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Série Análise Criminal | VOLUME 1

A ANÁLISE CRIMINAL
E O PLANEJAMENTO
OPERACIONAL
Distribuição Gratuita
Série Análise Criminal | VOLUME 1

PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

A ANÁLISE CRIMINAL
Luiz Inácio Lula da Silva

MINISTRO DA SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMANOS


Paulo de Tarso Vannuchi

E O PLANEJAMENTO
GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Sérgio Cabral Filho

SECRETÁRIO DE ESTADO DE SEGURANÇA DO RIO DE JANEIRO

OPERACIONAL
José Mariano Beltrame

INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA


Série Análise Criminal

DIRETOR-PRESIDENTE
Distribuição Gratuita

Mário Sérgio de Brito Duarte

VICE-PRESIDENTE
Robson Rodrigues da Silva

COORDENADOR DOS CONSELHOS COMUNITÁRIOS DE SEGURANÇA


Paulo Augusto Teixeira
A ANÁLISE CRIMINAL
E O PLANEJAMENTO
OPERACIONAL
Este livro foi produzido por meio de convênio firmado
entre o Instituto de Segurança Pública e o Programa
de Apoio Institucional às Ouvidorias de Polícia e
Policiamento Comunitário da Secretaria Especial dos
Direitos Humanos, financiado pela União Européia.

O conteúdo desta obra é de responsabilidade exclusiva


dos autores e do Instituto de Segurança Pública.
Projeto Curso de Capacitação em
Técnicas Quantitativas e Análise Criminal

Volume 1

A ANÁLISE CRIMINAL
E O PLANEJAMENTO
OPERACIONAL

2008
RIO DE JANEIRO

1ª EDIÇÃO
Coleção Instituto de Segurança Pública
Coordenador– Mário Sérgio de Brito Duarte
Série Análise Criminal
Organizadores – Andréia Soares Pinto e Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro

Volume 1
A Análise Criminal e o Planejamento Operacional

Autores
Ana Paula Mendes de Miranda – IPP / Simoni Lahud Guedes – UFF / Doriam Borges – IUPERJ / Cláudio Beato – UFMG
Elenice de Souza – UFMG / Paulo Augusto Souza Teixeira – ISP

© 2006 by Instituto de Segurança Pública

Tiragem: 150 exemplares


Impresso no Brasil
É permitida a reprodução, total ou parcial, e por qualquer meio, desde que citada a fonte.

Revisão Ficha Catalográfica


Frederico César Girauta Johenir Viégas
Maria Cláudia Ajuz Goulart Elenice Glória Martins Pinheiro
Carmem Lúcia Teixeira Jochen
Iara Cruz Fróes da Silva Coordenação Técnica
Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro
Projeto Gráfico
Alexandre Lage da Gama Lima Equipe técnica
Thiago Venturotti Nunes Carneiro Lucas Botino do Amaral
Daniel Keidel Bou Haya
Diagramação
Francisco Kelson Moreira de Sousa Coordenação Administrativa
José Motta de Souza
Organizadoras do volume
Andréia Soares Pinto Apoio Administrativo
Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro Alexandre Corval
Florisvaldo Moro
José Renato Biral Belarmino

A532a
A Análise Criminal e o Planejamento Operacional / Organizadoras Andréia Soares
Pinto e Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro; Coordenador Mário Sérgio de Brito Duarte;
[autores] Ana Paula Mendes de Miranda ...[et al.]. – Rio de Janeiro: Riosegurança,
2008.

116 p. – (Série Análise Criminal, v. 1)

ISBN 978-85-60502-32-5
1. Análise Criminal – manuais, guias, etc. I.Pinto, Andréia Soares (Org.) II Ribeiro,
Ludmila Mendonça Lopes (Org.) III. Duarte, Mário Sérgio de Brito (Coord.) II. Título. III.
Série.
CDD: 362.12
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
(Mário Sérgio de Brito Duarte e Robson Rodrigues da Silva)........................................ 7

INTRODUÇÃO
(Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro e Andréia Soares Pinto)........................................... 10

INFORMAÇÃO, ANÁLISE CRIMINAL E SENTIMENTO DE (IN) SEGURANÇA:


CONSIDERAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA
(Ana Paula Mendes de Miranda)................................................................................................ 14

COLETANDO E EXTRAINDO INFORMAÇÕES DOS BANCOS DE DADOS CRIMINAIS: A


LÓGICA DAS ESTATÍSTICAS DAS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS
(Doriam Borges)................................................................................................................................. 42

O SISTEMA CLASSIFICATÓRIO DAS OCORRÊNCIAS NA POLÍCIA MILITAR DO RIO


DE JANEIRO E A ORGANIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA POLICIAL: UMA ANÁLISE
PRELIMINAR
(Simoni Lahud Guedes).................................................................................................................. 53

PRODUÇÃO, USO DE INFORMAÇÕES E DIAGNÓSTICOS EM SEGURANÇA URBANA


(Cláudio Beato).................................................................................................................................. 63

EXPLORANDO NOVOS DESAFIOS NA POLÍCIA: O PAPEL DO ANALISTA, O


POLICIAMENTO ORIENTADO PARA O PROBLEMA E A METODOLOGIA IARA
(Elenice de Souza)............................................................................................................................ 92

OS CONSELHOS COMUNITÁRIOS DE SEGURANÇA E OS DADOS OFICIAIS


(Paulo Augusto Souza Teixeira)................................................................................................... 105

PERFIL DOS ORGANIZADORES E AUTORES............................................................................ 116


SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 7

APRESENTAÇÃO

Foi por uma postura racional que, segundo Max Weber, a civilização ocidental se
distinguiu no cenário mundial sustentada pelos pilares da ciência, do capitalismo
e da democracia1. Nesse sentido, a otimização de recursos na busca de um “lucro
sempre renovável”, a organização racional do trabalho e a ciência moderna, menos
contemplativa e cada vez mais compromissada com o progresso tecnológico, foram
fatores decisivos para o surgimento do atual conceito de cidadão e da moderna
sociedade industrial.
Em termos de Administração Pública, o conceito weberiano de “lucro renovável”
pode ser traduzido por uma gestão eficiente, eficaz e efetiva que utiliza a ciência para
a alocação racional dos recursos públicos, definindo objetivos, traçando metas factíveis
e construindo indicadores adequados de avaliação e de produtividade. O chamado
planejamento estratégico deve contemplar, portanto, um diagnóstico adequado
da realidade, dos recursos disponíveis e dos óbices que eventualmente dificultem a
consecução desses objetivos.
No campo da segurança pública, mais precisamente no que diz respeito ao
controle da criminalidade e das violências, função que entendemos ser uma das
premissas do Estado-nação, uma gestão que se pretenda moderna não deve abrir
mão da Análise Criminal como instrumento otimizador de suas ações, com todas as
novidades que o progresso científico-tecnológico pode hoje nos proporcionar. Um de
seus objetivos é o de habilitar profissionais na manipulação de softwares estatísticos
e de geoprocessamento para a produção e análise de informações necessárias ao
planejamento e à execução de políticas públicas de segurança eficazes.
O livro que ora temos o prazer de apresentar trata exatamente da Análise
Criminal e faz parte de um conjunto de estratégias desencadeadas pelo Instituto
de Segurança Pública, com vistas à modernização da segurança pública estadual.
Particularmente, objetiva familiarizar atores do chamado sistema de justiça criminal e
segurança pública (polícia, Ministério Público, justiça e presídios) com o instrumental
científico-tecnológico construído pelo Instituto para uma gestão racional da segurança
pública, tanto no plano estratégico, como no tático-operacional. Ele foi elaborado por

1 WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 14 ed. São Paulo, Pioneira, 1999.
8 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

ocasião do Curso de Capacitação em Técnica Quantitativas e Análise Criminal, um


dos projetos2 do convênio firmado com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República (SEDH/PR) e realizado pelo ISP com o financiamento da
União Européia.
Mesmo entendendo que a Análise Criminal seja mais do que a coleta de dados
quantitativos para a produção de uma estatística criminal confiável, esta é, sem
dúvida, sua primeira etapa. Assim, torna-se importante primeiramente a construção
de bases de dados abrangendo informações sobre as práticas dos atores do sistema
de justiça criminal, juntamente com um ferramental analítico adequado; depois, a
sensibilização desses próprios atores para que, por meio de uma postura moderna,
possam de fato utilizar em toda sua plenitude o instrumental disponibilizado pelo ISP,
quer na projeção de cenários, na elaboração de inferências, no estabelecimento de
padrões ou no mapeamento de tendências criminais.
Evidentemente que estamos falando de um processo de modernização que,
como todo processo, apresenta uma ordem de etapas que precisa ser respeitada.
Seguindo essa ordem, o ISP vem procurando cumprir sua vocação institucional de
subsidiar a Secretaria de Estado de Segurança na elaboração de políticas públicas.
Nesse sentido o estado do Rio de Janeiro já conta, desde 1999, com o Programa
Delegacia Legal, dispondo de uma base de dados confiável das ocorrências registradas
em todo o território fluminense. A partir deles, o ISP produz a estatística criminal do
estado que é divulgada mensalmente na página eletrônica do Instituto3 e no Diário
Oficial do estado.
Por meio do mesmo convênio com a SEDH e a União Européia, o ISP também
desenvolveu o projeto SIAD4 (Sistema de Integração de Análise de Dados), com o
objetivo de integrar dados da Polícia Civil, da Polícia Militar e das Guardas Municipais5;
e desenvolveu, ainda, uma metodologia própria para a realização de pesquisas de
vitimização que visam compreender o fenômeno da sub-notificação criminal, mais
comumente conhecida como “cifra negra”. Seu primeiro resultado foi a Pesquisa de

2 Tanto esse quanto outros projetos ou programas aqui citados serão, de alguma maneira, abordados
nos artigos que compõem o presente livro.
3 www.isp.rj.gov.br
4 Cf. nota 2.
5 O piloto desse projeto foi iniciado no Município de São Gonçalo e a expectativa é de que, muito em
breve, ele possa ser expandido para todo o estado.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 9

Condições de Vida e de Vitimização6, realizada em 2006/2007 na Região Metropolitana


do estado do Rio de Janeiro e recentemente divulgada pelo ISP. Aliás, foi após a
divulgação dos dados dessa pesquisa, que o próprio Secretário de Estado de Segurança,
Dr. José Mariano Beltrame, aventou a possibilidade de se iniciar uma série histórica
para a avaliação das “cifras negras” no estado, o que já foi incluído no Planejamento
Orçamentário para o próximo ano.
Outro grande passo do ISP nesse processo foi a criação de um Observatório de
Análise Criminal no Núcleo de Pesquisas em Segurança Pública e Justiça Criminal -
NUPESP/ISP, que possibilita o monitoramento espacializado das incidências criminais
no estado, com o georeferenciamento dos dados das ocorrências policiais obtidas no
Centro de Comando e Controle7 da Secretaria de Estado de Segurança - SESEG.
Sabemos que ainda há muito caminho ainda para percorrer e, nesse aspecto,
seria interessante contarmos também com dados sistematizados de outros atores do
sistema de justiça criminal, além das polícias estaduais, problema que será discutido
ao longo do presente trabalho. No entanto, é bom ressaltar que o sucesso do primeiro
curso de análise criminal já nos aponta alguns avanços nesse sentido. Dessa forma, o
ISP resolveu oferecer uma versão mais curta do mesmo curso para policiais, jornalistas,
pesquisadores e gestores de segurança pública em geral, como uma capacitação a
ser continuada neste e no próximo ano. E ainda no intuito da sensibilização, foi
estabelecido um diálogo com a Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro para que
o mesmo programa também seja oferecido na Academia de Polícia Militar D. João VI
para Aspirantes recém-formados no Curso de Formação de Oficiais, o que atenderá à
Matriz Curricular proposta pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Percebe-se,
com isso, a imensa potencialidade que representa este trabalho que, inclusive, deverá
ser acrescido de outros artigos ou volumes, num futuro muito próximo.

MÁRIO SÉRGIO DE BRITO DUARTE


Diretor-Presidente do Instituto de Segurança Pública

ROBSON RODRIGUES DA SILVA


Vice-Presidente do Instituto de Segurança Pública

6 Cf. Nota 2.
7 Órgão que administra o recebimento das chamadas emergenciais 190.
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INTRODUÇÃO

Existe hoje amplo reconhecimento de que nenhuma organização pública ou particular


funciona bem sem recursos humanos capazes de desenvolver com eficácia, eficiência
e efetividade as atividades que lhe são destinadas. No âmbito das instituições que
compõem o sistema de justiça criminal, esta afirmação também é válida, razão pela qual
muito se tem discutido sobre quais habilidades devem ser consideradas indispensáveis
ao agente de segurança pública, para que esteja de fato capacitado a traçar ações de
prevenção da criminalidade, principalmente a violenta.

Entre as habilidades requeridas para o agente de segurança pública, encontra-


se a de empreender uma boa análise criminal nos momentos que antecedem o
planejamento das políticas públicas e, em especial, após a implementação dessas. Isto
porque uma política pública eficaz, eficiente e efetiva é aquela que consegue não
apenas prevenir o crime, mas, sobretudo, elevar a qualidade de vida dos cidadãos.

As ações que antecedem a elaboração da política e apontam suas virtudes e


vicissitudes têm como sustentáculo as informações produzidas em sua implementação.
Em boa medida, estas se encontram armazenadas nas organizações que compõem o
sistema de justiça criminal na forma de dados quantitativos, os quais podem ter sua
natureza e dinâmica, compreendidas através das técnicas de análise estatística. Daí
porque a estatística criminal tem se revelado como um dos principais instrumentos no
planejamento e avaliação das ações de segurança pública.

A análise criminal é entendida como um conjunto de processos sistemáticos


direcionados para o provimento de informação oportuna e pertinente sobre os padrões
do crime e suas correlações de tendências, de modo a apoiar as áreas operacional e
administrativa no planejamento e distribuição de recursos para prevenção e supressão
de atividades criminais. Contudo, este instrumento parece ainda não integrar o
cotidiano das organizações encarregadas da promoção da segurança pública na
realidade brasileira.

Consciente deste fenômeno e pressionado pela demanda contínua de diversos


policiais no que diz respeito à capacitação em técnicas quantitativas e análise criminal,
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 11

o Instituto de Segurança Pública - ISP1 propôs a realização do Curso de Capacitação


em Técnicas Quantitativas e Análise Criminal para os agentes de segurança pública do
estado do Rio de Janeiro. A proposta de realização do curso teve como sustentáculo o
fato de que vários agentes de segurança pública argumentavam que a não utilização
dos dados criminais produzidos pela delegacia legal e tratados pelo ISP se devia ao
desconhecimento das ferramentas de análise criminal.
A partir do convênio entre a Secretaria Estadual de Segurança Pública e a
Secretaria Especial dos Direitos Humanos do Governo Federal, com financiamento
da União Européia, o ISP capacitou, entre os dias 7 de agosto e 11 de outubro de
2006, cinqüenta e três agentes de segurança pública, através de um curso estruturado
em três módulos. O primeiro ministrou disciplinas capazes de dar suporte teórico à
compreensão dos métodos quantitativos. Nesta etapa, portanto, foram abordados
conteúdos relativos à introdução à estatística e à análise de dados, bem como programas
mais utilizados neste sentido, quais sejam EXCEL e SPSS. A segunda parte visou dar
suporte aos alunos na utilização dos dados de natureza criminal produzidos por cada
uma das organizações que compõem o sistema de justiça criminal quais sejam: Polícia
Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Judiciário e Sistema Penitenciário. Este módulo
teve como finalidade familiarizá-los com a utilização desses dados durante o exercício
de sua atividade cotidiana. Por fim, o terceiro módulo consistiu no compartilhamento
de experiências de organizações policiais militares de outros estados da federação
brasileira no uso de dados quantitativos enquanto ferramenta auxiliar na consecução
do planejamento tático e operacional da unidade policial.
O Curso de Capacitação em Técnicas Quantitativas e Análise Criminal foi,
portanto, um projeto de aperfeiçoamento dos agentes de segurança pública através da
introdução, na realidade prática destes agentes, de ferramentas de análise estatística
enquanto instrumento auxiliar na mensuração dos resultados das políticas públicas
implementadas e instrumento principal na elaboração de ações policiais preventivas
eficazes.
Alguns dos textos que integram o primeiro volume da série análise criminal
foram produzidos pelos professores do curso ao longo das aulas. Ou seja, trata-se de

1 O Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro é uma autarquia ligada à Secretaria
de Segurança Pública, que produz mensalmente estatísticas relativas à ocorrência de crimes no
estado. Esses dados constituem uma gama de informações que poderiam servir como ferramentas
no planejamento e avaliação de políticas públicas da área de segurança
12 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

trabalho construído não apenas a partir dos princípios teóricos e metodológicos que
orientam a análise criminal, mas, sobretudo, a partir do diálogo com os principais
usuários das ferramentas de informação e gestão que foram ensinadas no Curso
de Capacitação em Técnicas Quantitativas e Análise Criminal. Assim, os estudos
publicados neste volume representam uma tentativa de reunir as principais reflexões
sobre análise criminal e, desta forma, mudar o quadro de não uso das ferramentas
estatísticas enquanto instrumento e avaliação das políticas de segurança em razão do
desconhecimento destas.
A estrutura da obra em cinco capítulos reflete este propósito. O primeiro
capítulo analisa conceitualmente o papel da informação, em especial a estatística, na
seara da segurança pública, e a forma como os dados criminais têm sido produzidos
e utilizados no estado do Rio de Janeiro. Nele é desenvolvido o instrumental teórico
acerca da importância da informação no planejamento e avaliação das políticas de
segurança pública, utilizado nos capítulos subseqüentes.
O segundo capítulo apresenta uma discussão sobre os pressupostos da
estatística criminal, principalmente no que diz respeito às possibilidades de aplicação
dessa metodologia a diversas bases de dados criminais (ou não) disponíveis no Brasil. Já
o terceiro capítulo parte de uma dessas bases de dados, com ênfase na base construída
pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, para desenvolver a discussão sobre como foi
montado e como hoje é operado o sistema classificatório das ocorrências policiais.
Os capítulos 3 e 4 discutem a produção e o uso das informações criminais na
elaboração de ações e diagnósticos em segurança pública. O primeiro deles parte do
estudo de caso de Belo Horizonte e salienta que as diversas ferramentas estatísticas
ensinadas no Curso de Capacitação em Técnicas Quantitativas e Análise Criminal,
quando empregadas com o devido rigor metodológico, viabilizam a redução da
incidência criminal e, por conseguinte, a melhoria da qualidade de vida urbana. O
outro capítulo enfatiza as capacidades requeridas para o moderno policial na produção
e no uso das informações estatísticas e de como estas competências são ativadas e
dinamizadas através da metodologia IARA (metodologia orientada para a solução de
problemas composta por quatro etapas: Identificação, Análise, Resposta e Avaliação
- IARA).
O último capítulo discute a transparência dos dados na seara da segurança
pública a partir da análise das ações desenvolvidas de forma integrada pelas polícias
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 13

e pelas comunidades, e das informações produzidas pelos Conselhos Comunitários de


Segurança do Rio de Janeiro.
Com o primeiro volume da série análise criminal, desejamos suprimir uma lacuna
na segurança pública, propiciando ao leitor um instrumento de apoio e reflexão que
possa contribuir efetivamente para a melhor aplicação dos conteúdos apreendidos
durante o curso. Esperamos que a interação entre os diversos campos de conhecimento
possibilite a percepção de que o trabalho policial não se esgota no atendimento e
registro de ocorrências, mas, é uma atividade voltada para a identificação e resolução
de conflitos.

Andréia Soares Pinto


Coordenadora responsável pelo projeto

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro


Coordenadora Técnica
14 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

INFORMAÇÃO, ANÁLISE CRIMINAL


E SENTIMENTO DE (IN) SEGURANÇA:
CONSIDERAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA1

Ana Paula Mendes de Miranda

A informação e a construção do conhecimento


A informação é considerada usualmente como um conjunto de fatos (acontecimentos)
e/ou dados a respeito de algo, que constituiriam o ato de informar, entendido como
um processo de interação do sujeito com o mundo exterior. De acordo com a teoria da
informação, enunciar uma mensagem permite a redução da incerteza sobre uma dada
realidade. Nesse sentido, informar significa comunicar os fatos, tornando-os públicos,
e privilegiando uma visão dos fatos como “coisas”, cujo relato isento propiciaria a
percepção da realidade como ela é.
Mas o que são “dados”? São elementos de informações ou representações
de fatos que servem de base para a formação de uma análise, cujo resultado será
influenciado por diversos fatores. O uso mais comum dos “dados” está relacionado à
estatística.
A criação da palavra Estatística é atribuída ao pesquisador alemão Gottfried
Aschenwall (1719-1772) com o sentido de ciência do Estado, que permitiria aos
governantes ter um diagnóstico mais objetivo dos fatos concernentes aos seus
domínios. Acreditava-se, então, que as cifras trariam mais credibilidade e legitimidade
do que as descrições textuais. Tratou-se, portanto, de uma forma de conhecimento
que surge como um dos elementos da teoria da arte de governar, relacionada ao
desenvolvimento dos aparelhos administrativos do Estado, nos séculos XVII e XVIII.

1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no Painel Políticas Públicas, Violências e Discursos,
durante o Simpósio da Rede Interdisciplinar de Estudos Comparativos (RIEC): Direito, Justiça e
Segurança Pública - Isaac Joseph, o espaço público e as políticas públicas, no VIII Congresso Luso-
Afro Brasileiro de Ciências Sociais, em Coimbra, 2004.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 15

A busca pela objetividade e neutralidade é algo já amplamente discutido na


teoria do conhecimento2, tendo sido bem demonstrada por Foucault (1990), que
analisou a complexa relação entre os saberes e o poder, ao afirmar que todo saber é
político, não apenas porque foi produzido pelo Estado, mas porque todo saber tem em
sua origem relações de poder.
A estatística entendida como ciência do Estado se constitui em um exemplo
privilegiado dessa relação entre saberes e poderes, que vai desde a escolha dos temas
a serem investigados até os conceitos, bem como outros aspectos metodológicos da
produção de estatísticas públicas, tudo é produto de escolhas feitas pelos “analistas”.
Assim, as estatísticas não podem ser compreendidas como uma cópia da realidade, mas
sim como sínteses construídas a partir da observação das realidades. Conseqüentemente,
todo recorte estatístico é constituído por diferentes interpretações de um mesmo fato,
o que explica a existência de um grau aceitável e conhecido de erro, muito embora
haja um discurso de que os números sejam sempre exatos.
A inexatidão da informação estatística tem sido comumente interpretada como
uma forma de manipulação intencional, com o objetivo de obter os resultados que
interessam aos governos. Esta prática é tradicionalmente chamada de “maquiagem”,
como referência ao hábito de utilização de produtos de beleza para disfarçar
imperfeições e realçar pontos positivos, bem como para produzir máscaras e fantasias.
Não há como negar que a metáfora se aplica bem a diversas formas de governos,
nacionais ou internacionais, mais ou menos democráticos, que ao longo da história
procuraram dissimular alguns fatos e exibir outros tantos.
Porém, há que se problematizar mais a inexatidão estatística sob o risco de
perdermos um instrumento de análise necessário para a construção de políticas
públicas. Primeiro, é preciso se pensar para que servem os dados na segurança pública?
Servem para, principalmente, orientar a administração quanto aos caminhos que deve
seguir no planejamento, execução e redirecionamento das ações do sistema policial.
Servem, também, para a população conhecer o que está acontecendo ao seu redor;
e, depois, para que, conhecendo os dados e áreas de incidência, a população e os
diferentes setores da sociedade civil possam objetivar as demandas por providências
do Poder Público e contribuir para o esforço comunitário contra a insegurança.
O uso da informação estatística possui um caráter estratégico porque permite
dar significado a infinidade de dados que inundam a administração pública. A sua

2 Ver Kuhn (1974) e Morin (2005)


16 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

importância não está apenas na divulgação da informação, mas na transformação da


informação bruta em algo que possa servir para orientar ações futuras. Portanto, é o
contexto que vai determinar o sentido dos dados.
O processo de quantificação para que seja útil à interpretação da realidade deve
ser complementado pelas informações qualitativas, que fornecem mais detalhes sobre
o fenômeno que se pretende estudar.
A propósito da insegurança, cumpre sublinhar que os dados estatísticos das
polícias dão conta apenas do que se pode chamar de (in) segurança objetiva, o que
tem a ver pura e simplesmente com a quantidade das ocorrências criminais. Não dão
conta da (in) segurança subjetiva, também conhecida como sentimento de insegurança
(Roché, 1990 e 1998), que, independentemente dos dados objetivos, pode ser ampliada
por inúmeros fatores, mas principalmente pelo impacto emocional destas ou daquelas
ocorrências em função de quem seja a vítima ou o local onde tenham ocorrido.

A informação como instrumento de políticas públicas


O Brasil é uma república federativa, formada por 26 Estados, mais de 5.500 Municípios
e um Distrito Federal, cuja Constituição em vigor estabelece as competências relativas
à segurança pública, no título V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas),
em seu art. 144, como sendo um dever do Estado e direito e responsabilidade de todos,
sendo exercida “para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e
do patrimônio” (Brasil, 2004) pelos seguintes órgãos: polícia federal, polícia rodoviária
federal, polícia ferroviária federal, polícia civil, polícia militar e corpo de bombeiros
militares3.
O Estado do Rio de Janeiro é o único do Brasil que publica mensalmente em
Diário Oficial os registros de ocorrência em delegacias, de crimes ou outros eventos
ocorridos em todo o seu território4. Enquanto a cobertura de registros é de 100% no
Rio de Janeiro, segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública, a média nacional
é de 86%.

3 Embora as Guardas Municipais sejam citadas nesse artigo no §8, não estão listadas entre os órgãos
responsáveis pela gestão da segurança pública. Por outro lado, a polícia ferroviária federal é citada,
mas sua função é apenas proteger o que sobrou do patrimônio da Rede Ferroviária Federal, em
processo de liquidação.
4 Essas informações estão disponíveis na internet, no site www.institutodeseguranca.rj.gov.br.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 17

Este trabalho teve início em 1999, como parte do Programa de Qualificação


Estatística e Relação com a Mídia. Participaram deste projeto diversos setores
da sociedade, em especial, pesquisadores que estudam a temática da violência,
criminalidade e segurança pública (Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2000). Os
objetivos principais foram dar transparência aos dados; incorporar conhecimento
especializado no tratamento das estatísticas, proveniente ou não de fontes policiais;
e desagregar os dados por Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP)5, a fim de
produzir mapas de risco com indicação de pontos de concentração de ocorrências de
crimes.
Em 2000, foi criado o Núcleo de Pesquisa em Justiça Criminal e Segurança
Pública (NUPESP), vinculado ao Instituto de Segurança Pública6, tendo como
finalidades principais produzir os relatórios estatísticos sobre o sistema de segurança
pública estadual, além de desenvolver e coordenar estudos sobre a justiça criminal
e segurança pública, que possam contribuir para o aprimoramento profissional dos
policiais.
Trata-se de um órgão que pretende promover a integração entre a metodologia
acadêmica de pesquisa e a avaliação institucional do trabalho policial. Tradicionalmente,
a gestão dos recursos policiais e o planejamento das ações têm sido orientados apenas
pela “experiência” e “bom senso” dos agentes (investigadores, inspetores e oficiais
de cartório) e autoridades policiais (delegados). Nesse sentido, considera-se que a
realização de diagnósticos, a definição de metas, critérios de avaliação e a elaboração
de medidas de desempenho consistentes é um trabalho que pode auxiliar tanto para
avaliação da qualidade desse trabalho, quanto possibilitar o gerenciamento profissional
da polícia, de forma a constituir-se numa política pública de segurança.
Juntamente com a divulgação no Diário Oficial dos dados estatísticos sobre
a criminalidade no Estado, o Instituto de Segurança Pública (ISP) passou a publicar

5 Trata-se da correspondência geográfica entre a área de um batalhão da Polícia Militar (responsável


pelo policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública) e uma ou mais circunscrições de
delegacias da Polícia Civil (exercendo as funções de polícia judiciária e apuração de infrações
penais)
6 O Instituto de Segurança Pública é uma autarquia, criada em dezembro de 1999, para assegurar,
gerenciar e executar a política de segurança do Estado do Rio de Janeiro, elaborando o planejamento
da força policial que mais atenda às necessidades da sociedade. O ISP está vinculado à Secretaria de
Estado de Segurança Pública, mas tem receita própria e gestão descentralizada.
18 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

o Boletim Mensal de Monitoramento e Análise7, a fim de dar conta à população não


só do significado dos números em relação às metas estabelecidas para o setor, como
também do que eles representam em relação às séries históricas sobre os crimes
que mais preocupam a população. Os crimes analisados mais profundamente são:
homicídio doloso, extorsão mediante seqüestro, roubo de carga, roubo e furto de
veículos, roubo a banco, roubo a transeuntes, roubo a residência, roubo em coletivo
e latrocínio. Estes itens foram selecionados, pela Secretaria de Segurança Pública, por
atender aos seguintes critérios:
• “Crimes violentos, assim considerados internacionalmente, principalmente
o homicídio e o latrocínio;
• Crimes contra o patrimônio com o uso de violência - popularmente
chamadas de assaltos, tais como roubo a transeuntes, roubo em coletivos,
roubo e furto de veículos;
• Crimes passíveis de intervenção mais direta do Poder Público, razão pela
qual, por exemplo, o estupro, embora mereça atenção especial, não esteja
incluído entre estes crimes”8.
Paralelamente, outras formas de análise são realizadas e encaminhadas às
polícias, de modo a mapear as áreas e horários com maior concentração de ocorrências
registradas. Essas informações não são divulgadas para não prejudicar as atividades
policiais, já que são utilizadas para planejar as ações operacionais das polícias.
Dando continuidade ao Programa de Qualificação Estatística foi lançada a Série
Estudos, em 2005, voltada para a análise de delitos relacionados a manifestações de
violências interpessoais. No primeiro número, Dossiê Mulher, abordou-se os problemas
das violências sexuais e agressões físicas no Rio de Janeiro e no mundo.
Os profissionais que atuam no sistema de segurança pública, tradicionalmente,
trabalham apenas com dados relativos aos crimes que estão sob sua responsabilidade
direta. Embora, não haja nada de errado nisso, essa postura não permite perceber a
regularidade com que determinados delitos ocorrem, o que dificulta o trabalho de
planejamento.

7 Também disponível no site www.institutodeseguranca.rj.gov.br


8 Ver Boletim Mensal, op.cit
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 19

A identificação de padrões, a partir do cruzamento das informações existentes


nos bancos de dados das polícias, constitui-se em uma forma de sistematização mais
independente do que a memória individual dos agentes. Os policiais consideram
fundamental esta forma de trabalho, para que se possa falar no emprego de estratégias
preventivas.
Esta estratégia, no entanto, apresenta duas grandes dificuldades: romper
com a tradição policial de reter as informações e não compartilhá-las, e enfatizar o
aperfeiçoamento da qualidade das informações recebidas e processadas pela polícia.
Ressalta-se que a organização e análise dos dados são importantes por dois aspectos:
permite que as instituições policiais possuam insumos de qualidade para realizar
seu trabalho, visando reduzir a vitimização de cidadãos e policiais, além de permitir
que a administração pública conheça os principais problemas do ponto de vista da
população, já que se sabe que somente é registrado aquilo que é considerado mais
importante, como por exemplo, para fazer jus a direitos, como no caso do recebimento
de seguro de automóveis, ou nos casos de crimes contra a vida, onde o Estado tem a
obrigação de atuar.
A padronização da informação faz parte de um esforço de estruturação e
organização das instituições policiais, como forma de centralizar o acesso aos dados
na administração central e com o objetivo de reduzir o arbítrio policial. Trata-se de
buscar formas de controle institucionais, que assegurem a qualidade e a padronização
da informação e do trabalho policial.

Do caos às ordens: a disputa entre a “política do sigilo”


e a transparência política
O Registro de Ocorrência é o documento produzido pela Polícia Civil que poderá iniciar
um inquérito policial, quando houver indício da existência de algum crime. Conforme
já descreveu Roberto Kant de Lima (1995), ainda hoje o registro de ocorrência só é
efetivado quando a polícia assim o deseja, o que contraria a legislação e as orientações
governamentais atuais. Os policiais argumentam que estariam poupando tempo
do cidadão. No entanto, já foi verificado que, muitas vezes, o policial leva algumas
horas convencendo a vítima a não registrar o crime, gastando provavelmente tempo
equivalente ao necessário para se realizar o registro.
20 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

É comum criticar-se este tipo de prática, classificando-a como um indício


do despreparo policial, assim como do interesse em manter um número baixo de
registros, para não contabilizar um número alto de casos não resolvidos9. Embora essas
hipóteses não mereçam ser descartadas, acredito, contudo, que esse aparente descaso
faz parte de uma forma tradicional de organização e controle de informações, na qual
a desordem e a particularização do conhecimento são mecanismos fundamentais para
a distribuição e manutenção do poder10.

O registro de ocorrência, na prática, não se restringe às classificações penais. Ao


contrário, sua análise explicita mais o modo pelo qual a polícia entende os conflitos
sociais, nos quais se incluem os crimes tipificados na legislação brasileira. Observa-se
que há uma maior ênfase ao que se denomina modus operandi dos delitos, o que
explica, do ponto de vista policial, a existência de um número maior de títulos de
ocorrência do que as classificações de crimes na legislação.

Há que se considerar, ainda, que a classificação dos eventos é distinta também


entre as duas instituições policiais. Enquanto as categorias utilizadas pela Polícia
Civil são quase totalmente relacionadas à legislação vigente no país, que trata dos
crimes e contravenções, a classificação adotada pela Polícia Militar trata os eventos
de forma mais genérica, incluindo além dos crimes, eventos que são denominados de
“assistenciais” e os procedimentos considerados administrativos.

As classificações existentes na Polícia Civil totalizam cerca de 1200 títulos, que


abrangem a legislação relativa a crimes, contravenções, assim como títulos genéricos
que permitem a inclusão de eventos, que não se encaixam nas demais. As classificações
de ocorrências na Polícia Militar são agregadas em cinco grandes conjuntos (001 –
crimes; 002 – contravenções; 003 – trânsito; 004 – assistenciais; 005 – diversas), que
incluem um número variável de itens para detalhamento11.

9 No Boletim de Monitoramento nº. 02, de julho de 2003 (base junho), foi apresentado um
levantamento que indicava a média percentual de 2,7% de elucidação para os casos de homicídio.
No Relatório Final do Projeto Avaliação do Trabalho Policial nos Registros de Ocorrências e Inquéritos
Referentes a Homicídios Consumados em Áreas de Delegacias Legais (2005), a média de elucidação
de cinco delegacias analisadas foi de 4%.
10 Tal prática foi observada por mim em outras instituições públicas, tais como Cartórios de Registros
Públicos e Arquivos Públicos (MIRANDA 2000 e 2005).
11 Ver RAMOS (2002) e GUEDES (2003).
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 21

Um outro ponto importante, diz respeito à transitoriedade do título da


ocorrência na Polícia Civil, que pode ser modificado ao longo da investigação. Trata-
se de uma classificação inicial e provisória que atende ao relato feito no “calor dos
acontecimentos”, podendo ser alterado a qualquer momento pela autoridade policial,
em face a novos fatos e/ou outras informações obtidas durante o inquérito policial.
Neste sentido, a classificação de um fato do ponto de vista policial pode se diferenciar
da classificação do mesmo fato por parte do Ministério Público, podendo ter, ainda, uma
outra classificação quando do julgamento pelo juiz. Assim, uma análise aprofundada
deste ciclo pressupõe que todas as instâncias do sistema de justiça criminal divulguem
periodicamente seus dados, com a possibilidade do acompanhamento de um fato
desde o registro da ocorrência até o seu julgamento. Infelizmente, esse processo ainda
está longe de ser realidade no país.
A rigor, a classificação dos títulos dos registros de ocorrência deveria ser
realizada pelo delegado, mas a prática tem revelado que esta tarefa é feita pelos
agentes e, muitas vezes, estes títulos não são conferidos pela autoridade policial. Outra
situação ainda comum no cotidiano das delegacias é a classificação de um fato em um
título diferente para não contabilizá-lo na classificação correta. Isso ocorre quando há
a predominância de um problema numa região e os policiais decidem não registrá-lo
mais. Ressalta-se que tal prática pode acontecer independentemente de uma ordem
superior, o que caracterizaria uma situação de “maquiagem das estatísticas”. Ao fazê-lo
autonomamente, os policiais podem, apenas, estar tentando evitar que sejam cobrados
a melhorar a sua produtividade na investigação de tais delitos; podem também
demonstrar, ainda que inconscientemente, a discricionariedade do trabalho policial.
Desde 2004, em função de um maior rigor na análise dos dados e, conseqüentemente,
da observação de um maior número de erros, a Polícia Civil do Rio de Janeiro adotou
como procedimento regular, o encaminhamento dos registros em que há divergência
entre o título e o fato descrito para a Corregedoria, que por sua vez fica encarregada
de conferir e cobrar as alterações necessárias. Além do caráter correcional, pretende-se
com isso influenciar indiretamente a qualidade dos registros de ocorrências.
É importante lembrar que a organização dos dados na Polícia Civil teve início
em julho de 1997, quando a Assessoria de Planejamento (ASPLAN) começou um
trabalho de digitação e organização de banco de dados, trabalho que posteriormente
foi adaptado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, com o objetivo de criar
um sistema nacional e integrado de informações, atualmente em fase inicial de
22 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

implantação no Brasil12. Como ressalta Beato Filho (2000), são raras as secretarias de
segurança no Brasil que dispõem de departamentos de estatística e coleta de dados,
bem como da tecnologia necessária para tal. Em levantamento realizado pelo NUPESP
em 2004, constatou-se que dos 26 estados apenas quatro informavam regularmente
seus dados, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais. No entanto, os
diferentes formatos de classificação não permitem muitas vezes a comparação entre
os mesmos.
Uma outra mudança importante no processo de qualificação estatística do
Rio de Janeiro foi a criação do Programa Delegacia Legal, em 1999. Seu objetivo foi
modificar completamente a forma de operar de uma delegacia de polícia, a partir
da organização das informações e também da prestação de um serviço público de
qualidade à população, com a retirada das carceragens e a melhoria do trabalho
investigativo. No que tange à organização das informações, há um esforço contínuo
de padronizar as classificações, através da redação e divulgação de manuais. Este
processo, no entanto, ainda encontra resistências por parte dos policiais, que mantém
arquivos particulares, com informações sobre criminosos, informantes e até registros
de ocorrências, não incluindo as informações no banco de dados da instituição.
A resistência dos policiais às tentativas de padronização se soma à resistência
com relação à publicidade dos dados, insumo necessário à proposição de políticas
públicas. Entretanto, a resistência não deve ser encarada negativamente, ao contrário,
deve ser considerada um indicador importante do impacto das políticas públicas em
culturas institucionais. Quando não há nenhuma resistência é porque provavelmente
as mudanças não estão surtindo os efeitos esperados. Só se pode falar de efetividade
de uma política pública à medida que ela provoque impacto nas rotinas de uma
instituição, e ao fazê-lo, essa política sofrerá conseqüentemente críticas dos que não
desejam a mudança.
A divulgação sistemática dos registros de ocorrência possibilita um diagnóstico
preliminar, embora limitado, dos problemas que a população leva ao conhecimento da
polícia. No entanto, ater-se apenas ao que foi registrado retifica a imagem da polícia
como uma instituição destinada ao combate ao crime, em detrimento de uma outra
imagem, também existente, da polícia mediadora de conflitos intracomunitários e de
agência que articula a população a outras agências estatais.

12 Os dados referentes à economia, saúde ou educação já são há algum tempo regularmente coletados
e analisados nacionalmente, porém apenas recentemente, os dados oriundos das polícias passaram
a merecer tal tratamento, o mesmo não se pode falar sobre os dados do poder judiciário
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 23

É essa imagem da polícia que o projeto de integração das informações entre as


duas corporações e as Guardas Municipais pretende apresentar. Atualmente, os dados
dos atendimentos realizados pela Polícia Militar, seja através do serviço de emergência
(190), seja mediante o Talão de Registro de Ocorrência, não são sistematizados e
analisados. Destaca-se que esses dados são extremamente valiosos. Com eles, é
possível observar diversas práticas relativas ao que se chama "feijoada", ou seja, o
trabalho "assistêncial" que é considerado menos nobre, embora constitua 36% das
atividades cotidianas, contabilizados juntamente com procedimentos administrativos
que também não findam nas DP13.
Atualmente, está em andamento um projeto de Integração de Bancos de Dados
da Polícia Civil, da Polícia Militar e das Guardas Municipais do Estado do Rio de Janeiro,
que está analisando a situação dos bancos de dados das Polícias Civil e Militar visando
a sua integração. Numa segunda fase, pretende-se promover a integração com as
Guardas Municipais e a Justiça Estadual, visando à ampliação do conhecimento
relativo aos fatos relacionados à segurança pública, mediante o cruzamento das
informações14.
Simoni Lahud Guedes fez uma instigante análise sobre o sistema classificatório
das ocorrências na Polícia Militar (2003), destacando que o sistema de registro trabalha
conjugado a um sistema classificatório implícito, construído e transmitido pela ação
e observação do trabalho dos “mais experientes”. Assim, “o sistema classificatório das
ocorrências dirige o olhar para determinadas direções, hierarquiza e valoriza eventos,
desvaloriza outros e obriga à construção de liames entre o vivido e o registrado”
(2003:7).
O principal problema em transformar o conjunto de ocorrências em estatística
está exatamente na dificuldade de transformar a classificação policial, que toma por
referência a experiência vivida em anos de trabalho policial em uma outra classificação,
a estatística, cujos critérios lhe são exteriores, genéricos e pretendem alcançar uma
universalidade.

13 Segundo FERREIRA (2004), 50% das ocorrências atendidas pela PMERJ classificam-se como
condução à DP - obrigatória ou por opção das partes; 36% como fatos com procedimentos
administrativos ou assistenciais (sem DP) e; 14% como atendimentos frustrados (não chegaram a
se iniciar.
14 Este projeto é parte de um convênio com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Secretaria de
Segurança Pública e o Instituto de Segurança Pública, com financiamento da União Européia.
24 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Tal dificuldade se revela à medida que estamos tentando construir modelos


de tradução que possibilitem a comparação entre os fatos registrados pela Polícia
Civil, aonde o cidadão vai apresentar sua queixa, com os fatos registrados pela Polícia
Militar, que atende a seus chamados. Numa análise preliminar dos eventos, já é possível
observar que há algumas divergências de classificações entre as duas instituições, o
que certamente revelará o que é valorizado e desvalorizado pelas duas polícias.
A adoção da transparência como modelo de ação política tem sido apreciada
como discurso no país, em especial, no que se refere à prestação de contas do uso de
verbas públicas. Entretanto, este modelo contrasta com um outro, observável a partir
das práticas rotineiras de funcionários públicos, chamada de “política do sigilo”. Sua
característica principal é a expressão de um certo temor: os documentos públicos
quando analisados podem significar censura a uma má administração. Segundo José
Honório Rodrigues, a “política do sigilo” (1989: 13) corresponderia a uma velha tradição15
portuguesa que pretende esconder e sonegar os documentos, independentemente do
tempo já decorrido.
Esse desafio necessita ser enfrentado para que se possa efetivamente
compreender que a relação entre informação e democracia é biunívoca, ou seja, uma
não pode existir sem a outra (FERRARI, 2000). É preciso refletir também que esta
relação deveria assegurar o direito-dever de informar, o que equivale à possibilidade
de constituir e gerir fontes de informação, evitando-se os monopólios, bem como o
direito de ser informado, o que corresponderia ao acesso a uma pluralidade de fontes
informativas diferenciadas e de qualidade, evitando-se as informações manipuladas
por má fé e/ou por ocultação de fatos.

Publicidade dos dados e o sentimento de (in) segurança


A descrição de como os dados têm sido produzidos e analisados é o ponto de partida
para a discussão de como são construídas algumas representações a respeito da
insegurança e o medo da violência e sua relação com a mídia no Rio de Janeiro. Foram
selecionadas inicialmente 141 reportagens publicadas em jornais de circulação diária,
das quais foram 38 selecionadas, abrangendo os meses de junho, julho, setembro e
outubro de 2003; fevereiro, maio, junho e julho de 2004, relativos ao monitoramento

15 O conceito de tradição é entendido aqui como um determinado “padrão”, inconsciente, produzido


e reproduzido por um grupo através de suas práticas.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 25

dos dados referentes aos registros de crimes no Estado16. A escolha deste recorte
temporal está associada com a cobertura da imprensa durante a divulgação dos
Boletins Mensais de Monitoramento e Análise, pelo Instituto de Segurança Pública.
Foram incluídas ainda algumas análises dos dados levantados pela pesquisa “Avaliação
do sentimento de insegurança nos bairros da cidade do Rio de Janeiro”, em fase de
conclusão17.
A seleção dos jornais ocorreu em função da participação de seus repórteres
durante as entrevistas coletivas, quando foram apresentados os dados estatísticos,
contando com a presença não só dos principais jornais fluminenses (O Globo, O Dia, O
Fluminense, Extra, Jornal do Brasil e Jornal do Commercio), bem como de dois jornais
paulistas (O Estado de São Paulo e A Folha de São Paulo).
Uma primeira constatação diz respeito ao espaço dado pelos jornais ao tema.
Com exceção do Jornal Extra, cujas matérias sobre as estatísticas aparecem no caderno
denominado “Geral”, os demais apresentaram suas matérias em seções chamadas de
“Dia a Dia” / “Nosso Rio” / “Polícia” (O Dia); “Cidade” (O Fluminense e Jornal do Brasil);
“Rio” (O Globo); “Cotidiano” (Folha de São Paulo); “Cidades” (O Estado de São Paulo);
“Rio de Janeiro” (Jornal do Commercio).
Esta localização certamente não é casual e indica uma associação entre a
representação do cotidiano da vida urbana ao aumento da violência e do crime, o que
já foi amplamente analisado pela ciência social brasileira, conforme apontam Kant de
Lima, Misse e Miranda (2000).
Um outro ponto importante diz respeito aos jornais paulistas que muitas vezes
dão um maior destaque aos fatos ocorridos no Rio de Janeiro e pouco falam sobre os
eventos ocorridos em São Paulo18. Esse silêncio não pode ser considerado casual. Muito
menos se pode imaginar que a principal metrópole do país seja um paraíso na terra,

16 O levantamento foi realizado pelos estudantes de Comunicação Social, Bárbara Tiago Bono e
Gabriel Souza, e de Ciências Sociais, Eliane dos Santos da Luz, estagiários do ISP.
17 A pesquisa foi financiada pela FAPERJ, tendo sido realizada em nove bairros (Bangu, Bonsucesso,
Botafogo, Campo Grande, Copacabana, Lagoa, Méier, Pavuna, Santa Cruz), levando-se em conta o
IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de cada bairro, os critérios de renda, escolaridade, taxa
anual de homicídios e população. Foram aplicados 400 questionários em cada bairro a partir de
uma amostra por cotas de gênero e idade, totalizando 2.000 pessoas. Participaram desse projeto os
pesquisadores do ISP: Ana Luísa Vieira de Azevedo, Andréia Soares Pinto, Renato Coelho Dirk.
18 Ver também RAMOS E PAIVA (2005)
26 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

já que é pública a posição da política de segurança pública do estado de São Paulo,


contrária à divulgação de informações relativas aos problemas locais. Atualmente, os
dados são divulgados pela internet de forma agrupada, tais como crimes contra o
patrimônio, crimes contra a vida etc., o que impossibilita qualquer tipo de comparação
com os demais estados. Este fato, no entanto, tem sido pouco analisado, tanto do
ponto de vista acadêmico, quanto jornalístico.
A visibilidade dada à criminalidade do Rio de Janeiro em detrimento da existente
em São Paulo é apontada por Michel Misse (1999) como a estratégia de construção de
um “paradigma da violência carioca”, que se constitui em torno da representação de
um perigo social que poderia contaminar o país, expresso pelo discurso do “aumento da
violência” a partir da década de 1980. Isso coincide com o período de democratização
do país e com a expansão do ‘banditismo”, que deixa de ser exclusividade das classes
pobres e se estende às classes médias e elites da cidade. Como conseqüência os signos
da violência passaram a ser os fatos que se apresentam sob a forma de desordem, caos
urbano e falta de controle por parte do Estado, como se o passado recente tivesse sido
diferente deste quadro.
O espaço dado ao crime não é o único objeto interessante do ponto de vista
analítico. Conforme nos assinala João Trajano Sento Sé, o mais relevante seria a forma
de abordagem, ou seja, a compreensão do modo como essas modalidades discursivas
são construídas. Questionando a qualidade das abordagens a respeito da segurança
pública, João Trajano afirma: “despojada de maior consistência analítica, a imprensa,
em geral, e a mídia escrita, em particular, se restringem a acionar os mecanismos
afetivos de produção de notícia na veiculação de casos envolvendo a violência. É
gritante a ausência da contrapartida mais ponderada de uma exposição ainda que
eventual, consistente e informada do quadro em que os eventos relatados devem ser
colocados.” (2003: 35).
É certo que a mídia não cria a realidade, ela faz parte dela, mas a falta de
consistência analítica a torna um instrumento forte para a divulgação e reprodução
dos atos de violência. Ela constrói um discurso e/ou uma imagem do transgressor
como um Outro que é estranho, que não pertence à sociedade, vivendo quase na
animalidade, a quem se deve temer e, portanto, afastar do convívio social19.

19 Sobre o tema ver BENEVIDES, 1981; CARDIA, 1994; MINAYO, 1999; RONDELLI, 1997 e 2000.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 27

Essa visão conservadora predomina nas análises sobre a violência, tendo como
uma rara exceção o trabalho organizado por PEREIRA et al (2000), que sustenta não
ter a violência necessariamente uma conotação negativa. Esta pode ser uma forma
de expressar o descontentamento diante da realidade e até de deflagrar processos de
renovação social, constituindo-se, assim, em um fenômeno de caráter polissêmico,
para o qual as análises normativas e morais não são apropriadas. Ou seja, trata-se de
compreender o sentido que tem a violência, ou suas formas de manifestação, a partir
do ponto de vista da dinâmica cultural de uma dada sociedade.
Nesse sentido, a violência no Brasil pode ser pensada a partir de uma dupla
perspectiva: “por um lado, surge como uma realidade alheia e hostil à realização mais
plena das tentativas democratizantes da sociedade em todos os níveis, da marginalização
do pequeno criminoso até a repressão militar de conflitos trabalhistas. Por outro, a
violência aparece como expressão limite de articulações culturais dinâmicas, a opção
para reivindicar exigências sociais justas, a forma de representar novas identidades
culturais ou ressimbolizar a situação de marginalidade, dando, assim, início a uma
tentativa de superação da exclusão social” (PEREIRA et al, 2000:14-15).
A mídia é uma das instituições políticas, tal como a universidade e a polícia,
que produzem e transmitem verdades, no sentido que Foucault definia como “um
conjunto de procedimentos para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o
funcionamento dos enunciados” (1990: 14). Trata-se, portanto, de uma disputa não
“em favor da verdade”, mas sim dos efeitos de poder que se obtém ao se classificar o
que é falso ou verdadeiro.
A credibilidade desfrutada pelos meios de comunicação é um dos dispositivos
de sua influência na construção dos discursos, que se contrapõe à baixa credibilidade
das instituições policiais, conforme podemos observar a partir dos dados levantados
na pesquisa “Avaliação do sentimento de insegurança nos bairros da cidade do Rio
de Janeiro”. Nos nove bairros da cidade do Rio de Janeiro pesquisados, 67,5% dos
entrevistados afirmaram confiar nos meios de comunicação, enquanto 38,5% disseram
confiar na Polícia Civil e apenas 29,3% confiam na Polícia Militar. Quando perguntados
se o que sai na mídia sobre a criminalidade no bairro, 48,6% afirmaram que os meios
de comunicação refletem bem os fatos ocorridos; 30,1% disseram que exageram os
fatos ocorridos; e 21,3% falaram que há uma diminuição dos fatos ocorridos.
28 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Quando perguntados sobre o destaque dado às notícias sobre criminalidade no


Rio, 77,1% dos entrevistados afirmaram que o destaque é grande, contra 22,9% que
discordaram dessa idéia. Quanto às razões para esse fato, 35,3% das pessoas disseram
que a atuação do crime organizado é responsável pelo destaque na mídia; 23,7%
alegaram que a cidade tem fama de violenta; 19,1% responderam que isso se deve à
importância da cidade no país; 18,5% apontaram que a cidade tem fama de ter uma
polícia violenta; 3,4% apresentaram outros fatores.
A credibilidade maior dos meios de comunicação do que das instituições policiais
assegura uma maior influência no público, na medida em que transmite uma imagem
de sinceridade e neutralidade, o que não ocorreria com as instituições policiais. A
recepção de uma mensagem veiculada pela imprensa, cujo conteúdo seja proveniente
de informações policiais, já provoca uma desconfiança a respeito de sua veracidade,
não só nos leitores, mas também entre os próprios jornalistas, que geralmente partem
do mesmo pressuposto. A isso se soma o fato de que os dados oriundos de fontes
policiais são analisados por um órgão estatal, embora técnico, o que também o torna
suspeito. Nesse caso, o fluxo de comunicação já tem seu início comprometido.
A análise de algumas manchetes originadas a partir da apresentação pública
de dados estatísticos permite fazer algumas considerações importantes a respeito da
construção de narrativas sobre o crime (CALDEIRA, 2000), que teriam a função de (re)
ordenar o mundo a partir da repetição de histórias que, por sua vez, só serviriam para
reforçar as sensações de perigo e de insegurança.
Considerando que a divulgação dos dados oficiais era feita mediante a
apresentação de um resumo do Boletim Mensal, durante uma entrevista coletiva20,
optou-se por selecionar apenas as matérias que apresentaram de formas distintas
as estatísticas de um mesmo período, tomando como referência a manchete e o
subtítulo da notícia. Estão em destaque as notícias relativas ao mesmo mês, no quadro
a seguir.

20 Essa estratégia vigorou durante o período de junho 2003 até junho de 2005.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 29

Quadro 1: Cobertura jornalística das estatísticas policiais


Data Jornal Manchete Subtítulo
08/07/2003 Jornal do Brasil Cresce o número de Assaltos a pessoas comércio e
roubos no Estado residências são responsáveis
pelo aumento da sensação de
insegurança

08/07/2003 O Fluminense Nova metodologia para Segundo dados do Estado, de 10


analisar índices modalidades comparadas, apenas 3
tiveram alta em um ano
08/07/2003 O Dia Roubos a lojas crescem Três tipos de crime tiveram
aumento e sete caíram em maio
22/07/2003 Jornal do Cai o número de
Junho teve menos crimes, em
Commercio assaltos, homicídios e
comparação com o do ano passado
latrocínios
22/07/2003 O Globo Estatística da violência
em junho tem queda Número de mortes em confrontos
em 7 dos 10 índices com a polícia aumenta quase 50%
principais
29/08/2003 Extra A asfixia vai continuar Estado comemora queda no
número de carros roubados e fim
dos assaltos a bancos
29/08/2003 Jornal do Mais latrocínio e menos Secretaria de Segurança divulga
Commercio assaltos e roubo de carro índices apurados em julho
29/08/2003 O Fluminense Aumenta número Secretaria de Segurança Pública
de roubos a lojas e considera gravíssima a situação em
residências no Estado Niterói
23/09/2003 Jornal do Só índices de homicídio
Violência: Em agosto houve queda
Commercio doloso e assalto a
em 8 dos 10 crimes monitorados
residência sobem
23/09/2003 Jornal do Brasil Roubos e assassinatos Estatísticas de criminalidade no Rio
crescem indicam aumento de homicídios e
ataques a residências no Estado
17/10/2003 Folha de São Paulo Polícia do Rio mata mais De janeiro a setembro de 2003,
do que em 2002 foram 917 civis mortos em
confrontos; incidência de 8 tipos de
crime sobre queda
17/10/2003 O Globo Violência: índices caem,
____________
mas assalto a casas sobe
30 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

14/11/2003 O Globo Estatística oficial


aponta redução na Nove crimes caíram. Mortes em
criminalidade confronto aumentam 80%

14/11/2003 Jornal do Índice de violência cai,


Commercio mas assalto ao comércio Nove itens analisados apresentam
aumenta queda

18/02/2004 Extra Caem os índices de


violência no estado ____________

18/02/2004 O Fluminense Secretaria divulga nova Pelos números oficiais, nove dos
queda na criminalidade 10 delitos considerados mais
importantes sofreram redução em
janeiro com relação ao mesmo
período de 2003
18/02/2004 O Dia Perigo dentro de casa Número de assaltos a residência é
o único a não cair entre os 10 tipos
de delito
21/04/2004 O Globo Estatística aponta
redução em oito índices Números são menores do que os de
de criminalidade no março de 2003, mas estão em alta
Estado
21/04/2004 Jornal do Em dez modalidades,
Commercio apenas latrocínio Estatística mostra queda
cresceu
18/05/2004 Extra Oito crimes registraram
____________
queda no mês de abril
18/05/2004 Jornal do Brasil Crescem roubos e
____________
latrocínio
18/05/2004 O Estado de São Sobe número de assaltos Apesar disso, invasão de casas é o
Paulo e latrocínios no Rio crime tido como mais problemático
na cidade
18/05/2004 O Dia Sobem índices de dois Roubos a pedestres e seguidos de
crimes morte cresceram mês passado
18/05/2004 O Globo Caem números de oito Latrocínio confirma tendência de
tipos de crimes aumento e assaltos a pedestre têm
361 casos a mais
18/05/2004 Folha de São Paulo Números de latrocínios
e de roubos a pedestres ____________
aumentam no Rio

Fonte: Jornal O Globo, Jornal do Brasil, Jornal O Dia, Jornal O Estado de São Paulo, Jornal Folha de São
Paulo, Jornal Extra, Jornal O Fluminense e Jornal do Commercio
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 31

Pobre do leitor que se utilizar de diversas fontes para estar bem informado!
Se considerasse as manchetes publicadas em julho de 2003, relativas aos dados
divulgados sobre o mês de junho de 2003, não chegaria à conclusão alguma, já que
duas se referem à queda e outras duas se referem ao aumento dos crimes. Afinal, o que
teria acontecido com os registros de crime no estado?
A primeira observação que podemos fazer é que, em primeiro lugar, há uma
confusão entre as noções de criminalidade e violência utilizadas propositadamente
como sinônimas. Essa associação provoca uma série de equívocos. É sabido que não
se pode falar de violência e sim de violências, devendo ser entendidas como um
conjunto de representações de uma idealidade negativa que se opõe às idéias de paz,
consenso, segurança, integração e harmonia social (MISSE, op. cit.). Nota-se ainda
que a criminalidade aparece nas notícias como um conjunto de práticas (roubos e
homicídios) resultantes da ineficácia da ação repressiva da polícia, o que contradiz
a proposta de Machado da Silva (1995 e 1999), de que a criminalidade não pode ser
compreendida apenas pela perspectiva de referência ao Estado (ausência do Estado;
Estado paralelo etc.), e sim pela sua organização social e suas redes de sustentação. O
que está em jogo é principalmente o questionamento sobre os mecanismos formais e
informais de controle social, e não apenas o papel do Estado. Violência e criminalidade
são, portanto, questões distintas que só podem se tornar sinônimas quando se
considera que na interpretação dada pela imprensa há uma mensagem oculta de que
o Estado deve atuar para aniquilar os conflitos, restaurando a ordem, numa concepção
unitária e homogeneizadora da vida social.
A associação das noções de criminalidade e violência acaba também por
obscurecer outras modalidades criminosas, em especial as que se referem aos crimes
econômicos (lavagem de dinheiro, corrupção, sonegação)21.
Uma segunda observação diz respeito à representação construída sobre as
análises elaboradas pelo NUPESP, que enfatizam o fato de que estamos trabalhando
com os registros de ocorrência, que não correspondem à totalidade de eventos
ocorridos no mês anterior. De modo geral, os jornais possuem uma postura ambígua,
ora se referem aos números como a realidade nua e crua, ora insinuam que os números
não são reais porque seriam maquiados.

21 Sobre a relação entre os crimes econômicos e a mídia ver Miranda (1999) e (2002).
32 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

A terceira observação se refere ao uso constante dos verbos no tempo presente


do modo indicativo, o que do ponto de vista gramatical, significa que o processo
ocorre simultaneamente ao momento em que se fala. Embora seja possível, na Língua
Portuguesa, o uso do presente significando um processo já ocorrido no passado, essa
forma discursiva propicia ao leitor a impressão de que aquele fato continua contecendo
na mesma intensidade.
Uma última observação corresponde à abordagem dada pelos diferentes órgãos
de imprensa aos números. Ao longo de nossa análise, observamos que o Jornal O Dia,
em seus títulos, dá maior ênfase a dados negativos, o que faz com que o leitor tenha
de imediato uma má interpretação dos dados. Já jornais como O Globo e Extra, do
mesmo grupo editorial, valorizam os dados de delitos em queda, não deixando de
divulgar, através do subtítulo, os dados relevantes em alta.
O Jornal do Brasil destaca em suas manchetes somente dados de delitos em alta,
revelando os números na íntegra apenas no decorrer do texto. O jornal O Fluminense,
por sua vez, apresenta em suas matérias os dados positivos dos índices, valorizando-
os. Por fim, o Jornal do Commercio foi o único que informou os dados de maneira
íntegra, de forma a não gerar uma opinião ou interpretação direta sobre o assunto.
Podemos concluir que há de modo geral, uma abordagem que privilegia a
denúncia como forma discursiva, em detrimento da descrição, que seria a técnica
mais adequada em face do conteúdo abordado.
A denúncia funciona como uma espécie de acusação, onde os fatos relatados
equivalem a uma imputação de erro ou culpa a outrem, mesmo que não se tenha
provas da veracidade da mesma. Essa abordagem privilegia a construção de um
discurso homogêneo, que não favorece a reflexão crítica.
Ao contrário do que se pensa comumente, a leitura de um jornal pode conformar
o leitor à condição de um sujeito receptor acrítico de informações, ao mesmo tempo
em que o faz acreditar que está lidando com a realidade (SERRA, 1980).
Assim, as narrativas que enfatizam o crime fazem o medo proliferar, já que
tornam plausível a idéia de que o leitor será mais uma vítima; as narrativas denuncistas
podem ainda reificar preconceitos e a definição de certos lugares e grupos como
perigosos, como revelam os dados levantados pela pesquisa “Avaliação do sentimento
de insegurança nos bairros do Rio de Janeiro”.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 33

Tabela 1: Características de um Lugar Perigoso


Absoluto %
1) Condições do local 1473 43%
2) Proximidade a outros lugares considerados perigosos 511 15%
3) Sem policiamento 335 10%
4) Lugares específicos 285 8%
5) Todo lugar 240 7%
6) Presença de elementos suspeitos 189 6%
7) Ocorrências de crimes e atos de violência 161 5%
8) Presença do tráfico de drogas 90 3%
9) Com policiamento 9 0%
10) Outros 135 4%
Total 3428 100,00%

Fonte: ISP, pesquisa “Analisando o sentimento de insegurança nos bairros do Município do Rio de
Janeiro”, 2004.

As categorias da tabela agrupam informações obtidas através da pergunta


aberta “O senhor saberia reconhecer um lugar perigoso? Quais suas características?”,
englobando termos e expressões espontâneas, de acordo com os seguintes critérios:
1. Condições do local: deserto, pouco movimentado, mal iluminado, escuro,
com becos, matagais, lugares desocupados, trânsito parado ou parada em
sinais, ambiente suspeito, hostil, agitado, pesado;
2. Proximidade a outros lugares considerados perigosos: favelas, comunidades
carentes, pobres ou sem recursos;
3. Presença de elementos suspeitos: pivetes, mendigos, drogados, pessoas
suspeitas, estranhas, de má índole, desocupadas, desempregadas, pessoas
armadas, bandidos;
4. Ocorrência de crimes e atos de violência: tiroteio, assassinatos, assaltos
constantes;
34 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

5. Presença de tráfico de drogas;


6. Com policiamento;
7. Sem policiamento;
8. Lugares específicos: exemplos de nomes de locais considerados perigosos
9. Todo lugar: sem especificar condições;
10. Outros: termos e expressões muito específicos.
A forma simplista, e até caricatural, como essas narrativas são construídas
acabam por reforçar modelos segregacionistas, posto que tentam eliminar as
ambigüidades e complexidades do processo de administração e controle de conflitos.
Os discursos produzidos tentam também reorganizar o mundo como uma ordem
social homogênea e estática, em contraposição às experiências vividas em crimes, que
desorganizam o mundo.
Configura-se, deste modo, que a segurança é, do ponto de vista individual,
um sentimento que resulta da crença de que não há risco ou perigo iminente.
O sentimento de insegurança é caracterizado, segundo Roché (1990 e 1998), pelo
medo e a preocupação com a ordem. Embora seja difícil mensurá-lo, o sentimento de
insegurança não é irreal ou imaginário. O sentimento de insegurança, no nível ideal-
típico do medo, se associaria a uma sensação difusa de angústia ou de ansiedade que
permaneceria para além dos acontecimentos e que não possuiria um objeto definido.
O medo é uma construção social (DELUMEAU, 1990), onde se teme o que se
considera ser um grande perigo, não se levando em conta os riscos mais freqüentes. A
análise dos índices de criminalidade não serve para explicar o medo e o sentimento de
insegurança22. Existem, portanto, outros fatores, muitos de ordem subjetiva, incidindo
sobre o sentimento de insegurança, além do conhecimento sobre o número efetivo de
ocorrências criminais.
Então, se os dados da criminalidade não incidem diretamente sobre o sentimento
de insegurança e se as estatísticas são reconhecidamente imprecisas, caberia perguntar
por que elas seriam informações relevantes para a construção de políticas públicas de
segurança?

22 Ver Sento-Sé, 2003, 25


SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 35

Por que é preciso divulgar e analisar os números da criminalidade?


É relevante a divulgação dos dados estatísticos por duas razões principais: dar
visibilidade ao trabalho policial e, por conseqüência, aumentar a possibilidade de
cobrança por resultados, pela população e pelo poder público; bem como possibilitar,
mesmo que indiretamente, a utilização dos dados como base para a implementação de
planejamento nas políticas de segurança de caráter universalista, e não particularista,
como tem sido a tradição. Reforça-se, assim, a idéia de que a segurança pública é um
serviço que deve ser oferecido pelo Estado a todos os cidadãos de modo racional, “em
termos objetivos (diminuição de riscos e perigos reais) e subjetivos (diminuição do
medo)” (SILVA, 2003:1).
No entanto, não basta somente cobrar resultados das polícias e demais órgãos
do sistema de justiça criminal. É preciso que se considere que a análise criminal
não é uma novidade, e tampouco uma solução mágica para resolver o problema da
criminalidade, da delinqüência e das violências.
Outro aspecto a considerar é que, como qualquer análise científica, a análise
criminal está diretamente relacionada com o enfoque teórico que orienta o recorte
dos dados. Com essa afirmação, pretendo ressaltar que antes de se iniciar a escolha
desta ou daquela tecnologia, é necessário se definir o que se pretende com ela.
Tudo isso pode parecer obviedades, mas não o são. Na prática, é sabido que
muitas vezes somos seduzidos por programas de computador que revolucionariam
o mundo!, se soubéssemos o que fazer com eles... É claro que a tecnologia facilita
em muito o trabalho do analista criminal, que pode manipular mais informações em
menos tempo, mas ele tem que saber para que e como tratar as informações.
Considero que a divulgação de dados é o primeiro passo deste processo, pois
provoca, mesmo involuntariamente, o envolvimento dos agentes na busca pela
qualidade da informação. Na medida em que são divulgados, provocam diversos
questionamentos, que só podem ser respondidos se a informação estiver disponível
no banco de dados. E não há banco de dados de informações policiais, ou qualquer
outro, se as informações não forem coletadas – nos atendimentos e investigações – e
informatizadas. É comum que policiais (civis ou militares) procurem por informações
que sabidamente não são regularmente coletadas pelos próprios policiais. Como
resolver essa contradição?
36 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Devolver a pergunta é uma possibilidade concreta e imediata para a qualificação


das informações contidas nos registros policiais. Outra possibilidade é a produção de
relatórios analíticos, que originarão uma série de questionamentos sobre a validade
das suas conclusões. Essas duas estratégias permitem indicar que jamais será possível
a qualificação da informação policial, sem que os policiais se envolvam diretamente no
processo. O resultado dessas ações pode ser constatado pela supressão e/ou redução
de críticas dos pesquisadores aos dados do Rio de Janeiro23.
Assim, a divulgação dos dados atende simultaneamente a dois propósitos:
é uma prestação de contas à sociedade, e é também um instrumento poderoso de
controle interno, já que permite identificar os gargalos da atuação policial.
O segundo passo diz respeito à sensibilização dos policiais da importância
e utilidade da análise criminal. Consideramos que antes de ensinar as técnicas
de manipulação de softwares estatísticos e de geoprocessamento, é necessário
que os policiais percebam o quanto essas ferramentas podem contribuir para a
profissionalização das polícias. Nesse sentido, o ISP realizou I Encontro de Qualificação
Estatística e Análise Criminal e a I Jornada de Qualificação Estatística e Análise Criminal,
em 2004, voltado para os policiais militares e civis. Nos dois eventos, discutiu-se
a necessidade do fortalecimento da integração entre as polícias; a necessidade de
adequação das tecnologias à análise da dinâmica criminal; apresentação dos órgãos,
produtos e serviços disponíveis; a importância do uso técnico das informações e
recursos disponíveis atualmente na melhoria de qualidade dos serviços de polícia
judiciária e dos serviços de polícia de preservação da ordem pública, tomando por base
estudos de casos, onde delegados e oficiais apresentaram suas experiências concretas

23 Em abril de 2005, o ISP organizou o I Encontro Sistema Estadual de Estatísticas de Segurança


Pública e Justiça Criminal, que teve como objetivo apresentar a situação do sistema à época, bem
como as mudanças então previstas, possibilitando assim sua avaliação e a discussão de um novo
modelo de divulgação dos dados, tendo em vista a incorporação de sugestões para a sua melhoria.
Como conseqüência, foi criado o Grupo de Trabalho Sistema Integrado de Informações Policiais,
formado por representantes de importantes núcleos de pesquisa da área, de várias instituições,
a saber: Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes - CESeC;
DataBrasil Ensino e Pesquisa/UCAM, Grupo de Estudos Estratégicos - GEE -Coppe - UFRJ, Laboratório
de Análise da Violência - LAV/UERJ, Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana
- NECVU/UFRJ, Núcleo de Pesquisa das Violências - NUPEVI- UERJ, Instituto de Pesquisa do Rio
de Janeiro - IUPERJ Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro - SMS, Núcleo Fluminense
de Estudos e Pesquisas - NUFEP - UFF, Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde
Jorge Careli - CLAVES, além de contar com a presença de uma consultora da SENASP. Ver também
SOARES et al (2005)
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 37

e os resultados alcançados no uso das informações e recursos técnicos atualmente


colocados a sua disposição.
A análise criminal que é desenvolvida atualmente pela equipe técnica
multidisciplinar24 do Instituto de Segurança Pública, através do Núcleo de Pesquisa em
Segurança Pública e Justiça Criminal (NUPESP), tem como objetivo realizar estudos
analíticos e sistemáticos tomando por base as relações entre as ocorrências registradas
e os padrões e tendências (aumento, estabilização, redução) dos delitos em diferentes
regiões do Estado25. Outra linha de atuação está direcionada aos métodos analíticos
de diagnóstico, monitoramento e avaliação da própria performance das polícias, em
especial, ao acompanhamento da redução da letalidade policial e da vitimização
policial.
Com base nas discussões realizadas em 2004 e com as demandas e obstáculos
encontrados pela equipe do NUPESP, que identificou um aumento de demanda por
dados pelos oficiais superiores, a mídia e as instituições de pesquisa, observou-se
também a sub-utilização dos dados criminais em uma dimensão micro, ou seja, pelas
unidades de segurança através dos responsáveis pelo planejamento. Desta forma, foi
elaborada uma proposta de capacitação dos policiais militares no uso de técnicas de
análise quantitativa e fundamentos metodológicos para traçar metas e mensurar
resultados, voltada para o aperfeiçoamento do planejamento estratégico26. Ainda
não se pode prever os resultados do curso, que será desenvolvido ao longo de 2006,
mas pode-se afirmar que a aproximação entre profissionais da segurança pública e
da comunidade acadêmica27 será extremamente profícua para a construção efetiva
de políticas públicas para a segurança, voltadas para a prevenção dos delitos e para a
redução da violência.

24 A equipe é composta por policiais civis, militares e pesquisadores, cuja formação é variada (cientistas
sociais, geógrafos, estatísticos), bem como a titulação (especialistas em políticas públicas, mestres
e doutores).
25 As variáveis utilizadas geralmente são dia da semana, hora, local, perfil da vítima, perfil do autor,
modus operandi
26 O curso de Capacitação em Técnicas Quantitativas e Análise Criminal foi desenvolvido com recursos
da União Européia.
27 Outras parcerias já têm se mostrado exitosas no Rio de Janeiro: com a Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, no Curso de Extensão em Segurança Pública, que funciona desde 1999; com
a Universidade Federal Fluminense, no Curso de Especialização em Políticas Públicas de Justiça
Criminal e Segurança Pública, criado em 2000.
38 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Não se pretende com a análise criminal medir qual é a quantidade de crimes


que ocorrem, o que, aliás, é impossível, pode-se apenas estimar a subnotificação dos
crimes que varia em função do seu tipo28. O que a análise criminal pode contribuir é no
fornecimento de subsídios para ações do poder público, seja na dimensão tática, para
que os policiais possam realizar melhor as investigações e o patrulhamento, seja na
dimensão estratégica, de modo que os gestores e formuladores das políticas possam
realizar projeção de cenários.
Por último, urge salientar que a análise criminal não é um fim em si mesma,
é apenas a primeira etapa para o desenvolvimento de políticas públicas e para a
profissionalização das polícias, restando ainda muito trabalho a ser feito.

28 Crimes sexuais tendem a ser os menos registrados e informados, enquanto o roubo de veículos tem
a menor subnotificação por causa do seguro
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 39

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42 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

COLETANDO E EXTRAINDO INFORMAÇÕES DOS


BANCOS DE DADOS CRIMINAIS: A LÓGICA DAS
ESTATÍSTICAS DAS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS

Doriam Borges

Introdução
Nos últimos anos os fenômenos relacionados à violência, criminalidade e segurança
pública têm sido cada vez mais estudados. No entanto, ainda existem algumas dúvidas
no que se refere às abordagens e os métodos mais adequados para uma análise
criminal. Neste sentido, com o intuito de abordar este tema, discutiremos o estado das
artes das pesquisas e bases de dados deste fenômeno no Brasil, introduzindo os usos
e problemas metodológicos de uma pesquisa, a importância da gestão da informação
no desenvolvimento de políticas públicas, e a criação e manipulação de ferramentas
analíticas para o fenômeno da violência e criminalidade.
Deste modo, o objetivo principal desta discussão é apresentar de uma forma
simples a idéia da pesquisa na área da violência, como instrumento para a construção
do conhecimento do tema, baseado no rigor de certas exigências científicas.

Metodologia de Pesquisa
A) Conceitos da Pesquisa Científica
A estatística é um conjunto de ferramentas matemáticas que permitem coletar,
organizar, descrever e analisar dados e, assim, auxiliar na tomada de decisões.
Na pesquisa científica, deve-se definir:
a. a motivação = importância associada ao trabalho;
b. o objetivo = qual a finalidade específica do trabalho;
c. as hipóteses a serem verificadas.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 43

Além disso, deve-se verificar a existência de trabalhos similares e de opiniões


de especialistas sobre o assunto trabalhado. Nestas pesquisas é muito importante
também levar em conta o “esforço” em termos de recursos necessários (humanos, de
material, de tempo, etc.) para a boa coleta dos dados.
Na coleta de dados sobre uma população, duas podem ser as formas de se
obter dados tais dados: o CENSO e a AMOSTRAGEM. No censo, devem ser coletadas
as informações de interesse sobre toda a população-alvo. Já na amostragem, deve-
se coletar informações apenas de um subconjunto da população-alvo, denominado
amostra.
Nesse último caso é preciso, então:
• definir quem é a população-alvo;
• definir o tamanho de amostra;
• verificar os custos associados à coleta;
• decidir finalmente entre censo e amostragem.
No estudo censitário, as informações sobre a população são exatas, enquanto
que no estudo amostral, as informações sobre a população são apenas aproximadas.
Há perda de precisão neste último caso que está diretamente ligada ao tamanho da
amostra tomada. Quanto maior o tamanho amostral, mais próximo o subconjunto
estará da população como um todo e, assim, maior a precisão. No entanto, também
maiores serão os custos associados a tal coleta.
Além desta imprecisão amostral, existem outros erros que devem ser
considerados: os erros do observador, do método de observação e do próprio objeto.
No primeiro caso, o próprio observador impõe vícios na coleta, fazendo com que a
informação sobre a população contida na amostra seja destorcida (como, por exemplo,
um entrevistador, ao invés de selecionar pessoas de todas as faixas etárias, resolve
trabalhar somente com os jovens). O erro do método está basicamente associado ao
fato de usar um método errado para medir o que se quer. O erro do objeto é, na
verdade, um erro por não consideração da variação que pode haver em um indivíduo
(como não levar em conta o fato que a pressão de uma pessoa varia ao longo do
dia).
44 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Para cada tipo de erro, existe um controle que deve ser realizado, seja sob a
forma de treinamento, seja sob a forma de utilização de técnicas adequadas para
medir ou considerar características do objeto em estudo.
Deve-se ainda determinar quais os parâmetros (variáveis) que serão analisados,
incluindo aqui as variáveis principais (dependentes) e as secundárias (independentes
ou explicativas). As independentes, em muitos casos, são usadas para ajudar a descrever
ou mesmo prever o comportamento das variáveis dependentes.
A fonte dos dados utilizada em uma pesquisa é dita primária (quando você
mesmo realiza a coleta das informações de que precisa) ou secundária (quando se
utiliza dados que uma outra pessoa coletou). Após a coleta, é feito o pré-processamento
da informação (através de codificação e digitação) e parte-se, então, para a análise
(estatística) e a interpretação dos resultados.

B) Avaliação de programas públicos


(programas sociais e políticas de segurança pública)
A avaliação de políticas públicas possui um caráter estratégico, porque permite
ajudar no planejamento, execução e (re)direcionamento das ações do fenômeno. A
avaliação é um processo sistemático de análise das ações, características e resultados
de uma política pública, programa ou projeto a partir de critérios definidos, que visam
determinar seu mérito ou relevância, sua qualidade, utilidade ou efetividade, gerando
recomendações para sua correção ou melhoria. Não há avaliação sem monitoramento. O
monitoramento é o processo sistemático de registro e armazenamento das informações
substantivas no continuum da ação de uma política. O sistema de monitoramento deve
ser capaz de capturar as informações relevantes, precisas, sintéticas, que alimentam
o processo de avaliação. E isso se consegue criando condições favoráveis (técnicas e
informacionais) para se estabelecer à obrigatoriedade do registro e processamento das
informações definidas como relevantes.
Neste sentido, será apresentado algum comentário sobre o método comparativo
para a avaliação de políticas públicas, chamado de avaliação “antes e depois, com
grupo de controle”. Neste tipo de avaliação é preciso observar e medir o fenômeno que
se pretende modificar antes da intervenção da política pública. Feita a intervenção,
devemos medir novamente o fenômeno após certo tempo. Além disto, para ter certeza
de que a mudança no fenômeno não foi devida a fatores externos a política pública,
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 45

é preciso medir também, nos dois períodos, um outro grupo, que não tenha sofrido
esta intervenção. Este é chamado “grupo de controle”, que deve ser, na medida do
possível, o mais parecido com o grupo em que foi implementada a política pública.
Idealmente, a única diferença entre os dois grupos deve ser a intervenção que está
sendo realizada.

Gestão da Informação

A) Conceito de Informação

Laudon & Laudon (1999, p. 4) definem sistema de informação como um “conjunto de


componentes inter-relacionados trabalhando juntos para coletar, recuperar, processar,
armazenar e distribuir informação com a finalidade de facilitar o planejamento,
o controle, a coordenação, a análise e o processo decisório em empresas e outras
organizações.” Os sistemas de informação contêm informações sobre lugares, pessoas
e assuntos de interesse no ambiente ao redor da organização e dentro da própria
organização. Esses sistemas transformam a informação no sentido de facilitar a análise
e visualização de assuntos complexos e a tomada de decisão, e o fazem através de um
ciclo de três atividades básicas: entrada, processamento e saída.

Pinheiro (2001) caracteriza essas três atividades da seguinte forma:

• Entrada (ou input): envolve a coleta ou captação de fontes de dados brutos


de dentro de uma organização ou de seu ambiente externo.

• Processamento: conversão dessa entrada bruta em uma forma mais útil


e apropriada. O processamento pode envolver cálculos, comparações e
tomadas de ações alternativas, assim como o armazenamento de dados
para uso futuro.

• Saída (ou output): envolve a transferência da informação processada às


pessoas ou atividades que a utilizarão. Os sistemas de informação também
armazenam informação sob várias formas, como documentos, relatórios
e dados de transações. Em alguns casos, a saída de um sistema pode se
transformar em entrada de outro sistema.
46 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

B) A importância e organização de banco de dados


Quando se deseja controlar qualquer atividade ou processo, uma das principais
preocupações é gerenciamento das informações necessárias para que os objetivos
de exame ou controle sejam alcançados. A forma mais eficaz de gerenciamento
de informações é realizada através de um Banco de Dados. Além de interligar todo
trabalho da organização, reduz custos, elimina duplicação de tarefas, permite uma
previsão de crescimento do objeto estudado e ajuda na elaboração de estratégias.

Figura 1: Fluxo de Bancos de Dados

Informação
Registrar

Organizando os registros
Fato
Formulário Arquivos

Banco de Dados

Relatório
Entrada
Processamento
Saída

Um Sistema de Banco de Dados (SBD) possui as seguintes características:


integridade / consistência; restrições; segurança / privacidade; restauração;
reorganização e eficiência.

Vantagens no uso de Sistema de Banco de Dados (SBD):

1. Redundância reduzida: os dados são organizados por um SBD e armazenados


em apenas um local.

2. Maior integridade de dados: como os dados estão em apenas um local, não


existe o perigo de existirem cópias mantidas em locais separados.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 47

3. Manutenção mais fácil: o SBD cumpre a tarefa de atualizar os dados


comandados de diversos programas, ficando transparente ao programador
e ao usuário final.
4. Independência entre dados e programas: o programa não é afetado pela
localização do dado, bem como novos dados podem ser agregados ao
banco a qualquer momento.
5. Padronização do acesso aos dados: para acessar os dados, diversos
programas utilizam os mesmos procedimentos.
6. Melhor proteção global: como os dados estão armazenados em apenas 1
local físico, a confiança no backup é maior, bem como controle de acesso.
7. Fontes de dados compartilhadas: é fácil localizar o fluxo que o dado faz,
desde sua origem até seu destino, dentro do banco de dados.

C) Fontes de Dados
Para realizar uma análise, um monitoramento ou uma avaliação é preciso conhecer
as fontes de dados. Na área da violência e criminalidade, destacamos três fontes de
dados: as registradas pela Polícia Civil, as coletadas pelo Sistema de Informação sobre
Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde e as pesquisas de vitimização.
No estado do Rio de Janeiro a base das estatísticas criminais é coletada através
da Polícia Civil, por meio dos RO - Registros de Ocorrência, cujo preenchimento é
baseado nas categorias criminais definidas pelo Código Penal. O ISP - Instituto de
Segurança Pública divulga estes dados mensalmente, um total de 38 títulos de
ocorrências criminais (homicídios, estupros, vários tipos de roubos, furtos etc) e não-
criminais (desaparecidos, recuperação de veículos, número de registros de ocorrências
etc), abrangendo todo o território do estado. Estes registros são divulgados segundo
desagregação de AISP – Área Integrada de Segurança Pública – e segundo área de
circunscrição de delegacia de polícia.O Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM)
tem sua informação inicial gerada pela DO – Declaração de Óbito, que é preenchida
com base no atestado médico, ou, na ausência de médico, por duas pessoas qualificadas
que tenham presenciado ou constatado a morte. O SIM classifica as mortes violentas
como “Causas Externas”, segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID).
Do período de 1979 a 1995, para a codificação da causa de morte, foi utilizado a 9ª
48 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Revisão do CID, e desde 1996 os óbitos passaram a serem classificados através da 10ª
Revisão do CID (CID-10).
Vale ressaltar que a definição de morte violenta dada pelo SIM é diferente da
dada pelas polícias. Pelo SIM os homicídios são definidos segundo a CID, enquanto que
para as polícias a definição é feita segundo o Código Penal. Com isto, por exemplo,
as mortes por homicídio classificadas pelo SIM abrangem mais de um tipo de morte
violenta registradas pelas polícias. Deste modo, as taxas de homicídio contabilizadas
pelos dados da saúde são sempre maiores que as contabilizadas pelas polícias. Além
disto, os dados da polícia se referem ao local da ocorrência do fato, enquanto que os
do SIM se referem ao local do óbito. Por exemplo, supondo que um indivíduo levou um
tiro em um município Y, e foi levado para um hospital do município X, e faleceu. Para
a Polícia, o crime ocorreu no município Y, enquanto que na saúde a morte é registrada
no município X. Logo, não é possível realizar comparações entre as duas fontes de
dados, e ao se trabalhar com os dados da saúde, levar em conta que o registro se refere
ao local da morte e não o local de ocorrência, que é o mais importante no estudo da
segurança pública.
As pesquisas de vitimização são um tipo de levantamento na população
sobre a experiência com o crime. Gera informações que eventualmente sirvam no
desenvolvimento de políticas para o controle da criminalidade, e quantifica a ocorrência
de violações específicas para aproximar à realidade os dados divulgados pelos órgãos
oficiais.
Tem como objetivo obter informações sobre a experiência das pessoas com
respeito ao crime, risco de vitimização, propensão a registrar queixa policial, atitudes
com relação à polícia e a punição dos criminosos, estratégias de prevenção ao crime e
avaliação dos serviços prestados pelas forças policiais.

Indicadores Sociais
Em projetos sociais, indicadores são parâmetros qualificados e/ou quantificados que
servem para detalhar em que medida os objetivos de um projeto foram alcançados,
dentro de um prazo delimitado de tempo e numa localidade específica, e permitem
tirar conclusões sobre o desenvolvimento dos fenômenos sociais em questão.São
expressões numéricas de fenômenos quantificáveis, representando fenômenos sociais
politicamente relevantes, que não podem ser medidos diretamente. Como o próprio
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 49

nome sugere, são uma espécie de “marca” ou sinalizador, que busca expressar algum
aspecto da realidade sob uma forma que possamos observá-lo ou mensurá-lo. A
primeira decorrência desta afirmação é, justamente, que eles indicam mas não são a
própria realidade. Baseiam-se na identificação de uma variável, ou seja, algum aspecto
que varia de estado ou situação, variação esta que consideramos capaz de expressar
um fenômeno que nos interessa.
Os indicadores sociais devem possuir duas características fundamentais:
• Validade: A validade de um indicador corresponde ao grau de proximidade
entre o conceito e a medida, ou seja, sua capacidade de refletir, de fato,
o conceito abstrato que o indicador se propõe a “operacionalizar” ou
“substituir” (JANNUZZI, 2001: 26).
• Relevância: Enquanto propriedade desejável de um indicador social, a
relevância diz respeito à pertinência desse indicador para a tomada de
decisão acerca dos problemas sociais. Uma iniciativa pode ser considerada
como “relevante” se a mesma em seus objetivos mencionasse a orientação
de políticas públicas.
Os indicadores podem ser utilizados para medir ou revelar aspectos relacionados
a diversos aspectos sociais. Podem, por exemplo, medir a disponibilidade de bens,
serviços e conhecimentos, ou captar processos em termos de intensidade e sentido de
mudanças. Neste sentido, os indicadores se referem a aspectos tangíveis e intangíveis
da realidade. Os tangíveis são os facilmente observáveis e aferíveis quantitativa ou
qualitativamente, como renda, escolaridade, saúde, organização, gestão, conhecimentos,
habilidades, formas de participação, legislação, direitos legais, divulgação, oferta etc.
Já os intangíveis são aqueles sobre os quais só podemos captar parcial e indiretamente
algumas manifestações: consciência social, auto-estima, valores, atitudes, estilos de
comportamento, capacidade empreendedora, liderança, poder, cidadania.
A escolha dos indicadores em um projeto também ocorre em função dos
ângulos que se quer avaliar:
• Eficiência: boa utilização dos recursos
• Eficácia: se as ações do projeto permitiram alcançar os resultados
previstos
• Efetividade: em que medida os resultados do projeto estão incorporados
50 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

a realidade da população atingidaImpacto: as mudanças em outras áreas


não trabalhadas pelo projeto, demonstrando seu poder de influência e
irradiação.Um bom indicador para monitoramento e avaliação de resultados
deve apresentar as seguintes características:
• ser coerente com a visão e com a concepção que as organizações tem
sobre os objetivos;
• considerar as particularidades do contexto, e ser desenvolvido a partir de
um bom conhecimento da realidade na qual se vai intervir;
• ser bem definido, preciso e representativo no que se refere aos aspectos
centrais da estratégia do projeto, sem ter pretensão de dar conta da
totalidade;
• ser simples, capaz de ser compreendido por todos, e não apenas por
especialistas, sem ser simplista;
• ser viável do ponto de vista operacional e financeiro;
• Fornece informações relevantes e em quantidade que permite a análise e
a tomada de decisão;
• Aproveita as fontes confiáveis de informação existentes.

Ferramentas para a análise de fenômenos da segurança pública


Quando os dados estão coletados, a principal tarefa a ser realizada é a análise dos
resultados. Neste sentido, se torna necessário transformar os dados brutos num
conjunto de números organizados, que possam ser usados para demonstrar o
comportamento do fenômeno estudado.
• Estatísticas Descritivas: possibilita a apresentação de dados quantitativos
de forma manejável, viabilizando a descrição das variáveis, através de
tabelas e gráficos.
• Estudo Temporal: tem como objetivo verificar a existência de tendências,
sazonalidade (ciclos), além da identificação de padrões do fenômeno no
tempo (horas, dias, meses, anos). Nos estudos de segurança pública deve-se
sempre lembrar que ao se comparar os dados do verão com os do outono
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 51

anterior, provavelmente, será encontrado um crescimento, devido ao fato


de que o verão tende a ser mais violento. Mas na comparação dos dados de
um verão com os do verão anterior (em vez de com os meses anteriores) a
influência do próprio verão estará controlada.
• Estudo Espacial: descreve e visualiza distribuições espaciais, descobre
padrões de associação espaciais e identifica observações atípicas. Pode
avaliar a variação geográfica na ocorrência de um fenômeno, visando
identificar diferenciais de risco e orientar a alocação de recursos.Estudo
Espaço-Temporal: analisa o fenômeno a partir das duas metodologias
acima. Pode, por exemplo, acompanhar a incidência de algum tipo de
crime por bairro variando a cada hora de um dia, percebendo qual o local
e o horário de maior incidência daquele crime.
52 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Bibliografia

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Brasil: Uma Discussão sobre Bases de Dados e Questões Metodológicas I. Rio de
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Junior, C. Informação e democracia. Rio de Janeiro: Eduerj, 2000.
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Existentes. Fórum de Debates Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil:
Uma Discussão sobre Bases de Dados e Questões Metodológicas I. Rio de Janeiro:
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SCHRADER, A. Métodos de Pesquisa Social Empírica e Indicadores Sociais. Porto
Alegre: Ed. UFRGS, 2002.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 53

O SISTEMA CLASSIFICATÓRIO DAS


OCORRÊNCIAS NA POLÍCIA MILITAR
DO RIO DE JANEIRO E A ORGANIZAÇÃO
DA EXPERIÊNCIA POLICIAL:
UMA ANÁLISE PRELIMINAR1
Simoni Lahud Guedes

Introdução
Aproveito a ocasião da comemoração dos cem anos de publicação de um dos textos
fundadores das Ciências Sociais, proporcionada pelos colegas do IFCS/UFRJ, para iniciar
uma reflexão baseada em um material empírico um tanto novo para mim. Acentuo,
de imediato, o caráter preliminar e algo rudimentar desta reflexão, que não pretende
de modo algum ser uma análise da prática policial no Rio de Janeiro (como a de KANT
DE LIMA, 1994, e as análises históricas de HOLLOWAY, 1997 ou CUNHA, 1998, entre
outros). Trata-se, principalmente, de um exercício referente à relação entre a “função
classificatória” e a construção de saberes profissionais. Dito de outro modo, objetivo
fazer algumas observações acerca do modo pelo qual um sistema classificatório de
referência partilha da produção de habitus profissionais específicos (BOURDIEU, 1980).
Neste caso, a produção destes saberes e deste habitus está, certamente, mediada pelas
inúmeras formas de administração e gerenciamento da “população”, característica
fundamental das técnicas de poder, a partir do século XVIII, como acentua Foucault
(1979, 1980, 1987). Sob esta perspectiva, como espero demonstrar, o tema que trago
permite relacionar esquemas geradores da ação e uma “teoria da prática”, questão
particularmente importante para a compreensão de atividades profissionais que se
definem, prioritariamente, como constituídas de um “saber prático”. Minhas observações
centram-se exclusivamente no referido sistema classificatório que, suponho, tomado
em si mesmo, permite levantar uma ou duas hipóteses sobre os princípios sóciológicos
que o animam.

1 Trabalho apresentado originalmente no Seminário “Formas primitivas de classificação”, Cem anos


depois (junho 2003) promovido pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, IFCS/UFRJ - Mesa:
Universos judiciários, práticas classificatórias.
54 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Esta reflexão é, também, um produto de nossa experiência coletiva, na UFF,


com o Curso de Especialização em Justiça Criminal e Segurança Pública, que ocorre
há mais ou menos quatro anos. Neste curso, constituído a partir de uma demanda dos
então responsáveis pela política de formação dos oficiais da Polícia Militar do Estado
do Rio de Janeiro, uma parcela importante dos alunos é de oficiais superiores desta
corporação, todos com longa inserção institucional. A relação com estes alunos, no meu
caso especificamente, tem propiciado um olhar novo sobre esta instituição, na medida
mesmo em que é para ela que dirigem quase todo o seu foco de atenção. Trazem uma
série de informações e interpretações sobre a corporação, de modo assistemático - nos
exemplos de que se servem na sala-de-aula ou nas conversas informais em outros
espaços - ou sistematizadas em alguns trabalhos escritos.
Foi, justamente, um destes trabalhos escritos que despertou meu interesse
acerca do sistema classificatório das “ocorrências”, forma como são denominados, pela
própria polícia militar, os eventos sociais com a sua intervenção. Refiro-me à monografia
de conclusão do curso realizada por Júlio Cesar Ramos (2002). Nesta monografia,
enfocando a possibilidade de uma parceria entre a sociedade e a polícia, o autor
expõe e analisa as diversas “ocorrências” registradas pela Assessoria de Planejamento,
Orçamento e Modernização da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro em 2001,
expondo, por esta via, o sistema classificatório dos eventos com intervenção policial.
Algumas conversas posteriores, com profissionais de outras turmas, no mesmo curso,
trouxeram algumas informações adicionais sobre o sistema classificatório em questão.
Estes dados, juntamente com dois documentos que me foram fornecidos para auxiliar
na minha compreensão do sistema (um modelo do Talão de Registro de Ocorrências,
de 1997, e as Normas Gerais de Policiamento, de 1983) compõem o corpus sobre o
qual pretendo fazer algumas observações. Como se vê, também por esta dimensão,
minha proposta é bastante preliminar.

Classificando as interações problemáticas e controlando


os policiais que controlam a população
DUARTE (1986, p. 73), relendo Durkheim, Mauss e Hertz via Dumont, resume o que
seriam as “três qualidades fundamentais” da “função classificatória”: “é um sistema
de distinções ou diferenciações, é um sistema hierarquizado e é um sistema que
pressupõe uma totalidade”. Acentua a dimensão hierárquica, de valor, das classificações,
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 55

enfatizando que as diferenciações não são simples dicotomizações, mas importam


em uma dimensão interna de valor diferencial cujo paradigma seria exatamente a
oposição direita-esquerda analisada por Hertz.
O sistema classificatório aqui tomado como material para reflexão, construído
pela e para a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (RAMOS, 2002: 5), tem estas
três características bastante evidenciadas. A totalidade de que trata são as intervenções
do policial militar na vida social denominadas ocorrências, pretendendo ser exaustivo
nesta direção, mesmo que, em alguns momentos, tenha que lançar mão da categoria
residual diversos, muito importante no sistema, sobre a qual falarei adiante. Classifica,
ordena e hierarquiza, ao mesmo tempo, ações policiais e situações sociais. Define-se, por
esta via, tanto como uma declaração acerca das intervenções esperadas e legitimadas
do policial militar quanto pelo detalhamento das situações sociais consideradas como
“problemáticas”.
Embora referida pelos profissionais como uma codificação que se pretende
exclusivamente técnica, compreendida, neste sentido, como “neutra”, dialogando em
muitos dos seus aspectos com as definições legais, ao tomar como objeto as inúmeras e
diversificadas situações sociais em que a PM intervém ou é solicitada a intervir, sinaliza
seu objetivo maior de organizar a prática policial militar, ordenando, classificando,
registrando e medindo as experiências vividas. Esta ordenação, certamente, é, por
sua vez, enquanto um construto interno à instituição, resultado de interpretações
da experiência elaboradas por policiais experimentados, visando à exaustividade e à
sistematicidade, pretendendo contemplar todo o campo dos possíveis. A propriedade
da “antecipação totalizadora” é, da perspectiva que assumo aqui, sua característica
maior. Mas vejamos o sistema classificatório em questão.
O sistema opera em três níveis distintos de abrangência, estabelecendo
diferenciações e inclusões, e, como a maioria das classificações, torna-se mais minucioso
nos níveis inferiores. A um primeiro olhar, há equivalência entre as distinções internas
a cada nível. Contudo, há uma série de indícios de uma outra diferenciação, de valor,
interna aos níveis aparentemente equivalentes.
No seu primeiro nível, mais amplo, diferencia cinco grandes conjuntos de
intervenções, denominadas amplamente de códigos, numeradas nesta ordem:
código 001 – Crimes; 002 – Contravenções; 003 – Trânsito; 004 – Assistenciais; 005
– Diversas.
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Nos dois primeiros códigos, a complexa e prolixa legislação brasileira acerca


de crimes e contravenções é transformada em ocorrências identificáveis. Mantêm
relação estreita com esta legislação, interpretando-a e buscando replicar seus termos e
diferenciações. Supõem e propõem, portanto, determinadas leituras do ordenamento
jurídico da sociedade para a transformação de eventos em ocorrências no interior
destes dois conjuntos.
O terceiro código – trânsito – é mais impreciso, sob este ponto de vista, pois
pode referir-se tanto a crimes e contravenções (por exemplo, auto furtado e direção
perigosa) quanto a acidentes. Sua situação como o terceiro, o do meio em cinco, replica
esta relativa ambigüidade. Voltarei a este ponto ao final.
O código 004 congregando as intervenções denominadas como assistenciais,
abriga, na verdade, dois tipos distintos de assistência. Aqui, a categoria central é auxílio
(presente, implícita ou explicitamente, em quase toda a especificação do código),
através da qual os dois tipos distintos de assistência são tornados equivalentes. O
primeiro tipo refere-se àquelas atividades inerentes ao trabalho policial (auxílio
a órgãos de meio-ambiente, auxílio à autoridade policial), mas nas quais o policial
militar não é o agente principal; o segundo tipo legitima (e talvez até proponha) uma
dimensão de relação do policial militar com os diversos segmentos sociais (parturiente,
mal súbito, condução de enfermo).
Finalmente, o quinto código ocorrências diversas agrupa o inclassificável
ou, como diz Mauss (1968: 365), referindo-se ao que, nas ciências, classifica-se
como “diversos”, o “rótulo da ignorância”. Contudo, este conjunto é absolutamente
fundamental ao sistema, pois retém sua inclusividade absoluta e o que estou chamando
de sua propriedade de “antecipação totalizadora”. É extremamente diversificado,
congregando quer os resíduos, o que não encontrou lugar nos códigos anteriores,
quer uma perspectiva distinta sobre fenômenos já considerados. Para sustentar sua
inclusividade, apresenta alguns “coringas”: termos absolutamente genéricos e amplos,
nos quais tudo cabe. Voltarei também a este ponto adiante, pois, a meu ver, é uma
das características mais interessantes deste sistema, abrindo-o para as interpretações
construídas em outro território.
Quando se passa ao nível seguinte, o intermediário em abrangência, há indícios
da importância para a prática policial militar do primeiro grupo de ocorrências
(001 – crimes), indícios de uma outra classificação, mais implícita, que denota os
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 57

valores distintos atribuídos às diferenciações em cada nível. Na verdade, no sistema


classificatório em questão o segundo nível existe, exclusivamente, para este código.
Ou seja, no interior da categoria crimes distinguem-se cinco outros grupos como
é denominada a subdivisão seguinte, enquanto que as outras quatro categorias
(contravenções, trânsito, assistenciais e diversas) comportam, cada uma, um único
grupo. O valor maior atribuído ao código crimes fica duplamente evidenciado:
primeiro, pelo investimento maior na diferenciação interna das ocorrências criminosas,
impondo-se a atuação diante de comportamentos e situações classificados como
criminosos como a principal das funções precípuas da Polícia Militar, na interpretação
institucional de um aparato legislador muito amplo e diversificado; segundo, pela sua
numeração. Na verdade, em termos de valor, poderíamos dizer que é o primeiro e não
apenas o número um.
Assim, o segundo nível é estabelecido exclusivamente pelo primeiro grupo.
Apresenta cinco subdivisões: crimes contra a pessoa; crimes contra o patrimônio;
crimes contra os costumes; crimes contra a administração pública e “outros crimes” (o
diversos deste nível de abrangência que, de novo, garante a incorporação de todos os
possíveis principalmente através dos seus próprios termos “coringas”, vagos e amplos,
como, por exemplo, os crimes contra a família). De qualquer modo, estas subdivisões
contemplam os principais objetos da legislação penal brasileira, replicando-a e
interpretando-a.
O terceiro e último nível de abrangência é aquele no qual se classificam as
ocorrências propriamente, contando, nos seus nove grupos (cinco do primeiro código
e um para cada um dos outros), com um número variável de itens (entre sete, por
exemplo, no grupo 300, crimes contra os costumes e cerca de 20 no grupo 200, crimes
contra o patrimônio). De fato, neste nível de detalhamento, todos os termos mereceriam
ser analisados em termos do conjunto de diferenciações em que se situam, mas isso é,
evidentemente, impossível aqui. É possível, contudo, fazer algumas observações gerais
e outras pontuais que permitam elaborar alguns dos significados veiculados por este
sistema classificatório, relacionando-o à construção da “experiência” e da prática dos
policiais militares.
Neste nível, é possível notar, por exemplo, apesar da incipiência e
assistematicidade do material coletado, a relação institucional com a historicidade
deste sistema classificatório, deduzidas de algumas diferenças observadas nas
ocorrências registradas no documento de 1997 (Talão de Registro de Ocorrências)
58 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

e no registro apresentado em Ramos (2002, passim), baseado em um setor de


planejamento da PMERJ. Não há diferenças nos níveis de abrangência mais amplos.
As alterações parecem se dar em termos de uma maior especificação no interior de
alguns grupos, incluindo novas ocorrências (como, por exemplo, nos crimes contra
a pessoa, o acréscimo de periclitação da vida e contra a honra; nos crimes contra
o patrimônio, o acréscimo de roubo de veículo de transporte de valores). Estas
diferenças indicam, possivelmente, a constante atualização do sistema classificatório,
subtraindo à classificação vaga dos “resíduos” algumas intervenções que se tornaram
significativas no processo social, transformadas em novos “problemas sociais”, mesmo
num curtíssimo espaço de tempo. Mas é bastante interessante também que nenhum
dos profissionais consultados (repito, de modo assistemático) tenha se referido às
mudanças do sistema classificatório. De fato, na conversa com outros alunos do curso,
capitães, membros da mesma corporação, acerca deste tema, percebi que atribuem
a ele uma importância menor na organização de sua prática, sendo enfocado
como uma simples forma de registro. Apesar disso, ele é amplamente conhecido
por todos, sendo parte de seu saber comum e rotineiro. Incorporado como parte de
sua atividade profissional, não o fazem sem reflexão, pois muitos elaboram críticas
a suas imprecisões, inconsistências e dificuldades. Sob este ponto de vista, é um
modelo consciente, nativo, nos termos de Lévi-Strauss (1967). A ausência de interesse
em sua origem, que não pode ser precisada pelos alunos consultados, bem como a
falta de registro de suas alterações, indicam uma certa naturalização deste sistema
classificatório, surgindo como alguma coisa que “sempre esteve lá”. Na mesma direção
aponta a ausência de textos que expliquem as diversas categorias classificatórias dos
eventos e as formas de enquadrar o “acontecido” na classe adequada (ou, o que dá no
mesmo, o desinteresse de profissionais experientes e graduados na instituição por tais
textos). Indagados sobre isso, disseram que a referência eram as próprias categorias
legais. Isto é bastante significativo em uma instituição absolutamente letrada, que
se inscreve permanentemente em manuais, documentos, regulamentos, portarias e
instruções. Entre eles, as Normas Gerais de Policiamento (1983), documento no qual
estão minuciosamente registradas as formas previstas de policiamento, explicando-se,
inclusive, as formas de preenchimento do Talão de Registro de Ocorrências (Anexo
III, p. 69). Mas não há, neste documento, qualquer explanação ou instrução sobre a
codificação dos eventos.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 59

Tudo isso indica que se trata de um esquema aparentemente muito detalhado,


mas também muito geral de organização do vivido, cujos princípios mais importantes
não podem ser depreendidos de sua inscrição textual. Talvez sua característica mais
importante seja exatamente esta: o que ele não diz, o espaço que abre para as
interpretações e construções coletivas. Minha primeira hipótese, portanto, configura-
se, na análise preliminar deste sistema classificatório: o sistema de registro trabalha,
todo o tempo, conjugado a um outro, implícito, absolutamente não apreensível nos
documentos escritos. Trata-se daqueles construídos e transmitidos na própria ação, pela
observação e acompanhamento dos mais “experientes”. A acumulação de “experiência”
é aqui compreendida como parte do processo fundamental de construção de saberes
coletivos. Como acentua a historiadora Joan Scott, investindo contra o uso acrítico das
“experiências” no trabalho dos historiadores:
“Experiência é, ao mesmo tempo, já uma interpretação e algo que precisa de
interpretação. O que conta como experiência não é nem auto-evidente, nem definido;
é sempre contestável, portanto, sempre político” (SCOTT, 1999: 48).
Mas, se, sem nenhuma dúvida, só o estudo das práticas policiais e da construção
da “experiência”, nesta profissão, permitirá a compreensão das formas de classificação
dos fenômenos de intervenção da polícia militar, trabalho a que se dedicam alguns
pesquisadores, não devemos minimizar a importância da ordenação escrita desta
prática. O sistema classificatório das ocorrências dirige o olhar para determinadas
direções, hierarquiza e valoriza eventos, desvaloriza outros e obriga à construção
de liames entre o vivido e o registrado. Toda prática conjuga, de modos distintos e
em proporções variáveis, normas explícitas, racionalizações, teorias nativas e saberes
implícitos, muitas vezes não reconhecidos como tal. Assim, este sistema classificatório
convive e conjuga-se com diversos outros, a maioria não escritos, sendo um dos mais
importantes a classificação do público que é tirado pelos policiais, como demonstra
Kant de Lima (1995: 53 segts).
A busca do máximo de especificação quanto aos eventos, neste terceiro nível
do sistema classificatório, faz com que diferentes princípios classificatórios sejam
utilizados, enfatizando, por essa via, a importância maior de algumas ocorrências em
detrimento de outras. Esta também é uma das razões das observações dos policiais
militares, com quem conversei, acerca das inconsistências do sistema. Por exemplo,
no código 01, grupo 200 (crimes contra o patrimônio), além da categoria genérica
furto (210), garantindo o espaço na classificação para todas as formas de furto, são
60 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

utilizadas outras oito categorias que expressam princípios distintos: uma refere-se a
uma figura do código penal (furto qualificado, definido, neste instrumento legal, como
aquele que envolve “destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa
ou com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza”), portanto,
neste caso e só neste caso, utiliza-se como critério de classificação os meios pelos
quais o furto é cometido; seis termos referem-se ao local do furto (auto, coletivo,
estabelecimento comercial, estabelecimento financeiro, estabelecimento de ensino,
residência), valorizando aqueles cometidos em alguns locais e, simultaneamente,
lançando ao limbo genérico da primeira categoria (furtos tout court) os ocorridos em
outros locais. Uma única categoria refere-se ao objeto do furto (autocarga), sinalizando
também seu valor em relação a todos os objetos furtáveis. Assim, por exemplo, o
furto da carga de um caminhão de transporte, estacionado na garagem interna de
um estabelecimento comercial, da qual se arrombou a porta, pode ser classificado
simplesmente como furto, como furto qualificado (pois rompeu-se um obstáculo),
como furto em estabelecimento comercial e, ainda, como furto de autocarga.
Este pequeno exercício, que poderia ser repetido em vários pontos do sistema
classificatório em questão, não visa, absolutamente, fazer coro aos questionamentos
internos em relação à propriedade e/ou eficácia das categorias especificadas. Não
tem também, de modo algum, intenção de folclorizá-lo. Visa demonstrar, sobretudo,
o ponto que já enunciei acima, a saber, que é fundamental o que ele não diz e o
espaço que abre para a construção coletiva de interpretações. Sob esta perspectiva, ele
é muito bem sucedido e muito bem construído. Permite, ademais, avançar a reflexão
em uma outra direção.
Continuando a usar como exemplo as especificações sobre furto, poderíamos
elaborar a hipótese de que a importância maior da especificação de locais (no caso,
meios de transporte, lojas, bancos, escolas e residências) ou objeto (autocarga) relaciona-
se quer com sua maior freqüência quer com a visibilidade maior que tenham estas
ocorrências na sociedade. Poderiam ser encaradas como parte fundamental da relação
da polícia com o que é transformado, em cada momento, em “problema de segurança”
maior pelos segmentos sociais dominantes. Assim, por exemplo, poderíamos pensar
que a existência, no nível maior de abrangência, do código 003 – trânsito, com toda
a ambigüidade que apresenta, responde, na verdade, a uma enorme concentração da
atividade do policial militar nos eventos neste setor: segundo dados da própria PM,
cerca de 56% das intervenções em 2001 foram classificadas neste código (RAMOS,
2002). Nesse sentido, o estudo sistemático das inclusões e exclusões ocorridas no
sistema – se é que ocorreram – permitiria desenredar alguns indícios sobre o que vai
se tornando mais ou menos importante na atuação policial. Tudo isso também nos
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 61

faz recordar o objetivo mais amplo, implícito neste sistema classificatório: produzir
estatísticas sobre as ocorrências policiais.
De certo modo, a função classificatória, neste caso, concretiza-se, em última
instância, na produção de estatísticas que medem e avaliam, simultaneamente,
através dos inúmeros índices que produz, o conjunto das atividades da polícia militar e
os eventos “problemáticos” da vida social2. Aqui é útil relembrar Foucault e a questão
fundamental do gerenciamento das populações, nas quais o saber produzido pelas
estatísticas é o eixo das técnicas de poder. Também creio ser útil lembrar Lévi-Strauss
e as diferenças entre modelos mecânicos e estatísticos. Talvez pudéssemos dizer que os
policiais, na interpretação das ocorrências em que se envolvem, operam com modelos
mecânicos para transformá-los em modelos estatísticos. O que está no meio disso é
o vivido e a “experiência” dos profissionais envolvidos que devem, entre outras coisas,
aprender a classificar sua vivência em determinadas direções. Experiência obrigada a
se auto-inscrever para produzir estatísticas, limitada pela classificação pré-existente
(ou seja, a experiência de outros), mas movendo-se no campo aberto pela utilização,
na classificação, de princípios operatórios distintos.
Gostaria de terminar lembrando que realizei aqui apenas um pequeno exercício
a partir do texto de Durkheim e Mauss, buscando pensar, particularmente, aquele
segundo momento em que, após ter estabelecido o postulado de que “a classificação
das coisas reproduz a classificação dos homens”, demonstrando a precedência lógica
da organização social sobre o sistema classificatório, insistem, em seguida, no processo
dialético contínuo de realimentação entre os dois níveis: “(...) as idéias são organizadas
sobre um modelo que é fornecido pela sociedade. Mas uma vez que esta organização
da mentalidade coletiva exista, ela é suscetível de reagir sobre a sua causa e contribuir
para modificá-la.” (DURKHEIM e MAUSS, 1968: 184, tradução minha).

2 O lugar ocupado pela produção de índices estatísticos é absolutamente central para avaliação
da prática policial. Nessa direção creio que seria produtivo: (1) examinar os usos e impactos dos
índices na organização interna da prática policial em seus diversos níveis (relações com as outras
instituições de policiamento, relação com a Secretaria de Segurança Pública, produção de normas
etc.); (2) examinar os usos e impactos dos índices na forma como são divulgados pela mídia; (3)
examinar a diferença entre usos internos e externos das estatísticas. Assim, por exemplo, segundo
a reportagem do Jornal do Brasil, em 08 de maio de 2003, p C2, o Secretario de Segurança do
Estado do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, teria estabelecido em termos estatísticos as metas
da política de segurança, estipulando “uma média percentual de 12% para a redução de, pelo
menos, 10 delitos”. A manchete da reportagem “Limite do ano: 4.171 homicídios” pode ser lida
como, intencionalmente, irônica, pois ao mesmo tempo em que reproduz a proposta de redução
de índices, expõe um número que pode ser absolutamente assustador para os cidadãos comuns.
Assim, as reações expostas na própria reportagem explicitam a necessidade de se “reduzir a zero”
os homicídios e seqüestros.
62 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Bibliografia

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CUNHA, Olivia. Os domínios da experiência, da ciência e da lei: os manuais da polícia
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Teorias, análises, leituras. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 63

PRODUÇÃO, USO DE INFORMAÇÕES E


DIAGNÓSTICOS EM SEGURANÇA URBANA1
Cláudio Beato

Dados e programas de prevenção


Não há estudo exploratório ou revisão de literatura sobre criminalidade, violência e
políticas de controle na América Latina que não comece ou termine enfatizando as
inúmeras deficiências nas bases de informações sobre criminalidade e violência. Essa é
uma situação grave que compromete seriamente os estudos realizados, e as políticas,
programas e projetos de segurança desenhados com base neste conhecimento. O
desafio que enfrentamos hoje em estudos criminológicos na América Latina diz respeito
justamente às bases de informações necessárias para que se possa avançar no alcance
das proposições empíricas, bem como efetuar testes de teoria mais sofisticados. Sem
esse conhecimento não temos ação efetiva e conseqüente.
As implicações dessa situação para o desenho e avaliação de políticas de
segurança são óbvias. Políticas na área da criminalidade e justiça, na América Latina, são
efetuadas em vôo cego, sem instrumentos e com orientação puramente impressionista.
Como conseqüência, temos uma situação de incremento acentuado das taxas de
criminalidade, do aumento do medo e da percepção de risco das populações nos
grandes centros urbanos. O ceticismo e descrença diante da aparente impossibilidade
de se obter resultados estão “naturalizando” os fenômenos da criminalidade e
violência, como se estivéssemos inevitavelmente destinados a conviver com o medo e
a insegurança. Podemos dizer, sem dúvida nenhuma, que dentre as diversas causas de
crime hoje na América Latina, destaca-se a nossa ignorância sobre a matéria.
No que diz respeito ao impacto específico de políticas e programas sociais, esta
situação é ainda mais obscura, pois a necessidades de tais projetos são tão urgentes
que, quaisquer que sejam os resultados alcançados, independente das implicações para
o problema da delinqüência, considera-se como bem sucedido. Não há uma avaliação
dos custos destes programas frente aos resultados alcançados, ou tampouco da

1 Versão resumida de 2. BEATO FILHO, C. C. . Crime and Violence diagnostics and information. World
Bank Working papers, Washington DC, v. 1, n. 35135, p. 1-45, 2005.
64 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

efetividade deles. Qual o impacto efetivo deles nas taxas de violência e criminalidade?
Que aspectos funcionaram melhor? Qual o lapso de tempo necessário para que se
produzam efeitos? Que tipos de combinações são necessários para a produção de
resultados promissores? Como evitar gastos desnecessários com abordagens que na
realidade são inúteis, embora bem intencionadas? A análise dessas questões é cada vez
mais necessária, dada a freqüente escassez de recursos que nossos governos nos mais
diversos níveis tendem a enfrentar, e o natural interesse em identificar e reorientar
políticas de prevenção de crime a partir de decisões baseadas em modelos de custo e
benefício.
Esta aula vai discutir como podemos levantar dados a respeito de problemas
de segurança, como transformar estes dados em informação, e a informação em
conhecimento que permita uma base de ação sólida e consistente através de programas
de prevenção, além de possibilitar a avaliação dessas ações.

A escassez de informação nas bases de dados sobre criminalidade e violência


Relatório recente do Banco Mundial que tratou dos impactos que a violência e a
criminalidade têm tido para o desenvolvimento sustentado e combate da pobreza
nas América Latina ressalta que o problema mais imediato é que os “dados são
grosseiramente inadequados. As razões incluem problemas graves de sub-registro de
vítimas, falta de levantamentos sistemáticos de dados, e deficiências das agências de
estatísticas em reportar o crime e a violência. Assim, a primeira prioridade na agenda
emergente para tratar do problema na região é a necessidade de se incrementar a
base de conhecimento sobra a natureza, extensão, e evolução desta patologia”. A
sugestão dada pelo autor é claramente inusitada: a prioridade da agenda está não nos
resultados a serem buscados, mas em construir e delinear sistemas que ajudem, antes
de qualquer coisa, ter uma percepção mínima acerca do que está ocorrendo.
Da mesma maneira, e seguindo a mesma ordem de preocupações ao referir-se
ao problema da violência e criminalidade na Colômbia, (RUBIO, 1998), destaca que
para falarmos de “crime, violência e insegurança, um aspecto recorrente é a incerteza
acerca do que realmente está ocorrendo. O diagnóstico deste fenômeno e o desenho
de políticas pertinentes enfrentam desde o princípio os problemas da medição e
observação, cujas gravidades parecem ser proporcionais aos níveis de violência”.
(RUBIO, 1998b: 2)
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 65

Diante dessa ausência, a tendência tem sido utilizar os dados de homicídio


coletados usualmente pelos sistemas de informação de saúde. Os homicídios, nas
suas mais diversas modalidades, tornam-se o indicador para compararmos cidades,
regiões e países, seja para efeitos de análise, seja para efeitos de alocação de recursos.
Contudo, a utilização dos homicídios como parâmetro comparativo sobre a violência
também acarreta crítica acerca da sua validade. Assim, o BID (nota técnica 2) alerta
para três tipos de problemas que podem surgir: (a) mesmo que os homicídios tendam
a ter menos problemas de sub-registro, ainda assim eles persistem, além de graves
problemas de inconsistências entre diferentes tipos de fontes; (b) muitas formas graves
de violência nem sempre terminam em homicídios como, por exemplo, a violência
doméstica ou as diversas formas de agressão interpessoal; (c) quando se utiliza o
homicídio como principal medida de violência, tende-se a subestimar outras formas
tais como a violência física e a intimidação.
Na verdade, poderíamos argumentar que o problema mais grave em relação às
taxas de homicídio seja que ele tem um padrão de comportamento bastante específico,
e distinto do que ocorre com outros tipos de delitos que afligem dramaticamente a
população tais como as diversas modalidades de crimes contra o patrimônio. Estudos
recentes mostram como a dinâmica espacial e temporal dos homicídios é bastante
distinta do que ocorre com outros tipos de crime (BEATO, 2000). Homicídios ocorrem
mais nas regiões pobres de uma cidade, estado ou país, ao passo que os delitos contra
a propriedade ocorrem mais nas regiões ricas.
Para efeitos de elaboração de programas de controle e prevenção, esta
qualificação é necessária, dado que existem sérios problemas de sub-registros
em relação aos crimes contra o patrimônio. Daí alguns estudiosos e policy makers
adotarem a taxa de homicídio como indicador de criminalidade em uma cidade,
região, país, ou até mesmo como comparação entre países2. Isto se deve ao fato de
que esta é uma modalidade de crime em que o sub-registro, ou problemas legais de
classificação são menores. No entanto, isto nem sempre é verdadeiro, pois algumas
avaliações de sistemas de informação mostram como os dados de saúde tendem
a ser mais reportados em cidade e regiões que contam com sistema de coleta em

2 Taxas são o número de delitos que ocorrem em um grupo de dez ou cem mil habitantes. Eles são
calculados como o número de homicídios, por exemplo, divididos pela população e multiplicados
por cem mil habitantes. A razão de se utilizar este denominador de dez ou cem mil habitantes,
é que isso nos permite comparar o número dos delitos em relação a populações de tamanhos
distintos.
66 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

organizações mais bem estruturadas. Isto em geral ocorre nas cidades pólos de cada
região (CASTRO, ASSUNÇÃO E OTTONI, 2002)
Por outro lado, taxas de homicídio podem ser indicadores agregados que
terminam ocultando uma série de fenômenos distintos que podem ser do interesse do
planejador em conhecer. Podemos ter a mesma taxa de homicídios em duas cidades
e, no entanto, distribuições serem completamente diferentes (LYNCH, 1995). No
ano de 1996, a região metropolitana do Rio de janeiro, segundo o SIM – Sistema de
Informações de Mortalidade, teve uma taxa de homicídio de 59,35 homicídios por cem
mil habitantes. A região metropolitana de São Paulo também teve um taxa parecida
de 55,58. No entanto, as similaridades entre as taxas ocultam importantes diferenças.
No Rio de janeiro, a taxa de morte por homicídios entre os jovens entre 15 e 29 anos
é 34% maior do que as taxas no mesmo grupo de idade em São Paulo. Além disso, as
mortes por armas de fogo representaram 87% das mortes por homicídios no Rio de
Janeiro, ao passo que em São Paulo elas representaram 47% (BATITTUCI, 1999). Estes
números nos indicam que, embora as taxas sejam parecidas, do ponto de vista de sua
composição, elas são bastante diferentes.
Finalmente, existe a discussão acerca da agregação de coisas diferentes sob
o mesmo rótulo de homicídio. Tomarmos as definições oficiais da ocorrência de
homicídios nos leva à falsa idéia de que todos eles têm uma mesma motivação3. Uma
forma de compreendermos a diversidade de tipos poderia ser tratá-los com base
no relacionamento entre o agressor e a vítima (PARKER & SMITH, 1979. SMITH &
PARKER, 1980. PARKER, 1989). Nessa perspectiva, foram classificados quatro tipos
de homicídio: (a) homicídio não primário resultante de roubo; (b) homicídio não
primário como resultado de outros crimes; (c) homicídio primário entre pessoas não
íntimas tais como amigos e; (d) homicídios primários entre pessoas íntimas tais como
familiares. Apenas o homicídio primário, isto é, aquele que ocorre entre pessoas que
têm um prévio relacionamento, correlaciona-se com indicadores socioeconômicos
de desenvolvimento. Os homicídios não-primários, vinculados a casos de assalto ou
roubo, tendem a seguir o mesmo padrão de outros delitos contra a propriedade.
Toda a digressão acima não nos deve conduzir à falsa idéia de que os
homicídios não são indicadores extremamente importantes da situação de violência

3 Muitos estudos tendem inclusive a analisar os distintos tipos de homicídio como se todos tivessem
uma mesma causa definida por fatores ordem estrutural, sejam eles de ordem socioeconômica,
institucional, social ou demográfica (KATZ, 1988).
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 67

e criminalidade e determinados locais. Pelo contrário, o que está sendo discutido é a


extrema diversidade de fenômenos que existe em apenas um delito. Isto nos sugere
fortemente a necessidade de se compreender todas estas nuances para a elaboração
de programas que sejam eficazes. Compreender a distribuição de homicídios que
ocorrem vinculados a razões de ordem utilitária tais como o latrocínio4, ou homicídios
resultantes de uma dinâmica doméstica de conflitos e agressões.

Informações e programas de prevenção


A tendência recente na América Latina tem sido a de incorporar crescentemente
componentes de prevenção social e situacional de crimes na agenda das políticas
públicas de segurança. Isto não ocorre por acaso, pois eles são mais eficazes, com
resultados mais duradouros e muito mais baratos do que as estratégias de repressão
adotadas tradicionalmente. Isto é corroborado em estudo realizado pela Rand
Corporation, no qual analisou-se o impacto de diferentes estratégias para prevenção
de crimes através de programas de intervenção comparada à introdução de legislação
dura. Os programas de intervenção incluíam (a) visitas a lares por assistente logo após
o nascimento das crianças durante até os seis anos de vida; (b) Treinamento e terapia
para famílias que tivessem crianças que houvessem demonstrado comportamento
agressivo na escola, ou que estivessem em vias de serem expulsos dela; (c) quatro anos de
incentivo monetário para induzir garotos carentes a se graduarem; (d) monitoramento
e supervisão de jovens secundaristas que tenham exibido comportamento delinqüente.
Estes programas foram comparados ao impacto que a introdução da lei dos “Three
Strikes”5 teve sobre as taxas de crime na Califórnia. A comparação favorece amplamente
os programas de intervenção e, em especial, os de incentivo monetário na forma de
uma “bolsa escola”.
Cidades colombianas como Bogotá e Cali também vêm adotando com
bastante sucesso programas de prevenção envolvendo jovens, reforma da justiça e
das organizações policiais, além de projetos de reurbanização. A cidade de Bogotá
registrou, em 1993, 4.352 homicídios. Terminou o ano de 2002 com 1902 homicídios,

4 No Brasil, isto significa o assalto seguido de morte, que é, inclusive, investigado pelas delegacias de
crimes contra o patrimônio.
5 A legislação dos Three Strikes é extremamente severa, estabelecendo que após a terceira reincidência
o delinqüente terá uma pena de 25 anos, não importando a gravidade do delito cometido.
68 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

reduzindo a menos da metade suas taxas de homicídios por cem mil habitantes,
conforme vemos no quadro abaixo. O programa “Seguridad Y Convivencia Ciudadana”
articulou simultaneamente programas na área de justiça e polícia envolvendo
desenvolvimento tecnológico de comunicação e bases de dados para a polícia, além
da provisão de equipamentos. Além disso, projetos voltados para grupos vulneráveis
e de recuperação de espaços públicos foram implementados, além de fortalecimento
do sistema de justiça e reforma das instituições policiais através de programas de
treinamento e equipamentos.

Gráfico 1: Taxa de Homicídios por cem mil habitantes


em Bogotá e Colômbia

Fuente: Instituto Nacional de Medicina Legal y Ciencias Forenses - Bogotá-CO

Da mesma maneira, Cali, durante os anos 1980 e 1990, assistiu grande


crescimento das taxas de homicídios, que passaram de 23 por cem mil habitantes em
1983, para 90 em 1993. O programa Desenvolvimento, Segurança e Paz –DESEPAZ-
lidou com fatores de risco identificados no contexto específico de atuação do
programa, tais como o álcool; as armas de fogo; cultura de resposta violenta ao conflito;
impunidade e ineficiência da justiça e da força policial e; pobreza, desigualdade social
e marginalidade. A primeira área estratégica desenvolvida foi a produção sistemática
de informações sobre a violência que pudessem servir de base para a elaboração de
planos e estratégias. Duas abordagens foram adotadas para o levantamento de dados:
(1) epidemiologia da violência, sob a coordenação de uma epidemióloga, um grupo, no
qual estavam representantes da polícia, fiscalização, saúde, medicina legal e escritório
de direitos humanos, reunia-se semanalmente a fim de estudar detalhadamente os
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 69

eventos violentos ocorridos na última semana e preparar relatório a ser analisado


pelo Conselho Municipal de Segurança. (2) Pesquisas de opinião, a fim de avaliar a
qualidade dos serviços de justiça e de polícia, que era realizada a cada seis meses.

Informações municipais de segurança


Quando estamos tratando de programas de prevenção, temos que desenvolver um
sistema de informações que não esteja relacionado apenas aos dados de criminalidade,
violência e segurança pública. A intervenção em fatores de risco da violência pressupõe
alguma indagação acerca de quais são eles, bem como do impacto na criminalidade.
Alguns deles encontram-se expressos nos dados relativos à segurança pública. Outros,
entretanto, devem ser buscados no contexto socioeconômico no qual ocorrem os
crimes, e daí a necessidade de uma base extensa de informações que não se relaciona
apenas às agências de justiça e controle, mas a variáveis que expressam este contexto
e informações sobre organizações e instituições que podem estar influindo positiva ou
negativamente sobre os padrões de criminalidade.
A recente experiência que está sendo implantada em algumas cidades
americanas através do NIJ denominada de COMPASS (Community Mapping, Planning,
and Analysis for Safety Strategies) constitui-se num bom exemplo de utilização
intensiva de dados de diversas origens. Seu objetivo é justamente implementar sistemas
de mensuração de eventos criminais e comunitários que possam servir a propósito
de planejamento e análise. Assim, quaisquer bases de dados disponíveis podem vir a
compor um armazém de dados, que congregaria informações criminais, comunitárias,
informações mapeadas e pesquisas de opinião e comportamento.

Obstáculos a uma abordagem empírica dos problemas de criminalidade e


violência
Dados que sejam informações e informações que se constituam em conhecimento.
Todas as dificuldades e vicissitudes expostas acima nos apontam para um
problema que é central na constituição de conjuntos de dados que possam auxiliar
a elaboração de planos e projetos. Ter dados sobre um fenômeno não significa
necessariamente ter informação disponível. Sabemos que existem muitos dados em
diversas organizações, mas a desorganização em seu armazenamento não os torna
70 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

facilmente disponíveis para sua utilização. O custo financeiro ou até mesmo político da
organização desses dados muitas vezes inviabiliza qualquer utilização mais sistemática
deles. Registros policiais encontram-se em forma manuscrita e dispersos em porções
e salas mal preparadas. Por outro lado, muitos dos detentores de informações vitais
para a compreensão de um problema podem ter muitas e variadas razões para não os
fornecerem aos representantes do poder público.
No que diz respeito aos dados oficiais sabemos que informações criminais e
judiciais são precárias, pouco sistematizadas e sua divulgação é errática. Isto torna
difícil a construção de séries históricas, além de inviabilizar as comparações inter e
intra-regionais, ou internacionais6.
Algumas condições afetam negativamente essa qualidade que tem a ver com
características das organizações encarregadas da coleta destes dados. Uma delas refere-
se às tecnologias de processamento de dados: raramente as organizações policiais ou
de justiça possuem computadores integrados em rede e submetidos a mecanismos
eletrônicos de coleta de dados. Ainda usa-se muito papel no preenchimento das
ocorrências, sendo o computador uma máquina absolutamente estranha ao cotidiano
dos quartéis e delegacias. Outra tem a ver com a qualificação das pessoas alocadas
nas atividades de coleta e registro de informações. É sempre importante lembrar
que quando se pretende montar um sistema de informações, deve-se ter pessoal
minimamente qualificado para a tarefa, que tenha um domínio no manejo de bancos
de dados eletronicamente disponíveis, planilhas e, se possível, de algum software de
análise estatística de dados.
A par das condições necessárias para se transformar dados em informações
que possam ser utilizadas pelos agentes destes programas, temos outra ordem de
fatores a conspirar contra a transformação dessas informações em conhecimento.
A primeira tem a ver com a centralidade dessas atividades no conjunto das práticas
organizacionais. Estatísticas são produzidas por departamentos e unidades que
nada tem a ver com o planejamento operacional das organizações e

6 Ver (1) “INDICADORES SOCIAIS DE CRIMINALIDADE” Trabalho elaborado de acordo com o convênio
SG nº 033/86 e o Termo de Renovação SG-003/87, celebrados entre a Fundação João Pinheiro (FJP)
e o Ministério da Justiça - Programa Ruas em Paz.
(2) IBGE, Rio de Janeiro. Pesquisa de vitimização: dificuldades e alternativas. Rio de Janeiro, 1985.
Mimeo.
(3) PACHECO, Lúcia Maria M.; CRUZ, Olga Lopes da; CATÃO, Yolanda S. D. Construção de indicadores
de criminalidade. Rio de Janeiro, IBGE. Mimeo.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 71

setores encarregados da prevenção e controle da criminalidade. Análises


mais compreensivas da criminalidade urbana são descartadas em favor da
confecção de relatórios insípidos e de nenhuma serventia para os propósitos
finais destas agências. Outras condições referem-se à utilidade deste tipo
de informações para o trabalho de ponta das organizações policiais e judiciárias,
que se traduzem numa disjunção percebida pelos profissionais entre a
informação e sua prática cotidiana. Acrescente-se a isto que muitas vezes há
um excesso de informações solicitadas no preenchimento de boletins de coleta
de dados.
Existe outra ordem de problemas, entretanto, que diz respeito a um certo tipo de
cultura institucional e política ainda prevalecente em muitos setores da administração
pública.

Mitos que paralisam policy makers


Um dos principais problemas relativos à formulação de políticas públicas diz respeito a
alguns mitos bastante presentes nas elites políticas e gerenciais na área de segurança.
Vamos a alguns deles:
“Nossos problemas de criminalidade são tão urgentes que não posso ficar
perdendo tempo com estudos e avaliações.”
É verdade que os problemas de crescimento da criminalidade e violência
nos grandes centros urbanos têm sido marcantes, e em alguns casos aterradores.
A ausência de avaliações e estudos científicos, entretanto, deverá torná-los pior
ainda. Nesta área não existem improvisações ou insights bem intencionados, mas
estratégias sólidas e permanentes ao longo do tempo que devem ser perseguidas
disciplinadamente (SHERMAN et al. 1997. NEWMAN, 1999). É bastante comum que, na
ausência de qualquer orientação mais racional, as políticas sejam as mais tradicionais
e, provavelmente, mais ineficazes.
Estamos vivendo a difícil situação de não sabermos quais os problemas mais
graves simplesmente porque não temos quase nenhuma informação sobre eles.
Este é um quadro freqüente na América do Sul. Raros são os países que dispõem de
sistemas de aferição confiáveis sobre o problema da criminalidade e violência, como
atestam um sem número de autores que reclamam a montagem de bases de dados
72 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

(FJP, 1988. RUBIO, 1998b. MOSER e SHARADER, 1999. BEATO, 2000. BUVINIC e
MORRINSON, 2000). Conseqüentemente, nossos policy-makers não são donos de sua
própria agenda, tendo que reagir ao sabor dos fatos espetaculares noticiados pela
mídia, ou sob a pressão de figuras influentes.
“Para enfrentar os nossos graves problemas de criminalidade, antes de tudo,
devemos equipar as nossas polícias que andam em carros velhos, enfrentando bandidos
com armas mais poderosas e ganhando um salário miserável.”
Um exemplo eloqüente da ausência de diagnósticos é a famosa resposta de
“aparelhamento das polícias” que muitas vezes nossos prefeitos tendem a repetir
em suas cidades, através da provisão de recursos materiais para as organizações
policiais. Poderíamos arriscar um diagnóstico alternativo que, mais grave que o
sucateamento material das polícias é seu estado de indigência administrativa e
gerencial. As organizações policiais latino-americanas são reféns de antigos modelos
de gerenciamento, muitos deles de inspiração militar, que não se coadunam à
realidade da criminalidade urbana de nossos dias (BUVINIC e MORRINSON, 2000b.
BEATO, 2001b)
“Para que estatísticas detalhadas? Quem quiser informações sobre a
criminalidade, que leia os eloqüentes relatos que nossos jornais de circulação diária
trazem sobre o tema.”
Este é, provavelmente, o mais preconceituoso dos argumentos, pois ignora
o fato de que a mídia é seletiva em relação aos fatos criminais noticiados. Apenas
os “grandes crimes” ou os fatos notáveis são objeto de atenção por parte de jornalistas.
Muitas vezes, estes fatos envolvem pessoas que supostamente não deveriam
ser vítimas da violência (em geral da classe média para cima), desconhecendo a
violência cotidiana e corriqueira nos espaços urbanos em que habitam grupos
desprivilegiados.
Por outro lado, se é verdade que grandes crimes noticiados pela imprensa são
importantes na formação da percepção de nossas populações, os eventos que mais a
afligem são os pequenos delitos urbanos, que nem sempre resultam em ferimento ou
morte das vítimas. Esta é uma dimensão da violência urbana que apenas estatísticas
detalhadas são capazes de fornecer.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 73

Identificando problemas de criminalidade e violência


Tanto o processo de construção de parcerias como de solução de problemas são
dependentes de uma definição prévia de qual será a comunidade objeto do processo
de intervenção. Definir problemas relacionados à violência e criminalidade significa
também definir grupos de interessados na solução destes problemas.
O programa Safer Cities das Nações Unidas recomenda a utilização de três tipos
de ferramentas para a formulação de planos e projetos de prevenção. O primeiro tipo
refere-se justamente aos dados e informações a serem levantados para determinar
a extensão e a natureza dos crimes7. Qualquer programa de prevenção que envolva
seja a utilização de estratégias de redução de oportunidades, ou de desenvolvimento
social, deverá efetuar uma análise detalhada de dados para formulação de estratégias,
bem como para o monitoramento e avaliação de resultados.
Em nível local (municipal) podemos encontrar várias informações que
contribuem para a formulação de atividades de prevenção, em especial bases de dados
geocodificadas, que poderão ser mostradas em mapas digitalizados. A construção
desses geoarquivos consiste na montagem de bases geo-referenciadas de informação
de diversas fontes administrativas, da justiça criminal e de dados censitários. A
base espacial torna-se o denominador comum de todas estas bases de informação
oriundas de diferentes fontes, com distintas unidades de contagem, tornando possível
a construção de uma base de dados que agregue os mais diversos tipos de informação.
O sistema é alimentado por: (a) fontes não policiais tais como órgãos da administração
pública que cuidam de parques, escolas, trânsito, habitações e prédios, igreja etc;
(b) fontes policiais referentes às bases de dados sobre quadrilhas e gangues, serviço
de inteligência, arquivos de homicídios, mapas de diversos tipos de crimes, dados de
outros órgãos de justiça criminal etc; (c) grupos comunitários produzindo informações
resultantes de encontros formais e informais com a comunidade, informações recebidas
de outras agências e associações de programas de prevenção. Todas estas informações
são processadas pelo sistema que as encaminha a uma unidade de análise, encarregada

7 As outras ferramentas dizem respeito ao desenvolvimento de estratégias adequadas à prevenção


e soluções específicas para problemas, e à definição de modalidades de implementação e
institucionalização destes programas. Isto envolve a formulação de planos estratégicos e de
mobilização de grupos, até a orientação focalizada para problemas específicos, mobilização
comunitária, reforma da justiça, bem como para o treinamento de agentes destes processos a nível
local.
74 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

da identificação de “hot spots”. Esta informação é disseminada posteriormente para


os encarregados do policiamento, de unidades especiais da polícia e aos órgãos da
administração municipal envolvidos, além da comunidade, associações e organizações
da sociedade civil. Trata-se de uma estrutura que visa integrar uma grande gama de
informações em um sistema único que congregue a polícia com agências públicas e
civis.
São muito raros os exemplos de um gestor que disponha simultaneamente de
um sistema com esta diversidade de informações organizada de forma sistemática e
consistente. O usual é que apenas algumas dessas informações estejam disponíveis de
forma fragmentária e dispersa em distintas organizações e agências públicas. Assim, a
orientação a ser seguida é a de organizar o maior número delas, de forma a se montar
um mosaico incompleto de uma paisagem bastante complexa. A montagem dessas
várias frentes de informações deve-se ao fato de que não existe uma fórmula única
de classificação, mensuração ou definição de delitos criminosos. Cada organização
encarregada do processamento de crimes e criminosos os classifica de acordo com
seus objetivos e orientações. Existem várias possibilidades para se obter informações
a respeito de criminalidade, violência e sobre as organizações de polícia e justiça.
Podemos consegui-las através de (a) fontes secundárias tais como os dados oficiais
e registros administrativos existentes, ou então podemos (b) produzir estes dados
através de observações diretas, surveys de vitimização e auto-resposta ou observações
experimentais.

Informações oficiais
As informações oficiais podem ser coletadas a partir de dados disponíveis nas agências
oficiais encarregadas da produção de informações a respeito de crimes e criminosos,
bem como das próprias agências da justiça criminal (polícias, promotoria, juizes e
prisões). Registros oficiais e administrativos são produzidos por organizações policiais,
hospitais de pronto-socorro e organizações encarregadas da emissão de atestados
de óbito dentre outras. Conforme veremos adiante, um dos problemas com este tipo
de fonte de informação refere-se aos eventos que não chegam ao conhecimento
da polícia pelas mais diversas razões. Mais adiante nos dedicaremos a este tipo de
problema conhecido como “cifra negra".
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 75

A par do problema da “cifra negra”, as dificuldades em tomar as estatísticas


policiais referem-se também ao domínio de eventos com que cada organização do
sistema de justiça lida. Conforme vemos no quadro adiante:

Quadro I: Modelo de informações sobre fluxos


e taxas de produção da justiça criminal

SEGMENTO ORGANIZACIONAL PAPÉIS PESSOAS

Polícia Militar Ocorrências Prisões

Polícia Civil Inquéritos Indiciados/Implicados

Ministério Público Denúncias Denunciados/Acusados

Justiça Processos Condenados

Censo Penitenciário Populações Prisionais

Fonte: Indicadores Sociais de Criminalidade. Belo Horizonte; Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos
Políticos e Sociais, 1987

No que diz respeito às etapas iniciais do processamento de crimes e criminosos
no Brasil, há três sistemas de classificação de crimes violentos: o das Polícias Militares
Estaduais; Polícias Civis e, em relação aos homicídios, o Sistema de Informações de
Mortalidade do Ministério da Saúde. Em alguns estados, como Rio de Janeiro e São
Paulo, dados da Polícia Militar são agregados pela Polícia Civil, que se encarrega da
apuração do crime. Mesmo ao tomarmos apenas os delitos de homicídio, que por sua
própria natureza nos levariam a supor um menor grau de subnotificação, observamos
diferenças resultantes das distintas tarefas que cada uma das organizações policiais
cumpre.
A tabela 1 ilustra essa discrepância em relação aos eventos atribuídos a cada
uma das organizações no que diz respeito aos homicídios. Conforme se vê, as diferenças
entre essas fontes podem chegar a quase 50% dos homicídios registrados. Em 1991,
por exemplo, a PMMG havia contabilizado 231 homicídios; a Polícia Civil, 312; e o SIM,
308. As discrepâncias são bastante expressivas, e já foram observadas outras vezes (FJP,
1987). O Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde registra as
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ocorrências resultantes dos registros de óbitos preenchidos por profissionais da área


médica. A Polícia Militar limita-se a registrar as ocorrências verificadas no local para,
no momento seguinte encaminhá-la à Polícia Civil por meio de algum documento
de ocorrência (BOs). A Polícia Civil tomará essas ocorrências, bem como outros casos
que se tornam homicídios posteriormente, para efetuar investigações no sentido de
classificá-los juridicamente, tendo como referência o Código Penal, o que irá gerar
outro tipo de documento de ocorrência. Assim, uma classificação de homicídio ou
tentativa de homicídio na Polícia Militar poderá ser qualificada mais adiante como
homicídio doloso, homicídio culposo, latrocínio ou lesão corporal seguido de morte,
conforme inquérito conduzido pela Polícia Civil. Já nos registros de óbitos, documento
gerado por atestados de óbito conferidos por médicos, a causa de morte pode ser
uma “perfuração por objeto contundente” (OLIVEIRA et alii, 2000), classificado nas
Estatísticas de Mortalidade, no capítulo relativo a causas externas, como homicídio,
até o ano de 1995, ou como morte resultante de agressões, mais recentemente. As
diferenças observadas, portanto, resultam das próprias diferenças nas funções de cada
organização.

Tabela1: Homicídios registrados em Belo Horizonte (1991-1999)

Sistema de Informações
Ano Polícia Militar Polícia Civil
sobre Mortalidade

1991 231 312 308


1992 196 286 280
1993 197 293 274
1994 218 295 261
1995 235 321 373
1996 259 323 396
1997 271 326 436
1998 368 433
1999 428 505

Fonte: PM, PC e SIM.


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Números tão discrepantes são úteis para se trabalhar?


Números tão discrepantes poderiam comprometer as bases de dados utilizadas para
mensurar um tipo de delito que, em tese, não haveria por que serem tão distintos. Afinal,
homicídios são delitos com supostamente números pequenos de subnotificações, dado
que a possibilidade de ocultação da materialidade do crime é menor. Contudo, não é
assim que ocorre, restando-nos então avaliar a congruência entre as diferentes fontes
de dados, de tal forma a verificar a possibilidade de, não obstante as diferenças, haver
um certo padrão de diferenças entre as bases de dados.

Gráfico 2: Regressão Homicídios PM e PC em Minas Gerais

Fonte: PM e PC de Minas Gerais

No caso de homicídios, podem-se perfeitamente prever os números


contabilizados por uma das organizações policiais pelos números da outra. Embora
distintas em magnitude, as informações são congruentes o suficiente a ponto de
podermos contar com um alto grau de previsibilidade de uma fonte de informação a
partir da outra.

Como mensurar e utilizar estes números?


Nenhuma dessas informações isoladamente é suficiente para responder a indagações
sobre as chances de vitimização de diferentes tipos de crimes. Essa resposta significaria
compreender a natureza dos crimes violentos e das condições de sua ocorrência. Qual
é a cadeia de eventos e qual o peso de cada fator para que um determinado resultado
ocorra? Estatisticamente, isso significa apreender as probabilidades condicionais
associadas a um lugar ou situação particular, tal como a de ser vítima de um latrocínio,
por exemplo:
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“A cadeia de probabilidades condicionais para um latrocínio incluiria as chances


de ser abordado num dado lugar e situação por um assaltante e das chances deste
assaltante estar armado com uma arma de fogo. Dado a tentativa de assalto, qual a
probabilidade de que ele atirará e, se atirar, que alguém sairá ferido. Além disso, dado
o ferimento, qual a chance dele constituir-se numa ameaça à vida e, constituindo uma
ameaça à vida, que ele resultará em morte.” (REISS, 1993:416)
O entendimento dessas cadeias de eventos implica o levantamento de bases de
dados e informações não imediatamente disponíveis às organizações policiais. Qual
a taxa de risco associada à possibilidade de um motorista de táxi vir a ser vítima de
assalto ou de homicídio? No caso de Belo Horizonte, ocorreu em 1999 uma média
de 1,24 assalto por dia em um universo de 92.672 corridas/dia. O risco da atividade
ocupacional, portanto, é de que haja um assalto para cada 74.735 corridas. O risco
de morte por corrida efetuada é de 1 para 27.801.600 corridas no ano. O mesmo
ocorre em relação a roubo à mão armada contra transeuntes no centro da cidade.
O denominador deve ser a população flutuante ou a população residente? Em Belo
Horizonte, se tomarmos a população residente no centro da cidade, a taxa de assaltos
a transeuntes em 1997 foi de 758 por cem mil habitantes, o que equivale a quase dez
vezes a taxa média da cidade. Se tomarmos a taxa em relação à população flutuante,
este número decresce para quase dez vezes a taxa de BH, chegando a 8 por cem mil.
A capacidade de ligar dados de diferentes fontes para a análise de problemas
específicos de criminalidade e violência, de tal forma a delinear probabilidades
condicionais, é uma limitação importante nas bases de dados policiais. Uma
possibilidade de como se fazer isso é o que veremos adiante.

Possibilidades alternativas de levantamento de dados


Várias formas alternativas de coleta de informações e de dados têm sido sugeridas e
adotadas para contornar alguns dos problemas com as diversas fontes de informação.
Surveys de vitimização têm sido crescentemente sugeridos como importantes
instrumentos para fornecer informações complementares às estatísticas criminais
produzidas pelas organizações do sistema de justiça criminal, especialmente delitos
não comunicados aos agentes do sistema.
Dado que muitos problemas de segurança são bastante localizados e
manifestam-se em uma área geográfica bastante reduzida, outras formas mais
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baratas de se obter informações podem ser utilizadas, Grupos focais com moradores e
interessados da região, entrevistas com pessoas chave, observação participante e até
mesmo lançar mão de gravações em vídeo podem ser recursos bastante eficazes para
o levantamento de informações.

Em busca da “cifra negra”


Outra forma de aferir as taxas de criminalidade seria através de surveys de vitimização.
Nos últimos anos estes surveys têm sido freqüentemente sugeridos como estratégia
de redução dos sub-registros, bem como da produção de dados que não são coletados,
ou cuja produção é bastante deficiente. Este é o caso de eventos que, pelas mais
diversas razões, nem sempre chegam ao conhecimento das autoridades judiciárias e
policiais, ou de delitos cuja classificação não encontra amparo nas formas oficiais
de categorização. Contudo, não obstante serem um importante avanço em relação
aos sistemas oficiais, a produção de surveys de vitimização também produzem dados
incompletos e inconsistentes.
O objetivo das pesquisas amostrais de vitimização é obter informações detalhadas
da freqüência e natureza de crimes como estupro e violência sexual, assaltos, agressões,
arrombamentos, furtos e roubo de carro, tenham sido eles comunicados à polícia ou
não. A pesquisa buscará obter informações sobre (a) as vítimas; (b) os agressores e seu
relacionamento com as vítimas; e (c) os delitos e as circunstâncias em que ele ocorreu
(hora e local, uso de armas, conseqüências econômicas etc). Além disso, buscar-se-á
obter informações suplementares sobre a experiência das vítimas com o sistema de
justiça criminal, as medidas tomadas para autodefesa e a possível utilização de drogas
por parte dos agressores.
Pesquisas desta natureza são pertinentes porque complementam os dados
oficiais de segurança, permitindo uma avaliação da dimensão da cifra oculta de
crimes. O gráfico seguinte é um exemplo das diferenças entre as taxas de ocorrências
registradas pelo sistema de justiça e pelo survey de vitimização. Ele compara as taxas
de furto registradas pela Polícia Militar, pela Polícia Civil e as taxas obtidas através
da pesquisa realizada no município de Belo Horizonte pelo CRISP. Nele, pode-se ver
que o tipo de investigação aqui proposta permite um melhor dimensionamento da
ocorrência do fenômeno a que se propõe conhecer do que apenas o uso das taxas
oficiais de ocorrências.
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Gráfico 3: Estimativa proporção denúncias PM, PC e survey vitimização

Fonte: CRISP - Survey de Vitimização em Belo Horizonte, 2002

A tabela abaixo, por sua vez, descreve as diferenças de taxas para outros delitos
considerados na pesquisa.

Tabela 2: diferenças estimativas de taxas - Funil de ocorrências


Survey Vitimização PMMG PC
Crime
Taxa Taxa Razão Taxa Razão

Roubo 8.984,2 1.005,6 8,9 132,6 67,7

Furto 14.114,4 2.090,0 6,8 738,0 19,1

Invasão de domicílio 5.357,4 348,5 15,3 300,0 17,8

Agressão sexual 358,3 17,8 20,1 12,6 28,4

Agressão física 3.252,5 754,2 4,3 307,3 10,5

Fonte: CRISP – Survey de Vitimização em Belo Horizonte, 2001

Pesquisas de vitimização são importantes também na medida em que permitem


maior conhecimento acerca da percepção que a população constrói a respeito dos
agentes de segurança pública. Constitui-se, portanto, num instrumento de avaliação
direta das pessoas sobre a atuação do estado na segurança pública. As tabelas seguintes
descrevem os percentuais referentes à opinião que os entrevistados manifestaram
sobre as polícias no município de Belo Horizonte, além das experiências vividas junto
a essas instituições.
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Tabela 3 - Você acha que as polícias em Belo Horizonte:


PM PC
Trabalham muito bem e razoavelmente bem 53,7% 51,9%
Muito ou razoavelmente violenta com a população 58,4% 46,0%

Fonte: CRISP – Survey de Vitimização em Belo Horizonte, 2002.

Tabela 4 - Já foi vítima de extorsão pela polícia?


Bairro não Favela não
Favela violenta
Você já foi vítima de: violento violenta
PM PC PM PC PM PC
Violência 12,8% 4,0% 19,4% 7,1% 27,1% 6,4%
Extorsão 2,7% 2,4% 2,8% 2,4% 1,9% 2,0%

Fonte: CRISP – Survey de Vitimização em Belo Horizonte, 2002.

Além disso, investigações desta natureza possibilitam também maior


cientificidade no planejamento de políticas públicas, na medida em que tornam
viável o acesso a informações sobre a natureza e a extensão de crimes, bem como
dos hábitos que levam as pessoas a reportarem crimes à polícia. Estas informações
podem ser valiosas no planejamento de estratégias para o combate à criminalidade
violenta e para medidas de mensuração sobre as estratégias adotadas na prevenção
da criminalidade. Conforme o perfil de violência detectada pelo survey, os agentes
de segurança pública podem dirigir esforços através de campanhas educativas e do
estímulo a denúncias de uma série de delitos que escapam ao seu registro8. Os estudos
de vitimização permitem ainda a comparação entre taxas de diferentes cidades ou
áreas da mesma região metropolitana, como proposto neste projeto. Sua avaliação ao
longo do tempo permite uma descrição precisa da evolução da criminalidade.
No Brasil, a cifra de pessoas que não registram queixa na polícia é bastante
significativa e similar a de outros países, como os EUA e Inglaterra. Segundo suplemento
de vitimização incluída na pesquisa PNAD de 1988, 67,5% das vítimas de furto e roubo
e 60,8% das vítimas de agressão não recorreram à polícia, pelos mais diversos motivos.

8 O mais eloqüente caso de sub-registro refere-se aos delitos de violência doméstica dirigidas contra
a mulher e crianças.
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No caso de agressões, 20% julgaram que não era necessário, 19,4% disseram que não
queriam envolver a polícia, 17,5% resolveram sozinhos e 14,7% não acreditavam
na polícia. A proporção dos que não acreditavam na polícia como motivo para não
recorrer a ela é maior quando se trata de roubos e furtos (27,7%).
Não se deve, contudo, superestimar os benefícios deste tipo de pesquisa. Elas
não substituem, mas complementam as outras formas de levantamento de dados. Não
devemos negligenciar o fato de que pesquisas de vitimização são instrumentos que
produzem informações a nível individual, mas não produzem bons dados a respeito de
organizações comerciais, por exemplo. Na verdade, este tipo de enquete, não obstante
sua importância para descortinar a “cifra negra” de alguns tipos de delitos, não é bom
instrumento para revelar crimes contra empresas, ou orientar políticas focalizadas ao
nível de vizinhança. A produção de pesquisas que revelem o tamanho das vitimizações
de empresas contribuiria para compreendermos importantes aspectos do crime
organizado em grandes centros urbanos. Por outro lado, as limitações decorrentes do
tamanho da amostra neste tipo de pesquisa terminam por torná-la inoperante como
instrumento de definição de políticas e programas a nível local.

Incorporando dimensões espaço-temporais: o uso de geoarquivos


Uma das ferramentas mais importantes para a análise criminal são os mapas. Esta é
uma área que avançou bastante nos últimos anos, em virtude do desenvolvimento
da informática, que tornou possível a utilização de mapas eletrônicos e dos sistemas
geográficos de informação eletronicamente disponíveis.
A utilização de mapas para a análise de dados de diferentes naturezas já possui
uma longa tradição.
Os mapas a seguir são do século XIX. O primeiro ilustra a localização dos casos
de cólera em Londres. A simples visualização dos dados no espaço permitiu identificar
que eles estavam ocorrendo ao redor de alguns poços de água contaminados pelo
vibrião. O segundo mapa ilustra casos de crimes contra a pessoa e contra o patrimônio
em regiões da França. Tal como ainda ocorre em nossos dias, esta distribuição era
distinta quando levamos em contas variáveis de desenvolvimento socioeconômicas.
O mapa abaixo nos dá uma informação bastante conhecido de todos: a distribuição
da população mundial. Sua visualização, entretanto, nos fornece uma imagem muito
mais eloqüente do que a informação através de tabelas.
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Figura 1: Map of Cholera Death and Locations of Water Pumps

Figura 2: Balbia and Guerry (1829) Maps Comparing


Crime and Instruction
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Exemplo de Mapa do Século XIX


A simples visualização de informações em um mapa nos permite uma compreensão
mais fácil, apresentando conseqüentemente uma possibilidade melhor de compartilhar
informações. Esta propriedade é essencial para quem quer desenvolver projetos
e programas de prevenção de crimes, pois mapas podem ser uma maneira fácil de
conceber, visualizar e analisar um problema difícil9.
Tradicionalmente, a criminologia tem estado atenta às dimensões temporais da
criminalidade. Reconhecer os determinantes das tendências verificadas ao longo do
tempo tem sido a questão crucial para muitas perspectivas explicativas e de atuação
sobre o fenômeno. Contudo, a tendência recente na organização de dados policiais
tem sido a de incorporar a dimensão espacial tanto para a explicação como para o
planejamento de ações e estratégias de controle. A criação de unidades de análise
de crimes tem se constituído num dos principais suportes para o desenvolvimento
de policiamento comunitário e de solução de problemas. Sistemas de informação
têm servido para a detecção de padrões e regularidades, de maneira a dar suporte
às atividades de policiamento, bem como para prestar contas à comunidade sobre
problemas relativos a segurança (Buslik e Maltz, 1998).
Para o analista, a incorporação de dimensões espaciais na análise adiciona um
novo e importante elemento de explicação do fenômeno. Isto permitiu descortinar
um dos princípios de análise espacial mais importante: a de que se trata de fenômeno
bastante concentrado tanto espacial como temporalmente10. Além disso, sabemos
também que um grande número dessas ocorrências geralmente origina-se num
pequeno número de ofensores.

Geoarquivos e análise criminal


A construção de geoarquivos consiste na montagem de bases georeferenciadas de
informação de diversas fontes administrativas, da justiça criminal e de dados censitários.
A base espacial torna-se o denominador comum de todas essas bases de informação
oriundas de diferentes fontes, com distintas unidades de contagem, tornando possível
a construção de uma base de dados que agregue os mais diversos tipos de informação.
Esquematicamente, a montagem de um geoarquivo é representada a seguir:

9 Uma ao introdução ao estudo do mapeamento de crimes encontra-se disponível no endereço


www.crisp.ufmg.br
10 Ver Sherman, Lawrence W.; Gartin, Patrick R. e Buerger, Michael E. 1989: “Hot Spots of Predatory
Crime: Routine Activities and the Criminology of Place”. Criminology, vol. 27, n. 1, pp. 27-55.
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Figura 3: Montagem de um geoarquivo


Agências Justiça
Comunidade Criminal

Exemplos de dados: Exemplos de dados:


• Mapas de ruas • Ligação Vítima, ofensor,
• Uso Urbano incidente
• Dados demográficos • Territórios quadrilhas
• Mapas cognitivos • Prisões
• Território quadrilhas e • Jurisdições delegacias
grupos • Liberdade condicional
• Escolas

GEOARQUIVO

Análise Problemas

Desenvolvimento
Estratégico

Prevenção + Intervenção
Comunidade e Agências sistema justiça

Informações oriundas de diferentes fontes tornam possível a montagem e


superposição de mapas temáticos de diferentes fontes, tais como o mapa adiante com
informações a respeito da renda média de setores censitários superposto a mapas de
homicídio na cidade de Belo Horizonte.

Mapa 1: Homicídios por distribuição de renda


em setores censitários de Belo Horizonte

Fonte: IBGE / CRISP / PMMG


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O resultado mais visível da montagem de geoarquivos está na possibilidade de


realizar análise específica para problemas locais (mapa 1). Para tal, um conjunto de
técnicas e métodos tem se desenvolvido para a identificação de hot spots, ou áreas
com alta incidência de criminalidade, que tem servido de base para o planejamento
conjunto entre diversas agências públicas (TAXMAN e McEWEN, 1998).
Um dos problemas inerentes à criação de unidades deste tipo é particularmente
agudo no Brasil. A ausência de um enfoque específico voltado para a análise de
crimes que cumpra as funções acima mencionadas é decorrente da fragmentação
organizacional no trato das informações por parte das organizações policiais.
Estatísticas são produzidas por departamentos e unidades que nada têm a ver com o
planejamento operacional das organizações policiais. Análises mais compreensivas da
criminalidade urbana são descartadas em favor da confecção de relatórios insípidos e
de nenhuma serventia.
Por outro lado, a tradição de estudos criminológicos de natureza quantitativa
ainda é bastante incipiente no Brasil Não temos nenhum centro de formação em
criminologia, ou, sequer, uma formação especializada neste tema. Conseqüentemente,
abundam estudos de pouco rigor e pouco vinculados às mais sólidas tradições
teóricas de estudos em criminologia, o que termina por dificultar a acumulação de
conhecimento na área.
Mapas podem ser utilizados para fins descritivos, ilustrando crimes, chamadas
telefônicas, acidentes de trânsito, e outros tipos de dados. Toda a infinidade de
informações municipal e de crimes pode ser representado visualmente. Ou então,
podemos utiliza-los para fins analíticos: analisa dados e expõe resultados. Logo adiante
discutiremos com mais detalhes esta possibilidade, Por ora, nos deteremos um pouco
nos dados a serem utilizados.

Quais informações devem ser coletadas?


Diversos tipos de informação podem vir a compor um banco de dados que possa
subsidiar programas de prevenção. Sua origem, conforme vimos, pode estar nas mais
diversas organizações e locais. Como regra, deveríamos tentar obter informações que
fossem pertinentes aos problemas com os quais estamos lidando. De uma forma geral,
entretanto, poderíamos compor um quadro de informações da seguinte maneira:
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Quadro I: Variáveis dependentes – crimes violentos

Consumado
Homicídio
Crimes contra a Tentado
pessoa
Estupro Consumado

A residências urbanas
A estabelecimento bancário
A ônibus / coletivo
A casa lotérica
A padaria
A mercearia / supermercado
Roubos sem
A depósito em geral
o uso de arma
A veículo automotor
A táxi
A transeunte
Crimes violentos

A postos de combustível
A residências urbanas
A estabelecimento bancário
Crimes contra o
patrimônio
A residências urbanas
A estabelecimento bancário
A ônibus / coletivo
A casa lotérica
A padaria
A mercearia / supermercado
Roubos à mão
A depósito em geral
armada (assalto)
A veículo automotor
A táxi
A transeunte
A postos de combustível
A residências urbanas
A estabelecimento bancário

Violência doméstica
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Quadro II: Variáveis independentes

Nível de limpeza das ruas


Porcentagem de área ocupada com comércio
Porcentagem de área ocupada com residências
Número de grupos culturais
Nível de acabamento das residências
Número de residências
Água tratada
Índice de Infra-estrutura
Esgoto encanado
urbana
Energia elétrica
Iluminação pública
Porcentagem de domicílios
Rua calçada
Características assistidos com...
Telefone
urbanas Banco
Posto de gasolina
Índice de serviços urbanos
Pontos de táxi
Agência de correio
Número de...
Bancas de revista
Telefone público
Creche
Índice de proteção social
7 a 15 anos
Qualificação profissional
Número de pessoas
Idosos
assistidas em programas ....
Familiares

Renda
Idade
Anos de escolaridade
Porcentagem de idosos
Porcentagem de crianças
Características Porcentagem de brancos
populacionais Porcentagem de homens
Porcentagem de empregados
Porcentagem de ocupados em profissões formais
Porcentagem de desnutridos
Taxa de mortalidade infantil
Taxa de analfabetismo
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 89

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92 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

EXPLORANDO NOVOS DESAFIOS


NA POLÍCIA: O PAPEL DO ANALISTA,
O POLICIAMENTO ORIENTADO PARA O
PROBLEMA E A METODOLOGIA IARA

Elenice de Souza

Introdução
Um dos maiores desafios lançados às organizações policiais está em potencializar
sua capacidade de produzir, organizar, processar informações de forma sistemática,
bem como de desenvolver uma metodologia de gestão que possa orientar, com base
em evidências e análises, tanto o planejamento estratégico e operacional de suas
atividades quanto a avaliação e o monitoramento de seus resultados.
Aumentar a capacidade analítica das polícias com o objetivo de alcançar
resultados mais eficientes requer mudanças profundas no modo tradicional de
conceber o papel e a função da polícia nas sociedades modernas. A polícia precisa
priorizar problemas substantivos, recorrentes, que causam prejuízos às comunidades,
mais do que simplesmente reagir a chamadas urgentes e fazer cumprir a lei. Isso desafia
o modelo tradicional de polícia como uma organização orientada para incidentes com
a função primordial de controlar crimes.
No modelo tradicional, espera-se que os policiais a cada turno respondam
rapidamente às chamadas de emergência e estejam liberados para atender às próximas
chamadas. Nesse ciclo vicioso, raramente os policiais compartilham informações com
seus pares sobre os problemas enfrentados no seu dia-a-dia e as formas alternativas
de solucioná-los. Isso tem dificultado a condução de uma análise mais precisa sobre
problemas repetitivos, similares e muitas vezes comuns que ocorrem freqüentemente
em locais específicos. Como conseqüência, a habilidade do policial em resolver
problemas tem resultado mais da sua experiência individual e do seu conhecimento
prático do que de um processo criativo, fundamentado em um método analítico
consistente.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 93

É necessário, pois, maior comprometimento das organizações policiais com um


modelo de gestão de informação e resultados que amplie o potencial das mesmas de
questionar e investigar de maneira sistemática a natureza de problemas substantivos
para os quais o público espera uma resposta, bem como de implementar formas mais
eficazes e pró-ativas de solucioná-los. Policiais devem ser capacitados e treinados para
se tornarem experts na solução de problemas, aprimorando sua habilidade em utilizar
ferramentas analíticas com base na metodologia científica, que lhes permitam, mais
do que reagir aos problemas de crime, intervir nas causas que contribuem para sua
emergência, identificando respostas alternativas bem como novos mecanismos de
avaliação e monitoramento de resultados.
Essa nova concepção do papel do policial está intimamente associada ao
modelo de policiamento orientado para a solução de problemas – uma forma de
gerenciamento das organizações policiais que tem por objetivo analisar e intervir nas
causas subjacentes e imediatas que geram problemas substantivos, através do uso da
metodologia de solução de problemas. Este modelo dá assim grande valor à dimensão
intelectual do trabalho policial, através de um sistemático questionamento sobre a
natureza dos problemas que afetam comunidades, e do forte investimento em análise,
pesquisa e avaliação.
Este texto tem como objetivos centrais (1) discutir o papel do analista de crime;
(2) introduzir o modelo de policiamento orientado para a solução de problemas e, (3)
a metodologia de solução de problemas.

1) O papel do analista de crime


Tradicionalmente, a imagem que se tem do analista de crime remete ao indivíduo
que passa o dia inteiro dentro de uma unidade de estatística do departamento de
planejamento ou de inteligência das organizações policiais, sentado à frente de um
computador, com a função de organizar e alimentar complexos bancos de dados a
partir de informações coletadas, tanto nos boletins de ocorrências, no caso das Polícias
Militares, como nos registros de crimes, no caso das Polícias Judiciárias. Assim os
analistas têm como funções básicas:
• Controlar e sistematizar informações e dados oficiais;
• Criar, organizar e alimentar bancos de dados;
94 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

• Analisar e mapear estatísticas sobre a distribuição temporal e geográfica do


crime; criar tabelas e gráficos para facilitar a interpretação desses dados;

• Analisar a evolução e as tendências da criminalidade;

• Organizar relatórios estatísticos periodicamente;

• Fornecer informações sistematizadas para executivos e gerentes das


corporações policiais.

Assim, diariamente, os analistas passam a maior parte do tempo calculando


taxas, analisando e mapeando estatísticas, criando gráficos e tabelas, bem como
elaborando volumosos relatórios sobre a evolução e tendências da criminalidade. Todo
esse material é então colocado à disposição dos gerentes e executivos das organizações
policiais com a expectativa de que possa ser utilizado para:

1. orientar o processo de tomada de decisões;

2. planejar intervenções pontuais em locais ou alvos que foram identificados


como prioritários e,

3. avaliar e monitorar os resultados.

Entretanto, o resultado desse importante trabalho de transformar informação


e análise em inteligência policial acaba se transformando em pilhas de papéis, que são
arquivados em prateleiras, ou em relatórios no formato digital. Esse material é quase
sempre pouco utilizado em termos práticos. Em geral, servem mais para justificar uma
intervenção policial anteriormente planejada do que para orientar o planejamento
estratégico e tático operacional de ações futuras, bem como a implementação de novas
metodologias de avaliação e monitoramento de resultados. Além disso, raramente
são realizadas avaliações sobre o próprio produto das análises, sendo por isso pouco
divulgado dentro das corporações policiais (COPE, 2004).

Neste sentido, para que as organizações policiais aumentem sua capacidade de


usar informações, pautando suas ações em evidências e análises, é preciso potencializar
o papel dos analistas. Entretanto, alguns fatores podem explicar a grande dificuldade
de transformar a atividade do analista em uma ferramenta prática fundamental de
planejamento estratégico e tático-operacional das polícias. São eles:
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 95

I. O tipo de dados utilizados

Geralmente as análises se restringem ao uso de dados oficiais. Contudo, ao


fundamentar as análises exclusivamente nesses registros, corre-se risco de se ter
uma visão parcial dos eventos criminais, já que os dados oficiais representam apenas
eventos que foram reportados para a polícia. As pesquisas mostram que por vários
motivos há um grande sub-registro de ocorrências de crimes por parte da população.
Por outro lado, os analistas nem sempre têm acesso a todas as informações, que
são processadas dentro das corporações, como, por exemplo, aquelas consideradas
sigilosas ou as preciosas informações produzidas pelos próprios policiais no dia-a-dia
de suas atividades, em especial por aqueles envolvidos diretamente na solução de
crimes (COPE, 2004).

II. A qualidade das informações

Alguns problemas relativos à qualidade de informações são:

a. As informações se limitam a dizer sobre o que aconteceu no tempo


presente “do aqui e do agora”, quase sem nenhuma associação com os
fatores que contribuíram para o processo sistemático de produção da
própria informação (COPE, 2004).

b. As informações acabam priorizando o binômio crime / agente infrator


pouco dizendo sobre o comportamento criminoso, as vítimas, os terceiros
envolvidos, as redes criminosas, bem como o contexto social e físico que
possam ter contribuído para a ocorrência do crime.

c. As informações nem sempre são precisas em relação ao endereço onde


os crimes ocorreram, confundindo-se muitas vezes o local do registro das
ocorrências com o local do crime. Além disso, apresentam dados muitas
vezes incorretos ou incompletos sobre o endereço. Isso tem uma grande
implicação no mapeamento dos crimes, comprometendo assim as análises
a serem desenvolvidas.
96 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

III. A cultura das organizações policiais


Tradicionalmente, o fluxo de informações nas organizações policiais é descontínuo
e restrito. As informações sobre a criminalidade circulam de forma parcial, seja
internamente às próprias corporações, seja entre as corporações. No caso especifico dos
policiais na América Latina, esse problema é intensificado pela dualidade organizacional
que separa as atividades de polícia judiciária das atividades de polícia ostensiva, e pela
fragmentação das ações entre suas unidades especiais, especializadas e de inteligência
(BEATO, 2005). Por um lado, é comum o monopólio de informações por grupos específicos
dentro das organizações, o que dificulta a consolidação de um espírito de equipe sólido
para a execução da missão policial de controle e prevenção do crime. Além disso, as
informações que são coletadas e produzidas por cada organização policial são raramente
distribuídas e compartilhadas entre organizações irmãs. Isso dificulta o planejamento
integrado e tático operacional de ações entre as diversas corporações policiais,
fortalecendo uma cultura organizacional que prioriza ações e soluções individualistas,
em detrimento de atividades integradas, onde cada organização é reconhecida como
parte de um mesmo processo de produção e garantia de segurança pública.

IV. A posição pouco privilegiada dos analistas na hierarquia das


organizações policiais
De acordo com a COPE (2004) isso pode ser explicado por alguns fatores, tais
como:
a. Falta de compreensão e reconhecimento da importância da atividade pelos
próprios policiais.
b. Aplicação limitada dos resultados da análise na atividade prática de
polícia.
c. Divulgação restrita dos resultados da análise entre as diversas unidades de
polícia e pouco feedback do trabalho realizado pelos analistas.
d. Pouca participação dos analistas no planejamento de estratégias e
operações, bem como na avaliação e monitoramento de resultados.
Neste sentido, é crucial que as corporações policiais desenvolvam sua capacidade
analítica e de avaliação de resultados, o que implica, em outras palavras, (1) transformar
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 97

o conhecimento prático dos policiais em informações institucionais, processando e


compartilhando suas experiências e expertise; (2) envolver os policiais na atividade de
pesquisa; (3) desenvolver um processo sistemático para produção de conhecimento
sobre os problemas comuns e repetitivos que a polícia enfrenta no dia-a-dia (4);
identificar novas respostas e submetê-las a rigorosa avaliação e monitoramento e (5)
facilitar o acesso ao conhecimento produzido, (GOLDSTEIN, 1996).
Para isso é preciso também que as corporações invistam na formação de
analistas, que não apenas dominem o uso de programas computacionais estatísticos
e de geoprocessamento. Mais do que isso, que invistam em analistas capazes também
de aplicar conceitos e o método científico para explicar a complexidade de fatores
que criam oportunidades para a emergência de problemas substantivos repetitivos,
contribuindo assim de forma mais prática para a eficiência dos resultados policiais e a
implementação de políticas que potencializem a defesa social.
Deste modo, as unidades de estatística e análise criminal das organizações
policiais teriam de ser direcionadas para a solução de problemas. Essas unidades
deveriam ser formadas por uma equipe mista de policiais: tanto aqueles que trabalham
nas ruas, quanto os que, na posição de liderança, gerenciam as unidades policiais,
além de contarem com o suporte de pesquisadores acadêmicos. Isto proporcionaria
uma mistura de talentos e uma oportunidade única de troca entre as experiências
e o conhecimento prático das ruas, com a expertise estratégica das lideranças e os
conceitos e teorias científicas dos acadêmicos.
Nesse sentido, de acordo com Godstein (1990), os analistas se tornariam experts
na solução de problemas com a habilidade de:
• Distinguir o que funciona e o que não funciona em termos de controle e
prevenção de crime.
• Aplicar conceitos e métodos científicos na solução de problemas
substantivos;
• Complementar os dados oficiais com fontes de informação alternativas,
como, por exemplo, surveys de vitimização; entrevistas com agentes
infratores; e dados de outras instituições.
• Tipificar e categorizar modalidades de crime de forma mais específica e
explicar seus padrões e variação no tempo.
98 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

• Identificar as causas imediatas dos problemas de crime.


• Propor soluções para problemas identificados, optando por respostas
alternativas que tenham efeito de longo prazo.
• Explicar e saber como evitar a imigração do problema e explicar a difusão
de benefícios da intervenção.
• Identificar parceiros em potencial.
• Avaliar os custos e benefícios das intervenções;
• Avaliar e monitorar resultados.
Sem dúvida alguma, as unidades de análise de crime constituem um pilar-
chave das corporações policiais modernas, cujo principal negócio é a solução de
problemas substantivos que afetam as comunidades, tendo como objetivos aumentar
a eficiência de seus resultados na prevenção e controle do crime, e garantir maior
segurança pública. Entretanto, é inválido discutir a importância do papel dos analistas,
se não discutirmos a relevância que o modelo de policiamento orientado para a solução
de problemas deve dar ao fomento da conformação de uma polícia inteligente, cujo
trabalho é baseado na informação e análise.

2) O policiamento orientado para a solução de problemas


O policiamento orientado para a solução de problema é tido como uma das
estratégias mais eficientes de gestão das organizações policiais. Focalizado na prevenção
e no uso sistemático de informação e análise, esse modelo procura interromper o ciclo
vicioso e incessante de atendimento rápido e urgente a incidentes, próprio do modelo
tradicional de polícia.
Esses policiais comprometem grande parte do tempo de trabalho reagindo a
incidentes repetitivos envolvendo os mesmos agentes infratores, as mesmas vítimas,
e os mesmos locais de ocorrência. E dedicam pouco tempo para pensar em como
preveni-los, o que contribui para que os incidentes se repitam. Desde modo, reforça-se
a crença de que a polícia apenas “enxuga gelo”, de efeito paliativo sobre os problemas
de crime e segurança pública.
Ao contrário, o policiamento orientado para a solução de problemas tem um
caráter pró-ativo e procura intervir nos fatores situacionais que geram oportunidades
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 99

para emergência de problemas substantivos para a polícia. De acordo com esse modelo,
“problemas” são um conjunto recorrente de incidentes similares e relacionados
entre si, que causam prejuízos ao público, o qual espera que a polícia vá resolvê-los.
(GOLDSTEIN, 1990; 1979).

Origem do conceito
O policiamento orientado para a solução de problemas foi introduzido pela primeira
vez em 1979, por Herman Goldstein – professor de Direito e consultor do Departa-
mento de Polícia de Chicago – num período de intenso questionamento em relação à
eficiência do modelo profissional de polícia de controlar e prevenir o crime.
A principal crítica de Goldstein (1990, 1979) a esse modelo é a prioridade
dada aos “meios” da atividade policial em detrimento dos seus “fins”. Como resultado,
as polícias têm diminuído sua capacidade analítica e preventiva direcionada para re-
sultados e investido em estratégias tradicionais de caráter muito geral para lidar com
uma ampla gama de problemas distintos. Assim, os policiais têm se limitado a fazer
nada mais do que registrar e atender incidentes.
Ao contrário do modelo tradicional, o policiamento orientado para a solução
de problemas baseia-se na metodologia da pesquisa ação. Essa metodologia própria
das Ciências Sociais tem como pressuposto básico o estreitamento entre o conhe-
cimento orientado por evidências científicas, próprio de pesquisadores acadêmicos,
e o conhecimento orientado pela experiência prática, próprio daqueles que são in-
tegrantes de uma determinada organização, comunidade, ou sociedade em estudo
(GOLDSTEIN, 1990).
No caso específico do policiamento orientado para a solução de problemas,
a metodologia de pesquisa ação pressupõe que pesquisadores acadêmicos e policiais
façam parte de uma equipe interdisciplinar de solução de problemas. Juntos, são res-
ponsáveis pelo desenvolvimento de um processo analítico cuidadoso de identificação
dos fatores que contribuem para emergência de problemas para os quais o público
espera que a polícia dê uma resposta, bem como pela implementação de respostas,
avaliação e monitoramento de resultados. Neste sentido, o conhecimento científico
dos acadêmicos soma-se à expertise dos profissionais de polícia, complementando-se
e propiciando uma interlocução valiosa entre teoria e prática.
100 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

3) O policiamento orientado para a solução de problemas e o método iara

O policiamento orientado para a solução de problemas envolve um processo analítico


muito similar ao processo de inteligência caracterizado pela (1) coleta de informação;
(2) análise; (3) revisão e seleção; (5) intervenção para minimizar riscos e, (5) avaliação
de impacto (COPE, 2004). Esses elementos são sintetizados pelos quatro estágios do
método IARA de solução de problemas, o qual inclui (1) Identificação (2) Análise (3)
Resposta e (4) Avaliação e monitoramento (ECK e SPELMAN, 1987). Cada uma dessas
etapas é respectivamente descrita abaixo:

I. Identificação

Essa é uma etapa vital do processo de solução de problemas. Nesse estágio


os problemas são identificados através da análise estatística e geoprocessamento de
dados. É recomendável que nessa fase seja utilizada uma ampla gama de informações
como, por exemplo, dados oficiais das polícias; conhecimento e expertise de policiais;
dados de pesquisas de vitimização; informações decorrentes de entrevistas com
agentes infratores entre outras, com o objetivo de se definir de forma mais precisa e
detalhada possível o problema em questão.

II. Análise

A etapa de análise baseia-se no pensamento lógico e inclui revisão, seleção,


comparação e interpretação de informações utilizadas na fase anterior, podendo ainda
utilizar novas fontes de dados que se fizerem necessárias. Essa é uma fase crucial
de investigação de fatores causais, relacionais, que explicam a emergência de um
problema em particular, bem como de identificação de padrões, evolução e tendências
do problema. Um dos resultados dessa etapa é a formulação de hipóteses claras sobre o
problema em foco. Hipóteses são cruciais para explicar relações causais entre variáveis
associadas a um problema em particular e que devem ser testadas. Contribuem assim
para compreender a natureza e a extensão do problema, bem como para desenvolver
intervenções mais adequadas.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 101

III. Resposta
Criatividade é o elemento chave desta etapa, a qual envolve o desenvolvimento
de estratégias alternativas de prevenção e controle de crime e outros problemas
correlatos. Essas respostas devem ir além da captura e prisão de agentes infratores,
podendo envolver a participação de parceiros em potencial, como outros órgãos
governamentais, instituições, igrejas, comércio e o público em geral, todos que
diretamente estão envolvidos com o problema e sofrem suas conseqüências.

IV. Avaliação e monitoramento


Esta é uma etapa que inclui, por um lado uma avaliação do processo de
implementação e de impacto das respostas, e por outro o acompanhamento sistemático
das ações implementadas, a fim de evitar que o problema surja novamente. Como
resultado, cada obstáculo identificado nesta etapa implicará o reinício do processo
IARA ou de pelo menos um de seus estágios. O resultado da etapa de avaliação e
monitoramento é crucial para orientar a formulação de novas estratégias, bem como
de novas políticas de prevenção.

Uma das vantagens do método IARA é auxiliar a equipe de analistas de
problemas a formular perguntas mais relevantes que possam contribuir na identificação
e definição de “problemas” de forma mais precisa e adequada. Esse método requer
a coleta e processamento de ampla gama de dados que orientem a formulação e
implementação de respostas mais criativas e práticas, de modo a intervir nas causas
dos problemas, causas estas que sejam passíveis de avaliação e monitoramento.
Embora o método IARA à primeira vista sugira a idéia de um modelo linear –
cada um dos estágios segue seqüencialmente um ao outro –, o IARA é essencialmente
interativo, sendo que a conclusão de cada uma de suas etapas permite trazer novos
elementos para se repensar etapas anteriores. Por exemplo, a etapa de análise pode
indicar que o problema não foi bem definido no primeiro estágio de identificação,
demandando assim uma melhor precisão em relação aos seus elementos constitutivos.
Assim também, dificuldades na formulação de respostas podem apontar para
inadequações e imprecisões na etapa de análise do problema, exigindo-se assim um
aprimoramento desse estágio.
102 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Neste sentido o sucesso da aplicação do método IARA depende de uma maior


atenção dos analistas a cada um desses estágios, evitando assim o imediatismo muitas
vezes presente entre os policiais de dar respostas sem analisar cuidadosamente os
problemas ou insistir na implementação de respostas comuns, gerais, para problemas
diferentes, sem antes avaliar minuciosamente seus resultados ou monitorar seu
processo de implementação. A metodologia IARA de solução de problemas contribui
assim para potencializar um policiamento inteligente baseado num processo
sistemático de coleta e processamento de informação e análise.

4) Conclusão
Para que as polícias aumentem sua capacidade analítica e o modelo de polícia inteligente
orientado para a solução de problemas realmente se torne uma estratégia policial
bem sucedida, é preciso que as lideranças policiais e os pesquisadores acadêmicos
se comprometam a desenvolver um conhecimento sistemático sobre problemas
substantivos que constantemente demandam a atenção policial. Além disso, devem
fornecer assistência e recursos para aprimorar a capacidade tanto das corporações
policiais quanto de seus profissionais de coletar, analisar e usar informações, bem como
avaliar resultados, aumentando sua responsabilidade para com as comunidades.
Por um lado, as organizações policiais precisam colocar em prática a metodologia
de pesquisa - ação, característica do policiamento orientado para a solução de
problemas, dinamizando suas unidades de estatística e análise criminal. Estas unidades
de análise deveriam desenvolver projetos de prevenção e controle de crime no sentido
de solucionar problemas substantivos colocados para as polícias. Conduzir, também,
sistemática avaliação do processo analítico e seus efeitos na prevenção. Além disso,
essas unidades teriam que auxiliar as polícias não apenas a produzir e organizar um
conhecimento sistemático e consistente sobre o que funciona e o que não funciona em
termos de prevenção e controle da criminalidade, mas disseminar esse conhecimento
dentro de toda a organização policial. Enfim, as unidades de análise de crime deveriam
ter um importante papel no desenvolvimento da capacidade pró-ativa das polícias,
aumentando-se assim a eficiência policial na prevenção.
Por outro, as agendas de pesquisa precisam investir no estudo de tipos específicos
de problemas em que haja demanda de intervenção policial pelo público, auxiliando
assim as corporações policiais a pensar em como preveni-los, com a participação de
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 103

outros órgãos governamentais, do público e de outros colaboradores em potencial,


e avaliando resultados. A troca de conhecimentos entre profissionais de polícia e
pesquisadores representa um esforço conjunto valioso na formulação de estratégias e
de políticas públicas de defesa social mais participativas e eficientes.
Enfim, deveriam ser alocados mais recursos federais e estaduais em programas
de treinamento de policiais como experts em análise de problemas recorrentes, e no
desenvolvimento e implementação de projetos de prevenção do crime, no sentido de
tornar sólidos os conhecimentos que vão orientar políticas mais eficientes no futuro.
104 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Bibliografia

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SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 105

OS CONSELHOS COMUNITÁRIOS DE
SEGURANÇA E OS DADOS OFICIAIS

Paulo Augusto Souza Teixeira

Introdução
Uma questão que tem assumido grande relevância na atualidade é a transparência dos
atos da administração pública, em especial, de áreas do Estado consideradas “sensíveis”,
como a Segurança Pública. Sem ter a pretensão de esgotar o tema, o presente trabalho
visa discutir os limites e as possibilidades de divulgação dos dados oficiais sobre a
criminalidade e a violência nos Conselhos Comunitários de Segurança, permitindo,
assim, o desenvolvimento de ações integradas entre as organizações policiais e as
comunidades onde elas atuam.

A Lógica do Segredo
Gostaria de delimitar de forma mais clara o termo “inteligência” para este texto. Muitas
vezes, o termo é empregado no discurso público em alusão à capacidade cognitiva, ora
associado à compreensão de regras, como as normas e procedimentos de uma atividade
profissional, ora relacionado à solução de problemas novos, para os quais não há uma
regra previamente definida. Em ambos os casos, “inteligência” está ligada ao processo
de tomada de decisão, como no texto a seguir publicado na revista Época1:
“A causa próxima é a absoluta incompetência. Faltam investigação, inteligência,
interesse. Há desvios de função e corrupção”.
Entretanto, ao me referir à inteligência ao longo desse texto, procurei me
ater ao conjunto de organizações governamentais que compõem a “comunidade de
inteligência” ou os “serviços de inteligência”. Desse modo, a atividade de inteligência é
o que eles fazem e o conhecimento de inteligência o que eles produzem.

1 OLIVEIRA, Antônio Cláudio Mariz de. Descaso e incompetência. Época, São Paulo, n.418, p.54, mai.
2006.
106 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

Segundo Antunes (2002: 21), “a atividade de inteligência refere-se a certos tipos


de informações, relacionadas à segurança do Estado, às atividades desempenhadas no
sentido de obtê-las ou impedir que outros as obtenham e às organizações responsáveis
pela realização e coordenação da atividade na esfera estatal”.
A atividade de inteligência existe em grande parte dos países, como o Reino
Unido, a França e os Estados Unidos, e se constitui num dos instrumentos de suporte
para o exercício do monopólio estatal do uso legítimo da força. Contudo, cabe ressaltar
que essa atividade, em um contexto democrático, deve ser analisada levando-se em
consideração alguns aspectos, como: o grau de constitucionalidade desse serviço, a
regulamentação pública e o conhecimento sobre os órgãos responsáveis pela condução
da atividade no país. Esses aspectos devem permitir que haja um controle legislativo e
que os diversos atores envolvidos com essa atividade respondam publicamente pelos
seus atos.
Um estudo mais aprofundado sobre essa atividade foge ao escopo do presente
trabalho, mas serve para destacar um dos elementos centrais na nossa discussão: o
segredo como ferramenta de poder. Diversos autores tratam dessa questão e o acesso
privilegiado às informações delimita toda uma rede de relações sociais. De acordo com
Antunes (2002: 28):
“O grau de um segredo pode ser especificado pelo exame
do número e da qualidade de diferentes contextos nos quais o
fluxo de informações é intencionalmente bloqueado. Quando a
informação é mostrada em um contexto e restringida em outro,
pode-se perceber as diferenças nos tipos das relações sociais.
É possível discernir os dois grupos essenciais: ‘nós’, que somos
aqueles que retemos a informação, e “eles”, aqueles a quem a
informação é bloqueada”.
Em vários países a atividade de inteligência se estruturou como instrumento
de assessoramento do Chefe de Estado para diversas questões. Desse modo, as
organizações ligadas à segurança externa e à manutenção da ordem se tornaram
atores privilegiados dessa atividade. No Brasil, devido ao próprio processo histórico
de estruturação da atividade no país, inteligência e segurança têm um vínculo muito
maior. Durante muitos anos, a segurança pública esteve diretamente atrelada às
atividades de segurança nacional, e os “serviços” de inteligência das polícias foram
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 107

estruturados para capilarizar a rede de informações das Forças Armadas, em especial a


do Exército. Encontramos aí o primeiro limitador ao processo de compartilhamento de
informações: a lógica do segredo é responsável, ainda hoje, pelo distanciamento entre
a sociedade e os organismos encarregados da segurança pública.
Uma outra questão importante diz respeito ao conflito estabelecido entre essa
lógica e a pressão de diversas organizações que exigem uma maior transparência
das ações dos agentes públicos2. Segundo Lima, em resposta a essas pressões, “ações
espetaculosas são mobilizadas e os principais problemas do modelo de organização
do sistema de justiça criminal e da pouca participação da sociedade deixam de ser
considerados urgentes e politicamente pertinentes”.

Os Registros Policiais
Usualmente os conceitos de criminalidade e violência são empregados como sinônimos
no discurso público sobre o tema, mas cabe esclarecer que se tratam de dois conceitos
distintos. Nem todas as condutas classificadas por uma determinada sociedade como
crimes são necessariamente violentas. Por outro lado, diversas violências são toleradas
socialmente sem que sejam entendidas como crimes. A fonte básica para as pesquisas
sobre criminalidade são os registros policiais. No Brasil, esses registros podem ter
várias origens, pois coexistem diversas organizações que atuam na área da segurança
pública.
A população usualmente aciona a Polícia Militar em situações consideradas de
risco individual ou coletivo, geralmente consideradas urgentes e de certa gravidade.
O sistema de atendimento de chamadas de urgência, conhecido popularmente
através do telefone “190”, recebe milhares de ligações diárias e se constitui numa das
principais interfaces entre a polícia e o público. O policial militar se depara com uma
grande quantidade de demandas da população, que variam de elementos suspeitos
a ações de grupos armados. Essa diversidade de intervenções da Polícia Militar cobre
não somente aquilo que se classifica por crime, mas tudo aquilo que, no entender do
cidadão, viola a ordem e a tranqüilidade públicas. O policial militar realiza registros
de suas intervenções e, desta forma, temos a primeira visão parcial das questões de

2 Para uma análise mais aprofundada da questão consultar “Cidadania e controle democrático do
acesso aos documentos sigilosos”. Palestra proferida por Alberto Nogueira Jr, no CPDOC, dia 07 de
abril de 2004. Disponível no site da FGV.
108 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

criminalidade e violência, bem como de questões difusas que constituem grande parte
das atividades e do tempo empenhado pelos policiais nos seus serviços.
Com base no Código de Processo Penal, a Polícia Civil é a encarregada de
registrar e de investigar os fatos entendidos como crimes, após a apreciação da
autoridade policial. Suas ações visam esclarecer a materialidade e a autoria dos delitos
para apresentação à Justiça. Essa competência acaba tornando os registros da Polícia
Civil a fonte primária dos pesquisadores e gestores de políticas públicas voltados para
o controle da criminalidade. A sistematização da coleta e armazenamento dos dados
permite organizar os eventos em categorias baseadas na legislação penal. Existem
outras fontes que registram crimes e seus resultados, como as organizações policiais
federais e os serviços de estatísticas de outras secretarias estaduais, como o registro
dos óbitos pela área de saúde.
Um dos primeiros passos para a compreensão dos fenômenos associados
à criminalidade é o estabelecimento de uma metodologia consistente de coleta,
classificação e disseminação de informações. Há algumas características julgadas
essenciais a uma metodologia consistente para tratar dos dados de criminalidade, são
elas: a constância do modelo de classificação, permitindo, assim, o estabelecimento
de análises temporais; a publicidade dos dados e uma regularidade de produção e
divulgação dos dados.
A questão das estatísticas na área de segurança pública também é abordada
por Lima: “Trata-se da origem da demanda por informações que, conforme demonstra
Senra (2000), vai ter impacto direto na sintonia dos tempos da demanda e da oferta
de dados, na medida em que podem comportar interpretações diversas do sentido e
do papel das estatísticas. Em outras palavras, é possível pensar as estatísticas, no caso,
como resultados de demandas externas, como algo que não nasceu, aparentemente,
da lógica organizacional das instituições de justiça criminal e, por conseguinte, exige
que seja incorporada e legitimada pelas organizações de justiça criminal”.
O Estado do Rio de Janeiro criou em 1999, um núcleo de pesquisa que objetivava
implantar uma metodologia de tratamento de dados da criminalidade, visando
subsidiar políticas públicas nessa área. Esse núcleo (Núcleo de Pesquisa em Justiça
Criminal e Segurança Pública – NUPESP) hoje faz parte do Instituto de Segurança
Pública (ISP). O Instituto desenvolve ainda diversos outros produtos para os gestores
da área de segurança, como os Boletins das Áreas Integradas de Segurança Pública e o
Monitoramento Mensal. Uma das características relevantes é que os registros de todas
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as delegacias policiais do estado são publicados mensalmente através do Diário Oficial


do Estado. Além disso, esses dados estão disponíveis através do site do ISP na Internet
(www.isp.rj.gov.br). Mas qual a relevância dessas informações para que a sociedade
interaja com as organizações policiais na busca de soluções para os problemas locais?

Relação Polícia-Comunidade: os Conselhos Comunitários de Segurança


O primeiro passo é definir de que forma se dará essa interação entre polícia e sociedade,
rompendo a lógica do segredo. A nossa história recente ampliou na sociedade a imagem
da polícia como uma entidade externa à sociedade e poucas foram as iniciativas que
tiveram êxito para reverter esse quadro. Vou fixar a minha abordagem nos Conselhos
Comunitários de Segurança que são um dos elementos centrais deste trabalho. Os
conselhos foram criados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP/RJ), no ano de
1999, e essa ação estava inserida na implantação de uma política pública de segurança
mais ampla. Foi adotada a estratégia de reformar o modelo de gestão das instituições
policiais, e uma das primeiras medidas foi a criação das Áreas Integradas de Segurança
Pública (AISP), que buscaram compatibilizar geograficamente as áreas de atuação das
polícias ostensiva (militar) e judiciária (civil). Além disso, foram estabelecidas reuniões
periódicas de trabalho entre o comandante do Batalhão e os delegados titulares da AISP,
com a finalidade de avaliar os problemas, implementar soluções e monitorar a eficácia
das medidas adotadas. Com a introdução do conceito de AISP, uma nova abordagem
seria implantada em relação às responsabilidades das polícias, exigindo planejamento
e avaliações permanentes e tornando possível o seu monitoramento. Esse conjunto de
medidas visava aproximar institucionalmente as organizações policiais.
Com esse processo de integração institucional entre as polícias tornou-se
necessário estabelecer um canal de participação dos cidadãos na área de segurança.
Como forma de articular as demandas da população foram criados os Conselhos
Comunitários de Segurança, com caráter consultivo e com três finalidades básicas:
aproximar a comunidade das organizações policiais e a polícia das comunidades,
conhecer melhor o problema de cada localidade através das demandas dos moradores
e delimitar, junto às comunidades, o papel das polícias e de outros órgãos que podem
contribuir na redução da violência. O conceito de comunidade adotado pela SSP/RJ
para a implantação dos Conselhos estava vinculado às referências geográficas de
atuação das organizações policiais. Assim, no Estado do Rio de Janeiro, o Conselho
Comunitário de Segurança surge com forte vinculação às AISP.
110 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

A aproximação entre as comunidades e as organizações policiais devia restaurar


as imagens de ambas e os conselhos não deveriam ser tomados como uma estratégia
de “relações públicas” ou como eventos sociais, mas como espaços de participação
comunitária. Ao longo do tempo tivemos uma grande oscilação na participação nas
reuniões e diversos conselhos encerraram as suas atividades. Em 2003 é instituído o
Café Comunitário nos batalhões de Polícia Militar como estratégia de aproximação
comunitária.
A idéia de conhecer melhor o problema de cada localidade através das
demandas dos moradores não pode ser confundida com um estímulo à prática de
denúncias. Nas primeiras análises dessa questão nos deparamos com um medo dos
participantes de serem confundidos com X-9 (informantes) da polícia. Os participantes
foram orientados a procurar os canais institucionais já existentes para encaminhar as
suas denúncias, como a Ouvidoria e a Corregedoria, além do Disque-Denúncia.
O objetivo de delimitar o papel das polícias, junto às comunidades, continua
sendo um grande desafio, pois a existência desse canal institucional de comunicação
entre o poder público e a população acabou trazendo inúmeras demandas que não
estão ligadas diretamente à área de segurança. A contribuição de outros órgãos não
é constante e temos observado a importância de ações efetivas do poder público
municipal com ações concretas que podem reduzir o sentimento de insegurança da
população.
Como podemos ver, uma das premissas centrais dos conselhos comunitários de
segurança implantados no Rio de Janeiro é que o público deve exercer um papel mais
ativo e coordenado em relação à segurança. Alguns de seus elementos essenciais visam
criar as condições para provocar mudanças graduais nas práticas operacionais das
organizações policiais e buscar novas alternativas táticas e estratégicas para o emprego
do policiamento. Segundo Skolnick & Bayley, quatro devem ser as áreas de mudança
programática no policiamento de uma forma geral: “1. Organizar a prevenção do
crime tendo como base a comunidade; 2. Reorientar as atividades de patrulhamento
para enfatizar os serviços não-emergenciais; 3. Aumentar a responsabilização das
comunidades locais; e 4. Descentralizar o comando”.
A partir de 2004 o Instituto de Segurança Pública (ISP) passou a avaliar o
funcionamento dos Cafés e Conselhos Comunitários de Segurança e, em 2005, foi
editada a Resolução SSP nº 781 que aprova um regulamento para os conselhos em
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todo o Rio de Janeiro. Esse regulamento possui alguns dispositivos muito importantes,
como, por exemplo, a obrigatoriedade de divulgar os dados estatísticos da AISP no
início de cada reunião. Outros pontos essenciais são: o aumento da flexibilidade
nos limites geográficos dos Conselhos Comunitários, podendo assim atender a
muitas conformações de associação da sociedade civil e, também, a composição
dos Conselhos com membros natos (representantes das organizações policiais) e
eleitos (representantes da sociedade civil), ficando a presidência do Conselho sob a
responsabilidade de um membro eleito.

Uso dos Dados pelos Conselhos Comunitários


De acordo com a Resolução SSP Nº 781, uma das finalidades dos Conselhos Comunitários
é discutir com os representantes das polícias civil e militar a definição de prioridades
na segurança pública, na área de atuação do CCS. O estabelecimento de prioridades
deve ser realizado pelos representantes das polícias, junto com os representantes das
comunidades das áreas geográficas dos CCS (art. 4º, inciso IV e art. 17, inciso IV). A
questão que se apresenta é de que forma serão estabelecidas essas prioridades. São
dois os critérios normalmente utilizados para a definição de prioridades: a urgência
e a importância. As situações urgentes requerem intervenções imediatas, levando
as pessoas a adotar uma solução rápida, que ataque os efeitos percebidos, evitando
grandes desastres. Um exemplo clássico é a adoção de medidas no caso de um incêndio,
onde a rapidez da ação é sua virtude mais importante. Já os problemas importantes
estão vinculados à missão da organização ou objetivos do grupo. Desse modo, ao
resolver esses problemas, há uma melhora significativa em relação à situação anterior.
A importância diz respeito aos resultados.
Considero que o estabelecimento de prioridades e o encaminhamento
adequado dos problemas detectados são passos importantes para a instituição de um
novo paradigma de atuação policial. O desafio está em compatibilizar os interesses
conflitantes das pessoas que freqüentam as reuniões dos conselhos. Em muitos casos,
as pessoas procuram a polícia para resolver questões individuais, não se preocupando
com os problemas coletivos.
Um artigo importante é o que atribui aos representantes das organizações
policiais a obrigação de divulgar, a cada reunião, os dados estatísticos relativos à área
do CCS, além de informar quais foram as medidas adotadas para garantir a segurança
112 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

da comunidade (art. 17, inciso III). Neste artigo, que trata da dinâmica da reunião, há
um tempo reservado para a apresentação dos dados estatísticos do mês anterior (art
33, inciso IV), e o parágrafo 5º desse artigo explica que, “na apresentação dos dados
estatísticos serão abordados obrigatoriamente os itens publicados pela SESP, em Diário
Oficial, referentes ao mês mais recente”. O parágrafo 6º autoriza os membros natos a
“produzir informações quantitativas próprias no intuito de esclarecer fatos específicos
relacionados à área em questão”.
São dois os grandes problemas a serem resolvidos. O primeiro está relacionado
ao formato dos dados que serão disponibilizados aos conselhos e aos recursos
necessários para o envio desses dados. Entendo que a simples divulgação da variação da
quantidade de registros das modalidades criminosas publicadas no Diário Oficial pode
ser insuficiente para um acompanhamento da efetividade das ações adotadas pelas
polícias. A outra questão diz respeito ao limite de autonomia das unidades policiais,
pois, sendo instituições estaduais elas estão sujeitas ao estado geral de tranqüilidade
das outras AISP. Assim, mesmo após terem sido definidas as prioridades para uma área
específica, pode haver necessidade de realocar recursos temporariamente em outro
ponto do estado, em virtude de eventos, programados ou não. Dessa forma, há um
certo limite para a execução das ações planejadas, tornando ainda mais importante o
estabelecimento de prioridades e o acompanhamento das ações.
Outra característica do regulamento que gostaria de destacar é o fortalecimento
da transparência nas relações da polícia com a comunidade, em conformidade com os
preceitos constitucionais. Alguns países, como Portugal, Brasil e Espanha consagram
nas suas Cartas Magnas o direito à informação como um direito fundamental3. Desta
forma, os representantes das polícias ficam obrigados a oferecer quaisquer explicações
solicitadas pelo CCS sobre o serviço policial, admitindo-se invocar sigilo sobre as
informações reservadas que a legislação assim classificar (art. 17, inciso XIII). Mas a
preocupação com a transparência não se restringe aos policiais que participam das

3 CF/88, art. 5º, IX – “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença”; XIV – “é assegurado a todos o direito à informação e
resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”; XXXIII – “todos têm
direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo
ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo
sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”; XXXIV – “são a todos assegurados,
independentemente do pagamento de taxas: ...b) a obtenção de certidões em repartições públicas,
para defesa dos direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal”; art. 37, parágrafo 3o –
“A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta,
regulando especialmente: ...II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações
sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5o, X e XXXIII”
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 113

reuniões. Aos superiores hierárquicos imediatos dos membros natos cabe exigir que
prestem contas à comunidade em relação às medidas que estão sendo adotadas para
a melhoria da segurança pública local (art. 39, inciso III). A questão da transparência
proposta através da resolução esbarra na questão tratada inicialmente sobre a lógica
do segredo. Contudo, as organizações policiais estaduais têm dado passos firmes na
direção de tornar públicos os seus dados.
Cabe destacar que o mesmo comportamento não ocorre, por exemplo, nas
organizações policiais federais (Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal), onde há uma
certa “opacidade” em relação às suas ações, dificultando, assim, um acompanhamento
mais efetivo pela população.
Há previsão de apoio técnico do ISP para desenvolver duas ações específicas.
A primeira é no sentido de orientar a realização de pesquisas de opinião junto à
comunidade, que serão planejadas e coordenadas pelo Diretor Social e de Assuntos
Comunitários (art. 22, inciso VIII) e a segunda é o fornecimento de relatórios analíticos
para subsidiar as discussões sobre as incidências mensais da área (art. 33, § 5º).
As pesquisas de opinião previstas na resolução podem ajudar a difundir a idéia
de participação popular na área de segurança pública, além de servir de instrumento
para identificar as demandas de cada localidade, reduzindo assim a particularização
das demandas trazidas às reuniões pelos representantes da sociedade civil. Dessa
forma, podemos atingir o morador individualmente, ouvindo as suas opiniões e
compreendendo os seus problemas. O modelo de pesquisa de opinião pode variar de
acordo com os problemas locais e o Nupesp possui pessoal capacitado para formatar
a pesquisa e orientar a sua tabulação e análise.
Em relação aos relatórios analíticos, devido ao esforço necessário para a sua
confecção e a necessidade de comparar resultados em prazos mais longos, considero
que tais relatórios devem ser confeccionados a cada seis meses e o seu formato deve
ser definido através de uma reunião específica envolvendo representantes do ISP, das
organizações policiais e dos presidentes dos Conselhos Comunitários de Segurança.

Conclusões
Em linhas gerais, podemos afirmar que a divulgação de dados através das
reuniões dos Conselhos Comunitários esbarra em diversas questões importantes. A
primeira delas é a lógica do segredo que ainda distancia a sociedade das organizações
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policiais. Desse modo, a interação entre elas se dá de forma complexa e com reservas
de ambos os lados. A outra questão relevante diz respeito à produção dos dados,
geralmente através dos registros das delegacias policiais. Esses dados possibilitam uma
visualização parcial dos crimes que afligem a sociedade, mas um conjunto imenso de
dados referentes aos acionamentos da polícia militar não é sistematizado. A análise
desse conjunto de informações poderia permitir o desenvolvimento de políticas
públicas em diversas áreas, contribuindo, assim, para adoção de medidas de prevenção
aos crimes e a melhoria da qualidade de vida da população.
Os dados disponíveis para a área de segurança pública devem ter um duplo
referencial: a sua disponibilidade e a sua usabilidade pelo público. Em relação à
disponibilidade temos encontrado iniciativas importantes nas polícias estaduais,
não havendo o mesmo esforço nas polícias federais. Já em relação ao uso, julgamos
importante o desenvolvimento de modelos distintos para os diversos públicos, como
os pesquisadores do tema, os gestores públicos das diversas áreas e os cidadãos em
geral.
Finalmente, apresentamos os Conselhos Comunitários de Segurança como
um instrumento que pode ajudar a transformar a lógica do segredo através da
cobrança sistemática de transparência das informações sobre as medidas adotadas
pelas organizações policiais. O processo de institucionalização desses conselhos pode
ser considerado um aprendizado social . Assim, as idéias de controle e definição de
prioridades poderão ser vistas como aliadas na melhoria e no aumento da efetividade
da ação policial.
SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL | 115

Bibliografia

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secretos brasileiros ao longo do século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

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LORIGGIO, Antonio. De onde vêm os problemas: método para um diagnóstico eficaz.


São Paulo: Negócio Editora, 2002.

PRATS I CATALÁ, Joan. Governabilidade democrática na América Latina no final do


século XX. In: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos e SPINK, Peter Kevin (Org.). Reforma do
Estado e administração pública gerencial. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

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SKOLNICK, Jerome H. & BAYLEY, David H. Policiamento comunitário: questões e práticas


através do mundo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
116 | SÉRIE ANÁLISE CRIMINAL

PERFIL DOS ORGANIZADORES E AUTORES

Ana Paula Mendes de Miranda - Doutora em Antropologia Social, Professora


da Universidade Candido Mendes, Coordenadora do Núcleo de Informações sobre
Segurança e Violência do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP) -
ana_paulamiranda@yahoo.com.br

Andréia Soares Pinto - Mestre em Sociologia pelo IUPERJ, Coordenadora do Curso de


Capacitação em Técnicas Quantitativas e Análise Criminal e Pesquisadora do Instituto
de Segurança Pública - andreiapinto2@yahoo.com.br

Cláudio Beato – Doutor em sociologia pelo IUPERJ e Diretor do Centro de Estudos


de Criminalidade e Segurança da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil -
claudiobeato@crisp.ufmg.br

Doriam Borges – Professor do Departamento de Estatística da UFF, Doutorando


em sociologia pelo IUPERJ, Pesquisador do Instituto de Segurança Pública –
dborges@iuperj.br

Elenice de Souza – Doutoranda em Justiça Criminal e Criminologia pela Rutgers – The


State University of New Jersey, USA e Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade
e Segurança da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil - elenice@crisp.ufmg.br

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro – Doutoranda em Sociologia pelo IUPERJ e


Coordenadora do Curso de Capacitação em Técnicas Quantitativas e Análise Criminal
– ludmila.ribeiro@gmail.com

Paulo Augusto Souza Teixeira – Ten Cel da Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro e Coordenador dos Conselhos Comunitários de Segurança Pública no ISP -
teixeira@isp.rj.gov.br

Simoni Lahud Guedes – Doutora em antropologia social pela UFRJ e Professora da


UFF - simonilahud@uol.com.br
ISBN 978-85-60502-32-5

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