguma ideia. Pro-
pus apresentar dois solos meus. Como eu, de alguma
maneira, também havia sido parte dos trabalhos dele,
resolvi participar daquela homenagem. Me apresen-
tei, então, em dois dias, dançando. Num deles, criei
um trabalho especialmente para a exposição, com
o Adagietto de Gustav Mahler. Dançava sobre um
monte de edredons velhos, embaixo de toda aquela
chuva de placas transparentes com textos. Era uma
instalação, que não tinha hora para começar e para
334 acabar. As pessoas iam passando e me viam lá, me
debatendo em cima dos edredons e dos plásticos. No
outro dia, apresentei Ave Maria, com música de Góre-
cki, compositor polonês, que fiz com um figurino feito
de sacos desfiados de feijão, todo em fiapos. Fazia
tudo na beirada daquele pequeno riacho do centro
de convivência. Esse solo, que acabava no chão, fiz ali
caindo na água, onde eu ficava por horas. As pessoas
passavam, olhavam a água passando por cima do meu
rosto, e não sabiam se era um boneco, ou o que era.

Flavio Império foi outra dessas pessoas que foi um


grande prazer ter conhecido. Quando ele fez toda
parte visual e figurinos de Libertas quae será tamen,
já era um indiscutível cenógrafo, um artista plástico
reconhecido. Mas, nesse ano, ele havia ganhado por
esse trabalho o prêmio da APCA. Ao ficar sabendo,

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logo pela manhã, ele me telefonou para agradecer.
Ele me ligou para agradecer uma coisa que ele pró-
prio havia feito! Feliz que estava por descobrir uma
área nova, que ele dizia ser o corpo.

Se ele soubesse... acredito que conseguimos estrear


Libertas apenas graças a ele, que usava seu nome
e prestígio nas lojas para que lhe doassem todo o
material necessário para a confecção do cenário e
dos figurinos. Os processos oficiais não conseguiriam
jamais acompanhar o ritmo da produção de um
espetáculo naquela época.

Havia umas máscaras de personagens chamados no


roteiro de burocratas, feitas como marionetes, de
papel-marchê. Apesar de ter ele ido inúmeras vezes 335
falar com a pessoa responsável pela liberação das ver-
bas, nunca conseguia nada. E decidiu usar para esse
preparado os diários oficiais velhos que se amontoa-
vam nos cantos da administração. Um dia, cansado de
receber mais um ainda não foi autorizado no diário
oficial do funcionário das verbas, Flavio, com seu
humor e sutileza característicos, saiu da sala falando:
Sabe de que são feitas as cabeças dos burocratas? De
diário oficial! Um trocadilho saborosíssimo.

Aliás, naquela época, tudo era uma novidade para


ele. Naquele mundo novo do movimento, ele tinha
que saber lidar com coisas práticas, como a neces-
sidade do bailarino se mexer. E eu pude ajudar um
pouco nesse processo.

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Sempre fiquei muito impressionado com ele. Eu ia à
sua casa e conversávamos muito. Ele morava numa
casa muito bonita no bairro do Bexiga, e ficávamos
lá no fundo, onde ele trabalhava. Sua mãe preparava
uns bolos deliciosos, que devorávamos durante a
conversa. Foram várias as vezes em que ele falava
comigo enquanto manipulava um pedacinho de
papel ou uma madeirinha e dali brotavam objetos
instantaneamente.Para esse balé que fizemos jun-
tos, eu pedia a ele que pensasse numa imagem de
uma virgem que viria detrás do palco. Ele buscou
um papel, uma tesourinha, enquanto falava, ma-
nipulou aquilo e sem que eu me desse conta, e em
poucos minutos me perguntou: Assim? E fez uma
santinha de papel cortado que guardo até hoje.
Impressionante. Tudo brotava das mãos dele. Era
336 uma energia fluente.

Muito divertido, sempre com grande humor, ele era


perspicaz. Em uma de nossas conversas, ele interrompeu
e disse: Bom, Luis, agora a gente tem que parar porque
tenho que ir dar aula na USP. E eu perguntei: Ah, e o
que você ensina lá? Ensinar eu não posso ensinar nada,
eles já têm que saber. Só posso dar alguma dica para
que o caminho deles seja um pouco mais rápido. Mas,
ensinar, não posso não. Meu Deus, ele tinha razão.

***

Em 1996, trabalhei pela primeira vez com a Raça Cia.


de Dança de São Paulo, companhia dirigida por Roseli
Rodrigues, outra pessoa que passei a ter uma relação
de amizade. Ela tem uma filha, Isabela, talentosa

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bailarina, para quem fiz um pequeno solo nas pontas,
agora no início de 2008, que ela ainda não apresen-
tou, com tema de Piazzolla, chamado Revirado.

Lembro de uma passagem desse ano de 1996, quando


eu morava em um apartamento dúplex, que tinha uma
escada. Roseli vinha sempre à minha casa, mais à noi-
te, quando terminava os ensaios. Ela tem uma ótima
escola em São Paulo. E mais seus filhos. Enfim, uma
pessoa ocupadíssima. Só tínhamos esse horário para
trabalhar, conversar sobre detalhes, ter ideias, hábito
que foi fazendo a gente entrar madrugada adentro.

Numa dessas vezes, ela passou em casa com Isabela,


que naquele ano era ainda bem pequenininha. E eu
tinha um gatinho de madeira que ficava no degrau
da escada, como se estivesse dormindo. Num mo- 337
mento, Isabela se levantou para tocar o gatinho e
eu falei baixinho, sussurrando: Não! Não mexe com
ele porque está dormindo. E ela me olhou um pouco
desconfiada. No dia seguinte, Roseli me contou que,
quando as duas voltavam para casa, ainda no carro,
Isabela lhe disse: Mãe, ele falou para não mexer
porque o gato estava dormindo. Mas eu acho que o
gato era de madeira... Adoro essa historinha. Adoro
sua singeleza.

A Raça Cia. de Dança de São Paulo, desde sua cria-


ção, nunca havia convidado outro coreógrafo para
trabalhar com eles de um estilo que não fosse o seu
de origem, ou seja, o jazzdance. E eu fui a primeira
aventura de Roseli no sentido de procurar algo fora
daquele estilo. Depois de mim, vieram outros, como

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Ivonice Satie e Henrique Rodovalho. E, se não estiver
errado, acho que fui eu que me ofereci para trabalhar
com eles. E lembro que Roseli até titubeou um pouco,
mas acabou topando. E essa seria minha segunda
incursão nesse universo dos bailarinos de jazz.

Fizemos um trabalho que se chama Tango três x


três. Um trabalho longo, de uma hora de duração.
Lembro que Ismael sempre brincava comigo, dizendo:
Ah, para você, uma hora e meia é um balé pequeno...
Desde criança fui assim. Um lado meu incorrigivel-
mente wagneriano.

Tango três x três. O título já era praticamente um


disparate, porque, na realidade, o tango não tem
compasso três por três. Era uma provocação. A única
338 explicação era o fato de ser dançado por nove pesso-
as, e ser todo construído com solos, duos e trios. Só
tinha um conjunto no início e outro no final.

Acho fantástico bailarinos de jazz. Eles têm uma qua-


lidade de movimento, uma dinâmica e um esforço,
próprios do tipo de trabalho que realizam, que me de-
safiam coreograficamente. E mesmo a sensualidade,
característica do jazz, tão presente em alguns acentos,
no limite do vulgar, me seduz muito artisticamente.

Quando começamos a misturar um pouco do tra-


balho da Roseli com o meu, algumas coisas interes-
santes começaram a aparecer. Toda aquela energia
já começava imediatamente a se expor. Havia uma
presença forte do torso, da coluna, de uma energia
muito boa, quase bruta. Instigante. E dali surgia um

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novo resultado, um novo elemento. Isso me lembrava
muito de minha experiência na Bahia, com o Balé
Teatro Castro Alves. A mistura da minha assinatura
coreográfica com o modo tão especial deles de dan-
çar. Essa mistura de elementos era o que enriquecia
muito nosso trabalho em conjunto. E com o bailarino
de jazz não era diferente.

Me apresentei várias vezes com eles. Não com a


companhia, mas nos espetáculos da escola da Roseli.
Eu, na verdade, me oferecia, como sempre: Vai fazer
espetáculo? Então... me deixa dançar? Assim mesmo.
Na caradura. Se não me convidavam, eu me oferecia.

Mais tarde um pouco, em 1999, ela fez um trabalho


que se chamava Novos ventos, com música de Erik
Satie, que eu ajudei a amarrar as cenas. Ela mesma já 339
estava partindo naturalmente para uma pesquisa mais
próxima da dança contemporânea, o que foi ótimo ar-
tisticamente para ela e para a companhia. Esse era um
pouco o processo pelo qual passou o grupo da Carlota
Portella, que tinha o jazzdance também como origem.

Assim, passei a ser uma figura frequente na escola


e na companhia de Roseli. Coreografava pequenas
coisas para alguns bailarinos, para se apresentar nos
espetáculos de fim de ano, coisa que eu gostava
muito de fazer e que já havia aprendido muito des-
de os trabalhos em Belo Horizonte, com a escola da
Marjorie Quast.

Em 1998, coreografei para ela um trabalho chamado


Achalai!, um trabalho de conjunto, com canções indí-

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genas pesquisadas e adaptadas por Marlui Miranda.
Achalai é uma expressão quíchua, que minha avó Ca-
mila sempre usava, quando tinha lembrança de algo
muito prazeroso, sobretudo coisas de sua infância. Aí,
ela soltava um Achalai!, em tom exclamativo. A tra-
dução exata é algo bom e bem perfumado, segundo
um pequeno dicionário de língua quíchua que tenho.
Mas, para a minha avó, era uma lembrança de algo
agradável. Os bailarinos dançavam praticamente nus,
durante meia hora, com o corpo pintado.

Retornando ao ano de 1996, coreografei para o grupo


de Ismael um trabalho chamado Trevo, que comple-
tava mais uma peça de um ciclo sobre o número 3.
Fiz também para ele um outro trabalho que gosto
340 muito, Quebrada, com música folclórica argenti-
na, numa versão belíssima para piano, percussão e
charango, instrumento típico nosso. O charanguista
era Jaime Torres, músico boliviano cujo trabalho
aprecio muito. E usei essa música porque tocava a
mim e a Ismael de forma especial. Tanto que até os
bailarinos se viram envolvidos com aquilo tudo. Foi
interessante ver como o folclore da minha terra me-
xia com os sentimentos de um grupo brasileiro, que,
aparentemente, não teria nenhuma conexão direta.
Novamente, trabalhamos dentro daquelas condições
mínimas. Cada um trouxe uma roupa, misturamos,
tingimos, sujamos e fomos descobrindo qual seria o
nosso figurino. Foi uma aprendizagem em grupo, o
que acabava sendo o lado bom do amadorismo, o
lado amador de quem ama.

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Nesse ano também, trabalhei com o Grupo Beth Dor-
ça, de Uberaba, muito conhecido nos festivais pelo
país afora. Novamente, fui eu o primeiro coreógrafo
a trabalhar com eles. Logo em seguida, vieram outros.
E sempre vencendo preconceitos das pessoas, que
muitas vezes perguntavam indignadas por que eu
aceitava trabalhar com grupos de escolas de dança.
Sempre respondi: Em primeiro lugar, vivo disso, essa
é a minha profissão. E, depois, tenho que ir aonde me
querem. Tenho que ir aonde o povo está, como diria
Milton Nascimento, ou ainda como diria Mercedes
Sosa: Cantor canta onde o povo escuta.

Tenho a dimensão que, às vezes, trabalhar com


grupos menos profissionais dá mais trabalho. Isso é
óbvio. Geralmente não é só o trabalho de coreogra-
far, mas tudo o que está em volta também precisa
341
ser revisto. A estrutura toda deve sofrer mudanças,
desde a maneira de ensaiar, os horários, a precisão
na execução dos movimentos, enfim, tudo. Tenho a
impressão de produzir um reboliço ali para transfor-
mar aquilo. Um reboliço absolutamente necessário.
Para que não permaneça a mesmice, para que alguma
transformação se dê. E isso é muito bom. É laborioso,
mas é muito bom.

Montei para eles La telesita, a partir de um tema fol-


clórico argentino, chacarera, uma dança da chácara
muito típica. É talvez um dos ritmos mais brilhantes
que nós temos. Fiz também um duo, Libertango, famo-
so tango de Piazzolla, para os dois melhores rapazes
que ela tinha no grupo, Fernando Martins, que hoje
dança na Quasar Cia. de Dança, e Edson Fernandes,
que pertencia à companhia Distrito Cia. da Dança.

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Nesse mesmo ano, numa dessas passagens por Natal,
fiquei sabendo que Henrique Amoedo e Edson Claro,
ambos com formação em Educação Física, tinham
formado um grupo de dança com pessoas portadoras
de necessidades especiais, a Roda Viva Cia. de Dança
Sobre Rodas. Rapidamente me ofereci para fazer um
trabalho para eles, sem cobrar nada por isso. Como
sempre, fui eu o primeiro a abrir essa porta, sendo se-
guido logo depois por Tíndaro Silvano e Ivonice Satie.

Aquele grupo me impunha um desafio que até então


nunca havia enfrentado. Tinha a certeza de que eu
seria o maior beneficiário daquele processo todo,
na medida em que teria que lançar mão de outros
subsídios físicos para poder criar. Isso me aterrorizava
ao mesmo tempo em que me desafiava. Fiz, então,
342 um trabalho com eles que se chama Marnatal, um
trocadilho com o nome da cidade e o fato de que o
homem nasce da água, do mar. Foi uma experiência
fan-tás-ti-ca. Tive que aprender muita coisa, muito
rapidamente. Primeiro, saber que estava lidando com
cadeirantes e não-cadeirantes, ou caminhantes, como
são chamados aqueles que caminham. Esses, além de
dançar, também ajudam aos outros. Outra lição era
saber que ali estavam pessoas com graus diferentes
de dificuldade: paraplégicos, tetraplégicos, sem con-
tar a origem desses problemas, que podiam ser de
nascença ou fruto de algum acidente, o que sempre
vinha à tona, no processo artístico, claro.

Lembro que eu contava com pouco tempo para fazer


tudo. Sempre havia trabalhado com pessoas extre-
mamente preparadas e, agora, precisava enfrentar

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uma outra fisicalidade. E precisava fazer isso num
tempo curto. Enfim, uma tarefa daquelas. Eu tive
medo, confesso.

Aliás, sempre tenho medo de tudo. Vivo com medo.


Então, não me resta outro remédio que viver. Morro de
medo da vida. Me escondo. Mas, dentro de uma sala,
meu domínio, esse medo milagrosamente desapare-
ce. Mando em todo o mundo, faço o que quero. Mas
sempre morro de medo. E aquele era mais um desses
medos. Apenas mais um. Nem maior, nem menor.

Combinamos, então, começar os ensaios. Quando


cheguei, Edson já tinha preparado todos, que esta-
vam apreensivos com minha presença. Antes de tudo,
eles faziam um trabalho de aula todo específico. Fi-
quei olhando aquele aquecimento e ficava pensando 343
se nos três dias que eu tinha, daria para montar algo
de três ou quatro minutos. E não importaria se nunca
estreássemos isso. O que importava, para eles, mas,
sobretudo para mim, era aquela vivência.

O resultado foi muito diferente daquele que eu


imaginava: mais de meia hora de coreografia, minha
grande mania. Na hora de começar efetivamente
o ensaio, nos primeiros 15 minutos, reconheço que
fiquei meio sem saber como lidar com tudo aquilo.
Depois de 15 minutos, esqueci absolutamente com
quem estava trabalhando, já estava dando ordens
como sempre, dizendo: Vamos lá! Chega de pre-
guiça! ou mesmo: Isso está demorando demais!,
Isso foi ótimo! Ou seja, coisas que eu diria para
qualquer bailarino.

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A certa altura, o Edson me puxou para um canto e
tentou me alertar: Você esqueceu da condição deles?
Claro que não havia esquecido, mas estava traba-
lhando com coisas concretas. Na coreografia, eles
começavam em grupo. Pedi a todos que abandonas-
sem cadeiras, bastões, bengalas, os ferros nas pernas,
tudo. Feito isso, eles se encostaram na parede. Alguns
tinham que ser colocados ali, porque não conseguiam
ir sozinhos. E pedi que fizessem a movimentação toda
no chão, como uma água. Como o mar. Eles moravam
ao lado do mar e sabiam o que eu estava solicitando.

Lembro de uma menina que tinha paralisia na perna


e usava aqueles sapatos pesados, com ferros. Montei
um trio para ela, com mais dois rapazes, um cami-
nhante e o outro que mancava por alguma lesão. Ela
344 era a mais afetada dos três. Lembro que, na hora de
começar o ensaio, pedi para ela tirar todos aqueles
ferros e ela me disse: Ai, não... por favor... Eu estava
tirando toda a base dela! Insisti. Pedi que ela ten-
tasse. E ela passou a ficar na mão dos dois rapazes o
tempo inteiro. Nunca vi uma menina tão feliz, desde
o primeiro momento em que experimentou aquilo.
Ela se sentiu bela, feminina.

De tempos em tempos, Henrique interrompia o en-


saio e pedia que a gente fizesse uma pausa de uns
5 minutos. Ele controlava tudo no relógio, porque
muitos deles têm o sistema de suor também afetado
e, como não transpiram, podem ter uma queda ou
um aumento de pressão. Tudo muito novo para mim.
Mas, ao mesmo tempo, sabia que estava lidando com
gente, com seres humanos, que no fundo eram pes-

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soas iguais a todo mundo: tinha o preguiçoso, tinha
o esperto, tinha aquele que aprende mais rápido, o
malandro que não quer fazer força, enfim, tudo igual.

Uma das coisas que mais me chamou a atenção foi


uma experiência com um dos rapazes, Baltazar. Ele
tinha 18 anos, lindo. Fazia muito pouco tempo que
estava com a lesão. Se jogou no rio, bateu a cabeça.
Ficou na cadeira de rodas, tetraplégico. A irmã dele,
mais nova, com uns 16 anos, linda também, estava
no grupo só para poder estar com ele. Fiz então um
duo para os dois irmãos, que era uma brincadeira de
roda, cada um em uma cadeira. Ele já era cadeirante,
ela teve que aprender, pois era caminhante. Era óti-
mo, porque ele a corrigia o tempo todo, ensinando
truques com a cadeira. Eles deveriam entrar em cena
fazendo um caminho circular, encontrando-se no 345
centro do palco. Eu queria que ele a cumprimentasse
e fizesse um movimento como se tirasse o chapéu.
Nessa hora, Henrique me chamou e me mostrou
aqueles desenhos do corpo humano, tentando me
explicar por que ele jamais conseguiria executar
aquele movimento solicitado. Eu disse que havia en-
tendido. Voltei ao ensaio e disse para ele: Tem que
trabalhar! Você não está conseguindo fazer porque
é preguiçoso! Precisa treinar! e nem olhei para trás
para ver a reação do Henrique.

Depois de uns dois meses, eles vieram se apresentar


no Centro Cultural São Paulo, na sala Jardel Filho.
Quando cheguei, estavam ensaiando. Entrei pela
plateia e esse menino, Baltazar, de lá do palco, me
avistou e gritou: Luis, olha aí! e fez o movimento que

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eu havia pedido. Com muita dificuldade, claro, mas
revelando todo um esforço que tinha tomado horas
de sua vida. Quando ele me mostrou aquilo, soube-
mos ambos que tinha valido a pena. E Henrique me
acenou de longe, satisfeito também.

Esse foi um momento delicioso para mim. Esse rapaz


deve ter pensado assim com ele mesmo: Filho da mãe!
Você acha que eu não posso? Eu posso. E fez questão
de mostrar. E eu, querendo esconder uma emoção
enorme que me invadia, ainda disse: Isso! Alonga
mais a mão! Ou seja, ainda o corrigi.

***

Também me apresentei, não lembro por qual motivo,


346 num espetáculo com Luciana Porta, uma bailarina
que hoje é do Balé da Cidade de São Paulo. Fizemos
um duo, Promenade, com o segundo movimento
do Concerto para piano em sol maior de Ravel, tão
bonito. Na verdade, comecei pensando que fosse
dançado por Ismael e Luciana. Adorava a distância
das idades, ele de cabelos brancos, Luciana com seu
aspecto tão novo, quase criança. Mas principalmen-
te porque Luciana é fruto puro do trabalho com
Ismael. Ela começou a estudar com ele desde cedo e
possivelmente seja uma das pessoas que mais tenha
assimilado a inteligência e qualidade desse processo.
Acredito que a enorme autocrítica de Ismael não lhe
permitiu esse encontro que acabou não acontecendo.
Pensei na relação entre professor e aluna, em algo
circular, reiterativo. Num primeiro momento, é ele
quem a ensina a caminhar, a dançar. Em seguida, é

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ela quem o ajuda nesse mesmo caminhar. Tenho até
hoje uma foto grande nossa em meu apartamento.

Aliás, essa é uma boa história. Essa foto estava exposta


numa galeria, na frente de um teatro, onde acontecia
um conhecidíssimo festival de dança. Eu havia comen-
tado com Ismael, rapidamente, que tinha gostado
muito daquela foto e que gostaria de ter uma cópia.
Mas foi um comentário assim, sem intenção alguma.

Ismael, então, resolveu me presenteá-la. Mas ele


queria aquela foto e não outra. Procurou saber
quem era o fotógrafo, queria pedir autorização, ou
comprá-la. Tentou de tudo para conseguir o quadro
e nada. Ninguém sabia informar se isso seria possível.
Numa tarde, cansado de tentar por vias normais sua
compra, contando com a ajuda de Roseli Rodrigues, 347
que depois me contou tudo isso, Ismael esperou um
momento em que a galeria estivesse vazia e sim-
plesmente pegou o quadro. Tirou da parede e saiu
gritando para Roseli: Vá na frente, Rô! Veja se tem
alguém chegando! E ela gritava de lá: Ismael! Ismael!!
Pelo amor de Deus, Ismael!!

Com Luciana, fiz ainda um tango, Nuestros hijos. Na


verdade, era um hábito meu escolher um extrato
de um trabalho antigo e adaptar para uma nova
circunstância. Esse, por exemplo, fazia parte de uma
coreografia que eu havia feito para a Cisne Negro
Cia. de Dança, em 1982, chamado Tempo de tango.

Também neste ano de 1996, coreografei um duo


que ainda faço com Gustavo Lopes, um bailarino

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excelente do Ceará. Ele já havia dançado no Ballet
Stagium, depois foi para o Balé da Cidade de São
Paulo e hoje está na Cia. Sociedade Masculina. O duo
se chama Milonga del Angel, e usei a milonga, ritmo
parecido com o tango. Gosto muito de dançar esse
duo, até porque Gustavo é um bailarino excelente.
E apesar de ele ter idade para ser meu filho, no
palco, de longe, parece que ficamos muito próximos
fisicamente, o que, de perto, é o contrário absoluto.
E a gente brinca com essa proximidade física num
duo que fala sobre como alguém se percebe no ou-
tro. Quase como uma conversa no espelho. Sempre
quando um de nós está perdendo o equilíbrio, o
outro o segura. E essas funções se revezam. E um
acaba se reconhecendo no outro.

Tive ainda uma grata experiência nesse ano, algo


inteiramente novo para mim. A pesquisadora Ro-
sana van Langendonck defende sua dissertação de
mestrado no Programa de Comunicação e Semiótica
da PUC/SP, tendo como tema um trabalho meu: Os
bastidores de uma obra coreográfica – A Sagração
da Primavera. Esse texto foi, em 1999, publicado
em livro. A ideia era interessante: a partir de uma
teoria, a Crítica Genética, a autora desvelou todo
o processo de criação da Sagração da Primavera.
Era como se eu não estivesse presente e ela recupe-
rasse todos os meus rastros na feitura dessa obra.
Isso era uma novidade para mim, ser tema de uma
pesquisa de pós-graduação. Estava acostumado
apenas com críticas em jornais, sempre mais curtas
e diretas, por sua própria natureza. Daquela vez,
podia saborear algo diferente, de fôlego, sobre um

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349

No duo Milonga del Angel, com Gustavo Lopes

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processo coreográfico intenso que eu havia vivido
com aquele balé.

***

Em 1997, fui convidado para fazer um trabalho no-


vamente com a Cia. de Dança do Palácio das Artes.
Propus uma criação e eles aceitaram: A noite trans-
figurada, de Schoenberg. A ideia era também fazer
com orquestra. E contei com figurinos maravilhosos
de Rosa Magalhães.

Lembro de algo interessante no processo de mon-


tagem dessa obra: o Palácio das Artes é um teatro
que está no centro de Belo Horizonte, dentro de um
grande parque público. As salas de ensaio têm janelas
350 que dão para esse parque. Naquela época, o horário
da companhia era de uma hora da tarde em diante,
e às vezes chegávamos até as 7 ou 7 e meia da noite.
Então, por volta das 6 horas, começava o crepúsculo,
e podíamos acompanhar todo o escurecimento do
parque lá fora através dos vidros. E Noite Transfigu-
rada fala justamente de algo semelhante.

Durante o dia, íamos trabalhando. E reservávamos


uma meia hora no final do ensaio para passarmos um
corrido da coreografia até o ponto em que tínhamos
avançado. Só que essa hora coincidia justamente
com a chegada da noite, com aquela transição de
luz. Um dia, propus que desligássemos todas as luzes
da sala e que passássemos a coreografia com aquela
luminosidade que entrava pela janela. Os bailarinos
adoraram a experiência e passamos a fazer isso todos

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os dias. Assim, a coreografia começava no entardecer
e terminava no escuro total, porque a queda do sol
era rápida. O mais curioso é que justamente nesse
momento era quando a companhia dançava melhor.
Nenhum bailarino se batia, não havia qualquer atrito
físico. Aparentemente, era uma proposta absurda
aquela minha. Mas tive sorte das pessoas entrarem
no jogo. Claro, a companhia poderia ter se negado a
fazer aquilo, porque, de alguma maneira, eu estava
pedindo algo até perigoso, já que a coreografia tinha
passagens rápidas, algumas dinâmicas violentas.

E eu tive também a sorte de poder contar com


uma ótima assistente – Lydia Del Pichia, que
ficava constantemente ao meu lado. Costumávamos rir
daquela situação, porque não se enxergava nada, só a
silhueta dos bailarinos através da janela. Tudo se trans- 351
formava em oportunidade para aguçar os sentidos,
afinar as percepções. Ficávamos sintonizados todos
numa mesma ação. E isso, para aquela minha dança,
era fundamental. Sem dúvida, o trabalho alcançou
outra qualidade a partir daquele nosso exercício diário.
Um exercício escuro. E passei a acreditar ainda mais
naquela antiga história de que o excesso de luz pode
nos impedir de ver. Que precisamos da escuridão, às
vezes, para poder observar melhor o mundo.

A crítica parece ter apreciado o espetáculo. Primeiro


foi Helena Katz, que assim escreveu para o jornal O
Estado de S. Paulo (26/10/1998): Dentro da escritura
coreográfica de Arrieta, A noite Transfigurada surge
como uma de suas melhores criações. Seguro no ma-
nejo do vocabulário do balé clássico, consegue produ-

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zir combinações que parecem organizar-se em torno
do sopro da respiração, pois pulsam organicamente.

E Marcello Castilho Avellar, para o Estado de Minas,


(29/10/1998), escreveu: Sessões cheias e muitos aplau-
sos. A Noite Transfigurada, densa, contida. Arrieta
apresentou, sob novo olhar, sua já tradicional percep-
ção da realidade como algo metafísico, habitada por
seres que parecem vergar sob o peso de si mesmos e
do universo para, finalmente, encontrarem alguma
forma de libertação… Sob a ótica da interpretação,
aqui é a vez de Arrieta mostrar-se mais surpreenden-
te: a construção e a paulatina transformação da más-
cara facial dos bailarinos em A Noite Transfigurada.

E o ano continuava intenso. Para a Raça Cia. de


352 Dança de São Paulo, fiz a direção do espetáculo De
Minh’Alma, com coreografia de Roseli. Com o grupo
da escola de Lenita Ruschel, de Porto Alegre, fiz Dear
Friend’s, com a música dos Beatles, que depois, nesse
mesmo ano, remontei para o Ballet Ismael Guiser. Fui
para Natal, onde me apresentei com a Luciana Porta.
Fizemos uma série de solos e duos e, entre eles, havia
algumas coisas novas, como La Reveuse, e Spreading.
Havia também um solo que eu dançava, Adagietto,
de Mahler, feito para Flavio Império.

Voltei a tabalhar com o grupo da Roseli, fazendo


um duo para Luciene Munekata e Jhean Allex, um
bailarino muito presente na companhia, uma marca
no grupo. Chamava-se Words Over Water. E para a
bailarina Renata Ruiz, excelente intérprete e pro-
fessora de jazz, fiz um solo com o bolero Pecado,

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cantado por Caetano Veloso. Muito trabalho, enfim.
Mas nada diferente do que eu já estava acostumado.

***

Nessa época, comecei a falar sobre composição core-


ográfica em alguns festivais que me convidavam. Era
uma atividade que me dava prazer, pois me forçava a
sistematizar minimamente o meu ofício, para poder
transmitir aos alunos.

É algo que eu faço a partir do que aprendi com as


pessoas com quem trabalhei. E fui complementando
com textos importantes que falavam sobre compo-
sição, como o de Doris Humphrey. Formatei, então,
um curso teórico-prático.
353

A tal da composição é mesmo engraçada. Está sem-


pre presente, mas se alguém quer procurá-la, ela
desaparece. Existe um mito sobre o que é compor.
Sempre se pensa que é algo ligado a outro mundo,
mas existe o treino, o ofício, a habilidade. Muitas
vezes, logo no começo do curso, pergunto às pessoas
de onde elas vêm. A maioria sempre é de dança.
Mas já tive uma vez um arquiteto, que me disse
que nunca tinha feito dança, nem ginástica, e por-
que tinha visto uma coreografia minha, quis fazer
o curso. Pedi para ele fazer desenhos a partir do
que ia entendendo, já que aquela era a mídia que
ele conhecia. E foi interessante, porque falávamos
de coisas simples, mas em comum, como simetrias e
assimetrias, sucessões e oposições.

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É quase uma ciência, que se desenvolve através do
treino. As pessoas vêm para o curso com fantasias
sobre o que seja compor, às vezes com uma obriga-
ção de ter ideias maravilhosas, ou revolucionárias,
ou inovadoras, logo no primeiro intento. Primeiro é
preciso começar o exercício de compor.

Lembro de uma grande bailarina espanhola, Carmen


Amaya, que, segundo dizem, nunca estudou dança
e mesmo assim foi uma das maiores bailarinas de
flamenco da história. Ela vinha de uma tribo de
ciganos e quando se hospedava em hotéis, sempre
luxuosíssimos, pois era uma estrela, ela e sua família
não tinham a menor compostura, comiam no chão,
sujavam tudo. Claro, eram ciganos... Mas bastava que
ela começasse a dançar, quando arrancava os sapatos,
354 que já fazia parte do show, para que tudo parasse
para assisti-la. Casos de talentos como esse são raros.

Mais comum é que esse talento seja desenvolvido


através de estímulos, que podem estar nesse curso
que ministro, mas que é o próprio exercício do ofício.
Lembro de Kylián, quando demos uma entrevista na
Suíça, dizendo assim: Depois de trabalhar muito, a
gente consegue dois ou três segundos de beleza e
muita dor física, e damos graças a Deus. E ele podia
dizer isso com a boca cheia. Ele conhece profunda-
mente o que está dizendo.

E, nessas conversas, sempre digo: Primeiro, não pense


em inovar e ser bom. Segundo, nem tente não ser
ridículo. Se você, nos ensaios, ou na composição, tenta
o tempo inteiro se esquivar da possibilidade de ser

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ridículo, certamente o será no palco. Assim, é melhor
que o seja aqui. Adoro conversar sobre essas coisas.

***

No novo ano, segui coreografando. A pedido, fiz um


solo curto para Lilia Shaw, uma bailarina do Balé da
Cidade de São Paulo, que hoje integra a Companhia
2. O solo se chamava Principia, e era feito nas pontas.
Para o bailarino Fernando Martins, do grupo de Beth
Dorça, fiz outro solo, Tonada de Luna Llena, com mú-
sica latino--americana cantada por Caetano Veloso.
Esse solo ficou bem conhecido, porque esse rapaz era
extremamente talentoso. Outro solo, agora sobre um
tango bem tradicional argentino, La yumba, fiz para
André Portasio, um bailarino do interior de São Paulo,
muito bonito, que reside em Londres. 355

Novamente, com o Grupo Vacilou Dançou, da Carlo-


ta Portella, fiz Chacona, com música de Bach. Mais
tarde, em 2000, usaria esse mesmo trabalho para o
espetáculo que o Ismael Guiser organizou sobre os
500 anos do descobrimento do Brasil, com partes co-
reografadas por ele, por Ivonice Satie, Rogério Maia
e por mim. A diferença era que usei uma introdução
com gravações autênticas dos índios do Xingu can-
tando, que se misturavam com a chacona, e depois
vinha ainda a Valsa da dor de Villa-Lobos. Isso tudo
tinha uma razão.

A chacona é, curiosamente, de origem americana,


provavelmente nascida no México. Em seu primórdio,
era de caráter jocoso, era cantada e as letras eram

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picarescas. Bem, a chacona atravessou o oceano, en-
trou na Europa, sobretudo na Espanha e na França,
e com isso foi mudando um pouco seu caráter. Rapi-
damente, vários compositores começaram a compor
obras sob sua influência, como Bach, quando ela
chegou também à Alemanha. Sua composição é de
uma profundidade e de uma serenidade dilacerantes.
O solo de violino é puro virtuosismo.

Aí, ouço a Valsa da dor, de Villa-Lobos, compositor


brasileiro. A valsa nasce na região da Áustria e da
Alemanha. A palavra valsa, waltzer, em alemão,
vem do verbo wälzen, cujo significado é girar, dar
voltas. Essa ideia de girar era extremamente alegre,
quase como uma maneira de perder os sentidos: as
valsas vienenses, naqueles salões, verdadeiras caixas
356 espelhadas, iluminadas a vela, com rapé para chei-
rar, champanhe, e os casais girando em velocidade...
o que é isso?

Essa valsa atravessa o oceano e chega à América.


Villa-Lobos compõe a Valsa da dor, uma das obras
mais dolorosas que já ouvi. Então, me perguntei: O
que existia nesse oceano que transformava tanto
estas coisas? Essa era a indagação.

Assim, fiz uma travessia dos bailarinos, a partir de


uma moldura quadrada feita de luz. Era bonito por-
que a estreia foi no Teatro Villa-Lobos e se podia ver
de cima e captar a ideia de travessia que eu estava
propondo. E os bailarinos da Carlota fizeram muito
bem o que solicitei a eles, porque entenderam o que
eu estava trazendo para a discussão coreográfica.

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Com o Balé Teatro Castro Alves, fiz Ponto Vitral,
ainda em 1998. A trilha foi especialmente composta
pelo maestro Gil Jardim, excelente maestro, regente
e compositor de primeiríssima qualidade.

Mais uma vez, quis estudar um pouco sobre o que


estava propondo como material coreográfico: o
ponto vitral, ou o ponto do vidro. O vidro é um
material que não é sólido e nem líquido: seu estado
se chama estado vitroso. E sobre esse estado decidi
fazer a pesquisa.

O irmão do Nelson Pereira dos Santos, José Pereira


dos Santos, nos levou para conhecer fábricas de
vidro, pois ele havia trabalhado muito tempo com
vidro artesanal. Fiquei extremamente emocionado,
sobretudo nessas fábricas que produzem vidro em 357
grande escala, mas que também fazem coisas artesa-
nais. Uma delas construiu peças especiais para nossa
música, como um pau de chuva feito de cristal, com
gotas também de cristal por dentro, para fazer aquele
barulho. E alguns outros instrumentos de percussão
foram feitos de vidro, para compor a cena. E, para
isso, mandou-se construir tudo de cristal trazido da
Alemanha, de empresas que trabalham com instru-
mentos de precisão para medicina. Um requinte.

A trilha era requintada também. Milton Nascimento


e Celine Imbert, por exemplo, cantavam algumas
canções e a percussão era de Naná Vasconcelos. E eles
gravaram tudo com esses instrumentos de cristal. Em
cena, um dos bailarinos dançava com aquele pau de
chuva especialmente construído, sempre com muito

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Ballet do Teatro Castro Alves: Ponto Vitral, de Luis Arrieta

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359

Com o pau de chuva feito de cristal

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cuidado porque poderia quebrar com qualquer pe-
queno golpe. Aliás, uma vez, quebrou. E aí soldaram
com o próprio fogo, algo tão poderoso que derrete
e se cobre de novo.

Mas uma imagem em particular ficou em minha men-


te, quando fomos visitar essas fábricas: um homem
de aparência tosca, muito suado por causa da alta
temperatura, começou a assoprar aquilo e sua mão
imensa fez uma taça de cristal de uma delicadeza
impressionante. Aliás, a prática é impressionante,
porque só se tem um tempo exato, quando se passa
de uma temperatura para outra, o que dura alguns
poucos segundos. Aquilo era movimento. E, a meu
ver, era dança.

360 Nas canções, poemas de Adélia Prado, além das


fantásticas improvisações ao piano de André Meh-
mari. Os figurinos também foram algo especial. Na
verdade, eu já vinha namorando o trabalho dele
há muito tempo. Quando me reuni com o Antonio
Cardoso, para discutir sobre os figurinos, nós dois
abrimos juntos a boca para falar exatamente o mes-
mo nome: Lino Villaventura, estilista de Fortaleza,
que tem base em São Paulo. Sempre achei as roupas
dele extremamente teatrais e depois soube que ele
havia trabalhado com teatro e cinema. Cheguei in-
clusive a ir a alguns de seus desfiles e achava aquelas
roupas lindas. Lembro que fomos com muito receio
conversar com ele, sobretudo no que concernia ao
aspecto financeiro. E ele fez com que tudo fosse
possível, fosse realizável. Entendeu exatamente até
onde o Balé Teatro Castro Alves poderia ir e, depois

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de um tempo, chegou com tudo feito, tudo pronto.
Um criador de primeira.

Com o Grupo Núcleo Artístico, da Marjorie, coreogra-


fei um duo chamado Senhor, meu senhor, com música
de Bach, misturada com música africana. Isso seria o
começo de um trabalho que eu desenvolveria no ano
seguinte, para o mesmo grupo, e que terminou se
chamando Aparecida, mais longo, com mais de uma
hora de duração.

O Balé da Cidade, então sob a direção do diretor te-


atral José Possi Neto, continuava apresentando obras
minhas em turnês pela Europa, da mesma maneira
que o Balé Teatro Castro Alves se apresentava levando
meus trabalhos, sobretudo Noch einmal e Berimbau,
para a Europa e para Nova York. Uma das críticas de 361
dança mais famosas do mundo, Anna Kisselgoff, do
The New York Times (30/07/1998), se manifestou: Luis
Arrieta, argentino, criou dois trabalhos contrastantes
para o programa. O título de Noch Einmal se refere
a um símbolo rodoviário. A peça mostra dançarinos
que, repetidas vezes, parecem sugados para um lado
do palco e forçados a voltar à sua origem sob o som
do Concerto para Violino e Orquestra de Philip Glass.
O trabalho é dramático e pleno de vida, não um mero
exercício minimalista. A imagem predominante é de
uma comunidade atraída pela luz que sai das coxias
à esquerda do palco e que é sempre obrigada a re-
cuar. Como uma cidade hipnotizada por um vulcão
em erupção, que sugere a ira dos deuses ancestrais, o
grupo algumas vezes congela seus movimentos antes
de retornar ao tumulto da dança. O movimento é

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ativo, cheio de rolamentos, saltos e giros. O final é
altamente eficaz, quando um homem nu emerge de
uma pilha de confete em um caminho separado da
plateia por um painel de plástico transparente. Ele
avança em câmara lenta e encontra sua Eva que se
despe e caminha enfeitiçada para ele, entrando num
reino que outros não puderam. A coreografia tem
uma ressonância mítica, uma imagem da humanida-
de fazendo perguntas sobre os mistérios da vida. Sr.
Arrieta deixa espaço para interpretações variadas,
mas permanece no controle de uma estrutura firme,
que reflete a repetição da música, a onda final que
desemboca na terra e também o lirismo do segundo
movimento. Na peça Berimbau, sem um roteiro espe-
cífico e baseada no instrumento de corda usado na
música de Naná Vasconcelos e Egberto Gismonti, o
362 Sr. Arrieta apresenta sete homens que, começando
com os joelhos dobrados e fechados, oferecem uma
performance cheia de energia.

Nesse ano ainda remontei mais uma vez Tempo de


tango para o Ballet do Theatro Municipal do Rio de
Janeiro. Dessa vez, aconteceram dois fatos interessan-
tes para mim: no mesmo programa estava Magnificat,
de Oscar Aaiz, que a companhia já havia dançado
anos atrás; e minha irmã Pochi e seu marido Jacinto,
de viagem para Buenos Aires, ficaram alguns dias
comigo no Rio. Conversaram muito com Ana Botafo-
go, que adoraram, e em companhia de Renée Wells,
fizemos um belo passeio ao Pão de Açúcar, um lugar
que eu já tinha levado meus pais há muitos anos, e
que sei que provoca em todos um deslumbramento
indescritível. Pochi e Jacinto estavam especialmente

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felizes. Maduros e jovens. Essa seria a ultima vez que
veria meu cunhado.

***

Ainda em 1998, Ismael foi convidado para fazer um


espetáculo para participar das comemorações do
quarto centenário de São Paulo. Resolve, então, fazer
Memória 400/44, que se referia claramente ao Ballet
do IV Centenário.

Desta vez, ele me convidou para que participasse dan-


çando. E deveria ser, nada menos que representando
o papel de Aurel von Milloss, coreógrafo e diretor
húngaro, responsável pelas montagens da histórica
companhia de balé paulistana.
363
Construí aquele personagem a partir das conversas
com Ismael, que havia trabalhado diretamente com
Milloss. Busquei complementar com dados em foto-
grafias, em registros como programas e cartazes. Mas
era Ismael quem me dava o tom mais exato. Afinal,
sua vinda ao Brasil foi respondendo ao convite de
Milloss, depois de ter trabalhado com ele na Itália.
Ismael veio como solista, por um período muito
curto, lamentavelmente. Mas extremamente rico. E,
segundo me contava Ismael, o que o Milloss carecia
de um certo ofício do movimento, sobrava em cultura
e riqueza de informação. Ele era um diretor de espe-
táculo, mais do que especificamente um coreógrafo.

Na tentativa de parecer minimamente com o perso-


nagem, eu dançava usando lentes de contato brancas,

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porque diziam que ele tinha olhos azuis claros. A
estreia foi no Sesc Belenzinho. Lembro de algumas
senhoras que haviam sido bailarinas do VI Centenário
e que, quando o espetáculo terminou, vieram me
abraçar, extremamente emocionadas. Elas me diziam:
Eu vi o Milloss hoje aqui. Fiquei um pouco assustado
com aquilo. Mas satisfeito também.

Foi um espetáculo que gostei muito de fazer. Eu já


havia dançado algumas coisas de Ismael, sobretudo
em espetáculos de sua escola. Uma vez ele coreo-
grafou uma canção de Wagner chamada Träumen,
que eu dançava com Ana Maria Mondini. Adorava
fazer aquilo. Primeiro porque a música era belíssima
e segundo porque a Ana era tão linda... E terceiro
por causa de meu amigo Ismael.
364
***

O maestro Gil Jardim fez um espetáculo no Sesc Pom-


peia, que se chamava Café com leite, abordando mu-
sicalmente o período histórico que ficou conhecido
como período café com leite, envolvendo São Paulo
e Minas Gerais. Já estávamos em 1999.

As músicas eram maravilhosas. E iam desde Inezita


Barroso, Cesar Camargo Mariano, até Arnaldo An-
tunes. Todos, à sua maneira, refazendo os temas
daquela época. A direção ficou a cargo de Márcio
Aurélio e fiquei incumbido de fazer as coreografias.
Chamei três bailarinos, Luis Ribeiro, que havia sido
bailarino do Ismael, da Cisne Negro Cia. de Dança
e hoje é professor da Escola Municipal de Bailado

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de São Paulo e um dos pianistas mais capacitados
e sensíveis para acompanhamento de aulas que co-
nheço, Beth Risoléu e Luciana Porta. Enquanto eles
dançavam, o grupo Uakti tocava. O espetáculo era
belíssimo. Aliás, todos os trabalhos com o maestro
Jardim foram sempre muito interessantes, pois eram
de um requinte musical fantástico.

Coreografei também pequenas peças, dedicadas


especialmente aos bailarinos para quem criava. Para
Daniela Steck, que era do grupo de Ismael e Cladimir
Kaminsky, fiz Clair de lune, de Debussy. Para a bai-
larina Simone Pietro, fiz um outro tema daquele CD
do Caetano Veloso cantando em espanhol, chamado
La golondrina, quase um hino mexicano de meados
do século 19. Para Jhean Allex, do Raça, fiz Principia
365
H, e essa letra H diferenciava do Principia que eu já
havia feito para Lilia Shaw. Também para o grupo
da Roseli Rodrigues, fiz um pequeno duo chamado
Valse, música do Paulo Jobim.

Nesse ano de 1999, Ivonice Satie, que assumia nova-


mente o posto de diretora do Balé da Cidade, criou
a Companhia 2, iniciativa que achei maravilhosa. A
ideia era reunir os bailarinos mais maduros da com-
panhia, para que trabalhos fossem criados especial-
mente para eles. Algo no sentido que Kylián havia
feito no Nederlands, na Holanda. No início, não sei
se todos compreenderam bem a proposta. Possivel-
mente alguns ficaram sentindo que estavam sendo
chamados de velhos. Depois entenderam o sentido
de tudo e embarcaram na proposta.

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Ivonice propôs uma criação quase no fim do
ano, e convidou a mim, Henrique Rodovalho,
Anselmo Zolla e o coreógrafo alemão Olaf
Schmidt. Fiz Spreading, que escolhi para remontar.
Era um solo que eu dançava, e que naquela ocasião
foi feito por Maurício Martins ou pela Lumena Ma-
cedo, que se revezavam. Usei uma música africana,
Kutambarara. E o figurino era uma batina, porque
queria fazer uma citação de algo totalmente ecumê-
nico. Na cabeça, era usado um casquete. Esse figurino,
mesmo sendo tão simples, tinha história.

A batina usada era de padre mesmo. Eu havia ga-


nhado de minha amiga Sonia Cavalcanti. A família
dela tinha uma pequena chácara em São Paulo, e
num determinado momento decidiu vendê-la. Essa
366 chácara tinha uma pequena capela. Ao se desfazer
de tudo, Sonia consultou um padre para saber o que
deveria fazer com as coisas dessa capela. Ele, então,
orientou que ela podia ficar com todos os objetos,
que não haveria problema nisso. A única coisa que
ele deveria fazer era retirar a pedra ungida com
óleo que estava embaixo do altar. E disso sobraram,
por exemplo, as batinas, todas rendadas, lindas, que
acabaram ficando comigo. Na coreografia, uso essa
batina como se fosse uma peneira. Com o uso de uns
confetes, compus movimentos desenhando todo um
espaço circular, que indiciavam o gesto de semear,
remetendo ao título da peça.

E o casquete era todo bordado à mão, em pedrarias


e lantejoulas, pelo próprio Ismael Guiser, na época
em que ele fazia os shows da Rhodia. Ele deveria ori-

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ginalmente nos remeter ao Charleston, mas acabou
virando um casquete de orixá, porque cobria os olhos.
Mais ecumênico, impossível. Tinha que se dançar
praticamente cego, porque as continhas brilhavam
com a luz que incidia sobre elas.

Nesse ano, o Sesc Pinheiros fez um evento que se


chamava São Paulo Dança Moderna, organizado por
Cassia Navas e Marize Mathias. Numa das palestras,
Ismael Guiser era homenageado e foi feita uma en-
trevista com ele, num teatro muito pequeno, para
poucas pessoas. Me apresentei com Ave Maria. E
fechei o ano homenageando um amigo.

***

No início do ano 2000, passei por uma experiência 367


muito difícil. Fiquei internado em estado muito grave
por mais de um mês. Voltei para casa muito debilitado
ainda, em grande depressão.

Num ímpeto de me fazer sair daquele estado, minha


amiga Ivonice, sempre muito antenada em mim, sem-
pre muito solidária, teve uma atitude que só um artista
poderia ter em relação a outro artista: me propôs
trabalhar! Foi fantástico. Foi uma redenção. Ela me
disse: Luis, preciso que você venha fazer um trabalho
com a Companhia 2. Não se preocupe com a estreia. Vá
fazendo no seu tempo e vá aos ensaios apenas nos dias
que você puder. E quando se sentir mal, vá embora. Só
me avise um pouquinho antes para poder organizar o
ensaio da companhia de outro jeito. Quando a gente
achar que está pronto, a gente estreia. Combinado?

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Eu poderia negar? Eu poderia negar esse pedi-
do que iria me salvar? Jamais. Era uma questão
de sobrevivência. A arte me colocando novamente no
prumo. Um novo prumo. Mas absolutamente vital.

Foi muito difícil no início. Afinal, estava trabalhan-


do com um elenco que ainda não tinha superado a
recente formação da Companhia 2. Parecia que só
Ivonice tinha ali a capacidade da compaixão.

Fiz um trabalho que gosto muito, chamado No porão,


que foi apresentado no porão do Centro Cultural
São Paulo, um lugar horrível, sujo. Fizemos dele um
espaço lindo: 900 metros quadrados só para se dançar.
Em cena, apenas oito bailarinos.

368 Era um mergulho em meus porões. E os artistas


envolvidos entenderam a gravidade disso. E me
ajudaram fazendo o melhor que eles podiam. Usei
música gravada e música tocada ao vivo, por um trio:
piano, percussão e cello, sob a regência de Gil Jardim.
Dos bailarinos, apenas um eu não conhecia, Miguel
Angel Cragnolini, argentino que estava passando
um ano por aqui, amigo de Ivonice, que haviam se
conhecido em Genebra, e hoje mora na Itália. Todos
os outros eram meus velhos conhecidos: Andréa
Maia, Armando Aurich, Áurea Ferreira, Beth Risoléu,
Lilia Shaw, Maurício Martins e Paulo Goulart Filho.
Naquela época, Olaf Schmidt estava dando aulas
para o Balé da Cidade. Na primeira apresentação,
Armando Aurich se machucou. Como Olaf havia fi-
cado sentado num canto da sala por muitos ensaios
durante a montagem, incorporou-se rapidamente e

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sem atrito ao elenco. Eram bailarinos todos da mesma
faixa etária, mas, principalmente, com experiências
e histórias próximas, o que acabou concedendo uma
unidade ao trabalho.

A cena era toda construída sem uma frente definida.


O público, de não mais de 200 pessoas, ficava coloca-
do em todos os cantos, em pequenas arquibancadas
especialmente montadas. Esse foi um trabalho que
gostei muito de fazer e que me ajudou a superar
aquele momento tão difícil.

E escrevi no programa:

Debaixo desta casa presente habita um subsolo


eterno.
Espaço de memórias e de raízes. 369
O tempo me fatiga o voo
E me lança a um cansaço
Que me lança à terra
Que me abraça e me absorve e me submerge
Jazo sobre a grama de um jardim que cai sem fim
na noite subconsciente.
Porão, ventre, canto.
Sob o piso, o tapete de dança, a roupa e os sapatos.
Quarto úmido abismado na alma.
Catedral submersa.
Cofre enterrado.
É a sesta, a manhã ou a tarde. Sempre será porão.
Casa de cegos que revela olhos mais subterrâneos
em mim…
Habitam-no ecos de passos e o canto de um pássaro
sem voo.

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Velas piedosas povoam-no de sombras, mais escuras
e profundas ainda.
Monstros, dores e raivas se arrastam por seu piso e
golpeiam seus pilares.
Aqui – sopa de escuridões – gera-se o impulso da vida
Que farejando como um cão
Busca a migalha de luz
Que goteja por uma rachadura.
Aqui, eu me encontro e me resgato.
Recobro a vida.
E quiçá o amor.

Ana Francisca Ponzio escreveu para a Folha de S.


Paulo (10/11/2000): Nesta sua mais recente criação,
Arrieta faz de um palco incomum, montado nos
porões do CCSP, um dos atrativos do espetáculo.
370
Lidando inventivamente com os limites do espaço
cênico, interrompido por arestas e colunas, o co-
reógrafo promove um jogo que revela e esconde
imagens. Como sempre, Arrieta tira partido de dois
pontos fortes de suas criações – o lirismo e a fanta-
sia. Escapando das articulações lógicas, ele compõe
cenas afinadas com estados interiores, interpretadas
por personagens que parecem emergir de espaços
recônditos da imaginação.

Decidi, então, que o melhor mesmo era me lançar


com todas as forças ao trabalho. E, assim, nesse mes-
mo ano, fui para Campo Grande, no Mato Grosso do
Sul, conhecer uma companhia com quem eu nunca
havia trabalhado, a Ginga Cia. de Dança, dirigida por
Renata Leoni e Chico Neller.

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A partir de um personagem muito especial na cultu-
ra deles, concebi um trabalho chamado Conceição
de todos os Bugres. Conceição Freitas da Silva, uma
senhora de família muito simples da cidade, teve um
sonho determinante: a mistura dos povos, índios,
brancos e negros, se transformando em bugrinhos,
que nasciam da raiz da mandioca. Na verdade, esses
bugres representavam o caráter miscigenado dos
mato-grossenses-do-sul.

Nesse sonho, havia a determinação que ela começasse


a esculpir esses bugrinhos. E era explicado o modo
exato de como fazê-los: como escolher a madeira e
de onde tirar a cera das abelhas. A partir de então,
Conceição dedicou toda a sua vida a essa atividade,
que passou a ser sua profissão. Com isso, criou seus
filhos. E o bugre se tornou um símbolo artesanal de
371
Campo Grande. Hoje, eles são feitos em muitos ta-
manhos diferentes, e de diversas maneiras por seus
netos. A repercussão é tanta que esses bugres já esti-
veram em várias exposições pelo mundo. Não cheguei
a conhecê-la. Infelizmente, ela já havia falecido. Mas
fui à sua casa e falei com seus filhos.

Fizemos, então, Conceição de todos os Bugres, mis-


turando músicas de Marlui Miranda com Bach. Em
cena, 14 bailarinos. Entre eles, Beatriz de Almeida,
linda bailarina que vinha de uma carreira internacio-
nal sólida. Uma experiência muito interessante. Nas
apresentações, muita gente se aproximava dizendo
que pressentia a presença de Conceição. Tinha rela-
to de gente que afirmava tê-la visto atravessando
o palco. Depois fiquei sabendo que ela era espírita.
Seguramente, devia estar mesmo andando por ali.

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Em 2001, fiz meu primeiro trabalho com a dupla Ana
Botafogo e a pianista Lilian Barretto. Dividindo co-
migo a tarefa da coreografia, estavam Heron Nobre
e Renato Vieira, e a direção ficou a cargo de Cláudio
Botelho. O espetáculo se chamava Três momentos do
Amor, e contava com os bailarinos Joseny Coutinho
e Bruno Cezário, mais tarde substituído por Edyfrank
Alves, todos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Fui também convidado a trabalhar com a Companhia


Jovem de Ballet do Rio de Janeiro, dirigida por Dalal
Achcar e Mariza Estrella. Muitos deles eram menores
de idade, verdadeiros talentos em estado de potência.
Hoje em dia muitos desses bailarinos estão fazendo
ótimos trabalhos por diversas companhias do país.
372
A coreografia era Um longo e sinuoso caminho. A
música era uma versão barroca dos Beatles pelo ar-
ranjador Peter Breiner, que resultou no CD Beatles
Go Baroque. John Lennon e Paul McCartney apare-
ciam, então, no estilo de Bach, Haendel e Vivaldi. Os
figurinos eram de Rosa Magalhães.

Lembro que quando apresentei a música para os


bailarinos sabia que, para muitos, tratava-se de
uma primeira apresentação mesmo, já que não ti-
nham nunca ouvido alguma coisa dos Beatles. Eles
tinham 14 ou 15 anos, e eu falava de uma música
da década de 1960, do tempo dos pais ou até dos
avós deles. Alguns deles começaram a ouvir aquela
música e ficaram encantados. E isso foi estimulante
para mim e para eles.

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Esta também foi uma oportunidade de trabalhar
com Maria Angélica Fiorani, que eu já conhecia dos
festivais, nada além disso. Ela é uma argentina, que
estudou e dançou no Ballet do Teatro Colón e que
hoje vive no Rio de Janeiro, dando aulas no Centro
de Dança Rio. Sem dúvida nenhuma, trata-se de
uma das melhores professoras atualmente no Brasil.
Trabalhar com ela foi um prazer. A energia dela e o
modo como ela conseguiu cuidar do meu trabalho,
sempre com muito entusiasmo, foram gratificantes.

Outra nova companhia pública acabava de se formar


no país: o Corpo de Dança do Amazonas. Quem as-
sumiu a direção foi Jofre Santos, que eu conhecia do
Ballet Stagium e depois do Teatro Castro Alves. Ele
já havia dançado alguns dos meus trabalhos, como 373
Noch einmal, Mandala e Orixá. Ao assumir, ele me
chamou para montar Mandala com a companhia,
que era formada praticamente por bailarinos de lá.

Chamei novamente Afonso César para fazer os


figurinos, e optamos por fazê-los diferentes dos
originais. Cada uma das saias era num modelo
especial, com desenhos inspirados na cúpula do
Teatro Amazonas, que imitava escamas dos peixes.

Um dia, me levaram para conhecer esse belíssimo


teatro por dentro, e pude observar de perto aquelas
escamas, num formato retangular com uma parte
arredondada, superpostas umas as outras. São peças
feitas na Europa e trazidas para cá, como, aliás, quase
tudo no teatro.

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Nosso trabalho coreográfico não foi dos mais fáceis.
Mandala era uma obra difícil para uma companhia
que estava iniciando. Mas eles entenderam que de-
veriam defender aquilo com unhas e dentes e o resul-
tado acabou ficando muito bom. Acredito que foi o
grande salto da companhia para o profissionalismo.

De Manaus direto para Belo Horizonte. Fiz a versão


completa de Aparecida para o Camaleão Grupo de
Dança, dirigido por Marjorie Quast. O crítico da
cidade, Marcello Castilho Avellar, escreveu para O
Estado de Minas (21/05/2001): “Em Aparecida, Ar-
rieta explora os seus próprios limites. O coreógrafo
argentino radicado no Brasil trabalha, essencialmen-
te, sobre bases clássicas. É um verdadeiro mestre das
coreografias de influência neoclássica, propondo fre-
374 quentemente uma leitura latino-americana da criação
de Balanchine e discípulos. Pensa o corpo de seus
bailarinos à maneira balanchiniana, acrescentando à
influência dois toques pessoais: paixão de intensidade
raramente encontrada no papa do neoclassicismo, e
conceito contemporâneo de relações no espaço que
se contrapõe à visão moderna que marca a encena-
ção balanchiniana. Aparecida desafia os limites de
Arrieta porque exige dele a proposição de estruturas
corporais que fogem radicalmente da base clássica em
que quase sempre se apoia. O desafio é enfrentado
de maneira magistral.”

***

No fim de 2001, comecei os contatos com o Balé


Teatro Guaíra, para fazer uma nova versão de O

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Grande Circo Místico, a convite de Suzana Braga,
que estava dirigindo a companhia. Ao meu lado,
estaria Rosa Magalhães assinando os cenários e
os figurinos, e Joyce Drummond, a iluminação. Na
verdade, comemorava-se 20 anos da versão original,
reunindo Edu Lobo e Chico Buarque na trilha, Naum
Alves no roteiro e Carlos Trincheiras na coreografia.
Era, sem dúvida, uma experiência importante para
todos, porque muitos deles tinham participado dessa
primeira versão.

Dani Lima, coreógrafa carioca, ensinou a técnica das


partes aéreas da coreografia, usando cordas, tecidos
e aros, que os bailarinos aprenderam rapidamente,
com ótimo resultado. Edu Lobo fez também novas
passagens musicais, a partir das necessidades da mi-
nha concepção. Aliás, gostei muito de conhecê-lo. Ele 375
entendia rapidamente o que eu propunha e criava a
partir do tema original. E todo o balé apresenta uma
história muito especial que quase não é uma história,
mas uma sucessão genealógica de circunstâncias. A
estreia foi no ano seguinte e, daí em diante, a com-
panhia viajou muito apresentando esse espetáculo.

Durante muito tempo, recebi cartas, cartões, e-mails,


bilhetes, de muitas pessoas do Brasil todo, onde ia
sendo encenado o Circo. Cada um me contava sua ex-
periência ao assisti-lo, o que me fazia muito bem. Não
estava mais só. Um dia, no final de um espetáculo em
que eu estava presente, cumprimentando as pessoas
na saída dos artistas do teatro, uma pessoa deu-me
um abraço, um beijo, e disse assim, brincando: Você
faz tudo isso para ganhar muitos abraços e beijos.

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A equipe do Grande Circo Místico: Dani Lima, Edu Lobo,
Luís Arrieta, Luiz Stein, Mauro Zanata, Naum Alves de
Souza e Rosa Magalhães

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Fiquei pensando a noite nessas palavras. Senti-me
quase descoberto.

Preciso dizer que a presença da Rosa foi fundamental


para mim. Ela vinha com retalhos de tecidos, expu-
nha cores, texturas, tudo em uma infinita variedade
para se escolher. Mas o que mais me encantava era
a disponibilidade dela para entrar na viagem que
eu estava propondo. Só uma pessoa extremamente
criadora tem a facilidade e a segurança de se entregar
à proposta de alguém.

Nessa época, ela estava programando sua mudança


de um apartamento muito bonito no Rio de Janeiro,
grande, antigo e, como acontece com todo cenógra-
fo, também cheio de coisas. Estava procurando um
novo lugar para morar, algo ainda maior, talvez uma 377
cobertura. Ao visitar uma dessas coberturas, lá de
cima avistou, espremida entre dois prédios, uma casa
grande, bastante deteriorada, e bem escondida. Ficou
tão encantada que acabou comprando essa casa, con-
sertando um pouco e se mudando para lá. O curioso
foi que, na hora de assinar a escritura, ela descobriu
que o primeiro proprietário daquela casa havia sido o
Oscarito. E ficou felicíssima com isso. E eu dizia a ela:
Rosa, só podia ser mesmo para você essa casa.

***

Em 2003, tive a oportunidade muito agradável de


fazer um solo para uma bailarina daqui de São Paulo,
Ruth Rachou, um nome importante da dança mo-
derna, e que naquele momento já era uma senhora.

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Fiz um trabalho curto, de oito minutos, A Promessa.
Trabalhamos sobre uma milonga argentina, muito
antiga, chamada Milonga triste, numa releitura feita
pelo genial Astor Piazzolla.

Eu havia conhecido a Ruth quando cheguei a São


Paulo. Naquela época, queria fazer um pouquinho
de aula fora da companhia, fazer um pouco de téc-
nica moderna de Martha Graham e ela era um dos
principais nomes dessa vertente. Como não tinha
dinheiro, ela sempre me abriu as portas de sua aca-
demia de forma muito generosa. Depois de tanto
tempo, a gente se reencontrava, agora numa nova
relação, de coreógrafo e bailarina. Esse encontro foi
uma solicitação dela a Vera Lafer e, então, o Studio
3 patrocinou nosso contato.
378
Nesse mesmo ano, Antonio Cardoso me convidou mais
uma vez para fazer um trabalho com a companhia
do Teatro Castro Alves. Resolvi fazer um trabalho a
partir de Achalai, feito com a Raça Cia. de Dança de
São Paulo. Essa nova versão, de uma hora e meia de
duração sem intervalo, ganhou também um outro títu-
lo, Uaikuru, uma palavra quíchua, que significa índio.

A proposta cênica era nova para a companhia. O


público ficava no palco também, em arquibancadas,
que formavam uma semiarena, deixando apenas o
lado que dava para a plateia vazio. Aquele teatro
enorme permitia esse tipo de coisa. O trabalho co-
meçava com os bailarinos sentados com o público,
nessas arquibancadas, vestidos como pessoas comuns.
Aos poucos, vão invadindo o palco, dançando e

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despindo-se. E descobrindo a origem uaikuru deles.
E terminam com os corpos nus, pintados de muitas
cores, parecendo deuses indianos. Movimentar-me
como índio era quase como voltar às minhas danças
da infância. E eu me sentia à vontade nesse universo.

Antonio Cardoso, também excelente fotógrafo, fez


todo um trabalho muito interessante com fotografias
de diversos materiais, como sementes, gramas, flores,
pétalas, folhas, algas, conchas, pedaços de cascalhos
de areia, sempre recuperando diversas texturas de na-
tureza. Essas imagens eram projetadas sobre o chão,
pois o público via de cima da arquibancada. Aliás, o
público estava muito perto dos bailarinos, em con-
tato quase direto com eles. E à medida que eles iam
se despindo e tornando-se índios, as imagens iam se
tornando paralelepípedos, asfaltos, sinais de trânsito. 379

No programa, Antonio comentava: ... Ao fotografar


a companhia de dentro do palco, percebi como era
rico assistir a um espetáculo estando bem próximo
aos bailarinos, vendo e sentindo suas emoções com
maior intimidade. Me dei conta quanto se perde de
detalhes ao assistir espetáculos em grandes teatros,
especialmente em obras mais íntimas. Na mesma épo-
ca li um texto de Peter Brook falando desta proximi-
dade e da importância do ator ver e sentir o público.
Decidi, então, partilhar com vocês estas experiências.

O trabalho, com música de Marlui Miranda, tinha mi-


xagem de canções de Mercedes Sosa, além de música
ao vivo, mais uma vez dirigida por Gil Jardim, com
excelentes músicos de Salvador.

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Ballet do Teatro Castro Alves: Uaikuru, de Luis Arrieta

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Ballet do Teatro Castro Alves: Uaikuru, de Luis Arrieta

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O espetáculo terminava com os bailarinos atraves-
sando a quarta parede, dançando pelas poltronas
do teatro, até que se sentavam e, durante um bom
tempo, já sem a música, eles ficavam assistindo ao
público que havia ficado no palco.

Foi um prazer todo o tempo de montagem. Eu não


queria mais que ele terminasse. Além de um elenco
muito envolvido, contava com duas assistentes de
primeira: Lílian Pereira, que dançou quase tudo que
montei na companhia, e Simonne Rorato, possivel-
mente a mais envolvida colaboradora que tive.

Em 2004, Anselmo Zolla do Studio 3, me convidou


para fazer algo para Daniela Stasi, hoje assistente da
São Paulo Companhia de Dança, além de excelente
professora da técnica de Martha Graham já que dan- 383
çou por muito tempo na companhia dela em Nova
York. Fiz um solo com a dança russa do balé O lago
dos cisnes, que ela fez belissimamente.

Pouco depois, Roberto Lima, do Ballet do Theatro


Municipal do Rio de Janeiro e também diretor da
Companhia de Ballet da Cidade de Niterói, entrou em
contato comigo para me propor que eu fizesse mi-
nha versão da obra Carmen para eles, seguindo uma
sugestão da mestra Eugenia Feodorova sobre a obra.

Muitas vezes recebo convites para fazer trabalhos


cuja ideia eu proponho. Mas, às vezes, recebo tam-
bém convites com uma ideia já estabelecida. Algumas
vezes são dicas, como as de Hulda Bittencourt, da
Cisne Negro Cia. de Dança, quando fiz Do homem ao

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poeta, que desejava um trabalho que ninguém saísse
do palco, e que pudesse ser levado facilmente para
todos os lugares. Ou deseja-se um trabalho para abrir
um espetáculo. Ou um trabalho para fechar. Ou um
trabalho curto, ou só para tais solistas. Com temas
previamente definidos, ou com a trilha já composta,
ou que ainda não foi composta, ou já tem o roteiro,
ou uma nova versão de algo que já existe, enfim, uma
variedade imensa. E sempre achei isso muito rico. São
pontos de partida diferentes. E o interessante é que
acabo sempre encontrando uma maneira de me apai-
xonar por aquilo. Porque me é impossível criar sem
me apaixonar. Às vezes acredita-se que só podemos
nos apaixonar por uma ideia que seja nossa. Isso não
é verdade. E desse modo também aprendo coisas que
nem tinha pensado em aprender e me lanço a um
384 universo praticamente novo para mim.

Desta vez, a proposta era fazer Carmen, e tive que


me apaixonar por esse projeto, o que não foi algo
difícil de acontecer. Primeiro porque tenho sangue
espanhol de meu pai e também porque me criei perto
de gente andaluza. Aquilo, de alguma forma, fazia
parte de meu universo.

Eu conhecia uma versão musical interessante de


Carmen já há muitos anos. Tinha até o longplay disso,
que tanto apreciava. Na verdade, essa versão era do
marido da bailarina russa Maia Plissetskaya, o regente
e compositor russo Rodion Shchedrin.

Ele selecionou alguns dos momentos mais dançantes


da ópera de Bizet, e retrabalhou esses extratos para

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orquestra de cordas e percussão apenas. Nada muito
longo. Algo em torno de 40 minutos. O resultado é
fantástico. Com interferências de Paulo de Sarasate,
Isaac Albéniz e Jacques Brel, minha versão da obra
completava uma hora de duração.

Decidi apresentar a história de maneira didática.


Usei quatro cores muito definidas para marcar cada
segmento: o grupo de vermelho era formado por
Carmens, os de azul, Dons Josés, as Micaelas, verde,
os toureiros, amarelo. Aliás, nessa minha versão não
existe toureiro, mas jogadores de futebol, uma ideia
que vinha de um filme brasileiro, de Cacá Diegues, Veja
essa canção, de 1994. Em um dos quatro episódios,
chamado Pisada de elefante, baseado numa canção de
Jorge Ben Jor, a história de Carmen é transposta para
a realidade dos subúrbios cariocas. O personagem do 385
toureiro, por exemplo, é um jogador de futebol, e isso
sempre ficou marcado em minha lembrança.

Curiosamente, esse espetáculo, apesar de não ter


cenas de nu, foi taxado pela própria secretaria de
cultura da cidade como inconveniente para menores
de 14 anos. Isso era uma novidade para mim, confes-
so. Mas minha concepção, realização e interpretação
do elenco eram de extrema sensualidade, como não
poderia ser de outra maneira para essa história.

Paralelamente à montagem de Carmen, no mesmo


período, Dalal Achcar estava criando o espetáculo
Superbacana – Dançando a Tropicália, com sua Com-
panhia Jovem de Ballet que, naquela época, passou
a se chamar Cia. Jovem Elpaso de Dança, devido ao

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Cia. De Ballet da Cidade de Niterói: Carmen, de Luis
Arrieta

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387

Cia. De Ballet da Cidade de Niterói: Carmen, de Luis


Arrieta. Acima, Janete Guenka e abaixo, João Batista,
Mariana Mesquita, Luís Kerche e Carla Moita

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Cia. De Ballet da Cidade de Niterói: Carmen, de Luis
Arrieta

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patrocínio que havia recebido da empresa homônima.
Era um trabalho com vários coreógrafos: Carlinhos de
Jesus, Ivonice Satie, Renato Vieira, Tíndaro Silvano, a
própria Dalal e uma outra moça jovem, Janice Bote-
lho. Cada um coreografou três ou quatro canções. A
mim me tocaram quatro: Geleia real, Retreta, Coração
e Deus vos salve esta casa santa. A direção ficou a
cargo da dupla Cláudio Botelho e Charles Möeller,
sempre sob a supervisão geral de Dalal.

Eu ficava pela ponte Rio-Niterói, dividido entre haba-


neras e canções tropicalistas. Fiz esses dois trabalhos
tão distintos, mas, ao mesmo tempo, tão prazerosos.

Nesse ano também, presenteei o Balé Teatro Castro


Alves, com uma peça curta de pouco mais de dez
minutos, o trio Sostenuto, com o Concerto no 2 op.18 389
em dó menor de Rachmaninov, mais precisamente
aquele famoso adágio. Depois remontei esse mesmo
trio para o grupo Divina Dança.

Ainda tive tempo para conhecer uma nova compa-


nhia nesse ano de 2004, a Companhia de Danças de
Diadema, uma cidade do interior paulista. Em seu
início, foi dirigida por Ivonice Satie e naquele mo-
mento Ana Bottosso estava ocupando o cargo. Para
eles, fiz Sala de espera, um trabalho bastante teatral.
Tudo se passava numa sala de espera. Mesmo quando
as pessoas estão simplesmente sentadas, esperando,
existem movimentos gritando dentro de seus corpos.
Era como se o espectador tivesse a possibilidade de
enxergar esses movimentos, enxergar o que o corpo
quer dizer por dentro. Um trabalho lento e difícil.

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Cia. De Danças de Diadema: Sala de Espera, de Luis
Arrieta. Acima, plano geral e abaixo em destaque Cinthia
Nisiyama e Tony Siqueira

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Acima, Fernando Machado e abaixo Thais Lima, Manuela
Fadul, Alessandra Fioravanti e Ana Bottosso

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Cia. De Danças de Diadema: Sala de Espera, de Luis Arrieta.
Acima, Milton Coatti e Manuela Fadul, abaixo, conjunto

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A companhia ensaiava na sala do Teatro Municipal
de Diadema que, justamente naquela época, iniciou
um processo de reforma. Eles ficaram sem casa para
poder trabalhar. Propus, então, que ensaiassem na
escola do Ismael Guiser. Na verdade, Ismael sempre
abriu as portas de sua escola para todo o mundo,
independentemente do estilo de dança. O grupo veio
e passou a aproveitar também as aulas de técnica de
balé com ele.

Interessante que os bailarinos, ao final desse processo,


acabaram apaixonados pelo trabalho do Ismael. Algo
curioso, porque Ismael tinha um estilo muito acadê-
mico. Mas os bailarinos perceberam a importância
de ter uma estrutura para permitir produzir algo em
dança, seja que estrutura fosse e que dança fosse. Re-
sultado: Ismael passou a ser professor da companhia
393
até o momento em que faleceu. Ele ia para Diadema
dirigindo seu carro, duas vezes por semana. Confesso
que sempre me deixa muito satisfeito a chance de
proporcionar esses encontros.

Nesse mesmo ano, aconteceu um evento chamado


Personalidades da Dança no Teatro Municipal de
São Paulo, juntando pessoas importantes da área,
sobretudo da capital paulista. Me apresentei dançan-
do Milonga del angel com Gustavo Lopes. Em outro
evento, Panorama Sesi de Dança, dancei o solo Cisne.
Nesse mesmo dia, falei numa pequena conversa com
o público sobre a relação homem e dança. Abordei,
sobretudo, o fato de um homem da minha idade
ainda estar dançando. Foi interessante porque, em
seguida, voltei a fazer o Cisne já com roupas de rua,
explicando um pouco como era composto o trabalho.

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O fato de eu fazer aula nesta minha idade deixa ainda
muita gente impressionada. Perguntam se o faço para
manter a forma. E ficam ainda mais desorientadas
quando confesso para elas que eu simplesmente
gosto de dançar.

***

O Studio 3 me convidou novamente para trabalhar


com eles. Propus, então, um duo com Ivonice Satie,
que criamos juntos. Foi um prazer fazer isso com ela.
Chamava-se Conjunção. E já estávamos no ano de 2005.

Usamos uma música de Olivier Messiaen que eu já


havia usado no trabalho No Porão, da Companhia
2 do Balé da Cidade. São músicas recorrentes, que
394 gosto de experimentar em épocas diferentes, sob
novos olhares e circunstâncias.

Sempre dancei com Ivonice. Desde o princípio, ela


sempre esteve presente em minha dança. Quando
éramos mais novos, quando éramos bailarinos. Mas
também de outras formas, quando éramos assis-
tentes, quando éramos diretores de companhias...
enfim, sempre dançamos juntos. E aquela chance que
tínhamos era mesmo uma conjunção. Uma conjunção
extremamente feliz.

Nós dois sempre fomos fanáticos por precisões. Ali,


apesar de ser coreografia de nossa autoria, sabí-
amos exatamente que tal coisa deveria ser em tal
momento, em tal lugar e em tal ângulo e não nos
permitíamos sair daquilo que havíamos proposto.

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Ao mesmo tempo, sempre tivemos a sensação de que
estávamos improvisando. A razão disso era que um
corpo estava extremamente amalgamado no outro.
Algo raro. Sempre fico feliz quando me lembro desse
momento. E não pensava que ia perdê-la tão cedo,
apenas três anos mais tarde.

Nesse espetáculo, a cada apresentação, convidáva-


mos um bom fotógrafo, que deveria fotografar o
duo de cima do palco. Ele deveria nos acompanhar,
não o tempo inteiro, mas estar por perto. Em alguns
momentos ele se afastaria, ficaria atrás da coxia. Em
outros, estaria em cena com a gente.

No início, os fotógrafos convidados ficavam tímidos. E


nós insistíamos que eles avançassem. Queríamos pro- 395
vocar uma outra situação para eles. Porque mesmo
que eles aproximassem a lente com o zoom, não era
como estar ali, em cena. E, para nós, funcionava como
se fosse uma situação flagrada por aquelas pessoas.
E isso nos provocava na questão do movimento, sem
dúvida. Para esse projeto, contamos com o apoio da
Vera Lafer, que eu havia conhecido há muitos anos,
quando fazia aula no Stagium.

Outro duo que fiz em 2005 foi Felicidade numa flor


de campo, para Andrea Pivatto e Alessandro Nasci-
mento, um jovem muito talentoso. Logo em seguida,
comecei a me preparar para uma viagem à Alemanha.

***

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Olaf Schmidt, com quem eu já havia estado em alguns
momentos, e que inclusive tinha feito uma partici-
pação em uma coreografia minha, No porão, mora
na pequena e linda cidade de Regensburg, perto de
Munique, onde dirige uma companhia.

Anualmente, nessa cidade, produziam um evento


chamado International Aids-Tanzgala, um encontro
de dança para o combate à Aids. Nesse ano, o evento
seria dirigido ao Leste Europeu, um dos lugares mais
problemáticos do mundo em relação à doença.

Esse encontro acontecia em dois locais: num pequeno


teatro da cidade e num antigo velódromo, que hoje
é uma tenda, onde são apresentados espetáculos
inteiros, com uma infraestrutura invejável.
396
Lá, apresentei meu solo, Cisne, e também ensaiei
com Olaf para que dançasse comigo minha Milonga
del ángel. Cheguei uns três dias antes e ensaiamos.
Eu tinha 54 anos e ele deveria ter no máximo 44.
Era, como eu, um senhor. Um homem muito bonito,
alto, bem alemão, com aqueles maxilares marcados,
loiro, forte, enfim, um homem bonito. E um bonito
bailarino também. Ficou interessante o duo, agora
com os dois senhores.

O programa tinha de tudo um pouco, reunindo


convidados de várias partes do mundo. De reper-
tório clássico à dança contemporânea. Tudo de
muita qualidade. Mas fiquei feliz com um detalhe:
após assistirem aos nossos ensaios, os organizadores
decidiram por fechar o espetáculo com meu Cisne.

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E realmente foi um estrondo quando acabei de
dançar. Recebi uma ovação.

Mas o mais curioso ainda estava por vir. Já aqui no


Brasil, recebi de Olaf uma crítica sobre o espetáculo.
Era assim: Um especial ‘highlight’ foi o pas-de-deux
Milonga del ángel, com Olaf Schmidt e Luis Arrieta,
que o diretor do Ballet de Regensburg e a estrela
argentino-brasileira dançaram sobre música de As-
tor Piazzolla. A peça, de uma incrível simplicidade e
ao mesmo tempo fortemente convincente, nos faz
esquecer num só golpe todas as figuras maneiristas
e convencionais. Há apenas uma semana atrás, o
Vaticano classificou outra vez a homossexualidade
como perigosa aberração da natureza. No sábado,
foi apresentado para os moradores da cidade natal
do papa quanto incrivelmente bela essa perigosa 397
aberração pode ser.

O autor do texto, publicado no jornal MZ Regensburg


(20/11/2005) era Florian Sendtner. Não pude deixar de
achar essa pequena polêmica no mínimo saborosa. Eu e
o papa, confrontados. Mesmo que meu duo não repre-
sentasse, de forma alguma, uma relação homoafetiva.

***

No ano seguinte, 2006, fui agraciado com o Prêmio


Funarte de Dança Klauss Vianna, uma novidade para
mim. Não estava acostumado a apresentar projetos
em editais de dança, porque eles dão um trabalho
enorme de papéis e documentos que nem sempre
estou disposto a enfrentar.

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Na verdade, aquela era a terceira vez que eu ganha-
va algo semelhante. A primeira havia sido a Bolsa
Vitae. Depois recebi uma bolsa da Rede Stagium,
então dirigida por Cássia Navas, com o projeto de
coreografar o Carnaval dos animais. A intenção era
iniciar os ensaios em 1999, para me apresentar em
2000. Mas devido ao processo difícil pelo qual passei,
o projeto acabou não vingando.

Então, com esse Prêmio Funarte de Dança Klauss


Vianna, fiz questão de acabar o que havia começa-
do com o Carnaval dos animais. Era uma dívida que
eu tinha e que queria saldar, sobretudo com Cássia,
que soube tão bem compreender a situação que eu
atravessara na época.
398
Além desse trabalho, fiz um espetáculo inteiro chama-
do L. A. Dança, um trocadilho que me parecia evidente,
que recuperava as iniciais do meu nome e, também,
sonoramente, dava o sentido do artigo feminino da
língua espanhola. Infelizmente, poucas pessoas enten-
deram isso. Achei que ia ser óbvio, mas não foi.

Quando ficou pronto, apresentei no Teatro Sesc


Anchieta, um teatro que simplesmente adoro. Era
novembro de 2006. Dançava durante uma hora sem
parar. Mesclei coisas que já tinha feito antes com
outras novas. Por exemplo, começava com um solo
de Sanctus, Ave Maria. Tinha partes de A Promessa,
que eu tinha feito para Ruth Rachou. Tinha o solo
Tango. Enfim, uma revisitação clara às minhas obras.
Uma revisitação feita por mim. Para mim.

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Carnaval dos Animais, de Luis Arrieta, 2006. Dança: Luís
Arrieta

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Carnaval dos Animais, de Luis Arrieta, 2006. Dança: Luís
Arrieta

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Eu me trocava no próprio palco, porque tudo era
interligado. Para acompanhar os ensaios e toda essa
maratona por trás do palco, contava com Ana Verô-
nica Coutinho, querida bailarina de tantos trabalhos
meus e que agora me assistia em tudo e me cuidava
como um filho. E terminava com o Carnaval dos
animais, que dura meia hora, e que tinha coisas com
meu tipo característico de humor.

Numa certa altura do espetáculo, eu tinha que tirar


toda uma roupa e colocar outra, o que me custava pelo
menos uns três minutos. Tudo ia acontecendo com uma
certa densidade, uma característica do meu trabalho.
Até que um pequeno e crescente foco de luz vai reve-
lando, no meio do palco, um bujão de gás, branco. E
se escuta a gravação inteira, belíssima, de Nelson Frei-
402 re tocando Pour Elise de Beethoven. Aquilo era uma
piada. Mas nem sempre as pessoas riam, porque não
entendiam como piada. Claro, era a música utilizada
aqui em São Paulo pelo caminhão do entregador de
gás, para avisar as pessoas que estava passando na rua.
Mas as pessoas não riam. Ficavam olhando sérias aquele
bujão ali, branco, todo sério também.

De certa forma, eu pretendia preparar um pouco o


humor do público para o Carnaval dos animais, que
apesar de não ser engraçado, era irônico. Mas o es-
petáculo todo era puxadíssimo fisicamente para mim.
Até porque nunca fui um atleta. Sempre dancei mais
pela alma do que pelo corpo.

E quando tinha que cuidar um pouco mais do meu


corpo, sempre encontrei pessoas que tratam da

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alma, como Silvio Camargo, terapeuta que trabalha
com cura prânica, e que me ajudou a restabelecer o
equilíbrio perdido, e Marcos Gabanini, fisioterapeuta,
acupunturista, massagista, um amigo.

***

Depois reapresentei esse trabalho na pequena Sala


B do Teatro Alfa, onde aconteceu uma coisa muito
interessante. Os dias que me foram ofertados foram
terças e quartas-feiras. Sem esquecer que era lá no
Alfa, um teatro muito distante... dentro da cidade
de São Paulo. No meu primeiro dia de apresentação,
aconteceu uma coisa extremamente significativa:
ensaiamos toda a tarde, preparamos tudo, até por-
que é um trabalho um tanto complexo cenicamente.
403
Quando estava tudo pronto, quase na hora de come-
çar, o Fernando Guimarães, diretor do teatro, veio a
mim, todo constrangido, dizendo que só haviam duas
pessoas para me assistir. E me deixou à vontade caso
eu não quisesse me apresentar. E eu respondi: Eu vou
fazer o espetáculo. E foi uma experiência incrível,
inédita para mim: o que é preparar algo e não vir
ninguém para assistir?

Eu poderia estar contando uma outra história. Mas


essa é a verdade. Mas o mais fantástico ainda viria:
quando fui me colocar ao palco, todo o pessoal da
técnica do teatro, mais ou menos umas seis ou sete
pessoas, ou seja, três vezes mais que o público que eu
tinha, veio e me disse assim: Nós vamos assistir, Luis.
E se sentaram numa fila, e eu fiz a dança para eles.

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L.A. Dança, de Luís Arrieta. Dança: Luís Arrieta.
Acima: A promessa e abaixo: Tango

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L.A. Dança, de Luís Arrieta. Dança: Luís Arrieta.
Acima: Ave Maria e abaixo: Tango

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L.A. Dança, de Luís Arrieta. Dança: Luís Arrieta.
Acima: Carnaval dos Animais e abaixo: Tango

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Esta foi uma experiência muito difícil para mim. Mas
enriquecedora, em muitos aspectos. Naquele momen-
to, me senti extremamente sozinho. Mas, ao mesmo
tempo, reconfortado por aquelas pessoas que, na
verdade, não tinham mais nada a fazer ali no teatro.
O trabalho deles já tinha sido encerrado.

Saí diferente depois dessa noite. Não se sai a mesma


pessoa de uma situação dessas. Mas, de certa forma,
senti orgulho de mim mesmo, por ter enfrentado
aquela situação da única maneira que sabia: dançando.

Nos outros dias, até que o público foi aumentando,


mas nunca chegou a lotar aquela pequena sala, de
apenas 199 lugares. Isso era início de dezembro. E
fazia parte do acordo que eu deveria cumprir, ou
seja, um tanto estipulado de apresentações, exigidas 407
pelo edital que eu havia ganhado.

Depois apresentei extratos em outros lugares, já que


o espetáculo todo era muito complexo cenicamente e
pedia um custo alto de produção. Num evento ideali-
zado por Eliana Pedroso em Salvador, chamado Maior
de quarenta, reunindo bailarinos maduros, levei Ave
Maria. Isso foi em outubro de 2006. O texto dessa
música é fantástico. Trata-se da Sinfonia nº 3, opus 36,
segundo movimento. Na verdade, os três movimentos
são com andamentos muito próximos, cantados por
uma soprano. Nesse segundo movimento, o texto
utilizado tem uma história comovente.

Górecki foi visitar um antigo quartel da Gestapo na


Polônia e lá uma prisioneira jovem, que havia sido

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mandada para a câmara de gás, escreveu na parede:
Oh, mãe, não chore por mim. Virgem Santa Castíssi-
ma, Puríssima, proteja-me sempre, Ave Maria. Ela as-
sinou e datou. Quando viu isso, o compositor polonês
ficou muito impressionado e decidiu usar esse texto
no segundo movimento. E eu tentei recuperar, de
alguma forma, todo esse espírito, coreograficamente.

Em 2007, um evento de dança organizado em Indaia-


tuba, interior paulista, quis prestar uma homenagem
a Ana Botafogo. Convidaram-na, então, para apre-
sentar o pas-de-deux de Romeu e Julieta de Tchai-
kovsky com Marcelo Misailidis, que assinava aquela
versão. Para completar o programa, convidaram
outros bailarinos para se apresentar na mesma noite.
Propus, então, e a Ana achou interessante, que nós,
eu e ela, fizéssemos o Cisne juntos. Eu faria a minha
408 versão e Ana faria ao mesmo tempo A morte do cisne,
com coreografia original de Fokine.

O resultado ficou interessantíssimo. Como sou grande


e Ana miúda, a imagem era insólita. Eu de costas como
um regente, ela surgia como um pássaro branco do
meu paletó. No final, como num passe de mágica, su-
mia coberta pela minha casaca. Muito bonito. Além de
estar em cena um coreógrafo e uma primeira-bailarina.

Ainda em 2007, reapresentei mais uma vez Carnaval dos


Animais na Galeria Olido, que também me solicitou que
fizesse algo de caráter didático. Propus, então, fazer o
Carnaval dos animais, com uma parte inicial em que
eu explicava um pouco como foi elaborado o trabalho.

Pude, nessa ocasião, contar o que penso sobre cada


uma das partes que dançava. E enquanto falava, ia

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me aquecendo, tirando a roupa e me vestindo. Não
parava um segundo sequer. Quando contava sobre o
cisne, trazia um pouco da mitologia para o público, e
relacionava o cisne com o universo apolíneo. Depois,
claro, lembrava que a música era conhecida, sobre-
tudo através da obra A morte do Cisne, de Fokine,
do início do século 20, que não apenas imortalizou,
mas representou todo um pensamento de dança que
nascia naquele momento. Acho que foi um momen-
to especial para mim, porque ao sistematizar tudo
aquilo, aprendia sempre coisas novas.

Para a entrada da galeria, onde são realizadas expo-


sições, convidei Antonio Carlos Cardoso para fazer o
registro fotográfico do espetáculo, e exibi-lo ali, pois
admiro muito seu trabalho.
409
***

Em 2008, aconteceram coisas importantíssimas em


dança em São Paulo, cidade que eu havia escolhido
para viver o resto de minha vida. Para mim, a prin-
cipal delas foi a comemoração dos 40 anos do Balé
da Cidade de São Paulo, companhia fundamental no
meu processo de amadurecimento artístico.

Para essa ocasião, Mônica Mion, sua diretora, me


convidou para criar uma pequena peça. Pensei em
umbral, com música de Olivier Messiaen, o último
movimento do Quarteto para o fim dos tempos.
Aproveitava para comemorar também o centenário
de nascimento do compositor, cuja obra esteve tão
presente em minhas coreografias.

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Remontei também, para a mesma comemoração,
La valse. Fiz a versão original, como pas-de-deux,
e uma outra, um octeto. Na verdade, era a mesma
coreografia dividida entre quatro casais. E as versões
se alternavam: um dia apresentávamos como pas-de-
deux e noutro como octeto.

Helena Katz escreveu para O Estado de S. Paulo


(15/05/2008): O segundo ato é de Luis Arrieta. A dis-
tância histórica que separa as duas obras aqui reunidas
(La Valse é de 1992 e umbral está estreando) instala
uma perspectiva de longo alcance no seu percurso
coreográfico. La Valse é toda voltada para fora, no seu
enfileiramento de competências a serem demonstradas.
A excelente versão de Liris do Lago e Israel Alves explora
com muita qualidade aquela exteriorização exacerba-
da que pontua a dança de salão. Talvez percebendo
410
o baile potencial que La Valse embutia, Arrieta criou
também uma outra montagem para quatro casais. A
nova produção, umbral, com o Oitavo movimento do
Quarteto para o Fim dos Tempos, de Olivier Messiaen
(1908-1992), deixa muito claro o domínio de Arrieta
sobre o métier de fazer coreografias. É como se ele
expusesse sua facilidade em cortar, encurtar, dobrar e
desdobrar o movimento em combinações que parecem
brotar naturalmente delas mesmas. Uma coreografia
que puxa um fio e ele vai distendendo a sua forma. Uma
forma que lembra os organismos em transformação: o
que se vê contém o que já esteve e o que ainda virá a
estar. Em umbral, o requinte é outro, mas se mantém
o mesmo traço de exterioridade de uma dança que é
para fora. Andréa Thomioka, Dielson Pessoa e Wagner
Varela tonalizam a química precisa para que as passa-
gens surjam e os trânsitos se façam. É um trio e tanto.”

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Mas o mais emocionante foi o encontro realizado no
dia 10 de maio, no Sesc Vila Mariana, reunindo os
diretores que haviam passado pela história do Balé da
Cidade. Estavam presentes Antonio Carlos Cardoso,
Iracity Cardoso, José Possi Neto, Júlia Ziviani, Mônica
Mion, sua atual diretora, Rui Fontana Lopes e eu. Ivo-
nice já estava muito doente e não pôde comparecer.
E foram lembrados os que já haviam falecido: Johnny
Franklin, Klauss Vianna e Marília Franco. Era uma
consagração. Um momento, sem dúvida, histórico.
Nesse mesmo dia, à noite, eram apresentados umbral,
o novo trabalho, e La valse, que voltava ao palco.

***

Eu tinha um sonho que me atrevo a contar aqui.


Pensava que, se Ivonice melhorasse, gostaria de fazer 411
uma versão de Trindade comigo, com ela e Mônica.
Algo que essas duas mulheres experientes poderiam
fazer muito bem. Mantendo estritamente a compo-
sição original, trabalhar unicamente com o essencial
de cada movimento. Tenho anotado isso em algum
papel sobre minha mesa: Ivonice, Luis e Mônica. Era
essa a versão que queria fazer. Não deu tempo.

***

Um pouco antes disso, mas nesse ano ainda, Umberto


Silva, que tinha acabado de assumir o cargo de asses-
soria de dança da Secretaria Municipal da Cultura,
antes ocupado por Iracity, me deu uma grande alegria,
convidando-me para dançar na abertura da Virada
Cultural de São Paulo. Na verdade, essa foi uma das

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poucas coisas que ele teve tempo de organizar dentro
desse projeto, porque, logo em seguida, viria a falecer.
Senti uma dor enorme, porque era mais um colega
que havia ido embora. Trabalhei com ele, dancei com
ele, dancei coreografias dele, ele dançou coreografias
minhas. E ele não seria o único no ano. Uma tristeza.

A Virada Cultural é um evento que acontece faz alguns


anos em São Paulo, extremamente importante, reu-
nindo espetáculos de dança, música popular e erudita,
teatro, circo, performance, tudo. Eles usam teatros,
espaços ao ar livre, instalações, esquinas, qualquer
recanto debaixo de uma marquise é um lugar em po-
tencial. São 24 horas ininterruptas de apresentações
abertas ao público, gratuitas. Um esbanjamento de
proposta cultural que enriquece, que contribui.
412
Eu já havia participado indiretamente de uma edição,
com uma obra minha que alguma companhia havia
apresentado. Mas, desta vez, eu era convidado a me
apresentar, abrindo a programação de dança. Isso
foi no dia 26 de abril. Havia um palco grande, que
ficava no Vale do Anhangabaú, e que comportava as
apresentações das companhias de dança, por exem-
plo. Minha apresentação seria nele.

Um pouco antes disso, houve uma apresentação no


Teatro de Dança, antigo Teatro Itália, em homena-
gem a Ivonice Satie, que já não estava bem de saúde.
Me apresentei com Ave Maria. Foi um momento emo-
cionante, porque ela estava presente. Aliás, estava
todo mundo da dança. Foi um encontro maravilhoso,
todos querendo de alguma forma participar, queren-

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do deixar testemunhados a consideração, o respeito
e a admiração que tinham por Ivonice.

Na manhã desse dia 26, dia da Virada Cultural, Ismael


Guiser faleceu. Ismael estava com 81 anos, ele era
de 1927. Capricorniano, nascido no dia 8 de janeiro.

Ele já vinha com algumas alterações em seu estado


de saúde. Não tinha nenhuma afeição especial por
médicos e nem se dedicava muito para se cuidar. En-
tretanto, uma semana antes de falecer, já estava um
pouco assustado. Havia passado mal, fez uma série
de exames que não acusaram nada. Nesse dia 26, teve
uma parada cardíaca e não resistiu.

A notícia me deixou completamente desnorteado.


Fiquei sem reação. Minha apresentação era às seis 413
da tarde. Enquanto outras pessoas ajudavam com as
tramitações de papéis, liberação do corpo, organiza-
ção do velório, eu estava me apresentando. Era assim
que eu poderia ajudar naquele momento.

Foi uma experiência fortíssima. Eu vinha carregado


do impacto da morte de meu amigo e quando subi
ao palco para abrir o espetáculo, com o crepúsculo da
tarde, avistei uma multidão de mais de 60 mil pessoas.
Nunca tinha visto algo assim antes em toda minha
vida. E uma multidão que estava em um silêncio ini-
maginável. Enquanto me movimentava, pensava no
Ismael, homenageava-o da maneira que podia. Ao
mesmo tempo, pensava em todas aquelas pessoas
que nunca tiveram a oportunidade de entrar num
teatro e que estavam me vendo naquele momento.

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Eu abri com o Cisne. Ao acabar, fiz uma reverência e
dei a entrada para a apresentação do segundo ato
do balé Giselle, pelo Ballet do Theatro Municipal do
Rio de Janeiro, tendo Ana Botafogo à frente. Aquilo
tudo para um público que, possivelmente, não tem a
possibilidade de pagar para ir a um teatro, mesmo a
preços populares. Experiência extremamente forte.

E, para mim, uma contradição engraçada: ter dançado


para apenas duas pessoas no Teatro Alfa e pouco tem-
po depois para 60 mil. Uma vida cheia de reviravoltas.

***

Acompanhei o velório de Ismael. Tive a sorte de poder


chorar muito, de me desafogar. Até hoje, essa lem-
brança ainda me deixa bastante comovido. Apesar de
414
eu ter um lado racional, que me faz tomar consciência
de que ele não está mais aqui, às vezes sucumbo a
um esquecimento. Tenho essas coisas com a tal da
razão. Ela demora a entender as coisas.

Ontem mesmo, estava dando um aquecimento para


a Ana Botafogo, depois de termos ensaiado o espe-
táculo Suíte Floral, que seria apresentado em instan-
tes. Não sei por que motivo, Ana disse assim: Vamos
dançar essa noite para o Ismael... E eu pensei: Ótimo!
Maravilha! Porque Ismael adorava a Ana. Quando
cheguei ao hotel, num instante pensei: vou ligar para
o Ismael para contar... Não cheguei a desenvolver o
pensamento. Algo me invadiu e disse: Não, você não
vai fazer isso.

***

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Eu me ofereci para me apresentar na Mostra de
Dança Contemporânea do Festival de Joinville em
2008. Esperei que me convidassem, mas como vi que
isso não iria acontecer, resolvi me oferecer. Disseram,
então, que gostariam de me homenagear no festival
e eu disse que não queria homenagem, queria apenas
que me deixassem dançar.

Lembro muito de algo que ouvi de Mercedes Sosa,


há muitos anos. Ela se apresentou aqui no Ginásio do
Ibirapuera e eu nunca tinha visto um show dela ao
vivo. O rapaz que fazia a técnica do espetáculo era
um argentino que eu conhecia, e ele me convidou
para assistir. Entramos pela porta de trás e ficamos
conversando. Quando ela chegou e me ouviu con-
versando com o argentino, me perguntou: Você
faz dança? Adoro dança. Sou muito amiga de Oscar 415
Araiz. Continuando a conversa, perguntei: E como
está Buenos Aires? Ela respondeu: Não consigo can-
tar em Buenos Aires. Eles não me proíbem. Só que,
quando organizo um show, umas duas horas antes
de começar, sempre chega a polícia federal e diz que
existe uma denúncia de bomba e que o show deve ser
cancelado. E encerrou dizendo: Ai, Luis, eu só quero
que me deixem cantar... E começou a chorar copio-
samente. Veio o assistente dela, ajudou-a, colocou
o poncho e praticamente a empurrou para o palco.

Ela então me disse que ficasse ali, que assistisse do


palco mesmo, numa cadeira colocada especialmente
para mim. E perguntou: Que canção você gosta? E
eu: Ah, lembra aquela... Azul provinciano, de Pancho
Cabral? Eu canto para você, disse ela.

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E diante dessa lembrança, eu dizia para Joinville: Me
deixem dançar! Não preciso de homenagem, preciso
apenas, e sobretudo, dançar.

***

Cheguei hoje à tarde do Rio de Janeiro. Chegar em


casa é sempre um porto seguro para mim. Gosto da
minha casa, espaçosa e luminosa. Aqui me espera,
uma vez na semana, Ivone dos Santos, minha empre-
gada e minha amiga, que tem minha idade. Apre-
endemos a nos conhecer, a nos escutar. E são de sua
autoria os bolos e pudins que me deixam sempre feliz.

A estreia do espetáculo da Ana foi especial, como


sempre. Fico essa semana em São Paulo e na semana
416 que vem vou para Belo Horizonte, para terminar um
trabalho com o grupo de Marjorie Quast sobre O
herói de mil faces, de Campbel, também com música
de Oswaldo Montenegro. O espetáculo comemora os
30 anos da escola Núcleo Artístico e dele participa
também o Camaleão Grupo de Dança.

É um espetáculo que Marjorie faz reunindo todos


da escola e o resultado é sempre muito interessante.
Participam jovens que fazem balé, alunos de jazz, de
dança de salão, de dança de rua. Aliás, um menino
de dança de rua me deixou absolutamente impres-
sionado com sua graça. Seu nome é Gustavo Durso.
Ele mostrou para mim uma sequência com todos os
movimentos daquela dança. Pedi, então, que ele
repetisse aquilo tudo, mas como se fosse em câmera
lenta. Como se fosse um adágio. E foi lindo. Aquilo

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se transformou em um solo. Terminei o ano de 2008
experimentando novidades. Dança de rua: eu posso?

***

Ainda em Buenos Aires. Nossa família morava numa


rua perto de uma família andaluza, como já contei lá
no comecinho do livro. Contei também sobre Adela,
filha dessa família que tinha a mesma idade que eu.
Hoje, depois de muitos anos em Buenos Aires, volta-
ram a morar em Málaga e Adela é uma mulher ligada
à política de lá. Lida com projetos culturais e organi-
zações em defesa dos direitos humanos na Espanha.

Havia um clube que distava dois quarteirões de


nossas casas que, na verdade, era uma sociedade
417
assistencialista argentina. Uma associação de bairro
que promovia, de vez em quando, um baile para
aposentados, coisa bem suburbana, para angariar
fundos para alguma causa social.

Na verdade, não se podia falar que aquilo era um


clube. Era mesmo uma casa velha adaptada como
clube. Mas tinha lá um pequeno tabladinho. Lembro
que era dia da criança e não havia nada programado
para acontecer por lá. Eu ainda nem sonhava em
fazer dança. Mas Adela me instigou: Vamos progra-
mar algo? Então, ensaiamos nós dois uma dança,
vestimos uma roupinha cheia de flores amarradas e
nos apresentamos: era Tico-tico no fubá, de Zequinha
de Abreu. Já estava escrito que o Brasil fazia parte
do meu destino. Inexoravelmente.

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Luis Arrieta em São Paulo, 2001

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Referências bibliográficas
ALVARENGA, Arnaldo. “A Companhia de Dança do
Palácio das Artes” In: Corpos artísticos do Palácio
das Artes: Trajetória e Movimentos. Belo Horizonte:
Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais,
Fundação Clóvis Salgado, 2006

BOGÉA, Inês. Figuras da dança: Luis Arrieta, São Pau-


lo: São Paulo Companhia de Dança, 2009

FARO, Antonio José e SAMPAIO, Luiz Paulo. Dicio-


nário de balé e dança, Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1989

KATZ, Helena. O Brasil descobre a dança descobre o


Brasil, São Paulo: Dórea Books and Art, 1994 419

NAVAS, Cássia (org.). Balé da Cidade de São Paulo:


Formarte, 2003

_____________ Cisne Negro: 30 anos de vida na dança.


São Paulo: Retrato Editora, 2006

NORA, Sigrid. Dança e cultura: A experiência do


Grupo de Danças Raízes, Caxias do Sul: Lorigraf, 2003

PEDROSO, Eliana e MELO, Nice (orgs.). Carlos Moraes:


dança. Salvador: Secretaria da Cultura e do Turismo,
2004

SUCENA, Eduardo. A dança teatral no Brasil. Rio de


Janeiro: Minc/Fundacen, 1988

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WERNECK, H. e NAVAS, C. 1o Ato / Grupo de dança
1o Ato, Belo Horizonte: Banco Rural, 2002

Sites:
www.helenakatz.pro.br
www.stagium.com.br
www.baledacidade.com.br
www.apca.org.br
www.dalalachcar.com.br
www.teatrosanmartin.com.ar/ballet
www.theatromunicipal.rj.gov.br/ballet

420

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Obra Completa

2010
• O Canto do Cisne Negro
H. Villa Lobos (O Canto do Cisne Negro)
Figurino: Angélica Chaves - Iluminação J. Drummond
e L. Arrieta – 4´
Criado especialmente para Luis Arrieta

2008
• La Valse (versão para 4 casais)
M. Ravel (La Valse)
Cenário: Renata Schussheim e L. Arrieta - Figurino: L.
Arrieta - Iluminação: L. Arrieta – 13´

• Umbral
O. Messiaen (Quarteto para o fim dos tempos / Lou- 421
vação à Imortalidade de Jesus)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: Wagner Freire
Balé da Cidade de São Paulo – 12´

• Suíte Floral
H. Villa-Lobos (Idílio na Rede - Suíte Floral)
P. I. Tchaikovsky (Abril, Outubro, Agosto – As Estações
/ Apenas um Coração Solitário)
A. Vivaldi (Verão, 3º Mov. / Inverno, 2º Mov.)
G. Gershwin (Summertime – Porgy and Bess)
T. Jobim (Águas de Março)
T. Jobim / V. de Moraes (Eu sei que vou te amar)
A. Piazzolla (Outono Portenho, Inverno Portenho, Prima-
vera Portenha - As quatro estações portenhas)
direção geral L. Arrieta, com Ana Botafogo, Lilian
Barretto e Helio Bejani
Cenário: L. Arrieta - Figurino: Bianca Marques –

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Iluminação: P.C. Medeiros
Criado especialmente para A. Botafogo, L. Barretto
e J. Coutinho / Rio de Janeiro – 55´

• As Mil Faces do Herói


O. Montenegro (As Mil Faces do Herói – especial-
mente composta)
Direção Artística: L. Arrieta - Direção Geral: M. Quast
– Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta, arquivo Nú-
cleo Artístico e elenco – Iluminação: Bruno Rodrigues
Núcleo Artístico – Camaleão / Belo Horizonte – 60´

• Luiza
T. Jobim (Luiza)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação:
L. Arrieta
422 Criado especialmente para Inês Amaral e Lena Maia/
Belo Horizonte - 3´

2007
• Carnaval dos Animais (processo de criação e foto-
grafias de A.C. Cardoso)
C. Saint Saëns (Carnaval des animaux)
Cenário: L. Arrieta - Figurino: L. Arrieta - Iluminação:
Joyce Drummond e L. Arrieta
Criado especialmente para L. Arrieta - 50´

• O Cisne (com A Morte do Cisne, de Michele Fokine)


C. Saint Saëns (Carnaval des animaux / O Cisne)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação:
L. Arrieta
Criado especialmente para Ana Botafogo e L.
Arrieta – 3´

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2006
• Carnaval dos animais
C. Saint-Säens (Carnaval des animaux)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Joyce Drummond
Criado especialmente para L. Arrieta – 25´

• L.A. Dança (criado especialmente para, dirigido,


adaptado e interpretado por L. Arrieta)
Cenário: L. Arrieta - Figurino: L. Arrieta e Vs. – Ilumi-
nação: Joyce Drummond e L. Arrieta – 60´

Sacro
Sanctus - D. Fanshawe (Call to Prayer)
Cenário: VT Lau Delgado - Figurino: L. Arrieta
Ave Maria - H. Górecki (Sinfonia nº 3 opus
36, Segundo movimento) 423
Cenário: VT Lau Delgado – Figurino: Rosa Magalhães
Spreading - D. Maraire (Kutambarara)
Cenário: VT Lau Delgado – Figurino: Sonia Cavalcanti

Profano
A Promessa - S. Pianna e H. Manzi (Milonga
Triste)
Cenário: VT Lau Delgado - Figurino: L. Arrieta
Tango - R. Mederos (Todo Ayer)
Cenário: VT Lau Delgado - Figurino: L. Arrieta
Interlúdio - L. van Beethoven (Für Elise)
Cenário: L. Arrieta
Carnaval - C. Saint-Säens (Carnaval des animaux)
Cenário: L. Arrieta / L. Delgado – Figurino: L. Arrieta
/ Sonia Cavalcanti

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2005
• Conjunção
O. Messiaen (Quatuor pour la fin du temps 8º
Movimento)
Figurino: Walter Rodrigues - Iluminação: Joyce Drum-
mond e L. Arrieta
Criado especialmente para Ivonice Satie e L. Arrieta – 10´

• Felicidade numa flor do campo


B. Douglas (Heaven in a Wild Flower)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para A. Pivatto e A.
Nascimento – 5´

2004
• Dança Russa
424
P. I. Tchaikovsky (Dança Russa - Lago dos Cisnes)
Figurino: Carlos Mielle - Iluminação: Joyce Drummond
e L. Arrieta
Criado especialmente para Daniela Stassi – 5´

• Carmen
G. Bizet / R. Shchedrin (Carmen Ballet)
P. de Sarasate (Carmen fantansie op.25)
I. Albéniz (Astúrias)
J.Brel (Ne me quitte pás)
Cenário: Marcos Arruzo/LA - Figurino: Ricardo Rocha/
LA - Iluminação: Paulo C. Medeiros e L. Arrieta
Companhía de Ballet da Cidade de Niterói / Rio de
Janeiro – 55´

• Tropicália
C. Velloso (Geléia real)
G. Gil (Retreta / Coração / Deus vos salve esta casa santa)

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Roteiro e direção: D. Achcar / C. Botelho – Cenário:
Charles Muller – Figurino: Charles Muller – Ilumina-
ção: Paulo C. Medeiros
Cia. El Paso de Dança / Rio de Janeiro - 60´

• Sostenuto
S. Rachmaninoff (Concerto nº 2 op.18 em dó menor
– adagio sostenuto)
Cenário: L. Arrieta - Figurino: Simmone Rorato –
Iluminação: L. Arrieta
Ballet Teatro Castro Alves / Salvador – 12´

• Sala de Espera
G. Crumb (Makrokosmos III)
P. Glass (Concerto p/ violino e Orq. Segundo Movimento)
L. van Beethoven (Sonata14 op.27 nº 2 – Segundo 425
Movimento)
A. Le Pera / C. Gardel (El día que me quieras)
J. Rial / G. Barbieri (Rosa de otoño)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação:
William Figueiredo e L. Arrieta
Cia. de Danças de Diadema / São Paulo – 60´

2003
• Uaikuru
Adaptação de repertório indígena M. Miranda (Ihu)
A.Ramirez e F. Luna (Antiguo dueño de las flechas)
Incidental e regência de G. Jardim
Cenário: L. Arrieta – Figurino: Zuarte Junior – Ilumi-
nação: Heckel Hohlenwerger e L. Arrieta
Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 90´

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• A Promessa
S. Piana e H. Manzi (Milonga Triste)
Cenário: L. Arieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação:
Joyce Drummond e L. Arrieta
Criado especialmente para Ruth Rachou – 8´

2002
• O Grande Circo Místico
E. Lobo e C. Buarque (O Grande Circo Místico)
Roteiro: Naum Alves de Souza – Cenário: Rosa Ma-
galhães – Figurino: Rosa Magalhães – Iluminação:
Joyce Drummond
Balé Teatro Guairá / Curitiba – 100´

• Na Cadência do Samba
C. Eller (Na Cadência do Samba)
426
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para Andréa Pivato – 4´

2001
• Três Momentos do Amor
A. Piazzolla (Libertango / Invierno Porteño / Adiós
Nonino)
Direção: L. Barreto, A. Botafogo e C. Botelho – Figu-
rino: Ney Madeira – Iluminação: Paulo C. Medeiros
Criado especialmente para Ana Botafogo, Bruno
Cesário e Joseny Coutinho – 15´

• Aparecida (versão completa)


J. S. Bach (Paixão de São João BWV 245 nº 1 – arranjo
H. de Courson)
Figurino: Sérgio L. Coelho – Iluminação: Henrique
Carvalho e L. Arrieta
Grupo Camaleão / Belo Horizonte - 45´

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• Um Longo e Sinuoso Caminho
The Beatles (The Long and Winding Road / Fool on
the Hill / And I Love Her / She Loves You / She`s Leav-
ing Home / Michelle / Goodnight / Yellow Submarine)
Arranjos: P. Breiner – Figurinos: Rosa Magalhães –
Iluminação: L. Arrieta
Companhia Jovem de Ballet do Rio de Janeiro – 25´

2000
• No Porão
F. Zappa (The girl in the magnesium dress / Be-bop
tango)
S. Piana/ H. Manzi (Milonga triste)
J. Adams (Shaker Loops)
L. van Beethoven (Für Elise)
427
J. S. Bach (Präludium – 1C – dur BWV 846)
B. Ostertag / Kronos Q. (All the Rage)
O. Messiaen (Louange à l’Immortalité de Jésus)
Dir. musical: Gil Jardim – Cenário: Fábrica da Bijari - Fi-
gurino: Geraldo L. Junior – Iluminação: Wagner Freire
Balé da Cidade de São Paulo / Cia. 2 – 80’

• Conceição de todos os bugres


M. Miranda (várias de 2 IHU Kewere: Rezar)
J. S. Bach (Präludium - 1C - dur BWV 846 / Präludium
– fis Moll BWV 883 / Sonata I in G major BWV 1027
andante)
Cenário: Luis F. A. Stumpo e Silvia Stumpo - Figurino:
Chico Neller e L. Arrieta – Iluminação: Roberto Lima
Ginga Cia. de Dança / Campo Grande – 70’

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1999
• Café com Leite (direção Marcio Aurelio)
Vários MPB (Reg. G. Jardim e T. Mourão)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Marcio Aurelio
Bethe Risoléu, Luciana Porta e Luis A. Ribeiro – 120’

• Principia H
S. Martland (Principia)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Raça Companhia de Dança de São Paulo (Jhean Allex) – 3’

• Valse
P. Jobin (Valse)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Raça Companhia de Dança de São Paulo – 4’
428
• Chacona – Valsa
J. S. Bach (Chacona da Partita nº 2 ré menor)
H. Villa Lobos (Valsa da Dor)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Cia. de Dança Ismael Guiser / São Paulo – 22’

• Novos Ventos
E. Satie (várias)
Direção cênica: L. Arrieta – Coreografia: R. Rodrigues
Raça Companhia de Dança de São Paulo – 20’

• Clair de Lune
C. Debussy (Clair de Lune)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Criado para Daniela Steck e Cladimir Kaminsky – 6’

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• La Golondrina
N. Serradel e N. Zamacois (La Golondrina)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para Simone di Pietro – 3’

• Aparecida, incluindo Senhor, Meu Senhor


J. S. Bach (Paixão de São João BWV 245 nº 1 – arranjo
H. de Courson)
Figurino: Sérgio L. Coelho - Iluminação: L. Arrieta
Grupo Núcleo Artístico / Belo Horizonte – 20’

1998
• Principia
S. Martland (Principia)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para Lilia Shaw – 4’ 429

• Tonada de Luna Llena


S. Diaz (Tonada de Luna Llena)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para Fernando Martins

• La Yumba
O. Pugliese (La Yumba)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para André Portasio – 3’

• Achalai!
Adaptações de repertório indígena por Marlui Mi-
randa (Ihu – Todos os sons)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Raça Companhia de Dança / de São Paulo – 36’

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• Chacona
J. S. Bach (Chacona da Partita nº 2 BWV 1004 em
ré menor)
Figurino: Rosa Magalhães – Iluminação: Renato Ma-
chado e L. Arrieta
Cia. Vacilou Dançou / Rio de Janeiro – 16’

• Senhor, Meu Senhor


J. S. Bach (Paixão de São João BWV 245 nº 1 – arranjo
H. de Courson)
Figurino: Sérgio L. Coelho – Iluminação: L. Arrieta
Grupo Núcleo Artístico / Belo Horizonte – 5’

• Ponto Vitral
G. Jardim (O Soprador de Vidro)
Cenário: Antonio C. Cardoso – Figurino: Lino Villa-
430 ventura – Iluminação: Franco Marri
Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 60’

1997
• Dear Friend
P. e L. McCartney (Dear Friend – introdução: L. A.
Ribeiro)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Ballet Lenita Ruschel Pereira / Porto Alegre – 10’

• A Noite Transfigurada
A. Schönberg (A Noite Transfigurada op.4 – versão
para orquestra de cordas, 1945)
Cenário: Rosa Magalhães – Figurino: Rosa Magalhães
- Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta
Cia. de Dança de Minas Gerais / Belo Horizonte – 30’

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• Adagietto
G. Mahler (Adagietto da 5ª Sinfonia)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Fernando Guimarães
e L. Arrieta
Criado especialmente para L. Arrieta – 9’

• La Reveuse
M. Marais (La Reveuse)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Fernando Guimarães
e L. Arrieta
Criado especialmente para L. Arrieta – 5’

• Spreading
D. Maraire (Kutambarara – “Spreading”)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Fernando Guimarães
e L. Arrieta
Criado especialmente para L. Arrieta – 7’ 431

• Pecado
C. Babr (Pecado)
Pontier Y Francini
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para Renata Ruiz – 5’

• Words Over Water


P. Aaberg (Words Over Water)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para Luciene Munekata e Jhean
Allex – 6’

• De Minh’Alma
P. Metheny (várias)
J. Faddis
Direção Cênica: L. Arrieta - Coreografia: R. Rodrigues

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- Iluminação: F. Guimarães e L. Arrieta
Raça Companhia de Dança de São Paulo – 30’

1996
• Ave Maria
H. Górecki (Sinfonia nº 3 opus 36, 2º movimento)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para L. Arrieta – 10’

• Trevo (do ciclo Três)


S. Rachmaninoff (Andante da Sonata em sol para
violoncelo e piano op.19)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 6’

• La Telesita
L. Vitale (La Telesita)
432 Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Beth Dorça Ballet / Uberaba – 6’

• Nuestros Hijos
R. Mederos (Nuestros Hijos)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para Luciana Porta e L. Arrieta – 5’

• Libertango
A. Piazzolla (Libertango)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Beth Dorça Ballet / Uberaba – 3’

• Promenade
M. Ravel (Concerto para piano em sol maior – Adagio
Assai)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para Luciana Porta e L. Arrieta – 10’

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• Milonga del Ángel
A. Piazzolla (Milonga del Angel)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para Gustavo Lopes e L. Arrieta – 6’

• Quebrada
E. Lagos (La oncena)
A. Chazarreta (Criollita Santiagueña)
Hns. Abalos (La Juguetona)
P. Contreras (Huayco hondo)
A. Robles (El condor pasa)
J. Torres (Charangueando van)
A. e N. Abalos (El quebradeño – Carnavalito)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 30’ 433

• Tango Três x Três


A. Piazolla (Hora Cero / Canto e Fuga / Evasão / Meia-
noite / Solitude / Bandoneón / Melodia em lá menor /
Libertango / Morte / Tanguedia / Adiós Nonino)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: Fernando Guimarães
e L. Arrieta
Raça Companhia de Dança / São Paulo – 60’

• Marnatal
P. Aaberg (Walking Through Walls / Elegy / Words Over
Water / Surround / Walking Through Walls)
Figurino: Heronilda Anselmo e Carlos S. Borges – Ilu-
minação: L. Arrieta
Roda Viva Cia. de Dança Sobre Rodas / Natal – 25’

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1995
• Fragmentos da Página 5
H. Villa Lobos (Fragmentos da Página 5 de A Floresta
do Amazonas, arranjo Wagner Tiso)
Cenário: Carlos Sergio Borges – Figurino: Carlos Sergio
Borges - Iluminação: L. Arrieta
Ballet Municipal de Natal – 10’

• (Noch einmal) *versão completa


P. Glass (Concerto para vilolino e orquestra)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: Rosa Magalhães –
Iluminação: L. Arrieta
Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 30’

• (Noch Viel Mal)


Kodõ Heartbeat Drummers of Japan (3. Monochrome
434
/ 1. Miyake)
P. I. Tchaikovsky (Concerto no. 1 em si bemol, 2º
movimento)
Cenário: Carlos Sergio Borges e L. Arrieta – Figurino:
Carlos Sergio Borges – Iluminação: L. Arrieta
Grupo de Dança da UFRN / Natal – 25’

• Orixá (roteiro de Antonio Carlos Cardoso)


E. Gismonti (Orixá, especialmente composta)
Cenário: Rosa Magalhães – Figurino: Rosa Magalhães
– Iluminação: Franco Marri
Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 40’

• Na Floresta
H. Villa Lobos (Suite nº 1 de A Floresta do Amazonas)
Cenário: Rosa Magalhães - Figurino: Rosa Magalhães

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- Iluminação: Paulo César Medeiros e L. Arrieta
Cia. de Ballet da Cidade de Niterói – 30’

1994
• (Noch einmal)
P. Glass (Concerto para violino e orquestra)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: Rosa Magalhães – Ilu-
minação: L. Arrieta
Vacilou Dançou / Rio de Janeiro – 20’

• Telas (co-direção com Marjorie Quast)


O. Montenegro (Telas, especialmente composta)
Cenário: Sérgio Luis – Figurino: Geraldo Lima Junior
– Iluminação: Ricardo Teixeira
Grupo Camaleão / Belo Horizonte – 70’
435

1993
• Tango Trio
A. Piazzolla (Adiós Nonino)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação:
L. Arrieta
Criado especialmente para Ana Botafogo, Marcelo
Misailidis e Helio Bejane - 9’

• Warm-up
J. S. Bach (Concerto para 4 Pianos e Orquestra de
Cordas)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação:
Fernando Guimarães e L. Arrieta
Balé da Cidade de São Paulo – 15’

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• Willis Now
The Art of Noise (In Visible Silence / In No Sense Non-
sense / The Best of The Art of Noise)
Cenário: Murilo Sola e L. Arrieta – Figurino: Murilo
Sola e L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Profissão Dançar (Steps) / São Paulo – 70’

• Pampa
A. Ginastera (Concerto para Harpa nº 25)
Cenário: Murilo Sola - Figurino: Murilo Sola – Ilumi-
nação: L. Arrieta
Ballet Grand Théâtre de Genève – 30’

• Beijo I
J. S. Bach (Adágio da Sonata nº 1 em Sol Menor para
Violino BWV 1001)
436 Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação:
L. Arrieta
Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 6’

1992
• De Mar e Areia
N. Vasconcelos (O Berimbau / Dado)
E. Gismonti (Fogueira / Tomarapeba / O Dia, à Noite)
H. Villa Lobos (Três Canções: Cair da Tarde, Canção
de Amor e Melodia Sentimental)
Cenário: J. Cunha – Figurino: J. Cunha – Iluminação:
Irma Vidal e L. Arrieta
Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 50’

• Oração
J. S. Bach (Ária da 4ª Corda – Suíte para orq. em Si
menor / BWV-1067)

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Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Fernando
Guimarães e L. Arrieta
Criado especialmente para Maurício Ribeiro – 6’

• Cisne
S. Säens (O Cisne / Carnaval dos Animais)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Fernando Guimarães
e L. Arrieta
Criado especialmente para L. Arrieta – 3’

• Outono
H. Villa Lobos (5 Prelúdios para violão)
Figurino: Margot Delgado – Iluminação: Fernando
Guimarães e L. Arrieta
Criado especialmente para Ana Maria Mondini, Bethe
Risoléu, Clarisse Abujamra, Patricia Alquezar e Suzana 437
Yamauchi – 15’

• Dois Clarinetes
F. Poulenc (Sonata para dois Clarinetes)
Figurino: Murilo Sola – Iluminação: Fernando Guima-
rães e L. Arrieta
Criado especialmente para Patricia Alquezar e Mau-
ricio Ribeiro – 6’

• La Valse
M. Ravel (La Valse)
Figurino: Renata Schussheim – Iluminação: Fernando
Guimarães e L. Arrieta
Criado especialmente para Mônica Kodato e Irineu
Marcovecchio – 12’

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• Ocean
G. Jardim e J. Garotti (Movimentos em Água, para
Luis Arrieta)
Figurino: Margot Delgado – Iluminação: Fernando
Guimarães e L. Arrieta
Criado especialmente para Bethe Risoléu e Laudinei
Delgado – 12’

• A Espera 1
H. Villa Lobos (Valsa da Dor)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação:
L. Arrieta
Balé da Cidade de São Paulo – 7’

• A Espera 2
438 H. Villa Lobos (Prelúdio)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação:
L. Arrieta
Balé da Cidade de São Paulo – 9’

• A Espera 3
H. Villa Lobos (Canto do Sertão)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação:
L. Arrieta
Balé da Cidade de São Paulo – 6’

1991
• Estância
A. Ginastera (Estancia - Ballet Suíte opus 8 A)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: Murilo Sola – Ilumina-
ção: Carlos Kur e L. Arrieta
Ballet Teatro Guairá / Curitiba – 15’

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• Pavana para uma Infanta defunta
M. Ravel (Pavane pour une Infante défunte)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Ballet Teatro Guairá / Curitiba – 10’

• Les Noces
I. Stravinsky (Les Noces)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: Renata Schussheim –
Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta
Balé da Cidade de São Paulo – 25’

• Tempo de Dunas
Larkin (O’cean / Emergence)
Cenário: L. Arrieta - Figurino: Carlos Sergio Borges –
Iluminação: Castelo Casado e L. Arrieta
Acauã Cia. de Danças / Natal – 25’
439
• Offertorium
A. Pärt (Pari Intervallo)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Criado especialmente para Claudia Araújo e Sergio
Campos – 8’

• Andante
J. S. Bach (Andante da Sonata nº 1 em Sol Maior para
Piano e Cello)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 7’

1990
• O Pássaro de Fogo
I. Stravinsky (L’Oiseau de feu)
Cenário: Raul Belém Machado - Figurino: Raul Belém

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Machado – Iluminação: Jorge Luiz e L. Arrieta
Ballet da Fundação Clóvis Salgado (Palácio das Artes)
/ Belo Horizonte – 55’

• Ausência
S. Rachmaninoff (Suite nº 1 para dois Pianos opus
5 – Fantasia)
Figurinos: Margot Delgado – Iluminação: Mario Martini
Balé da Cidade de São Paulo – 20’

• Palhaços
F. Poulenc (Trio para Piano, Oboé e Fagote / Sexteto
para Piano, Flauta, Oboé, Clarineta, Fagote e Corno)
Cenário: Beatriz Balem Susin - Figurino: Beatriz Balem
Susin – Iluminação: Fernando Guimarães e L. Arrieta
Grupo de Danças Raízes / Caxias do Sul – 40’
440
• Wa’ya (co-direção com Tíndaro Silvano, Marisa
Monadjemi e Juliana Grillo)
E. Gismonti (Vale do Eco)
A. Pärt (Cantus in memory of Benjamin Britten)
H. Villa Lobos (Valsa da Dor)
Cenário: Mônica Sartori – Figurino: Kalluh Araújo –
Iluminação: Jorge Luiz e L. Arrieta
Meia Ponta Cia. de Dança / Belo Horizonte – 15’

1989
• Inconfidência
E. Gismonti (especialmente composta)
Cenário: Décio Noviello - Figurinos: Décio Noviello –
Iluminação: Jorge Luiz e L. Arrieta
Ballet da Fundação Clóvis Salgado (Palácio das Artes)/
Belo Horizonte – 55’

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• Palhaços
F. Poulenc (Sexteto para Piano, Flauta, Oboé, Clari-
neta, Fagote e Corno)
Figurinos: Sergio Luiz Coelho – Iluminação: Jorge
Luiz e L. Arrieta
Compasso Cia. de Dança / Belo Horizonte – 20’

• Trívio (do ciclo Três)


F. Schubert (Allegro Moderato da Sonata para Cello
e Piano em Lá Menor)
Figurino: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 12’

• SOS Brasil (versão completa: co-direção com Mar-


jorie Quast)
P. Glass (Mishima – partes)
J. Gwanga (Freedon – partes)
L. Gonzaga (Asa Branca) 441
Enya
J. Ma. Nóbrega e L. P. Fonseca
Cenário: Sergio Luiz Coelho - Figurino: Sergio Luiz
Coelho – Iluminação: Ricardo Teixeira

1988
• Mandala (Der Weg Nach Innen)
S. Rachmaninoff (Rhapsody on a Theme of Paganini
opus 43)
S. Barber (Adagio for strings opus 11 / Second Essay
for Orchestra op.17 / Overture to “The School for
Scandal” for Orchestra op. 5 / Medeas’ Meditation
and Dance of Vingeance op. 23-A)
M. Ravel (Bolero)
Cenário: Jorge Villareal - Figurinos: Jorge Villareal –
Iluminação: L. Arrieta
Cia. Oficial de Wiesbaden / Alemanha – 90’

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• Mar de Homens
A. Pärt (Tabula Rasa / Arbos – partes)
Cenário: Murilo Sola – Figurinos: Murilo Sola – Ilumi-
nação: Iacov Hillel
Balé da Cidade de São Paulo – 90’

1987
• Cantata para América Mágica
A. Ginastera (Cantata para América Mágica)
Figurino: Murilo Sola – Iluminação: Cacá D’Andretta
Balé da Cidade de São Paulo – 35’

• Berimbau
N. Vasconcelos (O Berimbau)
Figurino: Murilo Sola – Iluminação: Cacá D’Andretta
Balé da Cidade de São Paulo – 20’
442
1986
• Encontro no Espaço
H.Villa Lobos/E.Gismonti (Trem Caipira)
C. Haden (Silence)
E. Gismonti (O Aamor que Move o Sol e as Outras Estrelas)
M. A. Araújo
Cenário: Sergio Luiz Coelho e L. Arrieta – Figurinos:
Sergio Luiz Coelho e L. Arrieta – Iluminação: Ricardo
Teixeira e L. Arrieta
Grupo Camaleão / Belo Horizonte – 70’

• Mandala
M. Ravel (Bolero)
Figurino: Afonso César e L. Arrieta – Iluminação: L.
Arrieta
Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 20’

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• Magnificat
J. S. Bach (Magnificat, com quatro interpolações
natalinas)
Cenário: Conrado Sogernicht Filho e L. Arrieta - Fi-
gurinos: L. Arrieta e Renata Schussheim (1990) - Ilu-
minação: Cleuza Fernández e L. Arrieta
Balé da Cidade de São Paulo – 45’

1985
• Destino (Unmei)
S. Fukai (Quatro Movimentos Paródicos)
M. Ohki (Meditação Noturna)
Y. Kiyose (Festival de Danças Japonesas)
K. Yamada (Mandara No Hana)
Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Grupo Cisne Negro / São Paulo – 70’
443
• Sanctus (ou Segunda Oração) versão completa
D. Fanshawe (African Sanctus)
Figurinos: Afonso César e L. Arrieta – Iluminação: L.
Arrieta
Balé Teatro Castro Alves / Salvador – 70’

• Abrazo
J. S. Bach (Concerto para Oboé, Violino e Cordas em
Sol Menor)
Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 15’

• Colheita
K. Jarrett (The Köln Concert - partes)
Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Grupo Iris de Alagoas / Maceió – 15’

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• A Sagração da Primavera
I. Stravinsky (Le Sacre du Printemps)
Slides: Leo Tavares e Luiz Antonio Fernandez – Espa-
ço cênico: L. Arrieta – Figurinos: Cecília Cerroti e L.
Arrieta – Iluminação: Iacov Hillel
Balé da Cidade de São Paulo – 40’

1984
• Paisagem com Gaivotas
Vangelis (Chariots of Fire)
Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Ópera Paulista / São Paulo – 20’

1983
• Signos
O. Montenegro (Signos, especialmente composta)
Figurinos: L. Arrieta
444 Grupo Núcleo Artístico / Belo Horizonte – 60’

• Do Homem ao Poeta
C. Orff (Carmina Burana / De temporum fine comoedia
– partes)
Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Grupo Cisne Negro / São Paulo – 75’

• Paisagem em Azul
C. Haden (Silence)
P. Metheny Group (The Search)
Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Grupo Produções Artísticas / Assunção, Paraguai – 15’

1982
• São Paulo Eterno Infinito (especial para a TV Globo)
Vangelis (várias músicas)
Externa: Elevado Costa e Silva

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Figurinos: L. Arrieta
Balé da Cidade de São Paulo – 35’

• Terceira Oração (ou Oração das Madres de la Plaza


de Mayo)
A. Ramírez (Misa Criolla)
Figurinos: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Grupo Imbahá / Porto Alegre – 20’

• Maceió
Vangelis (Chariots of Fire – partes)
Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Grupo Íris de Alagoas / Maceió – 15’

• Tempo de Tango
R. Mederos (Nuestros Hijos, Todo Ayer)
A. Piazzolla (Adiós Nonino)
445
Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Grupo Cisne Negro / São Paulo – 20’

• Nascer ou Algumas Profecias Cotidianas e Eternas


Vangelis (Odas -partes) / S. Barber (Adágio para Cor-
das opus 11) / G. Verdi (Réquiem – parte) / G. Mahler
(Adagietto da 5ª Sinfonia) / L. Berio (Sinfonia) / C. Orff
(De temporum fine comoedia – partes)
Cenário: Raul Belem Machado – Figurinos: L. Arrieta
- Iluminação: Ricardo Teixeira e L. Arrieta
Grupo Elo / Belo Horizonte – 80’

• Trindade (de Nascer ou Algumas Profecias Cotidia-


nas e Eternas - do ciclo Três)
S. Barber (Adágio para Cordas opus 11)
Figurinos: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Grupo Elo / Belo Horizonte – 10’

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1981
• Libertas, quae sera tamen
E. Gismonti (especialmente composta)
Roteiro: Iacov Hillel – Cenário: Flávio Império – Figu-
rinos: Flávio Império – Iluminação: Iacov Hillel
Corpo de Baile Municipal de São Paulo - 80’

• Eterno Infinito
Vangelis (várias músicas)
Figurinos: L. Arrieta - Iluminação: L. Arrieta
Balé da Cidade de São Paulo – 35’

1980
• Da Infância
G. Mahler (Canções)
Figurino: Murilo Sola – Iluminação: Iacov Hillel
446 Corpo de Baile Municipal de São Paulo – 40’

• Um Retrato
L. Berio (A-Ronne)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: a Companhia – Ilumi-
nação: L. Arrieta
Corpo de Baile Municipal de São Paulo – 35’

• Primeira Oração
F. Poulenc (Concerto para Órgão, Cordas e Tímpano)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Grupo Cisne Negro / São Paulo – 30’

• Sanctus (ou Segunda Oração )


D. Fanshawe (African Sanctus)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: Iacov Hillel
Corpo de Baile Municipal de São Paulo – 25’

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• Para un Niño Muerto
G. Mahler (Kindertotenlieder)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Grupo Casa Forte / São Paulo – 30’

• Céu e Inferno (para o curta metragem Retrato de


Ideko)
Vangelis (Céu e Inferno)
Figurinos: L. Arrieta
Solo para Ivonice Satie / São Paulo – 5’

1979
• Children’s Corner
C. Debussy (Children’s Corner)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Ballet Ismael Guiser / São Paulo – 15’
447
• Presenças
S. Rachmaninoff (Rapsódia sobre um tema de Paga-
nini opus 43)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Corpo de Baile Municipal de São Paulo – 24’

1978
• Testemunho
G. Mahler (1º Movimento da 2ª Sinfonia)
Figurino: Murilo Sola – Iluminação: L. Arrieta
Corpo de Baile Municipal de São Paulo - 20’

• Pastoral
anônimos / Canteloube (Canções de Auvergne)
Figurino: L. Arrieta – Iluminação: L. Arrieta
Grupo Andança / São Paulo – 20’

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1977
• Camila
G. Mahler (Andante da 6ª Sinfonia)
Cenário: L. Arrieta – Figurino: L. Arrieta – Iluminação:
L. Arrieta
Corpo de Baile Municipal de São Paulo – 20’

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Índice
No Passado Está a História
do Futuro – Alberto Goldman 5
Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7
Apresentação – Luis Arrieta 11
Introdução 19
Em Buenos Aires 25
Em São Paulo 123
Pelo Mundo 221
Referências bibliográficas 419
Obra Completa 421

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Crédito das Fotografias
Alice Bravo 297
Antonio Carlos Cardoso 23, 259, 260, 359, 380, 381, 382,
404, 405, 406, 418
Arnaldo J.G. Torres 293, 349
Beto Magalhães 277
Cesar Cichero 104, 106, 110
Emídio Luisi 239, 241
Gerson Zanini 126, 127, 135, 139, 140, 141, 144, 156, 157,
158, 159, 162, 168, 196, 197, 200, 201, 212, 213, 235, 292, 293
Isabel Gouvêa 258, 301, 311, 312, 358
Ismael Francisco 265
José Eduardo La Marca 29
Junior Gama 187, 188
Marc Van Appelghem 305, 307, 308
Osmar G. 328, 329
Ramón F. Rivera 224, 225, 227
Reginaldo Azevedo 399, 400, 401
Robson Lourenço 250
Silvia Machado 248, 249, 250, 251, 390, 391, 392
Theo Gröne 220

A despeito dos esforços de pesquisa empreendidos pela Editora para


identificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas não é
de autoria conhecida de seus organizadores.
Agradecemos o envio ou comunicação de toda informação relativa
à autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos,
para que sejam devidamente creditados.

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Coleção Aplauso
Série Cinema Brasil
Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma
Alain Fresnot
Agostinho Martins Pereira – Um Idealista
Máximo Barro
Alfredo Sternheim – Um Insólito Destino
Alfredo Sternheim
O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias
Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert
e Cao Hamburger
Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro
Luiz Carlos Merten
Antonio Carlos da Fontoura – Espelho da Alma
Rodrigo Murat
Ary Fernandes – Sua Fascinante História
Antônio Leão da Silva Neto
O Bandido da Luz Vermelha
Roteiro de Rogério Sganzerla
Batismo de Sangue
Roteiro de Dani Patarra e Helvécio Ratton
Bens Confiscados
Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos
Reichenbach
Braz Chediak – Fragmentos de uma Vida
Sérgio Rodrigo Reis
Cabra-Cega
Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo
Kauffman

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O Caçador de Diamantes
Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro
Carlos Coimbra – Um Homem Raro
Luiz Carlos Merten
Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver
Marcelo Lyra
A Cartomante
Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis
Casa de Meninas
Romance original e roteiro de Inácio Araújo
O Caso dos Irmãos Naves
Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person
O Céu de Suely
Roteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias
Chega de Saudade
Roteiro de Luiz Bolognesi
Cidade dos Homens
Roteiro de Elena Soárez
Como Fazer um Filme de Amor
Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José
Roberto Torero
O Contador de Histórias
Roteiro de Luiz Villaça, Mariana Veríssimo, Maurício Arruda e
José Roberto Torero
Críticas de B.J. Duarte – Paixão, Polêmica e
Generosidade
Luiz Antonio Souza Lima de Macedo
Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade
Org. Luiz Carlos Merten

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Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção:
Os Anos do São Paulo Shimbun
Org. Alessandro Gamo
Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão –
Analisando Cinema: Críticas de LG
Org. Aurora Miranda Leão
Críticas de Ruben Biáfora – A Coragem de Ser
Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak
De Passagem
Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias
Desmundo
Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui
Djalma Limongi Batista – Livre Pensador
Marcel Nadale
Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro
Jeferson De
Dois Córregos
Roteiro de Carlos Reichenbach
A Dona da História
Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho
Os 12 Trabalhos
Roteiro de Cláudio Yosida e Ricardo Elias
Estômago
Roteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade
Feliz Natal
Roteiro de Selton Mello e Marcelo Vindicatto
Fernando Meirelles – Biografia Prematura
Maria do Rosário Caetano

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Fim da Linha
Roteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboards
de Fábio Moon e Gabriel Bá
Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil
Luiz Zanin Oricchio
Francisco Ramalho Jr. – Éramos Apenas Paulistas
Celso Sabadin
Geraldo Moraes – O Cineasta do Interior
Klecius Henrique
Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta
Cinéfilo
Luiz Zanin Oricchio
Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas
Pablo Villaça
O Homem que Virou Suco
Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane
Abdallah e Newton Cannito
Ivan Cardoso – O Mestre do Terrir
Remier
João Batista de Andrade – Alguma Solidão
e Muitas Histórias
Maria do Rosário Caetano
Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera
Carlos Alberto Mattos
José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina
Marcel Nadale
José Carlos Burle – Drama na Chanchada
Máximo Barro
Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção
Renata Fortes e João Batista de Andrade

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Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema
Alfredo Sternheim
Maurice Capovilla – A Imagem Crítica
Carlos Alberto Mattos
Mauro Alice – Um Operário do Filme
Sheila Schvarzman
Máximo Barro – Talento e Altruísmo
Alfredo Sternheim
Miguel Borges – Um Lobisomem Sai da Sombra
Antônio Leão da Silva Neto
Não por Acaso
Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski
e Eugênio Puppo
Narradores de Javé
Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu
Olhos Azuis
Argumento de José Joffily e Jorge Duran
Roteiro de Jorge Duran e Melanie Dimantas
Onde Andará Dulce Veiga
Roteiro de Guilherme de Almeida Prado
Orlando Senna – O Homem da Montanha
Hermes Leal
Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela
Rogério Menezes
Quanto Vale ou É por Quilo
Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi
Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar
Rodrigo Capella
Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente
Neusa Barbosa

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Salve Geral
Roteiro de Sergio Rezende e Patrícia Andrade
O Signo da Cidade
Roteiro de Bruna Lombardi
Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto
Rosane Pavam
Viva-Voz
Roteiro de Márcio Alemão
Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no
Planalto
Carlos Alberto Mattos
Vlado – 30 Anos Depois
Roteiro de João Batista de Andrade
Zuzu Angel
Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende

Série Cinema
Bastidores – Um Outro Lado do Cinema
Elaine Guerini

Série Ciência & Tecnologia


Cinema Digital – Um Novo Começo?
Luiz Gonzaga Assis de Luca
A Hora do Cinema Digital – Democratização
e Globalização do Audiovisual
Luiz Gonzaga Assis De Luca

Série Crônicas
Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças
Maria Lúcia Dahl

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Série Dança
Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal
Sérgio Rodrigo Reis

Série Música
Maestro Diogo Pacheco – Um Maestro para Todos
Alfredo Sternheim
Rogério Duprat – Ecletismo Musical
Máximo Barro
Sérgio Ricardo – Canto Vadio
Eliana Pace
Wagner Tiso – Som, Imagem, Ação
Beatriz Coelho Silva

Série Teatro Brasil


Alcides Nogueira – Alma de Cetim
Tuna Dwek
Antenor Pimenta – Circo e Poesia
Danielle Pimenta
Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral
Alberto Guzik
Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio
Org. Carmelinda Guimarães
Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e
Uma Paixão
Org. José Simões de Almeida Júnior
Federico Garcia Lorca – Pequeno Poema Infinito
Antonio Gilberto e José Mauro Brant
Ilo Krugli – Poesia Rasgada
Ieda de Abreu

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João Bethencourt – O Locatário da Comédia
Rodrigo Murat
José Renato – Energia Eterna
Hersch Basbaum
Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher
Eliana Pace
Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba
Adélia Nicolete
Maurice Vaneau – Artista Múltiplo
Leila Corrêa
Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem
Rita Ribeiro Guimarães
Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC
Nydia Licia
O Teatro de Abílio Pereira de Almeida
Abílio Pereira de Almeida
O Teatro de Aimar Labaki
Aimar Labaki
O Teatro de Alberto Guzik
Alberto Guzik
O Teatro de Antonio Rocco
Antonio Rocco
O Teatro de Cordel de Chico de Assis
Chico de Assis
O Teatro de Emílio Boechat
Emílio Boechat
O Teatro de Germano Pereira – Reescrevendo
Clássicos
Germano Pereira

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O Teatro de José Saffioti Filho
José Saffioti Filho
O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera
Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso –
Pólvora e Poesia
Alcides Nogueira
O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um tea-
tro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos
de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro
Ivam Cabral
O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona
Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma
Noemi Marinho
Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar
Neyde Veneziano
O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista –
O Fingidor – A Terra Prometida
Samir Yazbek
O Teatro de Sérgio Roveri
Sérgio Roveri
Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas
em Cena
Ariane Porto

Série Perfil
Analy Alvarez – De Corpo e Alma
Nicolau Radamés Creti
Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo
Tania Carvalho
Arllete Montenegro – Fé, Amor e Emoção
Alfredo Sternheim

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Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros
Rogério Menezes
Berta Zemel – A Alma das Pedras
Rodrigo Antunes Corrêa
Bete Mendes – O Cão e a Rosa
Rogério Menezes
Betty Faria – Rebelde por Natureza
Tania Carvalho
Carla Camurati – Luz Natural
Carlos Alberto Mattos
Cecil Thiré – Mestre do seu Ofício
Tania Carvalho
Celso Nunes – Sem Amarras
Eliana Rocha
Cleyde Yaconis – Dama Discreta
Vilmar Ledesma
David Cardoso – Persistência e Paixão
Alfredo Sternheim
Débora Duarte – Filha da Televisão
Laura Malin
Denise Del Vecchio – Memórias da Lua
Tuna Dwek
Elisabeth Hartmann – A Sarah dos Pampas
Reinaldo Braga
Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida
Maria Leticia
Emilio Di Biasi – O Tempo e a Vida de um Aprendiz
Erika Riedel
Etty Fraser – Virada Pra Lua
Vilmar Ledesma

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Ewerton de Castro – Minha Vida na Arte:
Memória e Poética
Reni Cardoso
Fernanda Montenegro – A Defesa do Mistério
Neusa Barbosa
Fernando Peixoto – Em Cena Aberta
Marília Balbi
Geórgia Gomide – Uma Atriz Brasileira
Eliana Pace
Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar
Sérgio Roveri
Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema
Maria Angela de Jesus
Ilka Soares – A Bela da Tela
Wagner de Assis
Irene Ravache – Caçadora de Emoções
Tania Carvalho
Irene Stefania – Arte e Psicoterapia
Germano Pereira
Isabel Ribeiro – Iluminada
Luis Sergio Lima e Silva
Isolda Cresta – Zozô Vulcão
Luis Sérgio Lima e Silva
Joana Fomm – Momento de Decisão
Vilmar Ledesma
John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida
Neusa Barbosa
Jonas Bloch – O Ofício de uma Paixão
Nilu Lebert

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Jorge Loredo – O Perigote do Brasil
Cláudio Fragata
José Dumont – Do Cordel às Telas
Klecius Henrique
Leonardo Villar – Garra e Paixão
Nydia Licia
Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral
Analu Ribeiro
Lolita Rodrigues – De Carne e Osso
Eliana Castro
Louise Cardoso – A Mulher do Barbosa
Vilmar Ledesma
Marcos Caruso – Um Obstinado
Eliana Rocha
Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária
Tuna Dwek
Marisa Prado – A Estrela, O Mistério
Luiz Carlos Lisboa
Mauro Mendonça – Em Busca da Perfeição
Renato Sérgio
Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão
Vilmar Ledesma
Naum Alves de Souza: Imagem, Cena, Palavra
Alberto Guzik
Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família
Elaine Guerrini
Nívea Maria – Uma Atriz Real
Mauro Alencar e Eliana Pace
Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras
Sara Lopes

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Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador
Teté Ribeiro
Paulo José – Memórias Substantivas
Tania Carvalho
Paulo Hesse – A Vida Fez de Mim um Livro
e Eu Não Sei Ler
Eliana Pace
Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado
Tania Carvalho
Regina Braga – Talento é um Aprendizado
Marta Góes
Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto
Wagner de Assis
Renata Fronzi – Chorar de Rir
Wagner de Assis
Renato Borghi – Borghi em Revista
Élcio Nogueira Seixas
Renato Consorte – Contestador por Índole
Eliana Pace
Rolando Boldrin – Palco Brasil
Ieda de Abreu
Rosamaria Murtinho – Simples Magia
Tania Carvalho
Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro
Nydia Licia
Ruth de Souza – Estrela Negra
Maria Ângela de Jesus
Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema
Máximo Barro

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Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes
Nilu Lebert
Silnei Siqueira – A Palavra em Cena
Ieda de Abreu
Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte
Vilmar Ledesma
Sônia Guedes – Chá das Cinco
Adélia Nicolete
Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro
Sonia Maria Dorce Armonia
Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodriguiana?
Maria Thereza Vargas
Stênio Garcia – Força da Natureza
Wagner Assis
Suely Franco – A Alegria de Representar
Alfredo Sternheim
Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra
Sérgio Roveri
Theresa Amayo – Ficção e Realidade
Theresa Amayo
Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza
Tania Carvalho
Umberto Magnani – Um Rio de Memórias
Adélia Nicolete
Vera Holtz – O Gosto da Vera
Analu Ribeiro
Vera Nunes – Raro Talento
Eliana Pace
Walderez de Barros – Voz e Silêncios
Rogério Menezes

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Walter George Durst – Doce Guerreiro
Nilu Lebert
Zezé Motta – Muito Prazer
Rodrigo Murat

Especial
Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso
Wagner de Assis
Av. Paulista, 900 – a História da TV Gazeta
Elmo Francfort
Beatriz Segall – Além das Aparências
Nilu Lebert
Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos
Tania Carvalho
Célia Helena – Uma Atriz Visceral
Nydia Licia
Charles Möeller e Claudio Botelho – Os Reis dos
Musicais
Tania Carvalho
Cinema da Boca – Dicionário de Diretores
Alfredo Sternheim
Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira
Antonio Gilberto
Eva Todor – O Teatro de Minha Vida
Maria Angela de Jesus
Eva Wilma – Arte e Vida
Edla van Steen
Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do
Maior Sucesso da Televisão Brasileira
Álvaro Moya

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Lembranças de Hollywood
Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim
Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida
Warde Marx
Mazzaropi – Uma Antologia de Risos
Paulo Duarte
Ney Latorraca – Uma Celebração
Tania Carvalho
Odorico Paraguaçu: O Bem-amado de Dias
Gomes – História de um Personagem Larapista e
Maquiavelento
José Dias
Raul Cortez – Sem Medo de se Expor
Nydia Licia
Rede Manchete – Aconteceu, Virou História
Elmo Francfort
Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte
Nydia Licia
Tônia Carrero – Movida pela Paixão
Tania Carvalho
TV Tupi – Uma Linda História de Amor
Vida Alves
Victor Berbara – O Homem das Mil Faces
Tania Carvalho
Walmor Chagas – Ensaio Aberto para Um Homem
Indignado
Djalma Limongi Batista

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© 2010

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Pereira, Roberto
Luis Arrieta : poeta do movimento / Roberto Pereira –
São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.
472p. : il. – (Coleção aplauso. Série Dança / Coordenador
geral Rubens Ewald Filho)

ISBN 978-85-7060-750-8

1. Dança 2. Coreografia - Argentina I. Arrieta, Luis, 1951


II. Ewald Filho, Rubens. III. Título. IV. Série.

CDD 792.820 982

Índice para catálogo sistemático:


1. Dança : Brasil 792.820 982.

Proibida reprodução total ou parcial sem autorização


prévia do autor ou dos editores
Lei nº 9.610 de 19/02/1998

Foi feito o depósito legal


Lei nº 10.994, de 14/12/2004

Impresso no Brasil / 2010

Todos os direitos reservados.

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo


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03103-902 São Paulo SP
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Coleção Aplauso Série Dança

Coordenador Geral Rubens Ewald Filho


Coordenador Operacional
e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana
Projeto Gráfico Carlos Cirne
Editor Assistente Claudio Erlichman
Assistente Karina Vernizzi
Editoração Aline Navarro dos Santos
Ana Lúcia Charnyai
Tratamento de Imagens José Carlos da Silva
Revisão Dante Pascoal Corradini

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Formato: 12 x 18 cm

Tipologia: Frutiger

Papel miolo: Offset LD 90 g/m2

Papel capa: Triplex 250 g/m2

Número de páginas: 472

Editoração, CTP, impressão e acabamento:


Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Nesta edição, respeitou-se o novo


Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

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