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cadernos

de campo
revista dos alunos de pós-graduação em antropologia social da usp

17
issn 0104-5679
cadernos de
SÃO PAULO v. 17 n. 17 p. 1-304 JAN.-DEZ./2008
campo
colaboradores deste número Esta revista é indexada pelo:
Acácio Tadeu de Camargo Piedade, Andrea Ciacchi, Anthony Seeger,
Camila Ischida, Carlos Filadelfo de Aquino, Cauê Kruger, Clark Mangabeira, Clase - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades
Dominique Perrot, Dominique Tilkin Gallois, Elaine Cristina Pimentel
Costa, Euda Kaliani Gomes Teixeira Rocha, Fernanda Telles Márques, Ulrich’s International Periodical Directory
Fernando Giobellina Brumana, Flávia Pires, Ian Packer, Igor Scaramuzzi, Índice Brasileiro de Ciências Sociais – IUPERJ/RJ
Ivana Mihal, Ivo de Santana, John Cowart Dawsey, Júlio César Borges, Latindex – Sistema Regional de Información em Línea para Revistas
Koichi Mori, Laura Santillán, Ligia Venturini Romão, Lindalva Alves Científicas da América Latina, El Caribe, España y Portugal
Cruz, Luis Fernando Pereira (in memoriam), Marcos Lanna, Marcos Silva Sumários de Revistas Brasileiras
da Silveira, Maria Cecília Manzoli Turatti, Marília Floôr Kosby, Marina
Vanzolini Figueiredo, Nazarena Belén Mora, Patrice Maniglier.
Publicação Anual / Anual publication
preparação e revisão de texto Solicita-se permuta / Exchange desired
Diego Jiquilin Ramirez
Letícia Scarp Tiragem: 600 exemplares
editoração eletrônica e capa
Pedro Barros e Suzana De Bonis / dbcomunicacao.com Todos os direitos reservados
Copyright © 2008 by Autores
foto da capa
Júlio César Borges FINANCIAMENTO PPGAS/USP
projeto gráfico original
Ricardo Assis Nenhuma parte deste publicação pode ser reproduzida por qualquer
meio, sem a prévia autorização deste órgão.

Serviço de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Cadernos de campo : revista dos alunos de pós-graduação em Antropologia Social da USP / [Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas. Departamento de Antropologia. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social]. – Vol. 1, n. 1 (1991)-. -- São Paulo :
Departamento de Antropologia/FFLCH/USP, 1991-[2008].

Anual
Descrição baseada em: Vol. 1, n. 1 (1991) ; título da capa
Última edição consultada: 2007/16
ISSN 0104-5679

1. Antropologia. 2. Antropologia (Teoria e métodos). I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departa-
mento de Antropologia. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social.

21ª. CDD 301.01


sumário

artigos e ensaios......................................................................................................13
O feminismo e os impasses com a pós-modernidade
lindalva alves cruz; elaine cristina pimentel costa;
euda kaliani gomes teixeira rocha..................................................................................15
Cruzamentos, territórios e patrimônio religioso: sobre a doçura como referência cultural nas
comemorações de Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes nas praias do Laranjal,
Pelotas/RS, em 2007
marília floôr kosby...........................................................................................................27
O trabalho de campo em uma pesquisa com executivos negros: algumas considerações
ivo de santana....................................................................................................................37
Amistad en el pasado, política en el presente. A comunidad y el estado en los procesos de
configuración de las memorias y de demanda de justicia
nazarena belén mora.........................................................................................................63
Para além da canoa de papel
cauê krüger........................................................................................................................75
Imagens do poder: a política xinguana na etnografia
marina vanzolini figueiredo............................................................................................89
Prácticas cotidianas e intersecciones entre la Iglesia Católica y grupos familiares en
asentamientos populares del Gran Buenos Aires
laura santillán................................................................................................................111
Pesquisando crianças e infância: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças
flávia pires........................................................................................................................133
Gustav von Aschenbach, civilizado: hipóteses para uma teoria social das pulsões
clark mangabeira.............................................................................................................153
“A origem do mundo” de Gustave Courbet: realismo e erotismo
ian packer.........................................................................................................................169

artes da vida.............................................................................................................187
Tepteré: festa dos peixes e da lontra entre os Krahô
júlio césar borges............................................................................................................189

entrevista...................................................................................................................195
Entrevista com Koichi Mori
andré-kees de moraes schouten, camila ischida, enrico spaggiari,
giovanni cirino e rodrigo lobo.....................................................................................197

traduções...................................................................................................................213
Quem atrapalha o desenvolvimento?
dominique tilkin gallois................................................................................................215
Quem impede o desenvolvimento “circular”? (Desenvolvimento e povos autóctones:
paradoxos e alternativas)
dominique perrot..........................................................................................................................219
A Etnografia da Música segundo Anthony Seeger: clareza epistemológica e integração das
perspectivas musicológicas
acácio tadeu de camargo piedade..................................................................................233
Etnografia da Música
anthony seeger................................................................................................................237

especial Lévi-Strauss..........................................................................................261
A imaginação sociológica inaudita de C. Lévi-Strauss
marcos lanna....................................................................................................................263
A bicicleta de Lévi-Strauss
patrice maniglier.............................................................................................................275
Música, alimentos e outras composições do drama mítico: reflexões sobre
As origens do modo à mesa
luis fernando pereira......................................................................................................293

resenhas.....................................................................................................................301
BEHAR, Ruth. Translated Woman: Crossing the Border with Esperanza’s Story
ivana mihal.......................................................................................................................303
PORTO, Liliana. A ameaça do outro: magia e religiosidade no Vale do Jequitinhonha (MG)
marcos silva da silveira...................................................................................................307
SILVA, Orlando Sampaio. Eduardo Galvão: índios e caboclos
andrea ciacchi.................................................................................................................313
NEVES, Walter Alves; PILO, Luís Beethoven. O povo de Luzia: em busca dos
primeiros americanos
maria cecília manzoli turatti........................................................................................317
FLEISCHER, Soraya; SCHUCH, Patrice; FONSECA, Claudia (orgs.). Antropólogos
em Ação: experimentos de pesquisa em Direitos Humanos
fernanda telles márques................................................................................................321
LEIRIS, Michel. África Fantasma
fernando giobellina brumana........................................................................................325

informe.........................................................................................................................331
NAPEDRA - Núcleo de Antropologia, Performance e Drama

nominata de pareceristas.................................................................................333

números anteriores...............................................................................................337

instruções para colaboradores......................................................................345


contents

articles and essays.................................................................................................13


Feminism and the impasses with postmodernity
lindalva alves cruz; elaine cristina pimentel costa;
euda kaliani gomes teixeira rocha..................................................................................15
Crossroads, territories and religious patrimony: on sweetness as a cultural reference in the
Iemanjá and Nossa Senhora dos Navegantes celebrations on Laranjal beach, Pelotas/RS,
in 2007
marília floôr kosby...........................................................................................................27
Fieldwork in a research with black executives: some considerations
ivo de santana....................................................................................................................37
Friendship in the past, policy in the present. Community and state in the configuration
of memories and justice claim process
nazarena belén mora.........................................................................................................63
Beyond The Paper Canoe
cauê krüger........................................................................................................................75
Images of power: xinguano politics in ethnography
marina vanzolini figueiredo............................................................................................89
Daily practices and intersections: the Catholic Church and familiar groups in popular
settlements of the Buenos Aires Suburban Area
laura santillán................................................................................................................111
Studying children and childhood – some theoretical approaches to the study of
(and with) children
flávia pires........................................................................................................................133
Gustav von Aschenbach, civilized: hypotheses for a social theory of the deep-seated drives
clark mangabeira.............................................................................................................153
“The origin of the world” by Gustave Courbet: realism and eroticism
ian packer.........................................................................................................................169

arts of life...................................................................................................................187
Tepteré: the celebration of the fish and the otter among the Krahô
júlio césar borges............................................................................................................189

interview.....................................................................................................................195
Interview with Koichi Mori
andré-kees de moraes schouten, camila ischida, enrico spaggiari,
giovanni cirino e rodrigo lobo.....................................................................................197

translations...............................................................................................................213
Who confuses the development?
dominique tilkin gallois................................................................................................215
Who restrains “circular” development? (Development and autochthonous peoples:
paradoxes and alternatives)
dominique perrot..........................................................................................................................219
The ethnography of music according to Anthony Seeger: epistemological clarity and
integration of the musicological perspectives
acácio tadeu de camargo piedade..................................................................................233
Ethnography of Music
anthony seeger................................................................................................................237

Lévi-Strauss special.............................................................................................261
Lévi-Strauss’ sociological imagination
marcos lanna....................................................................................................................263
Lévi-Strauss’ bicycle
patrice maniglier.............................................................................................................275
Music, food and other compositions of mythical drama: reflections on
The Origin of Table Manners
luis fernando pereira......................................................................................................293

resenhas.....................................................................................................................301
BEHAR, Ruth. Translated Woman: Crossing the Border with Esperanza’s Story
ivana mihal.......................................................................................................................303
PORTO, Liliana. A ameaça do outro: magia e religiosidade no Vale do Jequitinhonha (MG)
marcos silva da silveira...................................................................................................307
SILVA, Orlando Sampaio. Eduardo Galvão: índios e caboclos
andrea ciacchi.................................................................................................................313
NEVES, Walter Alves; PILO, Luís Beethoven. O povo de Luzia: em busca dos
primeiros americanos
maria cecília manzoli turatti........................................................................................317
FLEISCHER, Soraya; SCHUCH, Patrice; FONSECA, Claudia (orgs.). Antropólogos
em Ação: experimentos de pesquisa em Direitos Humanos
fernanda telles márques................................................................................................321
LEIRIS, Michel. África Fantasma
fernando giobellina brumana........................................................................................325

information................................................................................................................331
NAPEDRA - Center of Anthropology, Performance and Drama

list of appraisers....................................................................................................333

previous editions....................................................................................................337

instruction to collaborators.............................................................................345
editorial

Duas vezes se morre: É de Luis Fernando um dos três ensaios que


Primeiro na carne, depois no nome. constituem o especial Lévi-Strauss deste núme-
A carne desaparece, o nome persiste mas ro, concebido em meio às comemorações do
Esvaziando-se de seu casto conteúdo centenário de nascimento do antropólogo fran-
– Tantos gestos, palavras, silêncios – cês, antigo colaborador desta revista (Cadernos
Até que um dia sentimos, de Campo No. 2) e cuja influência sobre a an-
Com uma pancada de espanto (ou remorso?) tropologia é inequívoca, razão pela qual presta-
Que o nome querido já nos soa como os outros. mos esta homenagem. O ensaio bibliográfico
MANUEL BANDEIRA de Luis Fernando Pereira, “Música, alimentos e
outras composições do drama mítico: reflexões
“É com grande satisfação que apresenta- sobre As origens dos modos à mesa”, que já revela
mos”... Esse seria o modo habitual de se iniciar as qualidades de pensamento do jovem etnólo-
um editorial, comentando a seguir a qualidade go, oferece um cuidadoso estudo da construção
e a especificidade das contribuições recebidas, analítica de Lévi-Strauss, chamando a atenção
os feitos realizados e os avanços obtidos graças para as afinidades entre o procedimento ado-
ao empenho da atual comissão editorial. Toda- tado por ele em suas Mitológicas e aquele que
via, a satisfação que sentimos pela concretiza- emerge da tetralogia wagneriana O Anel dos
ção de mais um número desta revista mescla-se Nibelungos.
com a tristeza ante um acontecimento trágico O especial também conta com as contri-
e singular: a perda de um querido colega. Luis buições dos professores Marcos Lanna, da
Fernando Pereira teve sua promissora carreira Universidade Federal de São Carlos, e Patrice
de antropólogo e indigenista abruptamente Maniglier, da Universidade de Essex, cujos tra-
interrompida exatamente no lugar onde ele balhos se pautam pela reflexão, em diferentes
mais queria estar: em campo, dentro de área perspectivas, da atualidade do pensamento de
indígena, próximo àquelas populações com as Claude Lévi-Strauss. Partindo do debate em
quais vinha travando longo e profícuo contato. torno da noção de hierarquia e a sua aborda-
Este número da Cadernos de Campo é dedica- gem n’As estruturas elementares do parentesco, e
do a sua memória, aqui destilada pela pena de focado especialmente na leitura feita por Louis
seus amigos Carlos Filadelfo de Aquino e Igor Dumont, Marcos Lanna, em ensaio escrito a
Scaramuzzi. Lamentamos também a perda da convite desta comissão editorial, reflete sobre
“professora” Ruth Cardoso, antiga colabora- a atualidade da obra a partir da distância que
dora desta revista (Cadernos de Campo No. 7), a teoria de Lévi-Strauss assume tanto com re-
personalidade de suma importância para o de- lação à teoria de Dumont quanto das formu-
senvolvimento e consolidação da antropologia lações de Durkheim. Já Patrice Maniglier, em
no Brasil, entre outros feitos já conhecidos. trabalho especialmente adaptado e traduzido

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-304, 2008


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para integrar esta seção, oferece uma cuidadosa nismo (ou ainda dos feminismos) ao longo das
reflexão sobre o lugar da diferença, da liberdade suas transformações.
e do político no pensamento de Claude Lévi- Em “Para além da canoa de papel”, tendo
Strauss: tendo como mote as apropriações fei- como pano de fundo o debate acerca da aná-
tas deste pensamento no debate sobre a união lise antropológica dos fenômenos teatrais nas
civil de pessoas do mesmo sexo na França, o sociedades contemporâneas, Cauê Krüger
autor reencontra aquilo que diversas leituras questiona: “Mas o que é, então, a ‘antropologia
correntes consideravam ausente. teatral’ de Eugênio Barba?” Com este desafio,
A seção artigos e ensaios desta edição o autor procura analisar criticamente as impli-
traz 10 contribuições, oferecendo ao leitor um cações das propostas de Barba, comparando-as
amplo panorama dos temas e questões com os às obras de Victor Turner e Pierre Bourdieu,
quais, contemporaneamente, jovens pesquisa- contribuindo assim para o debate em torno da
dores têm se ocupado ao levar a cabo seus tra- constituição do campo de uma Antropologia
balhos. Tal como os fragmentos multicoloridos da Performance e da Experiência.
de um caleidoscópio que ao serem revolvidos Já os textos de Flávia Pires e Ivo de Santana
formam uma miríade de imagens, os trabalhos apresentam discussões em torno dos dilemas
ora apresentados poderiam ser articulados de que envolvem as escolhas, sejam elas teóricas
múltiplas formas, ora se aproximando, ora se ou metodológicas, feitas pelo pesquisador de
distanciando, conforme a perspectiva que se es- campo. No artigo “O trabalho de campo em
colha. Todavia, algumas imagens ou linhas de uma pesquisa com executivos negros”, Ivo de
força parecem mais persistentes, e passamos a Santana reflete sobre o desenvolvimento de sua
descrevê-las a seguir. investigação acerca da trajetória de ascensão
Alguns trabalhos publicados nesta seção social de negros em posições de prestígio nas
ressaltam questões epistemológicas, seja refle- instituições da Administração Pública da cida-
tindo sobre o desenvolvimento de modelos de de Salvador, apontando para os limites, pos-
teórico-metodológicos, as implicações das op- sibilidades e singularidades que se apresentam
ções teóricas na abordagem dos dados, ou ain- no confronto entre pesquisador e sujeitos que
da os dilemas que envolvem o posicionamento partilham das mesmas condições sócio-raciais e
do pesquisador em campo e sua relação com contextuais. Por sua vez, no artigo “Pesquisan-
os sujeitos investigados. Tais questões apare- do crianças e infância: abordagens teóricas para
cem com toda força nos trabalhos de Lindalva o estudo das (e com as) crianças”, Flávia Pires
Cruz et alii, Cauê Krüger, Flávia Pires e Ivo de traça um panorama dos estudos sobre a infân-
Santana. cia, destacando as diferenças entre a perspecti-
No artigo “O Feminismo e os impasses com va sociológica e a antropológica a respeito do
a Pós-Modernidade”, Lindalva Cruz, Elaine tema, tendo como foco especial o processo de
Cristina Pimentel Costa e Euda Kaliani Go- tornar-se adulto em uma região do semi-árido
mes Teixeira Rocha procuram relacionar o Fe- nordestino.
minismo, corrente teórica e movimento social, A infância, não sendo o tema principal, é
com os paradigmas moderno e pós-moderno, também um dos aspectos tratados por Laura
vislumbrando como a epistemologia feminista Santillán no artigo “Prácticas cotidianas y in-
vem se apropriando das teorias da Modernida- tersecciones entre la Iglesia Católica y grupos
de e da Pós-modernidade; ao mesmo tempo, familiares en asentamientos populares del Gran
faz uma análise teórica da trajetória do femi- Buenos Aires”. Neste trabalho, a autora utiliza

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uma perspectiva que privilegia as vinculações origem do mundo’ de Gustave Courbet: rea-
do poder com as práticas cotidianas ao explorar lismo e erotismo”, que comungam da inten-
dimensões da vida social tais como a educação, ção em articular teoria social e sexualidade
o cuidado infantil e a organização urbana. moderna na análise de obras de arte. A partir
O interesse nas articulações entre poder e do filme “Morte em Veneza” de Luchino Vis-
práticas de grupos sociais também está presen- conti, adaptação cinematográfica do clássico
te nos trabalhos de Nazarena Belén Mora – de Thomas Mann, e à luz deste último, Cla-
“Amistad en el pasado, política en el presente” rk Mangabeira problematiza a repressão social
– e Marina Vanzolini Figueiredo – “Imagens das pulsões e a relação entre indivíduo e socie-
do poder: a política xinguana na etnografia”. dade, de um lado, e a análise da civilização e
No primeiro caso, a autora aborda a maneira suas repercussões na estrutura psíquica dos
pela qual a memória se configura como uma indivíduos, de outro, sugerindo uma aborda-
construção pautada pela articulação entre o gem que articule as contribuições teóricas de
poder central, o Estado e as elites dominantes Simmel, Elias e Freud quanto às concepções
locais, e como tal articulação intervém na de- de interação social, processo civilizador, prazer,
manda pela justiça. Para tanto, toma como ob- repressão, entre outras. Ian Packer, por sua vez,
jeto de análise uma cerimônia em homenagem avalia o lugar do pictórico, e particularmente
a advogados desaparecidos durante a ditadura do realismo, entre os saberes que constituíram
militar argentina, episódio conhecido como La o “dispositivo da sexualidade”, conforme a for-
noche de las corbatas. Já o artigo de Marina V. mulação de Foucault, tendo como foco a ino-
Figueiredo propõe reavaliar o modo pelo qual o vadora e controvertida tela do pintor realista
tema das lideranças indígenas tem sido descri- francês Gustave Courbet, “A origem do mun-
to pela etnografia, mais especificamente aquela do” (1866), na qual realismo e sexualidade se
produzida a respeito do conjunto multilíngüe articulam da forma mais explícita, inserindo-a
xinguano, como uma forma de problematizar no saber pictórico que se constituía na época e
noções ocidentais como poder e política. refletindo sobre os interditos e a invisibilidade
O questionamento de noções ocidentais que cercaram essa tela em particular.
a partir da contraposição ao pensamento dito A seção artes da vida deste número traz um
“nativo” também é a preocupação que move ensaio fotográfico do ritual Tepteré, traduzido
Marília Floôr Kosby em seu artigo “Cruzamen- em português como Festa dos Peixes (Tep) e
tos, territórios e patrimônio religioso”: trata-se da Lontra (Teré). Conta o mito krahó que um
de uma etnografia das comemorações do feriado velho aprendera o Tepteré junto aos peixes,
de Nossa Senhora dos Navegantes, que ocorre no fundo do rio. De volta à aldeia, ensinou a
anualmente na Laguna dos Patos, em Pelotas/ seus parentes aquilo que vira e, desde então, os
RS, cuja discussão está permeada pela noção Krahó, divididos nas metades cerimoniais Tep
de “encruzilhada”, em substituição à noção de e Teré, realizam a festa entoando os cantos dos
sincretismo, com o intuito de considerar as Peixes, da Lontra e os m~ ekreré. Apresentamos
múltiplas entidades, divindades e manifestações ao leitor um breve e sensível registro desta festa,
religiosas que se cruzam durante tais festejos. realizado pelo antropólogo Júlio César Borges
E last, but not least, a seção traz também durante a Feira de Sementes do Povo Krahó,
os ensaios de Clark Mangabeira, “Gustav von em novembro de 2007.
Aschenbach, civilizado: hipóteses para uma No ano do centenário da imigração japone-
teoria social das pulsões”, e de Ian Packer, “‘A sa no Brasil, Cadernos de Campo publica uma

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entrevista com o antropólogo Koichi Mori, perspectiva possível da complexidade de uma


professor do Departamento de Letras Orientais performance musical, por outro, as diversas
(área de Língua e Literatura Japonesa) da Uni- musicologias deveriam se visitar, se convidar e
versidade de São Paulo, que fala sobre sua tra- se incluir em um projeto musicológico maior:
jetória acadêmica, seus trabalhos etnográficos a compreensão global da música.
sobre o processo de xamanização de mulheres A seção resenhas traz uma novidade: além
okinawanas, temas de interesse, tais como as de resenhas que foram recebidas pelo fluxo
relações entre transnacionalismo e identidade “normal” de contribuições, ela também conta
étnica, e sobre os possíveis diálogos entre as an- com um número expressivo de trabalhos ad-
tropologias japonesa e brasileira, especialmente vindos daquilo que denominamos de Projeto
aqueles iniciados neste ano em meio às come- Resenhas. Realizado durante o ano de 2008,
morações do centenário no Brasil e no Japão. tal projeto objetivou alimentar a seção cativa
A seção traduções deste número conta com da Cadernos de Campo dedicada às resenhas, a
duas contribuições: a primeira do trabalho qual padecia de um fluxo contínuo de contri-
de Dominique Perrot, “Quem impede o de- buições. Para estimular a produção de textos
senvolvimento ‘circular’? Desenvolvimento e desse gênero, reconhecidamente importantes
povos autóctones: paradoxos e alternativas”, para a geração de conhecimento e circulação de
realizada por Lígia Romão; e a outra do tex- saberes, solicitamos a diversas editoras que nos
to de Anthony Seeger, “Etnografia da música”, enviassem obras de antropologia publicadas a
produzida por Giovanni Cirino. partir de 2006. Estas obras foram enviadas a
O texto de Dominique Perrot, apresentado vinte colaboradores, selecionados dentre mais
por Dominique Tilkin Gallois, resgata os di- de 100 interessados, que puderam ficar com
versos modos, por vezes contraditórios, de se os livros mediante a entrega da resenha. Nes-
pensar a relação entre homem e natureza impli- ta edição apresentamos quatro resenhas resul-
cados na noção de desenvolvimento. Se durante tantes deste projeto, selecionadas segundo sua
muito tempo persistiu a idéia de desenvolvi- qualidade, assim como a diversidade temática,
mento e povos autóctones enquanto pares de regional, institucional e editorial. Deste modo,
oposição, na atualidade assiste-se à tentativa, este número traz as contribuições de Fernanda
por parte da sociedade ocidental, de situá-los Telles Márquez, Maria Cecília Manzoli Turatti,
no mesmo plano por meio daquilo que se de- Andrea Ciacchi e Marcos Silva da Silveira, au-
nomina “desenvolvimento sustentável”. Nis- tores que participaram do Projeto Resenhas,
to, no entanto, não se encerra o debate, como bem como a colaboração de Ivana Mihal. Para
bem observa a autora, ao deslocar o foco para fechar com brilho esta seção, apresentamos a
a perspectiva indígena sobre desenvolvimento resenha do livro África Fantasma, encomenda-
e progresso. da a Fernando Giobellina Brumana, professor
Já o trabalho Anthony Seeger, como ressal- titular de Antropologia da Faculdade de Filoso-
ta Acácio Tadeu Piedade na sua apresentação, fia e Letras/Universidade de Cádiz – Espanha.
destaca dois pontos fundamentais para o de- Finalmente, a seção informe deste número
senvolvimento de uma etnografia da música: traz, em breves linhas, uma apresentação do
a clareza do problema epistemológico e o en- trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Antro-
sejo de uma abordagem integradora. Se, por pologia, Performance e Drama (NAPEDRA/
um lado, mesmo a mais rica e detalhada des- USP), que reúne tanto pesquisadores do
crição etnográfica só pode dar conta de uma Programa de Pós-Graduação em Antropolo-

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gia Social desta universidade (PPGAS/USP) sino superior); viu o surgimento do seu blog
quanto do Instituto de Artes da Universida- e o atual desenvolvimento do website... O re-
de Estadual de Campinas (IA/Unicamp). O sultado de tanto esforço, queremos crer, e sua
grupo de pesquisa surgiu a partir do interesse recompensa, vêm materializados no crescente
crescente dos alunos, coordenados pelo pro- número e na qualidade das contribuições rece-
fessor John Cowart Dawsey, em expandir para bidas pela Cadernos de Campo nestes últimos
além do âmbito disciplinar os estudos nas anos: para este número, por exemplo, foram
interfaces entre antropologia e performance. recebidas mais de 60 contribuições para todas
Ao conjugar o pensamento teatral com o fazer as seções da revista, de todas as regiões do Brasil
antropológico, e vice-versa, os projetos de pes- e algumas do exterior. A Cadernos de Campo
quisa focalizam uma variedade de temas que agradece, assim, a todos os autores que envia-
se estendem dos cultos populares a paródias ram suas colaborações para a revista ao longo
de gênero e manifestações da vida cotidiana; desses anos, publicadas ou não; se esta revista
além disso, alguns projetos apresentam a inte- possui algum mérito, ele se deve a todos os que
ressante proposta de se repensar a antropolo- confiaram seus trabalhos a ela. A sua confiança
gia da performance e da experiência desde os no trabalho desta comissão editorial é a melhor
escritos de Walter Benjamin. recompensa ao cruel prazer do trabalho edito-
rial. Gostaríamos ainda de agradecer aos cole-
gas que se dispuseram a realizar os trabalhos
Alguns anos atrás, uma jovem comissão para o Projeto Resenhas, bem como às editoras
editorial utilizava este espaço para exprimir seu que nos enviaram as obras, contribuindo, as-
temor ante o prazer cruel do ofício, já que pra- sim, para a concretização deste projeto a muito
ticamente todos os seus membros eram neófitos acalentado: Annablume, Attar Editorial, Cosac
nas artes da editoria e arriscavam alterações “pe- Naify, Editora Cortez, Editora Globo, Editora
rigosas” numa revista de consolidada tradição. UFRGS, EDUFF, Editora UFMG, EDUSP e
Todavia, as formulações e propostas feitas ali EDUC.
sob o signo malfazejo acabaram se mostrando, Finalmente, gostaríamos de agradecer tam-
realmente, benéficas com o passar do tempo. bém a todos os pareceristas ad hoc que colabo-
Ao longo destes anos, num trabalho integrado raram com este número, auxiliando na difícil
de comissões editoriais que se renovam a cada escolha das contribuições ora publicadas; aos
ano, a revista passou por uma rigorosa norma- professores e funcionários do Departamen-
lização tendo em conta as normas da ABNT to de Antropologia da USP, especialmente ao
e os critérios QUALIS/Periódicos utilizados Programa de Pós-graduação em Antropologia
na avaliação CAPES; teve sua divulgação e cir- Social, pelo financiamento, apoio e incentivo;
culação ampliada, seja por venda, permuta ou aos nossos parceiros de vendas, pelo trabalho
doação, bem como pela presença em eventos de distribuição da revista; e a todos os leitores
da área; propôs os projetos Resenhas (descrito da Cadernos de Campo, sem os quais esta revista
acima) e Bibliotecas (doação/atualização das não teria razões para existir... A vocês, deseja-
coleções junto a instituições públicas de en- mos uma boa leitura!

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artigos
e ensaios
O feminismo e os impasses com a
pós-modernidade

Lindalva Alves Cruz, Elaine Cristina Pimentel Costa


e Euda Kaliani Gomes Teixeira Rocha

resumo O presente artigo aborda a trajetória urgente. Embora nos concentremos nas pro-
do feminismo no contexto da tensa relação entre duções e inquietações teóricas, tratamos o fe-
modernidade e pós-modernidade. Apresentamos, minismo não apenas como teoria social, mas
inicialmente, traços do feminismo contemporâneo também como movimento social, articulados
como movimento social e teórico plural, articulado na construção de uma ciência que se pretende
com outras dimensões da sociabilidade humana, mais ampla e livre de reducionismos e exclu-
como raça e classe. Buscamos demonstrar como o sões de qualquer ordem.
feminismo teórico, inspirado nas idéias do Ilumi- O texto enfrenta o debate da crítica à ciên-
nismo, permitiu a construção de uma epistemologia cia e às construções e desconstruções de para-
feminista e de uma teoria feminista crítica. Em segui- digmas que sustentam as bases do feminismo,
da, pontuamos limites e possibilidades da moderni- sendo este influenciado fortemente por concep-
dade e da pós-modernidade, focalizando os impasses ções filosóficas e políticas que apontam para a
da pós-modernidade com as diversas dimensões igualdade entre mulheres e homens. O desafio
epistemológicas da teoria feminista. O objetivo do que o feminismo tem diante de si relaciona-
texto é demonstrar que, embora algumas teóricas do se às vidas das mulheres, plurais em todos os
feminismo acreditem na aliança entre feminismo e sentidos: cultura, raça, religião, regionalidade,
pós-modernidade, outras continuam a defender as classe social, etnia, dentre outros, tanto no es-
categorias analíticas modernas como fundamentais paço doméstico como no espaço público. Nesse
para o fortalecimento dos feminismos. sentido, cabe ao feminismo analisar, interpre-
palavras-chave Feminismo. Modernidade. tar, propor ações e políticas em relação aos as-
Pós-modernidade. pectos das vidas das mulheres. Temas como a
dupla jornada, a violência, o assédio sexual, os
direitos sexuais e reprodutivos, o planejamento
O terreno que o debate aqui proposto familiar, a precariedade, a exploração e a exclu-
ousa pisar não deixa de ser um tanto arenoso, são do mundo do trabalho, a descriminalização
primeiramente por se tratar de questões ab- e a legalização do aborto e o parto humanizado
solutamente delicadas e complexas, ligadas às têm seus espaços de reflexão e luta no âmbito
escolhas e construções teóricas do feminismo; do feminismo.
e, em segundo lugar, por necessariamente tra- Além disso, há questões inerentes à própria
zer uma discussão que, à primeira vista, pode natureza plural do feminismo como movimen-
parecer estanque, já que reproduz uma sepa- to social e teórico. O protesto das mulheres ne-
ração entre modernidade e pós-modernidade. gras, por exemplo, chamou a atenção para as
Porém, trata-se de uma discussão que, no nos- especificidades das condições de opressão que
so ponto de vista, aparece como necessária e as afetam, introduzindo, no âmbito teórico-

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metodológico do feminismo, a importância da não só à visibilidade e à igualdade da mulher


discussão sobre raça e classe no contexto mais na sociedade, mas também à introdução da ca-
amplo dos debates travados no movimento fe- tegoria analítica mulher, que, a partir de então,
minista. Isso teve implicações na forma como o passou a ocupar o centro das discussões desen-
olhar feminista enxerga o mundo. A heteroge- volvidas no âmbito acadêmico.
neidade e a diversidade ganharam espaço, mes- Por volta dos anos 60, emerge uma nova
mo que lentamente, mas ainda hoje são temas onda do feminismo, que ficou conhecida
considerados faltantes na ação do movimento, como “novo feminismo” ou “feminismo radi-
não apenas a questão da raça, mas a etnia e a cal”. Isso implica dizer que cresceu um femi-
sexualidade das mulheres que não se sentem nismo alimentado por diferentes concepções
inteiramente contempladas por serem lésbicas teóricas e enriquecido por uma diversidade de
ou bissexuais. Os debates ainda se estendem abordagens que vão além das vertentes teóri-
às mulheres pertencentes às diversas religiões, cas liberais, a exemplo das teorias feministas de
principalmente as afro-religiões, que possuem cunho marxista, psicanalítico, estruturalista e
uma história de perseguição, repressão e vio- pós-moderno (Scott, 1995, p. 04-05).
lência no Brasil. Tais abordagens podem ser identificadas
Assim, essas diversas realidades chamam na trajetória dos estudos feministas por meio
atenção para um discurso de libertação da do que se convencionou chamar de “feminis-
mulher, alheio às diferenças culturais, raciais e mo da igualdade”, “feminismo da diferença” e
de classe que marcam as mulheres em todo o “estudos relacionais de gênero”. Assim, se nos
mundo. O debate desencadeado pelo feminis- referimos a cada momento histórico, com vis-
mo procura, então, escapar da centralidade da tas ao desenvolvimento das novas teorias do
mulher branca, ocidental e burguesa para uma conhecimento feminista, podemos nomear as
perspectiva plural da condição das mulheres. três tendências epistemológicas corresponden-
No arcabouço da teorização feminista, portan- tes, a saber: o empirismo feminista, as teorias
to, existem distintas concepções que desenham do ponto de vista feminista e o feminismo pós-
e redesenham as produções em diversos lócus. moderno (New, 1998).
Janet Radcliffe Richards distribui a mul- Todas essas perspectivas teóricas não estão
tiplicidade de orientações feministas em dois desvinculadas de um debate mais amplo acer-
grandes grupos: liberais e radicais. Segundo ela, ca da tensa relação existente entre as idéias de
o feminismo liberal é aquele da fase inicial, co- modernidade e de pós-modernidade. É possí-
nhecido também como “estudo de mulheres” vel falar em feminismo pós-moderno? Quais os
(Richards, 1980, p. 123). Aqui, a perspectiva aspectos inquietantes e quais os impasses que
adotada é essencialmente as premissas iluminis- o feminismo encontra diante dos pressupostos
tas da universalidade. Esse período é também da modernidade e da pós-modernidade? Essas
caracterizado como velho feminismo, ou seja, são as questões que trazemos em realce e que
o feminismo do século XIX, que visava obter, pretendemos desenvolver nas próximas linhas.
para a mulher, a igualdade de direitos civis, o
qual se podia chamar de “movimento de eman-
cipação da mulher” (Gallino, 2005, p. 310). Os rastros da modernidade
Essa perspectiva, denominada liberal, en-
globa as correntes que defendem a igualdade. Modernidade e pós-modernidade são idéias
Aqui, as reivindicações estavam relacionadas debatidas nos dias atuais por diversas autoras

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 16-26, 2008


O feminismo e os impasses com a pós-modernidade | 17

e autores, embora seja perceptível a dificulda- “homem universal”, cuja racionalidade supos-
de dos teóricos em expressar com precisão um tamente emanava da natureza dos seres e das
conceito claro e conciso a respeito dos termos coisas. A natureza atemporal, eterna e imutável
em questão. É possível, porém, encontrar aque- constituía a fonte dos valores “universais” que
les que estão muito empenhados em situar as orientavam a ciência, a sociedade e o desenvol-
idéias relacionadas à modernidade e à pós-mo- vimento humano (Assis, 2006, p. 02).
dernidade em diferentes contextos históricos e O positivismo científico, de inspiração
apontar as questões intelectuais que se encon- comtiana, porém, é alvo de grandes questiona-
tram em jogo conforme os significados atribu- mentos, sobretudo porque nega a vivência e os
ídos a esses conceitos nas diferentes realidades. sentidos atribuídos pelos sujeitos como conhe-
Para enfrentar esse debate, buscamos apoio em cimento válido. A universalidade iluminista,
Jean-François Lyotard, Nancy Fraser, Krishan por sua vez, é posta em questão pela evidência
Kumar, Linda Nicholson, David Lyon, Jane da pluralidade dos sujeitos. No entanto, não
Flax, Evilázio Borges Teixeira, Sandra Harding, se pode negar que os pressupostos iluministas,
entre outras e outros autores. típicos da modernidade, são o principal vértice
Se nos reportarmos no tempo, é possível no qual o conhecimento se estrutura nas socie-
perceber que desde o Renascimento, na pas- dades contemporâneas.
sagem do mundo feudal para o mundo capi- É importante observar que, para entender a
talista, desenvolveu-se a crença na capacidade modernidade, faz-se necessário, antes de tudo,
transformadora da razão humana. O Iluminis- considerá-la sob dois aspectos: como um fato
mo, por meio de seu aporte teórico filosófico, filosófico e, ao mesmo tempo, como um even-
no século XVIII, reafirmou a centralidade do to cultural e global. A modernidade, além de
ser humano no processo de conhecimento, e significar o surgimento de novas idéias, cons-
o positivismo do século XIX elevou à catego- tituiu o exercício de uma nova práxis, na qual
ria de verdade os conhecimentos desenvolvidos a metafísica deu lugar ao desenvolvimento e à
pela ciência. Dessa forma, consolidação da ciência experimental. A ciên-
cia moderna é marcada, então, por uma forte
o método das ciências naturais é transplantado dimensão empírica, fundamental para a con-
para as ciências humanas, que passam a orien- solidação dos ideais feministas, uma vez que as
tar-se pelos critérios da neutralidade do sujeito teorias feministas andam de mãos dadas com a
conhecedor e da objetividade do conhecimento luta concreta pela igualdade.
obtido (Assis, 2006, p. 1). René Descartes, considerado o fundador da
filosofia moderna, aparece como uma impor-
Nesse contexto histórico, a burguesia é a res- tante referência da modernidade. Segundo Evi-
ponsável por abrir os caminhos que a levariam lázio Teixeira (2005) foi esse pensador quem
à direção política e cultural da sociedade, tendo procurou sintonizar o pensamento filosófico
em vista que foi aquela quem impôs a catego- com a nova ciência, julgando que não seria
ria do universal aos modelos de conhecimento mais possível aceitar o velho método filosófico,
desenvolvidos no Ocidente, momento signifi- nem a filosofia que, com base nesse método, era
cativo para o avanço da modernidade, com suas construída. O momento exigia um método
promessas de “igualdade, liberdade e fraternida-
de” (Santos, 2002, p. 50). Por sua vez, o sujeito capaz de fundar uma nova metafísica que, de
masculino-cristão-ocidental assumia a forma do uma parte, estivesse aberta às novas descobertas

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científicas; de outra, conseguisse guiar a própria corrente teórica, principalmente pelo projeto
ciência (p. 03). emancipatório, que colocava nos próprios seres
humanos o centro da verdade sobre a vida. Essa
Para tanto, fazia-se necessário encontrar radical mudança nos critérios de compreensão
outro ponto de partida que não o da meta- da vida e do mundo foi a alavanca que permitiu
física, e aqui residia a novidade: o ponto de impulsionar o movimento feminista em busca
partida do novo método era o “eu”. Esse pon- do reconhecimento das mulheres como sujeito,
to de partida do método fazia sentido ao novo pautadas também no seu poder de razão e na
mundo das descobertas científicas e ao mun- concretude de seus corpos.
do que estava sendo construído a partir de or- No entanto, os avanços históricos que
dens sociais distintas, com base nas mudanças proporcionaram a expansão do projeto femi-
ocorridas na própria ciência. Aqui, o sujeito nista como movimento social, ampliando-o e
é dado como ponto de partida e o critério do tornando-o teoricamente mais denso, geraram
conhecimento da realidade. Segundo Stuart questionamentos entre as feministas, sobretu-
Hall (1999), do porque puseram em xeque a mulher uni-
versal. Enquanto o “modelo de humano” para
esta concepção do sujeito racional, pensante e a modernidade era o branco, ocidental e bur-
consciente, situado no centro do conhecimento, guês, a “mulher” que simbolizava o feminismo,
tem sido conhecida como o sujeito cartesiano também nesses termos, era a branca, ocidental
(p. 27). e burguesa. Aos poucos, os pressupostos mo-
dernos começam a ser questionados, e suas re-
Nesse contexto, o sujeito passa a ser o pen- lações com o feminismo também.
samento e a substância que pensa. Logo, toda a
realidade fora do pensamento, entendida como
extensão da matéria e do espaço, torna-se ob- A crítica aos limites da modernidade
jeto de análise científica do sujeito. O mundo
passa a ser entendido de forma quantificada, Uma das principais críticas ao Iluminismo
matematizada. está em Michel Foucault (1994; 1997), que
A modernidade funda-se na centralidade mostra as práticas impostas pelo então novo
do sujeito. O projeto iluminista vê na razão modelo de sociedade constituída pelas filo-
uma via emancipatória por meio da liberdade sofias kantiana e hegeliana: a segregação dos
do sujeito individual. A eficiência da ciência elementos heterogêneos que não se encaixa-
– confirmada pela eficácia da técnica – varria vam no projeto da razão, fruto de um sujeito
da ciência tudo o que não lhe dizia respeito. universal que se consolidava. Foucault aponta
A modernidade era percebida, então, como para a violenta separação entre razão e loucura,
ponto culminante do desenvolvimento hu- sendo esta última entendida como tudo aquilo
mano, anunciando o segredo da história hu- que escapava da ordem da razão (Habermas,
mana, até então oculto aos olhos dos que dela 1990). Esse é o ponto central da crítica de Fou-
participavam (Kumar, 1997, p. 92). A ciência cault, que identifica na invenção das discipli-
moderna é fruto do conteúdo e do método nas a promessa de liberdade do Iluminismo. A
desse pensamento. principal mudança – que sai do estatuto de fé
Essa noção de modernidade foi fundamen- no metafísico como elemento essencial da civi-
tal para a consolidação do feminismo como lização, em que não havia sujeito, nem domí-

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nio de si, para o império da razão e domínio lugar, a Jean-François Lyotard, que introduziu
de si, para o “eu sou” – vem com promessas o termo pós-modernidade na discussão atual e
que em si mesmas são paradoxais: a promes- se encontra dentre aqueles pensadores que se
sa de liberdade por coerção, e as instituições autodenominam pós-modernos. Para o autor,
totais como elemento necessário para a vitória pós-modernidade nomeia uma condição ge-
da razão (Habermas, 1990). Nesse sentido, o ral da civilização ocidental contemporânea. A
“ser humano” adequado seria o útil economi- crítica social pós-moderna dispensa os pilares
camente (pelo trabalho e pela produção) e dó- tradicionais da filosofia e a base teórica funda-
cil politicamente (pela disciplina). Ou seja, ao cionalista e universalizante. A obra A condição
mesmo tempo que liberta, o projeto de moder- pós-moderna (1989), de Lyotard, expressa o
nidade também escraviza. descrédito pelas grandes narrativas filosóficas e
Os debates sobre a pós-modernidade se situa os jogos discursivos em primeira ordem
relacionam a esses limites por entenderem o para a pesquisa e a análise política.
declínio da razão. Se na modernidade deus é Aspectos intrínsecos ao pensamento pós-
quem havia morrido, na contemporaneidade moderno são encontrados entre pensadores
alguns apontam para a morte da razão. como Friedrich Nietzsche, considerado um dos
A psicanálise, no início do século XX, por precursores do pensamento pós-moderno. A
meio do pensamento de Sigmund Freud, con- Europa, em 1888, recebeu assustada o anúncio
tribui para a afirmação da fragmentação do “eu” de Nietzsche sobre a chegada do niilismo e a
enquanto sujeito do conhecimento, como se o idéia de que a verdade era apenas “solidificação
indivíduo perdesse sua unidade orgânica em de velhas metáforas” (Lyon, 1998, p. 17-18).
face do descobrimento de um “inconsciente” O grande esforço de Nietzsche foi o de expor
intrínseco à subjetividade humana. Para Stuart o vazio das esperanças iluministas. Assinale-
Hall (1997), a teoria freudiana do inconscien- se que a notoriedade de seu pensamento se
te, que funciona num mecanismo alógico, seria deu em razão da declaração sobre “a morte de
o oposto da razão e, assim, “arrasa com o con- deus”. De certa forma, Nietzsche está abrindo
ceito do sujeito cognoscente e racional, com os caminhos para a discussão do pensamento
uma identidade unificada e fixa – o sujeito do da pós-modernidade:
‘penso, logo existo’ cartesiano” (p. 36).
A idéia de um sujeito fragmentado, em [...] Seria até mesmo possível, ainda, que o que
contraposição ao sujeito universal do Ilumi- constitui o valor daquelas boas e veneradas coisas
nismo, produziu efeitos sobre a teoria femi- consentisse precisamente em estarem, da manei-
nista, com importantes reflexos sobre o debate ra mais capciosa, aparentadas, vinculadas, enre-
epistemológico. Além do sujeito fragmentado, dadas com aquelas coisas ruins, aparentemente
as proposições ditas pós-modernas irrompem opostas, e talvez mesmo em lhe serem iguais em
com a idéia da dissolução do sujeito, da disso- essência. Talvez! – Mas quem tem vontade de
lução do “eu”. se afligir com tão perigoso talvez! Para isso já é
preciso esperar a chegada de uma nova espécie
de filósofos que tenham algum outro gosto e
As proposições pós-modernas propensão, inverso aos do que houve até agora –
filósofos do perigoso talvez em todos os sentidos.
A fim de compreender a crítica pós-moderna – E dito com toda seriedade: eu vejo tais novos
à filosofia iluminista recorremos, em primeiro filósofos surgindo (Lebrun, G. 1999, p. 304).

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Nesse prisma, a pós-modernidade caracte- mente, do consumismo. Desse modo, alguns


riza-se, sob alguns aspectos, como uma crítica autores consideram necessária uma nova prá-
à modernidade, que se efetiva dentro da pró- tica na forma de analisar a sociedade, ou seja,
pria modernidade, na medida em que autores a construção de uma epistemologia pós-mo-
como Nietzsche, Freud e outros questionam derna. Assim, os modos de análises sociais e da
as bases que sustentam a razão moderna e prática política da modernidade são veemente-
fragmentam o sujeito, propriedade universa- mente contestados.
lizante do conhecimento. No decorrer de 1960, uma nova onda re-
Ressalte-se que, a partir da década de 1980, volucionária invade o mundo, e os campos da
as idéias pós-modernas tomam corpo e os de- produção científica minam as bases da concep-
bates se acirram em vários campos do conhe- ção ideológica da sociedade branca, masculina,
cimento. É possível contemplar tais idéias, de cristã e ocidental. A emergência política das
forma materializada, nas artes, na arquitetura, minorias traz a fragmentação dos discursos e
na crítica literária e cinematográfica. Por essa impõe o reconhecimento de múltiplos pontos
razão, autores como David Lyon, por exem- de vista e múltiplos sistemas epistemológicos.
plo, concebem a pós-modernidade como uma O movimento feminista, as revoluções estudan-
idéia, uma experiência cultural, uma condi- tis, a contracultura, a luta pelos direitos civis
ção social ou uma combinação das três (Lyon, e os movimentos revolucionários no Terceiro
1998, p.13-14). Mundo apresentam novos sujeitos sociais, que
Lyon tenta desenvolver um panorama his- fazem do estigma da exclusão o emblema para
tórico relacionado à idéia de pós-moderni- sua afirmação identitária (Assis, 2007, p. 2).
dade. Em síntese, apresenta-a, em primeiro As novas correntes epistemológicas emer-
lugar, como a nominação encontrada pelos gentes no contexto da modernidade deslocam
intelectuais para expressar os questionamen- a análise dos fundamentos de validade de um
tos e as mudanças que se davam dentro da enunciado para a análise da linguagem e do
própria modernidade, em âmbitos como o discurso. A atenção anteriormente centrada no
cultural, o intelectual, o político, o econômi- sujeito e no objeto passa agora para a relação
co, dentre outros. dialógica sobre a qual se processa a produção
Para Lyon (1998), o primeiro fenômeno do saber (Lyotard, 1989).
identificado é o abandono do fundacionismo,
ou seja, a concepção de que a ciência está edi-
ficada sobre bases firmes de acontecimentos O feminismo e as preocupações
observáveis na filosofia da ciência. O segundo epistemológicas
fenômeno é a crise da hierarquia do conheci-
mento e o crescimento do interesse pelo local, O patamar epistemológico que primeira-
em vez de, interesse pelo universal. Isso reflete mente deu sustentabilidade aos estudos de
o despontar de uma nova realidade, isto é, uma mulheres foi o empirismo feminista. Sandra
ordem diferente que se inaugura. A sociedade Harding (1997) assim define o objetivo da
vai se transformando na sociedade da comu- teoria feminista:
nicação generalizada. As novas tecnologias de
informações vão facilitando a proximidade de O esforço inicial da teoria feminista foi o de es-
maiores extensões, avança o processo de globa- tender e reinterpretar as categorias de diversos
lização do mercado da cultura e, conseqüente- discursos teóricos, de modo a tornar as ativida-

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des e relações sociais das mulheres analiticamen- posições teóricas. A primeira, um esforço intei-
te visíveis no âmbito das diferentes tradições ramente feminista que tenta explicar as origens
intelectuais. Se a natureza e as atividades das do patriarcado. A segunda se situa no seio de
mulheres são tão sociais quanto as dos homens, uma tradição marxista e procura um compro-
nossos discursos teóricos deveriam ser capazes de misso com as críticas feministas. A terceira,
revelar nossas vidas com tanta clareza e detalhe fundamentalmente, divide-se entre o pós-es-
quanto supomos que as abordagens tradicionais truturalismo francês e as teorias anglo-ameri-
revelam as vidas dos homens (p. 07). canas das relações de objeto que se inspiram
nas várias escolas de psicanálise para explicar
A fundamentação teórica do empirismo fe- a produção e a reprodução da identidade de
minista está arraigada à racionalidade e à obje- gênero do sujeito (p. 04).
tividade da ciência, buscando a qualquer custo
vencer todas as formas e manifestações sexistas Sob esse aspecto, Scott, além do feminismo
na investigação. Harding (1997) compara a patriarcal, classificou os estudos feministas em
teoria feminista empiricista a uma réplica dos marxistas e psicanalíticos, dividindo estes úl-
preconceitos sexistas na investigação tradicio- timos entre o pós-estruturalismo francês e as
nal, quando diz: teorias angloamericanas das relações de obje-
to. Estas duas últimas abordagens teóricas es-
as feministas teóricas procederam dessa mesma tão relacionadas às tendências epistemológicas
camada social não por conspiração, mas em vir- do ponto de vista feminista e do feminismo
tude do padrão histórico [...] apenas mulheres pós-moderno.
dessa origem social podem se fazer ouvir (p. 09). Para Caroline New (1998), a teoria do
ponto de vista feminista é uma articulação da
A grande inovação foi, de fato, introduzir a epistemologia com o realismo crítico. Sua per-
categoria “mulher” enquanto objeto de análi- cepção está baseada nos trabalhos de Dorothy
se. Porém, tal fato revelou-se pouco revolucio- Smith (1974) e outras. Nancy Hartsock (1999)
nário ao permanecer preso às metanarrativas compreende-a como “um materialismo históri-
históricas e filosóficas iluministas da natureza co especificamente feminista”; ela toma como
humanista universal, considerando a mulher seu ponto de partida
enquanto sujeito homogêneo.
Em períodos mais recentes, sobretudo a a proposta de Marx de que a visão correta da
partir de 1960 até os dias atuais, os estudos sociedade de classes é avaliável apenas a partir
feministas vêm buscando um caráter mais re- da posição de uma ou duas classes na sociedade
lacional, passando da denominação “estudos capitalista (p. 284).
de mulheres” para “estudos de gênero”. Isso
implica uma profunda mudança, tanto no Para Hartsock, a posição das mulheres como
que diz respeito ao objeto de estudo quanto um grupo oprimido permite uma visão diferen-
ao campo epistemológico. De acordo com te e mais acurada do mundo social e possibi-
Joan Scott (1995): lita a elaboração de esquemas mais adequados
para descrevê-lo. Dorothy Smith entende que
Os(as) historiadores(as) feministas utilizaram é importante tomar as experiências das mulhe-
toda uma série de abordagens na análise do gê- res como um ponto de partida, quer seja para
nero, mas estas podem ser resumidas em três ação feminista, quer seja para a Sociologia. Em

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outras palavras, privilegiar um método que não autoras denominam de “crítica social sem Filo-
seja pré-apropriado pelos narradores das rela- sofia” (Fraser; Nicholson, 1990). Nesse senti-
ções. Com a implementação da teoria do pon- do, existem de fato algumas semelhanças entre
to de vista feminista nos termos descritos, seria o feminismo e o pensamento pós-moderno.
possível a construção de uma ciência feminista. Tanto o feminismo quanto o pensamento pós-
Na abordagem epistemológica pós-estrutu- moderno são reconhecidos como duas grandes
ralista, os estudos feministas estão permeados correntes político-culturais muito importantes
pela negação das generalizações e pela busca para os dias atuais. Ambas condensam críticas
das origens da condição feminina, do embasa- que atingem pontos fundamentais das bases fi-
mento epistemológico e da tendência do femi- losóficas e sociológicas mais tradicionais. Nas
nismo pós-moderno. Do questionamento e do palavras de Seyla Benhabib (1995):
confronto das bases teóricas do empirismo, do
ponto de vista feminista, foram desencadeadas Tanto o feminismo como o pós-modernismo não
novas perspectivas epistemológicas, identifica- são meramente categorias descritivas, eles são ter-
das com o pensamento pós-moderno. mos constitutivos e avaliativos, informando e aju-
No bojo desse debate emerge a abordagem dando a definir suas verdadeiras práticas, às quais
feminista pós-moderna, apresentando proposi- eles atentam para descrever. Como categorias do
ções radicalmente diferentes das outras posições presente, eles projetam modos de pensamentos
epistemológicas. Segundo Nicholson (1990), a sobre o futuro e avaliam o passado (p. 17).
nova perspectiva epistemológica traz, em sua
essência, variados pontos de vista feministas A crítica social pós-moderna se dá pelo des-
contraditórios e conflituosos, considerando, prezo das bases tradicionais da Filosofia e rejeição
assim, a impossibilidade da noção unitária da a qualquer embasamento teórico fundacionista e
verdade. O pensamento pós-moderno propõe universalista. Jane Flax (1990) apresenta a pós-
transcender a noção de sujeito universal, histó- modernidade como aquela que assina a tese da
rico e metafísico, que está associada a valores e “morte” do homem, da história e da metafísica.
princípios presentes na investigação tradicional Dessa forma, o pensamento pós-moderno, na
nas Ciências Humanas e na Filosofia. concepção da autora, deseja destruir as perspecti-
Para as defensoras dessa epistemologia, o vas essencialistas do ser humano ou da natureza.
fato de abrir mão da história, do sujeito e da Por outro lado, o feminismo também vem
perspectiva metateórica não significa que a ci- colocando em questão, entre outros, o poder e
ência venha a ser prejudicada. Ao contrário, a a política. A começar pela Academia, argumenta
partir de então, poderá oferecer resultados e co- contra a neutralidade e a objetividade da ciência,
nhecimentos diferenciados à sociedade. demonstrando que o que estava sendo posto, pu-
blicamente, como aplicável universalmente tem
sido válido apenas para pessoas de uma cultura,
O feminismo e os impasses com a classe e raça particular. Ou seja, o feminismo tam-
pós-modernidade bém critica os ideais do Iluminismo. Para Fraser e
Nicholson (1990):
Feminismo e pós-modernidade vêm ten-
tando, ao longo dos últimos anos, repensar a A pós-modernidade não apenas se constitui
relação entre Filosofia e crítica social. Ao mes- num aliado natural para o feminismo, mas
mo tempo, buscam desenvolver o que algumas também provê uma base para a negação da

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tendência da construção teórica que generaliza Por conseguinte, o que parecia intrinseca-
tudo a partir da mulher ocidental, branca e da mente relacionado é, de fato, ambivalente. Não
classe média (p. 05). obstante, a proximidade entre o feminismo e
o pensamento pós-moderno é importante para
Desse modo, o feminismo também afirma que a reflexão sobre a especificidade se faça per-
a diferença, recusa as metanarrativas e critica as tinente. A problematização dessa relação é tam-
estruturas representativas de poder. Jane Flax bém desenvolvida por Seyla Benhabib (1995),
(1992) é uma das autoras que defendem as teo- para quem
rias feministas como parte do discurso pós-mo-
derno, já que desconstroem as noções de razão, a crítica social sem filosofia não é possível, e
de conhecimento ou do eu, pelo discurso do sem crítica social o projeto da teoria feminista
outro marginalizado. comprometida com o conhecimento e com os
Em contraste com essa visão, Nancy Fraser e interesses emancipatórios das mulheres é incon-
Linda Nicholson (1990) defendem que, apesar de cebível, devido à tendência relativista (p. 29).

feminismo e modernismo terem emergido como Consideramos um dos argumentos mais per-
duas das mais importantes correntes políticas e tinentes em relação ao desencontro conceitual e
culturais das últimas décadas, ambas mantive- político entre o feminismo e o pensamento pós-
ram uma tênue distância uma da outra (p. 19). moderno aquele realizado por Benhabib (1995):

As autoras concordam que tanto o feminis- a) a “morte do homem”, entendida como a


mo quanto o pensamento pós-moderno tenham morte do sujeito autônomo, auto-reflexivo,
buscado repensar a relação entre Filosofia e crítica capaz de agir sobre princípios;
social e, ao mesmo tempo, desenvolver paradig- b) a “morte da história”, compreendida como
ma da crítica sem Filosofia. No entanto, afirmam desinteresse epistêmico na história das lutas
que essas duas tendências caminham em direções dos grupos em construir narrativas passadas;
opostas. O pensamento pós-moderno, para elas, c) a “morte da metafísica”, compreendida
concentrou-se primariamente no lado filosófico como a impossibilidade de criticar ou legi-
do problema, elaborando perspectivas metafilo- timar instituições, práticas, tradições outras
sóficas antifundacionais, a partir das quais esbo- que, por meio do apelo permanente, auto-
çaram suas conclusões sobre a forma e o caráter legitima as pequenas narrativas.
em relação à crítica social. O feminismo, por sua
vez, iniciou sua elaboração pelo desenvolvimento Para a autora, a completa negação, pelo pen-
das perspectivas crítico-políticas, esboçando con- samento pós-moderno, dos elementos vitais que
clusões sobre o status da Filosofia: deram sustentabilidade à construção do pensa-
mento moderno termina por minar o compro-
O pós-modernismo oferece críticas persuasivas e metimento feminista com a ação da mulher,
sofisticadas do fundacionismo e do essencialismo, direcionada a um futuro emancipado. Além dis-
mas suas concepções de crítica social tendem a ser so, elimina a possibilidade do exercício de uma
anêmicas e o feminismo oferece concepções robus- crítica social radical que recobre o gênero “em
tas de crítica social, porém elas tendem a momen- todos os seus fins, variedades e monótona simila-
tos de lapsos no interior do fundacionalismo e do ridade” (Benhabib,1995, p. 29).
essencialismo (Fraser; Nicholson, 1990, p. 20).

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 16-26, 2008


24 | Lindalva Alves Cruz, Elaine Cristina Pimentel Costa e Euda Kaliani Gomes Teixeira Rocha

Considerações finais Rejeitaram veementemente as idéias iluminis-


tas de natureza humana universal e buscaram,
Os primeiros passos do feminismo, tanto na por outros caminhos, desenvolver análises mais
prática política quanto na teoria, foram dados plurais, particulares e afastadas de qualquer
nas trilhas históricas e filosóficas do Iluminismo totalidade, passando a conceber a categoria
e da própria modernidade. A partir da década mulher fora das análises que tinham seus fun-
de 1970, o feminismo posiciona-se de forma damentos nas origens e dicotomias.
mais crítica. Os passos rumo à construção Entretanto, ao seguir o caminho percorri-
de epistemologias feministas e de uma teoria do pelas teóricas feministas, é possível perce-
crítica feminista sobre o conhecimento que ber que, embora algumas delas sigam a direção
proporcionasse fundamentar o saber de forma teórica do pensamento pós-moderno, por
politizada estão ainda em curso. No entanto, acreditarem na aliança entre feminismo e pós-
um dos pontos relevantes desse percurso foi o modernidade, outras continuam chamando a
momento em que as mulheres deixaram de ser atenção para categorias analíticas modernas.
elementos de investigação e passaram a ser re- Por fim, embora o feminismo tenha apre-
conhecidas como sujeitos históricos, políticos sentado, em determinados momentos, conver-
e epistemológicos. gência com o pensamento pós-moderno, por
Outro aspecto inovador do feminismo en- sua posição crítica e sua proposição epistemo-
quanto movimento político e cultural foi que lógica antiiluminista, no âmbito do próprio
este se apresentou com compromisso crítico feminismo existe discordância de que a pós-
e com a proposta de um projeto social e po- modernidade e o feminismo possam ser alia-
lítico de transformação das relações sociais, dos conceitual e politicamente. O argumento
além de um projeto científico de elaboração mais contundente: a possibilidade de minar o
de conhecimento, visando conhecer e mudar comprometimento feminista com o processo
fundamentalmente as condições econômicas, de libertação das mulheres.
culturais e sociais que legitimam e perpetuam a Como última reflexão, é importante res-
subordinação das mulheres na sociedade. saltar que a pedra de toque do movimento fe-
Nesse processo, o feminismo mergulhou minista é o “ser sujeito” das mulheres, ou seja,
em várias fontes teóricas. Em determinado mo- as mulheres enquanto sujeito social, político
mento utilizou, por analogia, a teoria marxista, e subjetivo. Mesmo que este “eu” seja absolu-
visando explicar as discriminações e a desigual- tamente plural, há um elemento fundamental
dade feminina por meio da categoria “trabalho que une todas as mulheres: a experiência de ser
doméstico” e sua representação no capitalismo. mulher numa sociedade patriarcal, autoritária
Em outro momento, usou as teorias da psica- e capitalista. Esses elementos formam uma es-
nálise. Hoje, porém, já é possível vislumbrar trutura de exclusão e opressão que é, de fato,
que as práticas das mulheres vêm suscitando a exercida sobre a vida das mulheres.
elaboração de novas teorias e chamando aten-
ção para uma nova leitura dos sujeitos. Feminism and the impasses with post-
Algumas feministas, inspiradas em autores modernity
pós-modernos como Jean-François Lyotard,
Michel Foucault, Jacques Derrida e outros, in- abstract This article faces the trajectory of fe-
tensificaram sua oposição ao essencialismo, ao minism in the context of the tense relation between
fundacionismo, às grandes narrativas, enfim. modernity and postmodernity. We present, inicially,

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 16-26, 2008


O feminismo e os impasses com a pós-modernidade | 25

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CSDxPliFZIdj4pQohxyYOA8#PPP11,M1>. Acesso dade Federal de Pernambuco, incentivando-
em: 8 set 2008. nos a aprofundar os temas do feminismo e da
epistemologia.

autoras Lindalva Alves Cruz


Doutoranda em Sociologia/UFPE

Elaine Cristina Pimentel Costa


Doutoranda em Sociologia/UFPE

Euda Kaliani Gomes Teixeira Rocha


Doutoranda m Sociologia/UFPE

Recebido em 29/02/2008
Aceito para publicação em 15/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 16-26, 2008


Cruzamentos, territórios e patrimônio religioso: sobre
a doçura como referência cultural nas comemorações
de Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes nas
praias do Laranjal, Pelotas/RS, em 2007 1
Marília Floôr Kosby

resumo Este estudo etnográfico analisa a ce- entrar na Lagoa! Era a sereia. A Iara chamou,
lebração religiosa que acontece todos os anos no e ela foi. Iara cantou uma canção que não se
dia 2 de fevereiro em Pelotas: as comemorações do sabe cantar, com uma voz que não se ouve, que
feriado oficial de Nossa Senhora dos Navegantes. não se imita. E ela, encantada, mergulhou sem
Especificamente, desenvolve-se na observação dessa medo, no desconhecido escuro da Lagoa dos
cerimônia nas praias lacustres do Laranjal e colônia Patos. Se não fossem as súplicas de suas acom-
de pescadores Z3, costa leste de Pelotas/RS, banha- panhantes, a senhora de roupas brancas e guias
da pela Lagoa dos Patos. Toda a análise é permea- azuis teria seguido a canção inebriante, teria
da pela noção de “encruzilhada”, sugerida por José tocado o mundo da sereia. Sereia que não leva
Carlos Gomes Anjos, em substituição à noção de nome de santa, mas tem devotos, ganha flores,
sincretismo, com o intuito de considerar as múlti- doces, pentes, espelhos. Iara nunca virou santa,
plas entidades, divindades e manifestações religiosas mas Iara atende pedidos, a sereia escuta pro-
que se cruzam durante os festejos. Tal conceito é messas. Era 2 de fevereiro, e Iara queria seus
baseado na reflexão sobre como a cosmovisão afro- adoradores todos em volta, no fundo das águas
religiosa lida com a diferença. Além disso, ela per- do balneário dos Prazeres.
mite perceber o quanto essa lógica não se restringe
às terreiras2, mas permeia as estratégias identitárias Iemanjá é também associada a diferentes mães-
de grupos aparentemente tão contrastantes como a d’água da mitologia indígena, sendo por isso
comunidade católica e o “povo de religião”. mesmo chamada Iara, a Mãe-d’água (Vallado,
palavras-chave Patrimônio cultural. Afro- 2002, p. 37).
religiosidade.
Há quem diga que dos fartos seios de Ie-
Na madrugada do feriado em que se come- manjá fizeram-se dois rios que logo viriam ser
moram oficialmente os festejos em homenagem o mar, sua morada. Há também quem acre-
à Nossa Senhora dos Navegantes, Maria “Mãe dite que foi de suas lágrimas que ele surgiu,
dos Pescadores”, no último banco do ônibus quando Oxalá, ao beber vinho de palma em
que trazia, lotado, passageiros da praia de volta demasia, quebrou a promessa de não caçoar
à cidade, a mulher encharcada, apesar de não dos enormes seios dela. A Lagoa, naquela noi-
ser “de religião”, dizia-se devota de Iemanjá. A te, era um mar. Nessa época do ano as águas
interlocutora havia levado as filhas e flores para doces abaixam-se para que o oceano co-habite
saudar a orixá3 “Rainha do Mar”. seu leito, translucidando de verde a costumei-
Conforme seus relatos, ia embora mais ra turvação da Lagoa dos Patos.
cedo, pois o fundo das águas causara-lhe uma A noite clara que se apresentava parecia
perigosa tentação – logo ela que sempre evitara exibir com vaidade os mais bonitos frutos da

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-304, 2008


28 | Marília Floôr Kosby

“grande mãe africana do Brasil”4 do estômago vinham das terreiras de Umbanda. Dezenas,
de Iemanjá nasceram todas as estrelas, as nuvens espalhadas, grupos de fiéis em rodas, cavalos de
e, além delas, nove dos doze orixás cultuados umbanda7 emprestando seus aparelhos8 às en-
no Batuque: Bará, o senhor da rua e das encru- tidades desejosas de se manifestarem na noite
zilhadas, o regulador dos caminhos; irmão de de festa. Dançavam, bebiam, riam, fumavam,
Bará, Ogum, dono do ferro, da guerra, das fer- aconselhavam, orientavam, caboclos, pretos-
ramentas, da faca, protetor dos trabalhadores e velhos, exus, pombagiras e ciganos. Como ma-
dos caminhantes; Iansã, a deusa dos ventos, das jestades nos seus tronos, nos congás, na areia
borboletas e das tempestades, domina os espíri- mesmo ou debaixo das árvores, imagens das
tos dos mortos e habitantes de planos inferiores; entidades – e em alguns casos de orixás – rece-
Xangô, senhor do fogo, foi rei de Oyó, é deus biam as honras dos filhos de suas terreiras. As
do trovão e da justiça; Odé e Otim regulam a rodas de terreiras geralmente continuam seus
caça, são o par, o homem e a mulher, represen- rituais praianos até o amanhecer.
tam o equilíbrio dos opostos, têm as mesmas Logo nas primeiras horas da manhã, al-
incumbências; Obá, que “escolheu a guerra guns quilômetros adiante do Balneário dos
como prazer nessa vida”5; Ossaim, que conhece Prazeres, na colônia Z3, comunidade formada
os segredos das plantas litúrgicas e medicinais; e principalmente por pescadores e suas famílias,
Xapanã, que tem poder sobre a doença e a cura, o caminho das celebrações levava às redonde-
é dono da “Vida e da Morte”6. zas do católico Santuário Nossa Senhora dos
À noite, só Iemanjá, Iara e aqueles que as se- Navegantes, onde encontrava-se a imagem da
guiam águas adentro podiam perceber o sal do santa, de manto branco, no seu barquinho com
mar. Pois quem se detinha às areias nem sequer o menino Jesus nos braços (imagem 1).
imaginaria outra qualidade que não a doçura. Trazida em carreata da Igreja Sagrado Cora-
Doçura dos montes de açúcar que se confun- ção de Jesus, situada no bairro do Porto, chegara
diam com o próprio chão – crivados de velas a imagem à vila de pescadores para dar início às
coloridas acesas, desenhavam sob os pés o céu. comemorações, com a celebração de uma mis-
Doçura dos quindins de Oxum, merenguinhos sa pelo bispo Dom Jaime. Nos dias anteriores
de Iemanjá e cocadas de Oxalá, que compu- à chegada da santa à igreja do porto, ela passa
nham as ornamentadas bandejas de oferendas algumas noites em capelas de diferentes bairros
para esses orixás, os orixás de praia, de mel, ve- da cidade, onde são celebradas missas quando
lhos pais de todos e de tudo. de sua chegada e procissões quando de sua par-
Nas mesmas areias doces que mostravam o tida para outro bairro (Bairros; Moura, 2007)9.
caminho até o lar da sereia Iara, homens e mu- Rodeada por velas, flores e cartas, a imagem de
lheres de um grupo de dança afro, em coreogra- devoção permanece no santuário para, às três
fias precisas, homenageavam Iemanjá, frente à horas da tarde, partir em procissão lacustre até
grande imagem sob holofotes da deusa africana o porto da cidade, no canal de São Gonçalo,
de pele alva, corpo esguio e olhos azuis, cabelos passando o Pontal da Barra, após contornar as
negros e longos. O som dos tambores que guia- praias do Laranjal (Balneário dos Prazeres, San-
vam os passos da dança chegava aos ouvidos to Antônio e Valverde), bairro que contempla a
das milhares de pessoas que visitavam a praia. orla da Lagoa que cerca a costa de Pelotas.
Tão logo cessaram as cerimônias oficiais, Enquanto não partiam as embarcações, as
com a presença de autoridades administrativas festas circundavam a pequena igreja: shows
do município, os tambores que então soavam musicais e uma imensa quantidade de pratos à

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 27-36, 2008


Cruzamentos, territórios e patrimônio religioso | 29

base de peixes servidos em longas mesas na rua ções em movimento. Azul e branco coloriam
ou dentro do salão da comunidade. Muitas das todos os horizontes, as cores que os fiéis católi-
pessoas que chegavam à colônia de pescadores, cos dedicam a sua santa das águas.
atraídas pelo almoço, vinham saborear a fartu- Um único barco entre os que formavam a
ra dos peixes que a devoção à santa “Rainha do procissão destoava dos outros. Era diferente
Mar” traz àqueles que sobrevivem das águas. porque, além das bandeiras azuis e brancas,
Na beira da água, dezenas de barcos de trazia outras no mesmo número, mas de cor
pesca tremulavam redes de bandeirinhas azuis vermelha; a cor de Bará, orixá que no Ba-
e brancas que desciam desde seus mastros até tuque rege o ano de 2007. Eram para Bará
as bordas das embarcações, decorando toda as bandeiras, e eram de Bará para Nossa Se-
vista de quem de dentro olhava. Eram os nhora dos Navegantes, de Bará para Iemanjá.
preparativos para a procissão, muitos balões E para elas também fora enfeitado de azul e
verde-e-amarelos e, no alto dos mastros, pre- branco um outro barco, de nome “Poderosa
dominava a altivez de bandeiras do Brasil ou cigana”, tendo no casco pintada uma ima-
do Rio Grande do Sul. gem da entidade cultuada pelos umbandis-
tas, vestida de vermelho e segurando sua saia
envolta em labaredas.
Bará e a cigana acompanhavam Nossa Se-
nhora dos Navegantes, representavam-na em
suas cores, homenageavam-na em cortejo. Mas,
além da santa, havia outra, uma deusa a ser ce-
lebrada. Ao aproximar-se o séqüito do Balneá-
rio dos Prazeres, via-se uma multidão (imagem
2) que se dirigia da praia para a laguna; com
água até o peito, os maiores carregavam nos
ombros Iemanjá em seu barquinho (imagem
3), as outras centenas de pessoas tinham nas
mãos rosas vermelhas, pentes, espelhos, ima-
gens, traziam os filhos pequenos para saudar a
santa que se aproximava. Sacudiam os braços,
batiam palmas, em gestos de euforia jogavam
água para o alto, água que ao sol cintilava – daí
uma das cores rituais de Iemanjá ser o pratea-
do, justamente por ser a cor da cintilação das
águas sob a luz do sol.
O encontro da orixá Iemanjá com Nossa
Imagem 1: Foto do acervo Marília Floôr Kosby, 2007.
Senhora é uma homenagem mútua, é um en-
De dentro do barco Terra Sul, que carregava contro planejado por representantes da Igreja
o emblema “Salve Maria, Mãe dos Pescadores”, Católica e da Federação de Cultos Afro-bra-
acompanhamos o trajeto da embarcação que sileiros. No planejamento do ritual, o cortejo
transportava Nossa Senhora dos Navegantes faz duas voltas em círculo, no meio da Lagoa
pelas águas transparentes, através das quais se dos Patos, assim que chega ao encontro dos
podia ver no fundo a silhueta das comemora- devotos de Iemanjá, reverenciando a orixá e

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 27-36, 2008


30 | Marília Floôr Kosby

dispondo a santa em reverência. Neste ano, brasileiro. Umbanda (caboclos e pretos-velhos


em vez de seguir até o porto da cidade, os e/ou cruzada, incluindo os exus), Batuque e
barcos saudaram Iemanjá no Balneário dos Catolicismo são cultuados na mesma celebra-
Prazeres e, em seguida, retornaram ao ponto ção e, na maioria das vezes, pelos mesmos fiéis.
de partida, a colônia Z3. O ritual terminou Fiéis estes que talvez não adotem em seus dis-
onde os envolvidos acreditavam dever termi- cursos palavras de louvor ao santo “dos outros”,
nar, cumpriu os passos que precisava para ter mas, sim, em lugar disso, tragam com recor-
a eficácia que se esperava. rência o respeito à diversidade como justifica-
Em detrimento de uma idéia de pureza re- tiva para o fato de o ritual de saudação mútua
ligiosa, de crenças originais ou rituais genuínos entre Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes
e imutáveis, as festas do dia 2 de fevereiro de tenha se tornado o ápice das celebrações. Em
2007, nas praias lacustres de Pelotas, permiti- especial, quando tais crenças perpassam cami-
ram perceber as múltiplas interpretações que nhos dos territórios da cosmovisão religiosa
recebem mitos e símbolos sagrados, bem como afro-brasileira, é imprescindível considerar o
as diversas associações que constroem a relação tratamento que a diferença recebe na lógica
rito e sociedade, em um contexto religioso que dessas religiões, a qual “ao invés de dissolver
mobiliza diferentes grupos de credo da cidade. as diferenças, conecta o diferente ao diferente”
Comemorações que reverenciam e são reveren- (Anjos, 2006, p. 22). No entanto, mesmo que
ciadas santas, sereias e orixás revelam ao olhar os devotos de orixás e de entidades da Umban-
etnográfico a teia de atualizações, de apropria- da tragam estampadas seus objetos de culto nas
ções e de cruzamentos de práticas e elementos embarcações da procissão lacustre cristã – seja
religiosos dos quais os sujeitos valem-se na ela- em cores, seja nas imagens – o que se percebe
boração de suas concepções de mundo. O que é que também os católicos incorporam ao seu
mostra, em uma análise de ritual, uma parte ritual a homenagem à Iemanjá.
do complexo sistema de crenças e valores que Entretanto, antes de se tratar de uma de-
co-existem na constituição do quadro religioso monstração fervorosa de liberdade de culto, da

Imagem 2: Foto do acervo Marília Floôr Kosby, 2007.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 27-36, 2008


Cruzamentos, territórios e patrimônio religioso | 31

Imagem 3: Foto do acervo Marília Floôr Kosby, 2007.

ufanista miscelânea religiosa do mestiço Brasil, até o porto, após as saudações trocadas com os
onde a síntese das crenças e das raças criaria devotos da mãe orixá ou da sedutora sereia?
uma tendência à tolerância, em um triunfo da Por que milhares de pessoas irrompem laguna
igualdade de direitos, o que de fato emerge nes- adentro com uma imagem sobre os ombros
se encontro lacustre é a intensidade depositada para chegar o mais próximo possível de uma
no não-território que a água representa. frota de barcos que homenageia a Mãe de uma
Por que nas areias os cultos não se rela- religião que aparentemente tanto contrasta
cionam? Por que a Iemanjá da madrugada no com a cosmovisão afro-religiosa?
Balneário dos Prazeres não ganha aplausos e Se seguirmos a idéia de José Carlos Gomes
orações da comunidade da Z3? Ou, então, por Anjos, o patrimônio étnico cristalizado na re-
que não há oferendas nas margens das praias ligiosidade afro-brasileira seria o núcleo de um
da colônia de pescadores? Por que nas areias as habitus mutável e não-fixo, por sua maneira
identidades ganham contornos mais nítidos e de lidar com as diferenças e as identidades, o
as fronteiras têm delimitações territoriais tão seu nomadismo das perspectivas, das entidades
rígidas? Está certo que cada localidade possui sacralizadas, dialogaria simetricamente com a
populações peculiares com suas disputas políti- filosofia ocidental; católicos e afro-religiosos
cas particulares, que também envolvem o cam- adotam estruturalmente estratégias identitá-
po religioso e mesmo étnico – refletindo seja rias semelhantes – o que permite que barcos
no conflito entre evangélicos e católicos, seja batizados de “Poderosa Cigana”, por exemplo,
na marginalização das religiões afro-brasileiras. ou decorados com a cor símbolo de um orixá
Mas o que se está discutindo aqui não são os componham uma procissão promovida pela
aparentes antagonismos, e, sim, as convergên- Igreja Católica. Certo: substitui-se o conceito
cias implícitas, condensadas em um ritual que de sincretismo pelo de cruzamento religioso
se altera, que não segue a ordem antes prescrita. e estão explicadas as reverências entre ambos.
Por que a procissão católica, com toda a opu- Sim, mas isso não é suficiente para entender
lência de seus barcos, não seguiu seu percurso porque isso só ocorre quando a firmeza do chão

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 27-36, 2008


32 | Marília Floôr Kosby

deixa de ser o cenário para dar lugar à fluidez são percebidos como caminhos”, o que faz “da
das águas, culminando no desfecho das cele- vida um território”. Para que os desejos acon-
brações. Se as águas têm dono, proprietário teçam, é preciso que haja fluxo nos caminhos,
legítimo, nesse campo, a Lagoa dos Patos é por isso a encruzilhada pode ser vista como um
domínio de Iemanjá, Nossa Senhora dos Na- não-lugar, por onde circulam energias nômades,
vegantes, Iara. não fixas e não territorializadas.
Nesse ponto, é importante situar que, ao O que dizer, então, de um encontro entre
optar pela análise específica de uma relação dois grupos de fiéis, uns que entram em dire-
que se desenrola na dimensão religiosa, o con- ção ao leito da laguna e outros que têm como
ceito de campo elaborado por Pierre Bourdieu trajeto toda a orla da mesma? Mais ainda: um
subsidia a formulação de algumas conclusões encontro que se dá em uma laguna que se des-
deste estudo. O campo, nesse caso o campo re- territorializou para, por certo período, dar lugar
ligioso, é uma instância que existe porque há o ao mar? A própria Lagoa dos Patos no dia 2 de
conflito, o que revela uma estrutura de pensa- fevereiro de 2007 era um não-lugar, um territó-
mento que não se restringe especificamente às rio onde não se pode ser algo sem deixar de ser
cosmovisões afro-brasileira ou cristã, mas que outro e, ao mesmo tempo, sem perder a possi-
permeia ambas: bilidade de voltar a ser o que se era. Quando
os devotos de Iemanjá encontram a procissão de
Um campo, e também o campo científico, se Nossa Senhora dos Navegantes no meio do per-
define entre outras coisas pela definição dos curso, essa tem trancado o seu fluxo; a pretensão
objetos de disputa e dos interesses específicos de encerrar todo o território lacustre que toca
que são irredutíveis aos objetos de disputa e aos a orla da cidade – da Z3 ao porto – e fechar o
interesses próprios de outros campos [...] e que circuito no qual a Santa Rainha do Mar, Mãe
não são percebidos por quem não foi forma- dos Pescadores, compreenderia ser de seu domí-
do para entrar nesse campo [...] para que um nio, ou seja, as águas, é interrompido. Um traje-
campo funcione, é preciso que haja objetos de to que a multidão com a orixá/sereia nas costas
disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, jamais conseguiria completar. Nem por isso a
dotadas de habitus que impliquem no conheci- descontinuidade, que do cruzamento de corte-
mento e no reconhecimento das leis imanentes sias decorre, seria a intenção premeditada e cíni-
do jogo, dos objetos de disputas etc. (Bour- ca dos afro-religiosos de barrar a demonstração
dieu, 1983, p. 89). de poder que representava o séqüito católico. O
encontro, segundo alguns dos organizadores das
Entretanto, segundo o conceito de encru- celebrações, ocorre todos os anos – a desconti-
zilhada utilizado por Anjos (2006), na cosmo- nuidade é a peculiaridade de 2007.
visão afro-brasileira, as diferenças cruzam-se10 Ser um banhista, velejador, morador do
em caminhos plurais, sem se fundirem, onde o Laranjal, pescador ou somente devoto de
processo de subjetivação é um puro processo e Iemanjá ou Nossa Senhora dos Navegantes,
as diferenças subexistem. Na religiosidade afro- ou tudo isso junto, são identidades, ainda
brasileira, a encruzilhada, o cruzamento de ruas, seguindo Anjos (2006), não essencializa-
de caminhos, é uma percepção espaço-temporal das, mas intensificadas pelo que representa
a partir da qual a “pessoa de religião” organiza o a água para esses sujeitos na sua elaboração
agenciamento de sua subjetividade. Para os afro- do mundo e de si mesmos. A emergência
religiosos “os empreendimentos da vida também dessa intensidade urge, especificamente,

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 27-36, 2008


Cruzamentos, territórios e patrimônio religioso | 33

quando esses sujeitos reconhecem na Lagoa incluindo os exus), Batuque e/ou Linha Cruza-
dos Patos uma desterritorialização: da (quando incluem as outras três modalidades
no mesmo templo), “espaços para percursos
Todos os anos a Lagoa salga, mas como este há nômades”, em que raças, nações e divindades
muito tempo nós não víamos. Até a cor, é mais seriam um patrimônio simbólico de intensida-
mar que Lagoa! (Moradora da Z3, familiar de des diversas, e não “essências identitárias per-
pescador. Fonte: Diário de campo.) tencentes a indivíduos”. Aqui cabe transpor o
conceito de intensidade de Deleuze e Guattari,
Acampar no Barro Duro é bom porque tem ár- a partir da tradução de Anjos em sua obra:
vores, é tão bonito! Ainda mais este ano, que a
água está bem clarinha, dá para tomar banho. Nunca se trata, no entanto, de identificar-se a per-
Parece o Cassino, só que melhor! (Banhista, sonagens, como se diz erradamente de um louco
acerca das placas que identificam as praias do que “se tomaria por [...]”. Trata-se de algo total-
Totó e dos Prazeres como próprias para banho. mente diferente: identificar as raças, as culturas e
Fonte: Diário de campo.) os deuses a campos de intensidade sobre o corpo
sem órgãos. Identificar os personagens a estados
A água doce é uma referência para esses su- que preenchem esses campos, a efeitos que fulgu-
jeitos, como pode apontar o conceito de pa- ram e atravessam esses campos [...] não há um eu
trimônio imaterial, sobre o qual Pedro Paulo que se identifica com raças, com povos, com pes-
Funari afirma: soas, sobre uma cena da representação, mas nomes
próprios que identificam raças, povos e pessoas
Uma paisagem não é apenas um conjunto de com regiões, com limiares ou com efeitos numa
árvores, montanhas e riachos, mas, sim, uma produção de quantidades intensivas [...] (Deleuze;
apropriação humana dessa materialidade (Funa- Guatarri, 1976 apud Anjos, 2006, p. 23).
ri, 2006, p. 25).
A lacuna a ser preenchida, a conexão a ser
O encontro entre divindades, entidades, feita, na identidade religiosa dos envolvidos di-
seus devotos e todas as reverências envolvi- retamente nas celebrações pelotenses de Nossa
das, como já foi dito, era algo esperado. No Senhora dos Navegantes, em 2007, referia-se
entanto, no cruzamento, as diferenças não se à qualidade da Lagoa dos Patos que convergia
completam, não se esgotam; ao contrário, na mutuamente nos cultos à Maria, Mãe dos Pes-
encruzilhada que se constituiu no encontro, cadores, e à Iemanjá, a “Grande Mãe Africana
no não-lugar que estava sendo a Lagoa dos do Brasil”, e que se desterritorializava naque-
Patos, os atores passam a não-ser, ou melhor, le momento, qual seja, a fertilidade de suas
a serem aquilo que de seu que podiam en- águas, depositada principalmente na doçura.
contrar em um “outro”. Mas onde se encon- Os orixás de praia são também os orixás de
tra o outro quando se está na encruzilhada, mel – Oxum, Iemanjá e Oxalá, os pais dos
onde ninguém é em um território que não é outros orixás –, e as areias do Balneário dos
mais o mesmo lugar? Prazeres, na noite anterior, tinham morros
Quando discute a lógica da diferença na de açúcar, bandejas de quindins, cocadas e
religiosidade afro-brasileira, Anjos (2006, p. merenguinhos. Nos braços da santa que con-
22) reconhece nos terreiros de Umbanda (ca- duzia a procissão, a cândida imagem de um
boclos e pretos-velhos e/ou umbanda cruzada, menino Jesus.

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34 | Marília Floôr Kosby

Desterritorializados, ambos os séqüitos, sempre voltada ao fracasso para restabelecer a


dentro d’água, encontraram na experiência um continuidade de um vivido [...] (Lévi-Strauss,
do outro o traço de doçura – representado nas 1971 apud Anjos, 2006, p. 603).
imagens –, que preenchia o domínio territorial
que se desvanecera na salinidade. Como expe- Não se pensava a laguna sem pensar no sal
riência ritual, o “fracasso lógico” não permite da água; como, então, se pensar como um sujei-
que se cristalize a identidade colada constante- to relacionado e identificado com uma laguna
mente à alteridade. Então, inesperadamente, os de água doce que não se pode reconhecer como
barcos retornam à colônia Z3. tal? Quando os barcos começam a se deslocar
A incorporação é um conceito bastante re- circularmente, em frente à imagem de Iemanjá,
visitado quando o assunto são os processos de sem parecer terem mais um destino a cumprir,
transe experimentados em religiões de matriz a não ser fazer esse movimento, e os afro-reli-
africana; assim, conforme José Carlos G. An- giosos agitam as águas euforicamente, envoltos
jos, na incorporação: nos pingos cintilantes, sem que isso implique
em qualquer finalidade prática, o processo de
A diferença é carregada para dentro do sujeito deslocamento do eu se dá no sentido de o ob-
a ponto deste não poder mais se suportar como jeto de louvação ser incorporado pelo próprio
tal [...]. Trata-se de uma experiência radical de sujeito que saúda, e que então saúda a si mes-
alteridade: o “outro” introduzido no “mesmo”. mo incorporado no outro e incorporado pelo
Que essa operação tenha a ver com território, a outro. Um outro que é estranho, mas que na
linguagem êmica o diz na expressão de “se ocu- estranheza e no conflito constitui a intensidade
par” – o santo, o exu, o caboclo “se ocupa” da que permite a ambos reconhecerem um traço
pessoa, faz de seu corpo um território no qual de suas identidades. A água doce é essa intensi-
pode cavalgar – o corpo é o “cavalo-de-santo”, o dade, e o poder sagrado sobre ela é o principal
terreiro é o lugar de sobreposição de territórios elemento que parece se diluir quando o territó-
(Anjos, 2006, p. 21). rio, que é a Lagoa dos Patos, se desterritorializa
para dar lugar às águas desconhecidas do mar,
Trago o exemplo da incorporação menos frente às quais o domínio da Iemanjá, da Iara
por seu caráter radical do que pelo próprio pro- e da Nossa Senhora dos Navegantes cultuadas
cesso de ceder o corpo e a consciência ao outro em Pelotas também não se substancializa.
como um “ato intelectual desterritorializante” A descontinuidade, o atravancar da procis-
(idem), a plena afirmação de um pensamento são, a saudação mútua de si mesmo e o retor-
da diferença calcado na própria “obstinação do no dos barcos à colônia Z3, o território, logo
corpo ritualístico nessa impossibilidade de pen- após o encontro das divindades, é a cosmovi-
sar” (ibidem), que é o ritual, no sentido dado são afro-religiosa colada na estrutura ociden-
por Lévi-Strauss: tal de pensamento. Portanto, calcando-se na
contingência desses rituais religiosos, pensar a
[...] o ritual representa um abastardamento do constituição do patrimônio cultural brasileiro
pensamento submetido às servidões da vida. Ele seguindo a noção de intensidades, muito mais
reconduz ou, antes, tenta em vão reconduzir as do que de essencialidades, traz arcabouços
exigências do primeiro a um valor limite que ele para a compreensão de como as referências
não pode jamais atingir, senão o próprio pen- culturais – vistas por Arantes como “[...] obje-
samento se aboliria. Essa tentativa desesperada, tos, práticas e lugares apropriados pela cultura

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Cruzamentos, territórios e patrimônio religioso | 35

na construção de sentidos de identidade [...]” constitui dos balneários Valverde e Santo Antônio,
(Arantes, 2000 apud Freire, 2005) – podem do Balneário dos Prazeres (conhecido também como
Barro Duro) e da colônia de pescadores Z3. A Lagu-
ser apreendidas e elaboradas nos cruzamentos
na dos Patos Liga-se ao Oceano Atlântico através da
de diferentes cosmovisões, sem que os sujeitos barra de Rio Grande.
envolvidos dissolvam suas identidades, mas, 2
Em Pelotas e outras cidades do Rio Grande do Sul, ao
ao contrário, afirmem-nas justamente onde o contrário do que se encontra na literatura sobre reli-
“outro” toca o mesmo. giões de matriz africana em outras partes do Brasil, o
termo “terreira” é utilizado no feminino, sendo referi-
Crossroads, territories and religious patri- do tanto às “casas de religião”, templos onde se prati-
cam tais religiões, quanto às cerimônias periódicas de
mony: about the sweetness as a cultural refe-
uma religião específica, a Umbanda. Respectivamen-
rence in the Iemanjá and Nossa Senhora dos
te, pode-se ouvir frases do tipo “Fui ao Batuque na
Navegantes celebrations on Laranjal beach, terreira do Sandro” ou “hoje tem terreira no Paulo”.
Pelotas/RS, in 2007 3
Entre os interlocutores com quem estudo em Pelotas,
o gênero da palavra “orixá” segue o gênero do deus
abstract This ethnographic study analyses – ou santo, como também são chamados os orixás es-
the religious celebration that takes place every pecíficos de cada pessoa – ao qual se refere. Por exem-
year on the February 2nd in Pelotas, the offi- plo, “a orixá de Viviane é Iemanjá” e “a santa dela é
velha, ela é filha de Iemanjá Bomi” ou ainda “Juliano
cial holiday of Nossa Senhora dos Navegantes.
é do orixá Ogum, o santo dele é um santo muito vio-
These celebrations were researched in Laranjal´s lento”. Também quando se fala dos orixás em termos
lacustrines beaches and at the Z3 fishermen set- mais genéricos, descrevendo-os, por exemplo, como
tlement located at the east coast, which is fin- forças cósmicas da natureza e da vida em sociedade,
ched by Lagoa dos Patos in Pelotas. The whole o gênero da palavra segue a mesma lógica: “Iansã é a
analysis is interposed by the notion of “Encruzi- orixá dos ventos, é a santa do movimento” e “Oxalá é
um santo sábio, ele é o orixá da clareza”.
lhada” (or “Crossroads”), suggested by José Car-
4
Vallado, 2002.
los Gomes Anjos as a replacement to the notion
of syncretism, with the aim to consider multiple
5
D’oxalá, 2003. p. 111.

entities and some kinds of religious manifesta-


6
Prandi, 2001. p. 314.
tions that cross each other during the celebra-
7
São chamados de cavalos de umbanda os devotos que
tion. That concept is based on the reflection emprestam seus corpos para as entidades (exus, pom-
bagiras, caboclos e pretos-velhos) manifestarem-se
about the ways in which the African Religious
nos rituais da religião.
Cosmovision works with difference. Moreover 8
Na Umbanda, a palavra “aparelho” quer dizer corpo
this Cosmovision allows the perception of how físico, o corpo que os cavalos de umbanda emprestam
much this logic isn´t restricted to the “terreiras” à manifestação das entidades.
(or “lawns”) but interposes identitary strategies 9
As informações acerca da missa de comemoração do
from groups apparently so contrastive as the ca- Dia de Nossa Senhora dos Navegantes e do trajeto da
tholic community and the “people of religion”. imagem da santa pela cidade são baseadas na etno-
keywords Cultural. Heritage. African religiosity. grafia de conclusão da disciplina de Antropologia II,
trabalho elaborado por Amanda Moura e Jacqueline
Bairros, alunas do curso de Turismo da Universidade
Notas Federal de Pelotas.
1
Lagoa dos Patos é a denominação popular dada à
10
A discussão trazida pelo conceito de “cruzamento”,
laguna que, além de outras zonas litorâneas da re- de Anjos, pode ser enriquecida pela análise da pesqui-
gião sul do Rio Grande do Sul, banha o bairro do sa de Sérgio Ferretti sobre sincretismo religioso, apre-
Laranjal, ao leste de Pelotas. O bairro do Laranjal se sentada no livro Repensando o sincretismo (1995).

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36 | Marília Floôr Kosby

Nessa obra, o autor traz uma discussão detalhada dos BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janei-
“usos e sentidos do conceito de sincretismo religio- ro: Ed. Marco Zero, 1983. 208 p.
so”, a partir de suas pesquisas etnográficas em São D’OXALÁ, Babalawô-Orixá Cabral. Divindades africa-
Luís do Maranhão, na Casa das Minas, terreiro de nas: África, Brasil, Rio Grande do Sul. Pelotas: Editora
Tambor de Mina, religião afro-brasileira dessa região. e Gráfica da UFPel, 1995. 252 p.
Tendo apontado os vínculos do culto aos voduns FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretis-
(divindades de matriz africana) com o catolicismo, mo: Estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo: Editora
as religiões ameríndias e o espiritismo Kardecista, o da Universidade de São Paulo; São Luís: FAPEMA,
autor agrupa o conceito de sincretismo em algumas 1995. 234 p.
variantes: convergência, paralelismo, mistura e sepa- FREIRE, Beatriz Muniz. O inventário e o registro do pa-
ração (quando não há sincretismo) e afirma “nem to- trimônio imaterial: novos instrumentos de preserva-
das estas dimensões ou sentidos do sincretismo estão ção. In: CERQUEIRA, F.V. Cadernos do LEPAARQ.
sempre presentes, sendo necessário identificá-los em Textos de Arqueologia, Antropologia e Patrimônio.
cada circunstância”. Apesar disso, Ferretti percebe a Laboratório de Ensino e Pesquisa em Antropologia e
impossibilidade de delimitar fronteiras precisas entre Arqueologia. Pelotas, v. II, n. 3, p. 11-20, 2005.
os elementos que elenca, como negros e aqueles vin- FUNARI, Pedro Paulo; PELEGRINI, Sandra C. A. Patri-
dos de outras tradições, e conclui que “tradição e sin- mônio histórico e cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
cretismo têm limites ambíguos, e que o sincretismo, Editor, 2006. 72p.
portanto, está presente mesmo nos grupos afro-bra- PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo:
sileiros mais tradicionais”. Assim, o autor funda seu Companhia das Letras, 2001. 591p.
argumento na perspectiva do sincretismo como estra- VALLADO, Armando. Iemanjá, a grande mãe africana do
tégia de resistência e adaptação das camadas negras Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. 260p.
marginalizadas: “A Casa das Minas [...] é ao mesmo
tempo um núcleo dinâmico de resistência cultural e
de preservação da identidade do negro”.
Agradecimentos

Expresso neste espaço a felicidade de ter a


Referências bibliográficas presença – tanto no trabalho apresentado aci-
ma quanto em meu encontro com as pesquisas
ANJOS, José Carlos Gomes dos. No território da linha
cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre:
etnográficas entre religiões de matriz africana –
Ed. UFRGS, 2006. 126 p. de minha orientadora Profa. Flávia Rieth, e da
BAIRROS, Jacqueline; MOURA, Amanda. Tem povo que amiga Viviane D’Iemanjá Bomi (Viviane Fa-
vem por fé, tem povo que vem pela barriga: estudo so- rias Dutra). Em especial, destaco a participação
bre a culinária e o artesanato de uma vila de pescadores da amiga e turismóloga Aline Martins da Silva
como atrativos turísticos, Z3, Pelotas. Sem paginação.
na pesquisa de campo, rea­lizada nas praias do
Trabalho de conclusão de disciplina – Antropologia
II – Bacharelado em Turismo, Universidade Federal
Laranjal, em Pelotas, durante todo o longo dia
de Pelotas, Rio Grande do Sul. 2007. 2 de fevereiro de 2007.

autor Marília Floôr Kosby


Mestranda em Ciências Sociais/UFPel

Recebido em 10/03/2008
Aceito para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 27-36, 2008


O trabalho de campo em uma pesquisa com executi-
vos negros: algumas considerações1
Ivo de Santana

resumo Este artigo reflete sobre o desenvolvi- tos de estudo. No campo, fazem parte de uma
mento do trabalho de campo em uma pesquisa que relação de intersubjetividade e de interação
investiga a trajetória de ascensão social de negros social com o pesquisador, tendendo a resultar
que ocupam posições de prestígio em instituições um produto novo e confrontante tanto com
da administração pública na cidade de Salvador. a realidade concreta como com as hipóteses e
Pretende-se apontar limites, possibilidades e singu- pressupostos teóricos.
laridades observadas no confronto entre pesquisador Nas considerações a seguir, refletirei sobre
e sujeitos em situação de similaridade de condições o desenvolvimento do trabalho de campo na
sócio-raciais e de contextos. Os depoimentos, co- pesquisa que ora realizo, buscando apontar
lhidos nos anos de 2005 e 2006, procederam de 20 limites, possibilidades e singularidades obser-
profissionais negros que vivenciaram a experiência vadas no confronto entre pesquisador e sujei-
de ascensão no serviço público e ocuparam postos tos pesquisados em situação de similaridades,
em que estiveram na condição de “autoridade pú- tanto de condição sócio-racial como de con-
blica” em Salvador. Observa-se que, por mais plane- textos vivenciados.
jado que se conceba o trabalho de campo, este tende A pesquisa investiga a trajetória de as-
a situações que não poderiam estar previamente in- censão social de indivíduos negros que, por
seridas em qualquer manual. Obter os depoimentos meio de concurso, ingressaram na administra-
dos informantes exige que o pesquisador demonstre ção pública, construindo singulares carreiras
sensibilidade para identificar a dinâmica mais profí- profissionais, chegando a ocupar posições de
cua para atender aos objetivos da investigação. prestígio em instituições do serviço público
palavras-chave Negros. Ascensão social. Traje- da cidade de Salvador – cidade brasileira com
tória. Trabalho de campo. Negros de classe média. maior percentual de negros na população, mas
também de limitada presença desses no topo
1
Nas Ciências Sociais, o termo “trabalho de da hierarquia social.
campo” reporta-se normalmente à fase da inves- O estudo trata de pessoas de origens mo-
tigação realizada em lugares da vida cotidiana destas que, contrariando a “trajetória modal”
onde o pesquisador efetua coleta de dados para da categoria racial em que se inscrevem, tor-
análise posterior. Refere-se à etapa essencial e naram-se profissionais de visibilidade e po-
das mais complexas das investigações quali- der na sociedade de Salvador na condição de
tativas, especialmente porque o pesquisador comandante de corporação militar, reitor de
trabalha com sujeitos sociais que, como ele, vi- universidade, corregedor-chefe de polícia, de-
venciam comportamentos nem sempre previsí- legado titular, diretor de hospital, diretor de
veis e cuja compreensão exige interpretação das faculdade, superintendente de instituição, juiz,
orientações e motivações precedentes. desembargador, dentre outros.
Com efeito, conforme Minayo (1994), no Tive como objetivo analisar as histórias vi-
trabalho de campo os sujeitos da investigação venciadas por essas pessoas de modo a conhecer
são construídos, teoricamente, enquanto obje- os caminhos percorridos, entender os significa-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-304, 2008


38 | Ivo de Santana

dos auto-atribuídos ao processo de mobilidade, as relações na Bahia são muito primárias. Enten-
bem como refletir acerca das repercussões daí da, porque as coisas têm de ficar claras. Não no
geradas. Com esse propósito, pretendi contri- sentido de que são elementares, é uma socieda-
buir para ampliar a compreensão da realidade de muito estratificada. Se você olhar na UFBA,
desses agentes sociais por acreditar que isso pu- “fulaninho” é primo de “fulano”, é irmão de “fu-
desse revelar importantes aspectos do mundo lano”, pai de “fulano”. Então, existe uma rede
social dessa parcela da população e, conseqüen- familiar fortíssima e quem é de fora, para entrar
temente, ampliar possibilidades de conheci- – seja baiano ou não –, tem certa dificuldade.
mento do conjunto da sociedade brasileira no (Carlos, 63 anos, engenheiro civil com doutora-
cenário contemporâneo. do em Paris, diretor-geral de instituição federal
Apoiei-me na escuta e nas interpretações de ensino superior)
dos relatos de 20 profissionais negros que
vivenciaram a experiência de ascensão no Outro desafio enfrentado relacionou-se ao
serviço público, ocupando postos em que fato de que a pesquisa urbana no Brasil tem
estiveram na condição de “autoridade pú- sido realizada mais freqüentemente com gru-
blica” em Salvador; seus depoimentos foram pos em situações de desvantagem social, ou
colhidos durante os anos de 2005 e 2006, seja, aqueles considerados destituídos de poder
período em que as questões raciais ganharam político e econômico, de maneira que a quan-
relevo nas discussões da sociedade face à in- tidade de pesquisas que se afastam desse padrão
tensificação dos debates das tensões raciais é bastante limitada3. Isso poderia ser explicado
daí decorrentes, como também das ações que pela opção clássica da Antropologia em pesqui-
envolvem as definições de políticas públicas sar as chamadas minorias sociais, mas também
voltadas para essa população2. em função das dificuldades de acesso às cama-
Essas pessoas integram um grupo bastante das médias e altas, assim como pelo fato de a
reduzido de indivíduos e encontram-se dis- maioria dos pesquisadores, sendo oriundos da
persas em um universo relativamente amplo classe média, nutrir certo interesse em conhecer
de instituições como também em posições hábitos, costumes e valores de uma classe social
cujo acesso nem sempre é simples. Deparei- à qual não pertencem. Tal limitação reverte-se
me, assim, com o primeiro desafio ao qual na ausência de trabalhos sobre a metodologia
seguiram muitos outros: como montar uma de pesquisa aplicada aos estudos das camadas
rede significativa de informantes, composta médias da população brasileira – especialmente
de autoridades públicas, negras, com ativi- no tocante ao segmento negro. A similaridade
dades profissionais sediadas em Salvador étnico-sócio-racial entre o pesquisador e o seu
que aceitassem participar da pesquisa? Isso objeto de pesquisa é também um tema ausente
se mostrara instigante porque Salvador é, in- no debate acadêmico brasileiro4, restringindo-
discutivelmente, uma grande metrópole com se aos encontros e diálogos informais entre os
um grande número de instituições públicas – pesquisadores negros5.
reconhecidamente provincianas e piramidais Isso posto, tecerei, a seguir, algumas consi-
na configuração de sua estrutura, além de derações sobre situações por mim vivenciadas
apresentarem certa impermeabilidade para no tocante à construção desta investigação,
o ingresso de negros em sua elite dirigente, buscando explicitar e sistematizar a experiên-
conforme expressa um dos informantes, ad- cia em distintos momentos deste trabalho –
mitindo que desde a minha inserção no campo, passando

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 37-61, 2008


O trabalho de campo em uma pesquisa com executivos negros: algumas considerações | 39

pela escolha dos entrevistados, até as dinâmi- dências e cruzamentos relacionam-se ao fato de
cas do processo da entrevista. Espero, de al- que em Salvador, há algumas décadas, não ha-
guma forma, oferecer contribuição teórica da via muitos locais de convívio e que, por isso, as
prática etnográfica em um contexto de uma pessoas estavam sempre se cruzando nas pou-
sociedade complexa, a partir da condição de cas bibliotecas, nos poucos cinemas, nas festas
insider étnico – um aspecto que percebi não populares de rua, nos eventos esportivos e em
ser muito usual nesse tipo de investigação e outras situações mais cotidianas.
que me pareceu ter contribuído para o bom Tais constatações informavam-me que eu
andamento da pesquisa. não estava participando de uma experiência na
qual havia uma diferença radical entre minha
vida cotidiana e a das pessoas que estava pesqui-
O específico etnográfico sando. Em relação ao “campo” tradicional, ou a
boa parte da literatura do trabalho de campo,
Desde o início da pesquisa, havia a consciên­ não havia apropriadamente uma “aldeia” para a
cia de que eu e os informantes compartilháva- qual eu estaria me dirigindo a fim de uma apro-
mos certas referências comuns: éramos todos ximação com o “outro”: eu pertencia à mesma
negros, partilhávamos semelhante situação sociedade dos informantes; falávamos a mesma
sócio-racial, ou seja, como eles também exerce- língua nacional; experimentáramos uma vivên-
ram posto executivo na administração pública, cia acadêmica em período próximo; comungá-
além de transitarmos no universo da camada vamos de sistemas comuns de crenças; além das
média da população de Salvador. O que não outras similaridades já mencionadas.
imaginava é que a essas similaridades muitas Ainda assim, dúvidas e hesitações inquie-
outras acrescentar-se-iam, a ponto de, em di- tavam-me: como abordar ou questionar fatos
versos aspectos, perceber-me como um insider que vivenciei junto a informantes que já eram
diante do grupo que estava pesquisando. antigos conhecidos? As questões poderiam soar
A cada nova entrevista inusitadas simila- constrangedoras, desnecessárias ou redundan-
ridades apareciam, desde o fato de que todos tes. Como me conduzir diante de fatos que, pela
provínhamos de baixos estratos sociais, tínha- minha amizade com o informante, a confissão
mos equivalentes faixas etárias (em torno de 50 ou a rememoração poderia ser algo doloroso?
anos)6, além de que, em sua grande maioria, Vale ressaltar que as dúvidas e as hesitações
nascemos, estudamos ou vivemos há longo não se comparavam às de um pesquisador estran-
tempo nessa capital – portanto, fazíamos parte geiro em um país desconhecido. Por exemplo, em
da mesma sociedade, compartilhávamos valo- determinadas situações já eram esperadas algumas
res, visões de mundo e estilos de vida (estilos das respostas que eles forneceriam, uma vez que,
por vezes diferenciados da grande maioria ne- na condição de pesquisadores, ao realizarmos ati-
gra que habita Salvador). vidades em nossa própria sociedade – e não em
A proximidade de nossas experiências am- uma sociedade estrangeira –, já temos introjeta-
pliava-se na medida em que as equivalências das indicações para entender situações nas quais
das faixas etárias e das condições sociais de as nossas percepções, interpretações e possibilida-
origem faziam com que alguns deles já fossem des ganham significados, considerando que
meus antigos conhecidos7 ou que, com freqü-
ência, descobríssemos, nas conversas, amigos e [...] o sociólogo que limita o seu trabalho à sua
conhecidos comuns. Presumo que essas coinci- sociedade está explorando o seu fundo de experi-

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ências pessoais como base de conhecimento. Ao percepção de nuances específicas do objeto de


fazer entrevistas estruturadas, utiliza o seu conhe- estudo. Assim, seguindo as orientações de Ve-
cimento de significados conseguidos através da lho (2004), exercitei a “exotização do familiar e
participação na ordem social que está estudando. a familiarização do exótico”, pois o que sempre
Terá um mínimo de sucesso garantido na comu- vemos e encontramos, embora possa nos parecer
nicação pelo simples fato de que lida com a mes- familiar, não é necessariamente conhecido e, da
ma linguagem e com o mesmo sistema simbólico mesma forma, o que não vemos e encontramos
dos seus entrevistados. Aqueles que trabalham pode ser exótico, mas até certo ponto conheci-
com técnicas estruturadas em linguagem não- do. Esse exercício se fez continuado no decorrer
ocidentais são testemunhas da dificuldade encon- do trabalho, pois acredito que estamos sempre
trada em ajustar os seus próprios significados aos pressupondo familiaridades e exotismos como
significados correntes na sociedade investigada fontes de conhecimento ou desconhecimento9.
(Vidich apud Cicourel, 1990, p. 88). Com efeito, podemos ter familiaridade
com cenários e situações sociais do nosso
Em muitas ocasiões, a condição de insider cotidiano, a exemplo do nome, lugar e posi-
favoreceu o desenvolvimento de uma atmos- ção dos indivíduos na sociedade. Contudo,
fera em que eu terminava sendo percebido, isso não implica que conheçamos o ponto
em termos de presença, como “familiar”, mes- de vista e a visão de mundo dos diferentes
mo junto a sujeitos com quem jamais havia atores em uma situação social – tampouco as
me relacionado anteriormente. Com alguns regras que estão por detrás dessas interações,
deles, poucos minutos de conversa já criavam dando continuidade ao sistema.
uma informalidade tal que invariavelmente Bourdieu (2005) também trata dessa pro-
passávamos a nos tratar por “você” ou pe- blemática, ponderando que, para livrarmo-
los próprios nomes, fazendo desaparecer os nos da “ilusão do saber imediato”, ao penetrar
personagens/papéis que freqüentemente de- no universo social, devemos fazê-lo conside-
sempenhávamos ante estranhos, fosse como rando como se estivéssemos penetrando em
autoridade pública, pesquisador, economista, algo desconhecido e estranho – tanto quan-
administrador ou advogado que éramos. A to o mundo biológico o era para o biólogo,
interação desenvolvia-se entre sujeitos ávidos antes de ter sido constituída a Biologia. Ele
por conhecimento mútuo8. argumenta que o sociólogo deve reconhecer
Também surgiram dificuldades: uma delas epistemologicamente o caráter ilusório das
refere-se ao limite temporal dos encontros que pré-noções, ou seja, buscar o seu estranha-
nas pesquisas urbanas tende a ser mais reduzi- mento, considerando que esta serve de base
do que no trabalho de campo tradicional. Na para a Sociologia espontânea, de cujas arma-
prática, isso restringiu períodos de interações dilhas os sociólogos devem buscar escapar.
importantes no sentido de aumento da con- A condição de pesquisador e membro da
fiança e maior estreitamento de cumplicidade sociedade pesquisada fez com que a todo
com alguns dos informantes. tempo eu estivesse submetido à inevitável
Em toda a pesquisa acompanhava-me o te- questão acerca do meu lugar na pesquisa,
mor de que a familiaridade com o mundo social das possibilidades de relativizá-lo ou trans-
que estava pesquisando pudesse conduzir-me a cendê-lo, a fim de poder “me colocar no lu-
naturalizações e “essencializações”, já que mui- gar do outro”. Além disso, estava consciente
tas das circunstâncias poderiam escamotear a da possibilidade de ocorrerem imprevistos,

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O trabalho de campo em uma pesquisa com executivos negros: algumas considerações | 41

coincidências e desconfortos no contato negros profissionalmente “bem-sucedidos”,


direto com os sujeitos, pois “toda pesquisa patrocinado por conhecida autoridade pública
com entrevista é um processo social, uma do Estado. Esse evento estava em sua segunda
interação ou um empreendimento coopera- edição e tinha o intuito de congregar lideran-
tivo em que as palavras são meio de troca” ças negras atuantes na cidade, com o objetivo
(Becker; Geer, 1997, p. 28). expresso de ampliar a socialização e o fortaleci-
Ou seja, não se trata de um processo mento entre si. Estiveram presentes militares,
de informação de mão única, passando do políticos, empresários, representantes do exe-
entrevistador para o entrevistado, nem tão cutivo e do judiciário, juntamente com seus
pouco de uma conversação comum, mas de cônjuges, muitos destes de pele mais clara. No
um confronto direto em que nem sempre é decorrer do evento, me aproximei de diversos
tão simples a tarefa de ganhar a confiança de grupos e em nenhum momento percebi qual-
“estranhos” – ainda que alguns deles fossem quer referência ao tema das relações raciais,
antigos conhecidos. embora todos soubéssemos a razão de estar ali.
Afinal, a própria denominação do evento já de-
monstrava o seu caráter racializador. Por isso,
A aproximação com os sujeitos tornou-se representativo para mim quando, em
dado momento, ao anunciar-se como anfitrião
A tarefa de abordar indivíduos com quem do próximo encontro, um dos convivas discur-
não se mantém relação de proximidade e ob- sou sobre a importância e a “oportunidade ím-
ter depoimentos pessoais para um trabalho par de estarmos em reuniões como esta, onde
de pesquisa não é um exercício simples, e os podemos cada vez mais nos fortalecer”.
obstáculos tornam-se ainda maiores quando Atento às situações que se desenvolviam ao
se trata de autoridades públicas com quem redor, fui tomado por uma série de indagações:
jamais mantivemos algum nível de aproxi- por que apenas naquele momento isolado,
mação. As barreiras humanas que se impõem quase ao final do encontro, houve uma maior
transpor (porteiros, recepcionistas, secretá- explicitação da conotação racial que permeava
rias e outros), além da imponderável escassez a realização do evento? Qual a razão de tanta
de tempo dos informantes, tendem a tornar sutileza para explicitar algo que era do conhe-
a tarefa exaustiva e de grande complexidade. cimento de todos? Sob que aspectos o evento
Algumas circunstâncias serviram-me sinalizava estar havendo entre os negros uma
como facilitadoras no contato com os in- consciência de “classe média negra”? O que o
formantes, a exemplo da oportunidade de evento poderia trazer-me como antecipação no
recorrer à minha rede de amizades pessoais, tocante à vivência dessas pessoas? O que estava
para mediar a aproximação. A minha dis- por trás da necessidade de se marcar um próxi-
posição para comparecer a eventos, formais mo encontro? Era um momento concreto de
e informais, onde presumia que negros de fortalecimento de laços, tomada de posições
classe média estariam presentes também ga- ou de possibilidade de ostentação? O que isso
rantiu a aproximação com outros potenciais revelava do momento atual dos indivíduos ali
sujeitos de investigação. presentes? Com que freqüência demandavam a
Destaco a participação em julho de 2005 participação em eventos semelhantes? Como
no “Almoço dos negros-categoria”, um even- a ausência de outros eventos correlatos re-
to de cunho privado que reuniu uma elite de percutia nesses indivíduos? Que sentimentos

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e reações tais encontros desencadeavam em Domingues, reconhece a definição e a legitimi-


cada um e de que modo isso estava ligado dade deste grupo como camada social ao espe-
a cada trajetória individual? Em que aspec- cificar seus possíveis enquadramentos.
tos essas trajetórias assemelhavam-se, apre- Em estudo mais recente, ao se referir à
sentavam traços díspares, ajudavam-se ou não-existência de uma “classe média negra”,
tensionavam-se? Essas indagações surgidas Figueiredo (2002) conclui que os negros que
no decorrer do evento acompanharam-me ao ascendem não potencializam uma classe he-
longo de toda a investigação. gemônica, ou seja, não formam grupos que a
Em eventos de naturezas diversas de que fortaleça como tal. Não se comportam, nem se
participei pude, na prática, constatar o quão identificam como uma classe em si, tampouco
reduzido é o número de profissionais negros, como um grupo étnico. Diante do exposto, en-
bem como a interação entre eles. Configuram tendo necessário uma discussão mais profunda
a existência de uma “elite negra” expressão pro- sobre o que se convencionou chamar de “elite
ferida por um dos informantes, mas que a meu ou classe média negra”.
ver, não se constitui enquanto grupo social. No que diz respeito à aproximação com os
A expressão “elite negra” é também utilizada sujeitos, aproveitei da minha presença no al-
por Pereira (2001) que a utiliza para denomi- moço mencionado e ali mesmo efetuei alguns
nar uma reduzida parte da “população de cor” contatos. Em relação aos demais, sempre que
que, graças ao grau de instrução, a êxitos eco- possível, busquei obter uma introdução pes-
nômicos e profissionais, logrou distinguir-se da soal a partir de intermediários ou conhecidos
grande massa negra. comuns e devo ressaltar que, utilizando esse
Aqui vale retomar Fernandes ao chamar a procedimento, a cooperação mostrou-se mais
atenção para os critérios subjetivos de auto- eficaz; quando não o utilizei, por exemplo, ti-
avaliação social, adotados por negros e mulatos nha de me apresentar diretamente e quase sem-
em ascensão. Para ele, tais critérios só recebem pre enfrentei dificuldades, como as situações
franco reconhecimento, ainda assim, “como de constrangimento passadas com a secretária
algo legítimo e indiscutível, apenas por aqueles de uma informante. Ela insistia para que lhe
que se identificam como a elite ou a alta so- fornecesse previamente o roteiro da entrevista
ciedade dessa população” (Fernandes, 1965, p. e, com a minha recusa, dificultou ao máximo o
160). Em resumo, Pereira e Fernandes enten- encontro, deixando-me por vários dias aguar-
dem que o grupo de negros em ascensão não dando uma data na sua agenda.
chega a constituir uma camada social definida A aproximação só se tornou possível gra-
e amplamente reconhecida. ças à intermediação de um colaborador, que
Domingues (2001) apresenta outra forma me forneceu o número do telefone celular da
de pensar a “elite negra” onde o termo exibe informante, em cujo contato telefônico mos-
três sentidos específicos: “político”, à medida trou-se surpreendentemente disponível no dia
que este grupo se configurou como dirigente seguinte e que presumo não teria acontecido se
político da comunidade e foi aceito como tal não tivesse obtido ajuda externa.
pelos brancos; “educacional e cultural”, à me- A influência das apresentações pessoais e
dida que, alfabetizado, é considerado “cultu- de intermediários sugere a grande significação
ralmente evoluído”. E, por último, um sentido dos laços pessoais na sociedade baiana. Nes-
“ideológico” ao reproduzir muitos valores ideo- se aspecto, nas situações que experimentei ao
lógicos da classe dominante. Nessa perspectiva, longo da pesquisa, os laços mostraram-se fortes

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o suficiente para abrir portas, ao ponto de em à idade, ao sexo, à naturalidade, ao estado civil,
pouco tempo transformar desconhecidos em à escolaridade, à residência, à quantidade de fi-
pessoas com relativo grau de intimidade. lhos, à instituição onde trabalhava, ao tempo
Vale registrar que uma das pessoas indica- de serviço, ao ano em que prestou concurso,
das previamente questionou a sua identifica- aos postos ocupados, à renda familiar e infor-
ção como negra ao ser abordada no contato mações diversas sobre a instituição, a família
telefônico. Denotando certo constrangimen- construída e a de origem.
to, ela indagou se eu não a estava confundin- Além desses elementos, pedia ainda um
do com outra profissional de sua instituição curriculum vitae; retirava informações dele pró-
e quando lhe respondi que fora aquela profis- prio, evitando possível perda de tempo com
sional quem a havia indicado, ela reagiu di- o que poderia ser obtido de forma simples e
zendo: “Bem, eu sou mestiça, e mestiça pode inequívoca, a exemplo da trajetória escolar e
ser considerada negra, né?! Então, pode vir profissional. Com base no contato, na “ficha”
que lhe atendo”. Percebendo em sua fala um e no currículo, poderia aferir se o perfil do su-
evidente incômodo ao efetuar essa coloca- jeito enquadrava-se à investigação.10 Ao mesmo
ção, refleti sobre o quão intrincado mostra- tempo, definia linhas de orientação para a ses-
se o confronto entre a auto-identificação e a são de entrevista propriamente dita que, às ve-
forma como algumas pessoas são vistas pelo zes, já se iniciava naquela ocasião, dependendo
outro na sociedade brasileira. da disponibilidade de ambos11.
Ainda assim, fui anonimamente ao seu escri- O conhecido efeito “bola de neve” foi um
tório e, após identificá-la, decidi não incluí-la no grande facilitador da abordagem, ou seja, os
grupo pesquisado, dado o seu fenótipo de pele primeiros entrevistados indicavam outros e
clara e olhos verdes, embora outros caracteres isso, de certa maneira, fornecia-me duas in-
indicassem sua possível ascendência negra. Nas dicações valiosas: a primeira era que havia
escolhas que fiz, excluí os mulatos ou mestiços nesses executivos um contido interesse em
e privilegiei aqueles que pelos caracteres feno- relatar suas trajetórias; a segunda, que a con-
típicos pareceram-me ter menos chances de es- dução da relação com eles estava sendo bem-
caparem da categoria “negros” e que, afora isso, sucedida, levando-me a encarar as sessões de
também se auto-identificavam como tal. entrevistas seguintes com menos ansiedade
No primeiro contato, fornecia a explicação e afastar pré-noções que me acompanhavam
sobre a minha proposta de estudo e, geralmen- desde o início da pesquisa.
te, em algum ponto dessa troca introdutória, o Outra fonte de informação deveria ser
sujeito já revelava algum aspecto de sua própria mencionada, já que serviu de complemento e
experiência, que eu usava como brecha para pe- forneceu dados para a verificação de fatos que
netrar na sua história de vida. Em geral, nesse foram relatados nas entrevistas. Como os infor-
primeiro contato não se efetuava qualquer gra- mantes eram pessoas bem relacionadas com a
vação. Solicitava o preenchimento da “ficha de organização econômica, social e política local,
identificação”, que me permitia traçar o perfil eu acompanhava, sistematicamente, nos jor-
do futuro entrevistado e da sua instituição e nais e outras publicações as notícias sobre eles e
também obter dados que, de outra forma, po- de suas organizações12. Esse tipo de informação
deria causar certos desconfortos, como a idade mostrou-se valiosa, pois muitas das operações e
das mulheres, a renda familiar e o endereço re- atos pessoais, apesar de sua aparente privacida-
sidencial. Na ficha constavam dados referentes de, tornavam-se conhecidos, “uma privacidade

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que é, na verdade, sempre potencialmente e questões – especialmente porque, destinando-


propositalmente pública”, conforme afirma Le- se a um trabalho acadêmico, a pesquisa, em
eds (1978, p.74). termos objetivos, não lhes traria, aparentemen-
te, retorno algum. Calculava, então, encon-
trar sujeitos avessos a relatar fatos nem sempre
As pré-noções confortáveis, como as relações raciais ou infân-
cias de pobreza. Afinal, no cotidiano, poucas
Percebi que antes de me aproximar mais pro- vezes presenciamos indivíduos dessa categoria
fundamente dessas pessoas, e sem me dar conta, reportando-se a tais fatos. Isso se faz evidente
já havia desenvolvido uma série de premissas a seguir, no depoimento de um ex-ajudante de
negativas a respeito delas. Conforme Bourdieu pedreiro que se tornou comandante de impor-
(2004), tais pressupostos devem ser ostensi- tante corporação militar na Bahia.
vamente recusados no decorrer da pesquisa, o
que implica em “lutar metodicamente contra a Você está me entrevistando desde aquele dia e a
ilusão desse saber imediato” e explicitar os pres- primeira vez que eu estou repassando meu passa-
supostos assumidos inconscientemente a partir do, de fato, é com você. Eu nunca fiz isso, nunca
dos quais a “Sociologia espontânea ” engendra tive ninguém pra confidenciar. Até porque uma
essas pré-noções (Bourdieu, 2004. p. 23). das coisas que eu pouco faço é falar sobre mim.
Consciente disso, esforcei-me para refletir Não é nem por modéstia, poderia ser até por
sobre as minhas próprias impressões e exercitei medo de querer falar e de repente ser interpre-
a vigilância epistemológica, procurando am- tado como sendo muito pretensioso, se achando
pliar a consciência dos meus valores e da in- demais. Então, eu não gosto de falar do passado
fluência exercida tanto sobre mim como sobre que eu fiz, eu não falo nem pra minhas filhas,
a pesquisa. Mesmo sabendo que toda pesquisa nem como vítima, nem o que eu fui. Até pelo
é precedida de certos valores que não são pos- fato de aprender a esconder o passado de vítima,
síveis se despir por completo, empenhei-me pra não denotar fraqueza ou inferioridade, eu
no sentido de realizar a pretensa “neutralidade aprendi a não falar do passado. Aí, resultado: é a
axiológica” proposta por Weber (1995) e con- primeira vez e você está fazendo um grande bem
fesso não ter conseguido. Como afirma Franz pra mim. Pra mim está sendo o reconstituir da
Boas, antropólogo culturalista americano, “os minha vida. Eu nunca tinha entrado tanto no
nossos olhos são treinados para enxergar sob meu passado como você está me fazendo entrar
o prisma das lentes da nossa própria cultura”, agora. Então, você está fazendo um grande bem
logo, não há como retirar o olho, mas sim usá- pra uma pessoa, porque está me fazendo recons-
lo como filtro, observar a realidade com luneta, tituir tudo isso e talvez, a partir de agora, eu não
e não com microscópio. tenha mais medo de falar disso pra ninguém,
Nos primeiros contatos diretos sempre me até pra as minhas filhas. Está na hora de eu con-
acompanhavam certas impressões eivadas de versar. (Norberto, 53 anos. Mestre em ciências
preconceito, expressos na minha expectativa de militares. Comandante de corporação militar
encontrar indivíduos defensivos e formais por em Salvador.)
excelência. De igual maneira, previa enfrentar
profissionais arrogantes, “escorregadios” e há- Outra pré-noção estava ligada à dificuldade
beis na dissimulação, como também “melin- de agendamento das entrevistas, pois acreditava
dráveis” ou dispostos a estabelecer limitações às que os informantes buscariam demonstrar-se,

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constantemente, ocupados; sendo assim, não com pesar, como a seguinte reflexão sobre uma
poderiam conceder mais do que breves entre- situação de discriminação passada, ocorrida no
vistas e que isso me imporia permanente tensão decorrer da formação profissional:
no sentido de exercitar a máxima objetividade
e o abreviamento das questões. Poxa vida! Eu, neste momento, consigo perce-
Em geral, desde o primeiro contato telefôni- ber algo que jamais tinha me ocorrido. Eu esta-
co, a maioria já se mostrava cordial e receptiva, va sendo profundamente discriminado naquela
acolhendo satisfatoriamente a idéia da pesquisa ocasião. Agora eu vejo isso com clareza e posso
como algo prestigioso e procuravam estendê-la falar com você. Talvez antes eu não quisesse ad-
a outros pares. Isso ficava claro quando me in- mitir, dizer, mas agora eu digo. (Sílvio, 55 anos,
dicavam outros informantes potenciais, levan- Comandante de corporação militar em Salva-
do-me a supor que, em face da pesquisa estar dor)
ligada à universidade, meu interesse por eles
não apenas representasse a legitimação da posi- Saber-se negro e os significados daí decorren-
ção de prestígio que ocupavam, como também tes nem sempre é o suficiente para compreender
que havia por parte deles uma representação com profundidade as formas ambíguas como o
positiva da instância acadêmica, como se refere racismo incide no Brasil; do modo camuflado
umas das informantes como se apresenta e que faz com que muitas
situações não sejam percebidas (ou sejam cons-
se eu tivesse outro tipo de suporte, de condições, cientemente ignoradas até mesmo pelas suas ví-
eu teria feito mestrado, eu teria feito doutorado, timas) no momento em que elas ocorrem.
eu sei que hoje seria uma excelente professora A relação com os informantes eliminou
em qualquer universidade do País, eu não con- muitas pré-noções, além daquelas relaciona-
segui me realizar nessa parte, mas também eu já das à idéia corrente de “autoridade pública” ou
fiz o que eu nem poderia sonhar [...] (Noélia, 54 do perfil tradicional sobre negros em cargo de
anos, desembargadora federal). prestígio; levava também para o campo uma
série de outras crenças, como a de que em uma
Dentre as pré-noções negativas que eu carre- situação de entrevista os homens, em relação
gava sobre o perfil “tradicional” dos negros em às mulheres, estariam avessos a falar sobre ex-
posição de “prestígio” no serviço público, destaca- periências mais traumáticas13. Isso também se
se a que se reportava aos militares e profissionais mostrou infundado, pois, em geral, as pessoas
das instituições de segurança pública. Supunha achavam proveitosa a oportunidade da entre-
que, principalmente a estes, incomodariam as vista e entusiasmavam-se ao relembrar seus co-
questões sobre racismo, pobreza ou dificuldades tidianos de dificuldades, as estratégias pessoais
pessoais, e a ocorrência de fenômenos dessa espé- e familiares utilizadas no percurso, os recuos,
cie na vida de cada um seria predominantemente avanços, persistências e conquistas.
negada, minimizada ou repelida.
Contudo, relatos profundos acerca da vi-
vência pessoal foram obtidos dessas pessoas – Os informantes da pesquisa
ainda que algumas das falas fosse entremeada
de exclamações do tipo “É engraçado que eu Os informantes variaram muito, desde os
esteja falando isso aqui agora, pela primeira vez muito falantes aos relativamente lacônicos ou
na minha vida”. Ou mesmo exclamações ditas “desconfiados”, cuja descontração só se con-

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sumava mediante estímulos gestuais ou orais am baixo ou nenhum grau de escolaridade e


com os quais eu tentava ganhar a confiança e exerciam atividades que exigiam baixa qualifi-
fazer prosseguir os relatos. Havia também os cação, como pedreiros, funcionários públicos
perspicazes, que volta e meia estavam a ques- de baixo escalão, motoristas, barbeiros, em-
tionar minha presença diante deles – forçando pregadas domésticas, lavadeiras, vendedoras
que eu me percebesse como sujeito objetivan- ambulantes. Apenas três mães alcançaram o
te – enquanto parte também significativa da segundo grau, duas delas formaram-se em pro-
pesquisa, tal como refere Bourdieu (2004). De fessora primária e outra se formou em auxiliar
uma maneira geral, não se furtaram a revelar de enfermagem quando os filhos já estavam
informações importantes, embora nem sempre crescidos. Os informantes estudaram em esco-
isso acontecesse nos primeiros momentos ou la pública de boa qualidade e, em sua totalida-
de forma direta. Algumas vezes as informações de, concluíram o ciclo completo de educação
eram repassadas por meio de metáforas, eufe- formal, ingressando na universidade pública
mismos e, até mesmo, por “personagens” que em cursos como Direito, Medicina, Estatísti-
meus interlocutores se travestiam. ca, Oficial das Forças Armadas, Engenharia,
Apresentarei, a seguir, uma breve caracte- Letras. Sobressaiu o alto número de cursos
rização dos informantes14, ou seja, um resu- de especialização realizados por essas pessoas,
mo de cada entrevista em particular, tomada inclusive cinco deles fizeram mestrado e um
como um todo homogêneo, em que são acen- concluiu o doutorado fora do País.
tuados os elementos considerados por mim No serviço público ingressaram por con-
relevantes para contextualizar a população. curso e, no momento da pesquisa, ocupavam
Lembrando Clifford (1998), há aqui a preten- posições estratégicas em suas organizações,
são de que esses indivíduos não desapareçam representando-as publicamente, controlando
totalmente no resultado final do trabalho, um recursos, gerenciando pessoas e exercendo pa-
fato que seria totalmente passível de aconte- pel central nas decisões e nas ações da institui-
cer. Tal preocupação tem um maior sentido ção que integravam. Nessa condição, realizam
na medida em que me refiro ao pensamento as experiências de convívio no interior das
“geral” de um conjunto de agentes sociais camadas médias, bem como de ambigüidade
que teve como base um processo de pesquisa, nas relações com seu mundo de origem e com
cujos dados foram tratados “fora do campo” e os novos vínculos decorrentes da nova con-
traduzidos em um texto que se encontra sepa- dição social. Ou seja, os processos de mobi-
rado das situações discursivas que são típicas lidade levaram essas pessoas a migrarem para
do trabalho de campo. logradouros de melhor infra-estrutura que os
Os sujeitos pesquisados encontram-se na bairros proletários de suas origens. De igual
faixa etária entre 40 e 63 anos, sendo que os modo, passaram a conviver com pessoas de
dois casos extremos só incidem cada qual ape- nível social mais elevado, abrindo caminhos
nas uma vez15. A maioria deles tem sua idade para uma nova escala de vivências e experiên-
concentrada entre os 50 e 55 anos; provem de cias nem sempre confortáveis.
famílias modestas, compostas em sua maioria A esse respeito, uma informante narrou o
de muitos membros, algumas delas chegam a incômodo que a presença de seu grupo fami-
ter 15 membros entre pais, filhos e parentes liar causava aos vizinhos no condomínio onde
convivendo em espaços exíguos. Os chefes de passou a residir, enfrentando ameaças e ofensas
família, rígidos no controle da casa, possuí- racistas, a ponto de deixarem uma carta ofen-

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siva em baixo de sua porta. Decidida a não de trabalhar em empresas privadas, antes do
mais tolerar esse tipo de atitude e “disposta a emprego público, deixando antever que a tran-
dar uma lição” em quem lhe deixou tal escrito, sição da escola para o trabalho formal se deu
ela chegou a mover uma ação judicial contra de forma automática e linear, como também a
o condomínio que, no período da entrevista, importância em suas vidas do “trabalhar para
aguardava decisão do Ministério Público. Ou- o Estado”, seja em função do caráter discricio-
tra informante assim narrou sua experiência de nário dessas instituições ou da segurança que
adaptação aos padrões da nova convivência: atribuem a essa modalidade de emprego, mas
também pela expectativa de que em relação à
Ocorreram situações pontuais comigo. Se, por empresa privada haveria maiores possibilidades
exemplo, me convidavam pra ir a um evento, para ascender socialmente. Essa expectativa
eu cansei de ir exageradamente arrumada, en- estimulou-os a fortalecer seus currículos, bem
quanto o evento era uma roupa mais esporte. como a ter redobrada dedicação com as rela-
Eu tinha medo de perguntar. Eu cansei de ir ções e atividades profissionais.
em jantares e ficar até com fome, porque quan-
do vinha algo como aquele talher de lagosta,
que eu morria de medo de enfiar o negócio e a O roteiro de entrevista
lagosta voar, então, eu preferia não comer. Se
um dos pratos era lagosta, então eu dizia que Na elaboração do roteiro de entrevistas
tava de dieta e tal. Então, realmente era uma busquei captar o processo de desenvolvimento
dificuldade, uma pressão, muito cheia de me- dos indivíduos, desde sua origem familiar até
dos, muito cheia de inseguranças. Muitas vezes chegar a posição conquistada, com suas espe-
deixei de comer, deixei de sair por medo de ir cíficas tensões e formas de sociabilidades, ave-
com a roupa inadequada, certo? Ficava sempre riguando os seguintes aspectos: a) Vida pessoal
esperando todo mundo comer pra depois co- – características socioeconômicas da família
mer. Ficava com medo de falar alguma coisa de origem, influência familiar na formação
errada. Então, sempre a gente passa por... por... educacional e profissional, trajetória escolar,
por essas dificuldades e vai aos poucos tentan- sociabilidades na infância e adolescência, com-
do moldar. O jeito é você procurar se informar, posição da família construída, dentre outras;
instituir o talher dentro de casa. Instituir uma b) Vida profissional – indicações sobre a vivên-
outra postura pra poder estar mais tranqüila. cia no trabalho; c) Visão de mundo a partir
Quando eu saí a primeira vez com meu marido da ascensão social – influência do processo de
foi muito sofrido. Ele é branco e tinha uma ascensão individual no próprio sujeito como
situação financeira melhor do que a minha, e também no seu entorno, em uma tentativa
as roupas? Eu tinha medo de estar com uma de apreender manifestações identitárias e de
roupa inadequada. Quando eu fui jantar a pri- consciência étnica desses indivíduos.
meira vez, na casa dos pais dele, eu não comi. Sistematizei as questões enquadrando-as em
Eu não aproveitei porque eu tinha medo de ser blocos temáticos no intuito de facilitar a toma-
tratada mal, eu tinha medo [...](Carolina, 39 da dos depoimentos e de registrar uma seqü-
anos, Diretora Geral de Hospital do Estado) ência lógica da história de vida dessas pessoas.
Cumpre destacar que em nenhum momento
À exceção dos militares, todos os demais da prática da entrevista isso foi totalmente pos-
informantes realizaram uma breve experiência sível, dado à variedade de informações e, prin-

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cipalmente, porque as pessoas possuíam formas tes. Novas pistas surgidas durante a própria
diferentes de organizar seus discursos. A maio- pesquisa invocaram outras indagações e exigi-
ria delas enveredava por se alongar nos relatos, ram a reformulação de questões no sentido de
às vezes antecipando fatos que deveriam ser melhorar o rendimento do questionário.
abordados na seqüência.
No caso dos sujeitos que de início mos-
travam-se reticentes ou lacônicos, seguia O caderno de campo
mais ou menos o roteiro metodicamente.
No entanto, com as pessoas mais prolixas, O caderno de campo foi um instrumento
utilizava um modo diferente de condução fundamental nessa fase da investigação, servin-
da entrevista: na medida do possível, eu os do de suporte à transcrição dos dados registra-
deixava expressar-se livremente, efetuando dos no gravador. Sua relevância fez-se patente
pontuais direcionamentos. Havia momen- ao permitir que eu registrasse as impressões
tos em que o meu interlocutor, mergulhado ocorridas na etnografia do dia-a-dia e que, por
em sua história, sentia-se perfeitamente à meio dessas anotações, pudesse reconstituir
vontade para evocar recordações e, por lon- partes perdidas de algumas gravações16.
go tempo, emendava uma história atrás da As anotações nem sempre eram tomadas no
outra, discorrendo sobre suas experiências, momento da entrevista, pois em muitos casos
resgatando, espontaneamente, fatos que ja- elas distraíam o interlocutor que, preocupado
mais haviam sido revelados a outras pessoas, com o que eu estava escrevendo, parecia per-
como posteriormente me confessaram. Eu der um pouco a espontaneidade na exposição.
o acompanhava em seu discurso, evitando, Além disso, precisava estar atento à coerência
sempre que possível, interrompê-lo em suas de muitas das respostas face às freqüentes con-
narrativas, mesmo considerando que algu- tradições que eu percebia nos discursos e que
mas informações poderiam ser irrelevantes me interessavam esclarecer. Quando impres-
para a investigação. cindível, anotava os tópicos mais importantes,
Deixando muitas dessas “irrelevâncias” deixando para registrar as impressões captadas
serem ditas, e exercitando o interesse sobre nos momentos imediatamente seguintes e fora
elas, pude, em alguns casos, deduzir infor- do contexto da entrevista.
mações bastante significativas para a in- Conforme Montenegro (1992), ao reme-
vestigação. No entanto, houve momentos morar acontecimentos, temos a consciência
em que para não responder a uma questão de que estamos ensinando ao ouvinte como
proposta o informante, hábil e intencional- enfrentar situações semelhantes, efetuando
mente, desviava o assunto, passando a falar um convite à participação na história e ao
de temas de seu interesse e que fugiam ao envolvimento no que está sendo contado. As-
objetivo da pesquisa, forçando-me a inter- sim, era comum perceber que o informante,
rompê-lo, reconduzindo ao roteiro com a em sua narrativa, parecia (conscientemente
argumentação de que “aquele tema seria tra- ou não) incorporar um personagem que ele
tado mais adiante”. desejava que eu supusesse ser ele. Por isso, eu
Na medida em que as entrevistas se suce- procurava estar alerta o bastante para registrar
diam, o roteiro teve que ser modificado, pois os mínimos detalhes. Mesmo consciente de
certas questões mostraram-se improcedentes, e que essas observações também pudessem não
novos questionamentos tornaram-se pertinen- refletir a realidade, anotava as ênfases feitas,

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O trabalho de campo em uma pesquisa com executivos negros: algumas considerações | 49

expressões faciais, sinais de alívio, de preocu- buscar sempre dar testemunhos “socialmente
pação e outros gestos como possíveis chaves aceitáveis”. Nesses casos, adotei como estratégia
para entender coisas mais básicas. voltar à questão em outro momento18, dando-
lhe nova roupagem, a fim de obter informações
que me pareceram mais coerentes com as de-
O local das entrevistas mais falas do entrevistado19.

Aos interlocutores foi dada a liberdade da


escolha do local e esta, em sua grande maio- A tomada de depoimentos
ria, recaiu sobre os gabinetes de trabalho. Nem
sempre esses espaços mostraram-se adequados, O momento da tomada de depoimentos
por conta de interrupções, tais como telefone- constituía-se em um verdadeiro espaço de ob-
mas, visitas de terceiros à sala onde se realizava servação etnográfica. As diversas dimensões da
a entrevista ou mesmo o cumprimento de afa- interação, para além dos dados fornecidos pe-
zeres profissionais17. O lar do informante, em- los informantes, tornavam-se elementos empí-
bora considerado por muitos autores como a ricos relevantes, me faziam conferir significados
melhor opção, em alguns casos mostrou incon- aos silêncios de constrangimento, às omissões,
veniências, como a presença de familiares que bem como às dispersões de narrativas. Essa
provocavam a inibição do depoente, o incômo- mesma atitude era adotada frente aos suspiros
do e dispersante ruído de cachorros latindo no resignados e mesmo a uma espécie de prazer
jardim, a inesperada chegada de visitas, as in- demonstrado em discorrer sobre determinados
terrupções do cotidiano – como telefones e, até assuntos em detrimento de outros.
mesmo, a presença da televisão, apenas ligada e O início de cada sessão era carregado de
muda na sala vizinha à da entrevista. Para o pes- tensões, certamente em função das expectati-
quisador, tratam-se de situações embaraçosas, vas que ambos partilhávamos sobre o proces-
cujo trato requereu certa dose de perspicácia e so da entrevista e, para atenuá-las, começava
sutileza para minimizar os transtornos, afastar tecendo comentários sobre amenidades, pois
incômodos e até mesmo eliminar barulhos da a partir daí ficava mais fácil passar ao registro
rotina do lar, que interferiam na gravação. das experiências. Na seqüência e com o devi-
No que tange à opção lar ou ambiente de do consentimento, eu ligava o gravador, pe-
trabalho considero que ambos possuem seus dindo para que a pessoa falasse, inicialmente,
prós e contras e que o melhor rendimento ocor- de suas relações familiares de proveniência e
re quando estamos a sós com o informante, em de sua infância.
ambiente calmo, sem fatores dispersivos ou pas- Nas primeiras horas, o tom de voz era sem-
síveis de causar interrupções (o que nem sempre pre mais contido, e as respostas eram mais
foi possível). Em ambientes dessa natureza, esta- concisas. O clima tornava-se mais formal, cer-
belecia-se uma atmosfera de maior confiança e, tamente, pela presença do gravador, mas acre-
por conseguinte, de maior franqueza por parte dito também pela expectativa de incômodo de
do informante. Por exemplo, em duas situações algumas lembranças e da possibilidade de se
diferentes, a presença da esposa e a do filho não verem expostos em seus passados de pobreza.
só inibiu a franqueza, como também provocou Ciente disso, procurava fazer com que a
a dispersão e, diria ainda, parece ter exercido conversa fluísse, e o objetivo deixava de ser a
uma sutil pressão no sentido de o informante busca de informações ou evidências que va-

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lessem por si mesmas, mas fazer um registro tos referem-se, nesse caso, às peculiaridades raciais
“subjetivo” de como meu informante olhava ou culturais). Nesse plano periférico, as relações
para trás e enxergava a própria vida em sua sociais e individuais no Brasil são realmente
totalidade ou em uma de suas partes. Prestava muito cordiais, pois a cordialidade é um valor
atenção no modo como falava sobre ela, como positivo muito cultivado no País (Borges Pereira
a ordenava, a que dava destaque, o que deixava apud Barbosa 1997, p. 217).
de falar, as palavras que escolhia. Na medida do
possível, sutilmente, anotava tais observações, Presenciei respostas evasivas e silêncios
e isso, indubitavelmente, ajudou na compreen- que falavam por si sós às perguntas que fa-
são da complexidade daqueles percursos. zia. Também enfrentei situações nas quais
A entrevista levava as pessoas a expor aspec- percebi o desconforto do informante em se
tos de suas vidas privadas e, por isso, eu con- ver conduzido por um “intruso” a se despir,
tava com a eventualidade de ocorrer melindre ainda que momentaneamente, do papel de
ou constrangimento de algum entrevistado ao “autoridade pública” que representava coti-
ser questionado sobre algo que lhe fosse muito dianamente. Exercitei ao máximo o autopoli-
doloroso revelar. As considerações de Nogueira ciamento, fingindo ignorar e/ou silenciando
(1985, p. 86) alertaram-me para ter precaução diante de omissões, de tentativas de suavi-
ao abordar “certos temas” e também havia um zação de passados dolorosos e de evidentes
fato concreto: em pesquisa realizada no ano de sentimentos de vergonha por humilhações
1999, junto a instituições bancárias de Salva- sofridas. De igual maneira, assim agia quan-
dor, vivenciei a relutância de prepostos do De- do percebia atitudes de controle sobre o que
partamento Pessoal em apontar os executivos falar, como também das tentativas de de-
negros do corpo funcional, temendo melindres monstrar prestígio dos “esquecimentos” e/ou
por parte desses profissionais, em razão de te- de certas contradições nos relatos.
rem sido classificados nessa categoria racial. Experimentei momentos de tensão e em-
Pediam-me para ser cuidadoso ao comentar baraço diante dessas ocorrências, mas também
sobre quem fez a indicação (Santana, 1999). sentimentos de compaixão ao escutar relatos de
Constatei, ainda, que a totalidade dos entre- cenas constrangedoras que me incomodavam,
vistados mostrou-se avessa e desconfortável seja pelo seu conteúdo dramático, seja por
ao tocar nos chamados “temas delicados”20, e revolverem em mim indesejadas lembranças.
os constrangimentos daí decorrentes levaram- Também tive momentos de prazer ao inteirar-
me a refletir sobre a perversidade do mito e da me de histórias vitoriosas de conquistas dos
crença no paraíso racial, evidenciada, inclusive, meus informantes, assim como das inesperadas
nos “interditos”, como lembra Borges Pereira coincidências de pessoas e fatos comuns que
ao apontar que: partilhávamos em nossos percursos de vida.
Tudo isso me fez pensar sobre como os ne-
o mito da democracia racial, do qual o país mui- gros que ascendem ainda se configuram como
to se orgulha, expressa-se e comprova-se através um caso emblemático, considerando a tradição
de certas evidências cuidadosamente seleciona- da Antropologia que faz da etnografia a sua
das, entre elas a da existência de um sistema de marca de distinção. A tradição da pesquisa et-
etiquetas extremamente polido, que preceitua nográfica, dentro da qual também me formei,
não ser de bom tom, ser indelicado com as pes- foi, em princípio, pensada para ser exercida
soas fazendo referências a seus “defeitos” (defei- entre objetos de pesquisa em situação de infe-

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rioridade em relação ao observador – diferen- tuação da entrevista para se fazerem ouvir, levar
temente das condições em que se estabeleceu para os outros sua experiência e até mesmo uma
esta investigação. ocasião para se explicarem.
Nesse sentido, pude inspirar-me em poucos
dos etnógrafos aqui citados, já que, por vezes, uma ocasião excepcional que lhes é oferecida
buscando atender satisfatoriamente aos objeti- para testemunhar, se fazer ouvir, levar sua ex-
vos da pesquisa, vi-me obrigado a inventar es- periência da esfera privada para a esfera pública;
tratégias de ação no confronto com os sujeitos uma ocasião também de se explicar, no sentido
investigados ou adaptá-las aos instrumentos mais completo do termo, isto é, de construir seu
metodológicos de que dispunha. próprio ponto de vista sobre eles mesmo e sobre
Houve situações em que fui instado a ado- o mundo, e manifestar o ponto, no interior des-
tar uma postura mais ativa como entrevista- se mundo a partir do qual eles vêem a si mesmos
dor: às vezes ponderando certas declarações, e o mundo, e se tornam compreensíveis, justi-
outras pedindo maiores detalhes no intuito de ficados, e para eles mesmo em primeiro lugar
criar uma situação menos artificial e permitir (Bourdieu, 1998, p. 704) .
que o entrevistado se expressasse. Em várias
oportunidades, nos diálogos mantidos, tive Testemunhei interesses explícitos e satisfa-
que interpelar ou pedir mais esclarecimentos ções evidentes em ter as experiências registradas,
quando presumia haver inconsistências nas como também distinguidas e significadas posi-
argumentações. Esse procedimento, que cos- tivamente. Pressentia a confiança deles de que
tuma ser desaconselhado por certos autores20, suas histórias de dificuldades ou de sucesso se-
tornou-se imprescindível à medida que pude riam respeitosamente valorizadas e positivamen-
perceber que o conhecimento sobre as cama- te significadas por mim. Em alguns entrevistados
das médias urbanas e sobre a elite brasileira parecia haver um certo afã de falar sobre algo
ainda é bastante reduzido. “preso” e que há muito queriam comentar. Por
As entrevistas duravam em torno de três ho- conta disso, os relatos revelam-se densos, longos
ras para cada informante, sendo que a média e, por vezes, intensos e dolorosos. Pareceram-me
de sessões era de três para cada informante. O dar um certo alívio a alguns informantes pela
interesse de alguns informantes pelo exercício oportunidade de falar e, ao mesmo tempo, re-
da memória gerava tanto entusiasmo neles, a fletir sobre um assunto que sempre reprimiram.
ponto de parecer que eles queriam prolongar Nesse caso, chego a comparar a uma auto-análi-
a sessão por mais tempo, a exemplo de um in- se provocada e acompanhada.
formante com o qual mantive contato durante Tais observações faziam-me presumir que o
quatro sessões consecutivas21. contexto atual representava um momento sin-
Percebi que alguns informantes pareciam ver gular, em que a expressão dos pontos de vista
na entrevista a “ocasião” para manifestar as re- sobre as experiências individuais dos negros
presentações sobre seus processos de existência. em ascensão social era considerada como algo
Tomavam as “rédeas” da entrevista e produziam possível e até mesmo desejável22 – era como
um monólogo que respondia às indagações ini- se refletindo os debates e as mudanças sociais
ciais, mas também me colocava outras questões. que o País tem vivenciado no tocante à ques-
Agiam da forma que Bourdieu (1998) observou tão racial brasileira, os informantes estivessem
em sujeitos oriundos de patamares mais pobres afirmando: “agora eu posso falar”. A realida-
da sociedade, que geralmente aproveitam a si- de da discriminação racial (ou talvez o desejo

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de denúncia) parece ter se imposto superando importante. Na sociedade, observa-se um maior


uma eventual vergonha de confissão. número de pessoas discutindo sobre o racismo e
Desde os anos 90, o país tem experimen- que se autodeclaram como negras25, aumentan-
tado um contexto de significativas mudanças do a visibilidade desse segmento nas estatísticas
no tocante a uma maior abertura da sociedade oficiais e demonstrando que o contexto exerce
brasileira para a questão racial. Como resulta- grande influência no processo de redefinição da
do de acordos e compromissos internacionais cidadania e, sobretudo, da identidade negra.
e das sucessivas pressões da militância negra, Consciente desse quadro, no momento das
o Estado tem assumido novas posturas fren- entrevistas, eu procurava demonstrar todo o
te a essa questão que, colocada no centro de respeito pelos relatos pessoais que estavam sen-
vários debates, aumentou sua visibilidade, do partilhados, sinalizando com gestos, acenos
ampliando o rol de tensões, como também de de cabeças e também verbalmente; eu procura-
tentativas de soluções. Por exemplo, em 2001 va demonstrar a riqueza daqueles percursos de
surgiram as primeiras ações afirmativas no vida e a relevância de conhecê-los, significá-los
âmbito dos Ministérios, culminando com a positivamente a fim de melhor se entender a
criação, em 2003, da Secretaria Especial para realidade social brasileira.
a Promoção de Políticas da Igualdade Racial Enfatizava que suas experiências eram ri-
(SEPPIR) que, revelando um novo entendi- cas e importantes, mas tendiam a desaparecer
mento do Estado sobre o caráter das relações junto com seus principais protagonistas, caso
raciais no país, tem provocado iniciativas cor- não fossem relatadas. Esse argumento sempre
relatas de governos estaduais e municipais, os incitava a buscar novas lembranças e trazer
assim como de ONGs e diversos setores da mais informações para a pesquisa26. Inclusive,
sociedade civil. No momento presente, a ado- houve depoimentos que, momentaneamente,
ção de cotas raciais para ingresso nas univer- me pareceram estar dizendo algo valioso, mas
sidades públicas tem sido objeto de longos e que foram, posteriormente, totalmente descar-
acalorados discussões na sociedade23. tadas, quando verificava que a generalização ou
No bojo dessas discussões, pesquisa realizada até mesmo a superficialidade das informações
em julho de 2006 pelo Instituto Datafolha24 re- faziam com que pouco ou quase nada signifi-
velou que 65% da população brasileira apoiava cassem para a investigação.
as medidas de ações afirmativas, dando a enten- Contudo, sempre procurava mostrar-me
der que a questão racial incorporou-se decidida- impassível, até mesmo quando os fatos relata-
mente no debate e na agenda pública nacional dos não atendiam aos objetivos da pesquisa, ou
– algo que parecia pouco provável há menos de quando percebia certos jogos de comunicação,
30 anos, período em que a maioria dos meus desviando assuntos ou reforçando imagens ou
informantes iniciava sua vida adulta. fatos que queriam me comunicar. Por vezes
Em relação a períodos anteriores, percebe-se as opiniões do informante não me pareciam
um aumento da representação do negro no ce- convincentes e até mesmo contrariavam meus
nário político e em cargos de primeiro escalão pontos de vista, remetendo-me para aquilo que
no governo federal. Estes, desafiando o status Evans-Pritchard pergunta ao escrever sobre as
subalterno a eles reservado no imaginário cole- crenças de povos primitivos: “será que impor-
tivo, distinguem-se de outras autoridades negras ta saber se as consideramos válidas ou falacio-
do passado por freqüentemente reconhecerem sas?” (Evans-Pritchard, 2005, p. 244). De igual
sua negritude e fazerem da raça uma questão maneira, Viveiros de Castro (2002, p. 135)

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conclui que não são nossos problemas acre- na maioria das sugestões. Como eles, também
ditar, ou não, se pecaris, porcos ou queixadas me senti incomodado em constatar, na prá-
são gente, mas levar a sério o que os “nativos” tica, quão poucos são os negros que ocupam
estão dizendo sobre a sua imaginação conceitu- posições de prestígio no Serviço Público. Sem
al. Compartilho da idéia de que não podemos esconder sua indignação, um deles revoltado
usar as nossas categorias para traduzir as nati- comentou jocosamente que
vas, destituí-las de suas subjetividades ou mes-
mo perscrutar se são fatos verdadeiros ou falsos a gente pode contar nos dedos das mãos o nú-
bem ao modo moderno de ser (Latour, 2005). mero de negros em posições de prestígio no
Acredito que cabe-nos apenas problematizar o serviço público, e mesmo assim é capaz de não
que os discursos desses sujeitos estão comuni- se usar todos os dedos.
cando. E, nessas situações, foi o que fiz.
A esse respeito, Berreman (1990), utilizando À medida que se desenvolviam as entrevis-
a metáfora do teatro, demonstra que pesquisa- tas pude perceber que quanto mais eu demons-
dor e informante agem simultaneamente como trava compreensão e simpatia pelos fragmentos
atores e público na montagem de um grande dessas histórias pessoais, mais me davam opor-
espetáculo, se inter-relacionando, mediados tunidade de saber sobre eles e de detalhes que,
por códigos culturais específicos e de interes- em muitos casos, depois confessavam nunca
ses diferenciados que ambos tentam preservar e haver antes revelado a outrem.
projetar. Segundo esse autor, em uma situação
de entrevista, os participantes (atores), ainda Em relação à discriminação, a gente tem muito
que brevemente, julgam os motivos e atributos pouca possibilidade de compartilhar. A gente
uns dos outros, bem como definem a situação não tem com quem dividir. Nós somos muito
circundante e a imagem que lhes convêm pro- poucos pra compartilhar e somos dispersos, por
jetar. Ou seja, revelam o que acham que devem isso eu acho que de mim ninguém sabe de nada.
e ocultam o que desejam ocultar – cada um A primeira vez que estou falando desses casos
tentando dar ao outro a impressão do que me- é aqui com você. Aliás, eu até queria deixar re-
lhor servirá a seus interesses, tal como os vê. gistrado aqui que a questão racial, eu mesmo
Era muito comum questionarem-me acer- só vim discuti-la mais abertamente agora, com
ca dos demais informantes da pesquisa, sendo você na sua pesquisa e com um amigo meu que
visível a satisfação ao tomarem conhecimento me aproximou de umas pessoas, mas nessa ques-
de quais eram os demais pares incluídos. Era tão eu sempre estive sozinho, eu nunca tinha
como se fazer parte de um grupo com outros ninguém que compartilhasse dessas discussões
negros de prestígio legitimasse o sentimento comigo e também nunca tinha tempo [...](Nor-
de autovalorização e os fizessem experimentar berto 53 anos. Mestre em ciências militares. Co-
um raro prazer de se verem racialmente iden- mandante de corporação militar em Salvador).
tificados e, ao mesmo tempo, positivamente
reconhecidos naquele grupo. Testemunhei o As informações fluíam mais facilmente de-
grande esforço de todos eles em sugerir novos pois que as identidades ou relações comuns
nomes, além dos que continham em minha entre o pesquisador e o informante vinham à
lista. A reduzida quantidade de negros em tona. Eu percebia que, na seqüência, me mos-
postos de prestígio na sociedade baiana ficou travam retratos de familiares, matérias publica-
muito clara a partir da repetição dos nomes das em jornais acerca da atuação profissional,

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mencionavam relações de amigos influentes primeira vez em que isso aconteceu quis decli-
e sobretudo flexibilizavam suas agendas abre- nar do convite, pois já me sentia cansado e sa-
viando espaços entre as sessões de entrevistas. tisfeito com o material coletado. No entanto,
A despeito disso, houve casos em que se pas- a “visita guiada” acabou se constituindo em
saram alguns meses de espera entre a aborda- mais que uma caminhada cansativa, pois nes-
gem inicial (por contato telefônico) e a tomada se percurso foram evocadas experiências que
dos depoimentos. Por vezes, apelei para artifí- acredito jamais teriam aflorado na entrevista
cios a fim de viabilizar o contato direto27. Esse formal no escritório.
problema foi se reduzindo à proporção que as
entrevistas se sucediam, pois, se por um lado
eu ficava conhecendo melhor certos condicio- A intimidade e a confiança gerada
namentos locais desse tipo de informante, por
outro lado alguns dos abordados indicavam- A despeito de minhas pré-noções e das difi-
me outros pares, além de passarem a palavra culdades comuns a esse tipo de atividade, tive a
uns aos outros sobre minha pesquisa. oportunidade de estreitar laços de solidarieda-
A prática também revelou que após um de e reciprocidade com essas pessoas. Cheguei
depoimento em que o informante expunha inclusive a me aproximar de suas redes fami-
fatos mais pungentes de sua intimidade pes- liares e de amizades. A partir de convite dos
soal ou das situações familiares de pobreza e informantes, participei de aniversários, almo-
dificuldades, havia, na sessão imediatamen- ços, jantares, trezenas de Santo Antônio e até
te seguinte, sensíveis modificações no seu casamentos, além de eventos institucionais e
comportamento para comigo. O informante cultos religiosos. Em alguns casos, em nível de
tendia a mostrar-se retraído, apreensivo ou reciprocidade, fui também anfitrião, recebendo
monossilábico nas suas respostas às questões algumas dessas pessoas em minha residência.
formuladas. Era como se eu o tivesse vulne- A experiência desse trabalho de campo
rabilizado, fazendo-o “perder o controle da ampliou minha compreensão sobre a trajetó-
situação” e invadido sua resguardada priva- ria dessas pessoas, mostrou-me especificidades
cidade. Nessas ocasiões, era como se estives- do processo de pesquisa junto a indivíduos
sem sugerindo-me parar por ali ou não mais negros de camadas médias e fez-me refletir
insistir em certo tipo de colocação28. Então, sobre a relação entre pesquisador e sujeito
sutilmente saía do meu roteiro, mudava de pesquisado, quando há a mútua consciência
tema e lançava questões em que as respostas da probabilidade de terem partilhado aná-
estavam relacionadas a terceiros que compu- logas vivências sócio-raciais. O crescimento
nham sua história: como o professor que o e o desenvolvimento da personalidade em
referenciava positivamente, parentes men- uma época comum e a probabilidade de ter
cionados na entrevista anterior ou remonta- vivenciado situações similares mostraram-
va algum assunto mais leve. se elementos de grande importância. Foram
As últimas sessões de entrevista mostra- profícuos na capacidade de oferecer certa
vam-se sempre como uma ocasião para a troca confiança, tranqüilidade e até transformar o
de impressões sobre a pesquisa, de cartões de espaço da entrevista em ocasião de revelação
visita e de agradecimentos. Nessa oportuni- de competências íntimas, de valorização e sig-
dade, alguns deles levavam-me a percorrer as nificação das histórias, mas também de parti-
instalações das instituições que dirigiam. Na lhar relatos pessoais de memórias da cidade

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e dos seus antigos personagens – como se a tando próximos, também são distantes, já que
vida ganhasse mais significado, encontrando estes, em muitos casos, são por vezes defensivos
ressonância e ouvidos atentos. e aqueles mal podem constituir um apoio.
Lembrando Bosi: Cabe registrar que, para adquirir confian-
ça, também passei por “testes”, como em um
cada geração guarda a memória de acontecimen- “rito de passagem”. Não foram poucas as ve-
tos que permanecem como pontos de demarcação zes em que percebi estar sendo conduzido a
em sua história [...] o caudal das lembranças cor- emitir opiniões ou assentir a respeito de deter-
rendo sobre o mesmo leito (Bosi, 2006, p. 408). minados fatos – especialmente nos primeiros
momentos das entrevistas. Por exemplo, uma
A cidade de Salvador guarda episódios notá- das informantes enfatizava a importância que
veis que ouvia sempre retomados, valorizados e ela atribuía ao seu corte e formato de cabelo
tornados saudosos na fabulação dos sujeitos. Por alisado e alourado, como se esperasse de mi-
exemplo, as Olimpíadas da Primavera na Fonte nha parte alguma manifestação de crítica ou
Nova29, as trezenas de Santo Antônio, os antigos desagrado. Nesse caso, interpelei-a comentan-
carnavais na Avenida Sete, a mulher de roxo30, as do que na minha família havia alguém com
sessões de cinema no ICBA31, a antiga biblioteca um modelo de cabelo parecido ao dela e assim
na Praça Municipal, onde acorriam estudantes eliminei a “provocação”.
em busca de livros para pesquisa, e muitos outros Tais testes, na maioria das vezes, referiam-se a
eventos que eram de um tempo ao qual pesquisa- questões ligadas às relações raciais e aconteciam,
dor e informante se reportavam muito bem32. especialmente, referidas à participação em ati-
As lembranças incluíam-nos em um grupo vidades do movimento negro ou do culto afro-
o qual terminava sendo visto como “familiar” brasileiro. Era comum a tentativa de avaliar o
e, desse modo, confiável. Essa confiança depo- meu grau de aproximação com a militância ne-
sitada em mim foi fundamental para o bom gra (eu era objetivado pelos meus informantes),
andamento da investigação. Além das entrevis- mas, sempre que possível, procurava desviar
tas propriamente ditas, havia as conversas em para um momento seguinte as minhas respostas
off (quando me pediam que desligasse o grava- a questões dessa natureza, acreditando que, des-
dor), nas quais colhi impressões e opiniões a se modo, minimizaria prováveis interferências
respeito deles e de suas trajetórias, que acredito das minhas opiniões sobre as dos informantes.
dificilmente me seriam passadas por pessoas de Nesse ponto, considero importante retomar
“dentro” dos seus universos relacionais (fami- ponderações de Schatzman e Strauss (apud Bour-
liares, amigos ou colegas de trabalho). dieu, 2005, p. 202) que considero férteis para
Embora se tratasse de indivíduos com uma lidar com casos como os que são tratados nessa
imagem “pública”, em linhas gerais, demons- pesquisa. Para esses autores, existem diferenças
traram que em suas existências pouco falaram no nível do pensamento e da comunicação entre
de si mesmo com outros interlocutores – espe- as camadas médias e populares que vão além do
cialmente do seu passado, do cotidiano de po- requinte da gramática ou da utilização de certo
breza, inseguranças e dificuldades vivenciadas. vocabulário, e explicitam-se na grande sensibilida-
Talvez, em certo nível, se possa falar que nas de às reações do interlocutor. Em especial, isso se
relações com vizinhos, colegas de trabalho e até afiguraria na facilidade de se colocar no lugar do
pessoas do círculo mais próximo uma forma de outro, como se, em situações de entrevista, um in-
interação específica se estabeleça em que, es- formante membro das classes médias conservasse

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56 | Ivo de Santana

o chamado “controle da comunicação” – sempre Em razão de “compromissos imprevistos”


agindo como um intermediário entre suas próprias dessas pessoas, as remarcações das datas ou
imagens e o interlocutor, com a preocupação de horários das entrevistas se acumularam, e isso,
“apresentar” o seu depoimento do mesmo modo em grande medida, atrasou a tomada de depoi-
como são feitas as “apresentações” – estimando e mentos34, obrigando-me a manter uma calcula-
antecipando as reações do interlocutor às suas pa- da flexibilidade na agenda para que fatos como
lavras. Na perspectiva desses autores, o informante esses não afetassem os depoimentos de outros
agiria como o diretor de um filme que, dispondo informantes em horários seguintes.
de várias câmeras, cada uma focalizada em um as- Em função dos nossos ritmos de vida, cheios
pecto diferente da cena, controlando cuidadosa- de “falta de tempo”, foi instigante e desafiador
mente seus efeitos ao rodar o filme. exercitar a arte da escuta com essas pessoas, pois
Assim, a comunicação tenderia a se tornar as escutando e partilhando de suas histórias era
ritualizada e, em grande parte, feita com suben- como se por alguns momentos eu tomasse par-
tendidos, tal qual ocorre entre pessoas que se te de vidas que, misturando passado e presente,
conhecem bem e têm muitas coisas em comum. pareciam solicitar uma espécie de apoio ou de
Consciente disso, procurei manter-me alerta no confirmação de idéias e ações. Assim, experi-
sentido de não perder de vista as possíveis inten- mentei sentimentos de compaixão, de alívio,
ções dos sujeitos, presumindo que no desenrolar indignação e tive, por vezes, a impressão de
de suas carreiras, na vida pública, essas pessoas minha história estar sendo reproduzida nas fa-
tivessem desenvolvido um véu defensivo para se las dos informantes, o que, em um processo de
livrar de perguntas incômodas que ameaçassem pesquisa, sinaliza a ocorrência de diálogos mui-
desnudar personagens que, porventura, estives- to particulares com indivíduos muito especifi-
sem representando. Além disso, havia o fato de camente situados. Como afirma Bosi, somos
que em situações de entrevista, de nossas recordações, apenas a testemunha,
que às vezes não crê em seus próprios olhos e
o sujeito, mesmo que tente ser franco e sincero, faz apelo constante ao outro para que confirme
dará, sem pensar, as respostas-chavão que foram a nossa visão: “Aí está alguém que não me deixa
tão convenientes em outras ocasiões. (Thomp- mentir” (Bosi, 2006, p. 408).
son, 2002, p. 275). Dessa maneira, esse trabalho de campo pa-
rece ter conduzido a nós todos a revivermos
Vale dizer que, conforme avançávamos na o passado com uma fluência que talvez não
conversação, a intimidade e a confiança au- conseguíssemos em uma evocação solitária.
mentavam e, diante de fatos que vieram à tona, Enquanto pesquisador, e no decorrer das en-
presenciei lágrimas e indignações. Em geral, tais trevistas, fui instado a refazer cenas em minha
emoções estavam relacionadas às lembranças de imaginação e rememorar minha própria infân-
situações de humilhações decorrentes da experi- cia, reconstruindo a minha trajetória pessoal
ência do racismo ou das histórias de pobreza. Ao e reelaborando minhas próprias concepções a
falar sobre tais temas eles, em geral, baixavam a respeito das relações raciais em minha histó-
voz ou se refugiavam em generalizações e impes- ria particular. Como adverte Lévi-Strauss, é
soalidades33, desafiando-me a entender momen- impossível atravessar a experiência etnográfica
tos de silêncio ante perguntas que fiz e captar sem se modificar seriamente, pois não é jamais
detalhes que não foram revelados, por escolha ele mesmo, nem o “outro” que ele [o etnógra-
ou mesmo por omissão inconsciente. fo] encontra ao final de sua pesquisa.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 37-61, 2008


O trabalho de campo em uma pesquisa com executivos negros: algumas considerações | 57

Finalmente, tenho que admitir que, por Notas


mais planejado que se conceba o trabalho de
campo, ele tende a levar a inusitadas situações
1
Este artigo é um desdobramento da minha pesqui-
sa de doutorado intitulada Experiências negras de
que, via de regra, não estão e nem jamais pode-
ascensão social em instituições do Serviço Público
riam estar previamente inseridas em qualquer em Salvador: tensões, trabalho e sociabilidades sob a
manual, uma vez que obter dos informantes orientação do Prof. Livio Sansone.
os seus depoimentos implica em algo mais do 2
Foge aos limites desse texto apresentar um inventário
que iniciar uma sessão de perguntas e gravá-las. das várias políticas e iniciativas de promoção da igual-
Mais que nunca, o trabalho de campo exige, dade racial formuladas em anos recentes. A esse respei-
antes de tudo, que o pesquisador demonstre to recomendo os estudos de Jaccoud e Beghin (2002)
respeito, interesse, bem como a capacidade de e Heringer (2006). Desde 2002, diversas universidades
públicas estaduais e federais têm adotado em seus sis-
saber ouvir, atentar para o contexto e, sobre-
temas de ingresso formas que privilegiam a entrada de
tudo, exercitar o bom senso para identificar a negros, de indígenas e alunos da rede pública nos seus
dinâmica mais profícua – aquela que, resguar- vestibulares e a maioria adotou essa medida após deba-
dando a integridade do interlocutor, atenda aos tes no interior de seus espaços acadêmicos. Dentre elas
objetivos da investigação. pode-se citar: UFAL, UFRN, UFPA, UFPR, UnB,
UNEB, UEMG, UERJ, UENF, UEL, UEMS, UEA,
UNICAMP. Os dados da última Pnad mostram que
The fieldwork in a search with black exe-
de 2005 para 2006 aumentou em 1,34 milhão o nú-
cutives: some considerations
mero de pessoas que se declaram de cor preta, ou seja,
passou de 11,5 milhões de pessoas para 12,9 milhões.
abstract This article presents reflections on 3
Nesse caso estariam incluídos os trabalhos de Velho
the development of fieldwork in a research on (2002, 2003, 2004) e do grupo que a ele se relaciona.
black people who experienced social ascension Essas pesquisas enfocam sujeitos da camada média
in Public Administration, pointing limits, pos- urbana. Com esse mesmo enfoque destacam-se, mais
recentemente, as pesquisas efetuadas por Figueiredo
sibilities and singularities observed in the con-
(2002, 2003) e Soares (2004) – enfocando sujeitos da
frontation between researcher and subject when
camada média urbana.
in a situation of similar socio-racial conditions. 4
Hughes (1984) critica a exigência de alguns negros
The testimonies were collected between 2005 americanos no sentido de haver maiores semelhanças
and 2006, with 20 black professionals. Like entre quem pesquisa e o objeto pesquisado. Assim,
the researcher, all of them were considered as somente negro poderia ensinar negro, ou seja, somen-
“public authorities” in Salvador - Bahia (Bra- te eles poderiam entender a si próprios. Contestando
zil). The author notes that, regardless of how tal exigência, esse autor aponta que se isso ocorresse
haveria uma redução do conhecimento, consideran-
the fieldwork was planned, situations that could
do-se que as experiências do outro, no sentido an-
never appear in any manual tend to emerge. To tropológico, contariam ou importariam pouco. Com
obtain testimonies requires that the researcher efeito, se as pesquisas só fossem efetuadas dessa ma-
shows respect and interest for his informants, neira, correríamos o risco de perder a sua dimensão
that he listens, learns and, above all, that he comparativa. Não devemos deixar de atentar que, do
exercises common sense in order to identify the ponto de vista da produção acadêmica, o olhar nativo
pode revelar aspectos e dinâmicas nem sempre obser-
most profitable dynamics to preserve the infor-
vadas por um “olhar estrangeiro”.
mants’ integrity and to meet the objectives of 5
Para um maior aprofundamento dessa discussão, ver
the research. Figueiredo (2003).
keywords: Black people. Rise social. Trajec-
������� 6
Conforme Thompson (2002), em geral, os entrevis-
tory. Fieldwork. Black middle class. tadores, sejam os próprios pesquisadores ou pessoas

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 37-61, 2008


58 | Ivo de Santana

contratadas para o trabalho de pesquisa, são de classe 13


Conforme Piccolo (2003), os homens geralmente
média e com idades abaixo de 40 anos. têm dificuldade para falar sobre suas vidas pessoais.
7
Ainda que isso possa ter favorecido o contato inicial, 14
Por razões óbvias, os nomes dos informantes foram
posteriormente revelou-se um ponto de dificuldade, trocados. A denominação do cargo foi também re-
especialmente nas ocasiões de questionar determina- ferenciada de modo a dificultar a identificação dos
das respostas, seja devido à existência de uma rede de sujeitos, visando preservar-lhes a privacidade.
relações comuns, ou porque a pergunta, muitas vezes, 15
Goldthorpe et al. (1986) apontam que é a partir dos
poderia parecer óbvia. 35 anos que as pessoas atingem a fase mais estável de
8
Vale ressaltar que, com alguns dos informantes, espe- seus ciclos de vida.
cialmente aqueles que pela maior proximidade entre 16
Em um dos depoimentos houve total perda do re-
nós eu era considerado “de casa”, pude perceber que gistro de quase 3 horas de gravação. A pouca ha-
à empatia demonstrada juntava-se, também, certa bilidade no manuseio do equipamento (Mp3) de
apreensão e “defesa”. Por certo, algumas dessas atitu- gravação inviabilizou o registro efetuado e resultou
des poderiam acontecer da mesma forma se a pesqui- na perda de significativas revelações. Assim, no cader-
sa estivesse sendo conduzida por outro pesquisador. no, procurava comentar desde aspectos relacionados
No entanto, acredito que houve casos em que certos à personalidade do informante aos sentimentos ou
comportamentos só ocorreram devido à minha pro- impressões captadas; isso, no equipamento, não era
ximidade anterior com tais informantes. passível de ser registrado, mas acreditava ser útil para
9
Para maior detalhamento desse aspecto, ver Velho a compreensão da situação. Em média, a tomada de
(2004, p. 127). Por outro lado, devo salientar que, depoimentos durava três sessões de aproximadamente
muito embora considere que familiaridade não seja duas horas cada – ainda que um dos depoimentos se
igual a conhecimento científico, acredito que ela prolongou por cinco sessões em face dos imprevistos.
representa também um certo tipo de apreensão da Em geral, a tomada de depoimento produzia forte
realidade, na medida que as opiniões vivências e per- cansaço e tensão nos entrevistados. Quando eu per-
cepções de pessoas sem formação acadêmica ou sem cebia os primeiros sintomas, procurava não insistir e,
pretensões científicas podem dar valiosas contribui- antecipando-me ao informante, procurava finalizar a
ções para o conhecimento da vida social, de uma épo- sessão.
ca ou de um grupo. 17
Conforme revelado pela grande maioria dos entre-
10
Alguns sujeitos indicados pelos informantes, para vistados, era a primeira vez que se exprimiam mais
inclusão no grupo pesquisado tiveram sua participa- detidamente sobre suas trajetórias de vida. Isso, ini-
ção descartada na pesquisa, pois por meio da ficha de cialmente os empolgava, contudo após a 2.ª sessão
identificação constatei que não pertenciam aos qua- sempre se notava o cansaço apontado por Quivy
dros de carreira da instituição. (1992, p. 78), decorrente da exposição a uma situ-
11
No caso de informantes cujos perfis se assemelhem ação penosa em que tinham de refletir, de reunir
aos deste estudo, deve-se levar em conta a efetiva idéias, de pô-las em ordem e de encontrar as palavras
probabilidade de que na tomada de depoimentos mais adequadas.
ocorram freqüentes remarcações de horários ou datas 18
Os temas delicados aos quais me refiro são racismo,
previamente agendadas. Os “compromissos imprevis- casamento inter-racial, origem familiar, dentre ou-
tos” são fontes dessas constantes alterações, impondo tros. Nesse sentido, Azevedo (1966, p. 72), em sua
ao pesquisador a marcação desses horários ou datas pesquisa sobre as Elites de cor nos anos 50, já revelava
com calculada flexibilidade, de modo que tais “com- a presença desse incômodo, pois alguns dos seus in-
promissos” não afetem as tomadas de depoimentos de formantes se esquivavam de falar sobre os problemas
outros informantes em horários seguintes. raciais, desviando a conversa para outros temas, sob a
12
Os jornais da cidade, diversas revistas nacionais, bem alegação de que nunca repararam no assunto e de que
como livros como o Fala crioulo, de Haroldo Costa o mesmo não tinha importância para eles.
(1982), e Quem é quem na negritude brasileira, de Oli- 19
Por exemplo, ao retomar um importante fato men-
veira (1998), publicaram depoimentos diversos sobre cionado pelo informante ao final da sessão anterior,
a vida de algumas dessas personalidades, bem como percebia-se que ao lado da esposa ele recorrentemente
informações diversas sobre suas atuações. buscava enveredar por outros temas.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 37-61, 2008


O trabalho de campo em uma pesquisa com executivos negros: algumas considerações | 59

20
Como exemplo, cito Bourdieu (2005) ao recomen- acredito que esse foi o recurso que me tornou possível
dar evitar intervir, para não quebrar a seqüência de obter certos relatos.
pensamento do entrevistado, deixando-o à vontade, a 27
Como exemplo, cito o fato de que, por vezes, ao per-
fim de que possa falar livremente sem qualquer cons- ceber que a identidade de pesquisador não era sufi-
trangimento. ciente para me fazer ser atendido pela secretária, eu
21
Nesses casos, eu agia conforme recomenda Bertaux me identificava com as credenciais da entidade onde
(1980), isto é, avaliava quando havia atingido o pon- trabalho, o Banco Central do Brasil. Creio que nos
to de “saturação da informação” e impunha um fim à casos que utilizei tal artifício de conformar a minha
recolha. identidade à situação, houve maior facilidade de con-
22
A pesquisa de Fernando Henrique Cardoso revela si- tato.
tuações em que o negro em ascensão recusava admitir 28
Tal comportamento também foi constatado por Aze-
ser referenciado como negro ao ponto de um mulato, vedo (1996, p. 27). Como ele, eu entendia que isso
em seu depoimento, admitir que preferia ser chama- podia perfeitamente representar uma reação defensi-
do de “filho-da-puta” em vez de “negro”. va, mas podia também ser a confirmação da afirma-
23
Como já mencionado, diversas universidades públi- tiva que faziam de que poucas vezes haviam pensado
cas estaduais e federais já adotam em seus sistemas de no assunto.
ingresso formas que privilegiam a entrada de negros, 29
As Olimpíadas da Primavera aconteciam no estádio
de indígenas e de alunos da rede pública nos seus ves- da Fonte Nova e dela participava a maioria dos colé-
tibulares. No Congresso Nacional também tramitam, gios da capital. Era um dos mais importantes eventos
dentre outros, o projeto de Lei 73/99 e o Estatuto da estudantis nos anos 70 em Salvador.
Igualdade Racial, que oferecem importantes contri- 30
Personagem dos anos 70, que faz parte da história
buições para a eliminação das desigualdades raciais oral dos tempos áureos do centro de Salvador. Ves-
no País. tia-se sempre de roxo, com roupas que lembravam o
24
Essa pesquisa de opinião envolvendo 272 municípios hábito usado pelas freiras, e costumava perambular e
brasileiros foi divulgada pelo jornal Folha de S.Paulo dormir pela rua Chile. Dizem que foi moça instruída,
em 23 de julho. Sobre o assunto, considero esclarece- de boa família, e que teria enlouquecido por causa de
dora a matéria de Wânia Santana, no Jornal Irohim, uma grande desilusão amorosa.
de 1/8/2006, intitulada O que o Jornal Nacional e a 31
Durante os anos de chumbo, década de 1970, prin-
Folha de S.Paulo omitiram e o que Instituto Datafo- cipalmente, o Instituto Cultural Brasil–Alemanha
lha investigou. (ICBA) era considerado um importante pólo cultural
25
Os dados da última Pnad mostram que de 2005 para da cidade, espaço de concentração de manifestações
2006 aumentou em 1,34 milhão, o número de pes- culturais alternativas e ambiente de resistência. Era
soas que se declaram de cor preta, ou seja, passou de um point em que os amantes das artes e da liberdade
11,5 milhões de pessoas para 12,9 milhões. se reuniam. Na verdade, um espaço quase consular.
26
A esse respeito, me pareceu que alguns depoimentos 32
Os episódios rememorados, em geral, se referem à
foram facilitados em face de eu, explicitamente, ten- década de 1970 – anos de grande efervescência po-
tar demonstrar o quanto entendia o “valor” de cada lítica e cultural. É desse período a repressão militar e
uma dessas histórias e das experiências a ela associa- o surgimento de grupos organizados com a intenção
das. Eu presumia que algumas delas comportavam explícita de oposição e enfrentamento à discrimina-
fatos silenciados por muito tempo. Acreditava que, a ção e ao racismo, dentre eles o MNU e o Ilê-Aiyê. A
partir do momento em que se evidenciasse o grande pouca ou nenhuma menção a essas instâncias nas re-
respeito ou a possibilidade de eu ter vivenciado situa- miniscências dessas pessoas dão indicações do pouco
ções semelhantes, os relatos e a relação se sucederiam ou quase nenhum envolvimento – da grande maioria
com maior confiança, conforto e naturalidade. Isso dos informantes – de eventos relativos a fatos impor-
me pareceu funcionar em muitos casos, embora te- tantes desse contexto histórico.
nha também redundado em situações nas quais fui 33
É o caso, por exemplo, de informantes que se utiliza-
bombardeado com relatos muitas vezes longos, en- vam do artifício de usar o pronome “você” em vez de
tremeados de detalhes desnecessários que ocupavam “eu” ao narrar experiências pessoais que lhes incomo-
grande tempo de gravações. Em muitos dos casos, davam, certamente porque afastando de si a autoria

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 37-61, 2008


60 | Ivo de Santana

da ação ficava mais confortável efetuar o relato: “você BOSI, Ecléa. Lembrança de velhos. São Paulo: Companhia
chega em casa da escola e só tem farinha com açúcar das Letras, 2006. 484p.
pra comer” ou então “você vai pra escola com um pé CABRAL, João; LIMA, Antonia. Como fazer uma his-
de sapato e a sua irmã vai pro médico com o outro tória de família: um exercício de contextualização.
pé, pois só tem um par de sapatos em casa”. São de- Etnográfica – Revista do Centro de Estudos de Antropo-
poimentos cuja “tradução” significa “eu chegava da logia Social, Lisboa-Portugal, v. IX, n. 2, p. 355-388,
escola e só havia farinha com açúcar para comer” ou novembro, 2005.
“eu ia pra escola com um pé de sapato e a minha irmã CICOUREL, Aaron. Teoria e método em pesquisa de
ia pro médico com o outro pé, pois só havia um par campo. In: ZALUAR, Alba (Org.). Desvendando
de sapatos em casa”. máscaras sociais. São Paulo: Francisco Alves, 1990.
34
Um bom exemplo dessa situação é o caso de impre- p. 87-121.
vista remoção para Brasília de um dos informantes, CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: Antropolo-
obrigando-me a interromper outros depoimentos em gia e Literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora
curso para proceder à emergência desse depoimento. da UFRJ, 1998. 319p.
A partir daí, toda a ordem de depoimentos teve que DOMINGUES, Petrônio José. Uma História Não Con-
ser alterada. Houve casos em que entre a primeira e a tada. Negro, Racismo e Trabalho no Pós-Abolição. 2001.
segunda sessão se passaram dois meses. 412f. Dissertação Mestrado – Faculdade de Filosofia,
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Agradecimentos
Zahar. 2003. p. 55-68.
QUIVY, Raymond; CAMPENHOUDT, Luc Van. Ma- Agradeço a Izabel Cristina Santana, Lívia
nual de investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gra- Quirino e Maria Luiza Camargo pelos comen-
diva, 1992. 275p. tários a este trabalho.

autor Ivo de Santana


Doutorando em Ciências Sociais/UFBA

Recebido em 17/03/2008
Aceito para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 37-61, 2008


Amistad en el pasado, política en el presente. La
comunidad y el estado en los procesos de configu-
ración de las memorias y de demanda de justicia
Nazarena Belén Mora

resumo Partindo da análise de um ato de re- de las fuerzas armadas por los delitos cometidos
cordação, em homenagem a um grupo de advo- durante la última dictadura (Cohen, 1997). El
gados desaparecidos na última ditadura militar Juicio a las Juntas Militares cumplió un rol
argentina, no presente artigo propomos estudar significativo como espacio para hablar de los
a maneira em que as diferentes articulações en- hechos acontecidos en los centros clandestinos
tre o local e o nacional, a comunidade e o Estado de detención y, sobre todo, dio cuenta de la
ganham forma nos processos de configuração das dimensión del fenómeno de la experiencia con-
memórias e nas demandas de justiça. Ainda neste centracionaria.
sentido, achamos pertinente i) indagar sobre em Luego, sobrevino una fase de impunidad
que medida as reputações dos protagonistas do signada por las leyes de Punto Final (1986),
ato incidem na construção dos sentidos do pas- Obediencia debida (1987) y los indultos pre-
sado e ii) refletir sobre as maneiras em que uma sidenciales (1989-1990), ésta impidió la trami-
experiência compartilhada no passado re-significa tación de las causas judiciales respecto de los
as relações políticas no presente. crímenes cometidos en aquella época e indultó
palavras-chave Amizade e/ou Partilhados. a los responsables que ya habían sido condena-
Jogo Político. Comunidades. Estado. Memória. dos. A partir de la sanción de estas leyes quedó
al descubierto la trama de relaciones sociales,
políticas e institucionales que impedía juzgar
Le ganas a tu rival si puedes convencer a otra gente el pasado reciente. Pese a esto, un conjunto de
de que has actuado por los intereses organismos de derechos humanos siguió im-
de la comunidad mientras que el otro fue egoísta pulsando sus reclamos de justicia en distintas
(Bailey, 1971, p. 2) instancias internacionales.
Entre los años 1994 y 1995 comenzó una
nueva etapa y se produjo un punto de inflexión
Un Breve Recorrido Histórico en cuanto a la memoria sobre la dictadura. El
ex-capitán de la marina Alfredo Scilingo reco-
La última dictadura militar (1976-1983)1 noció públicamente que en Argentina hubo
marcó fuertemente la historia de la Argentina campos de concentración, sesiones de tortura
y, a partir del retorno de la democracia el país, y vuelos de la muerte. Era la primera vez que
ha transitado por diversas etapas de elaboración un uniformado reconocía que esos crímenes
de la memoria sobre la represión y por distintos habían sucedido. Esta situación llevó al jefe del
momentos de juridización de ese pasado. Ejército a pronunciarse y realizar una autocrí-
El Juicio a las Juntas militares (1985) dio tica respecto de los hechos acaecidos durante
comienzo a lo que en términos de Stanley Co- aquellos años.
hen podemos llamar una fase de verdad y justi- En el plano de la construcción de la memo-
cia2 donde se juzgó a los máximos responsables ria fue un período muy rico que:

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-304, 2008


64 | Nazarena Belén Mora

incluyó nuevos actores como H.I.J.O.S (Hijos las leyes de Punto Final y Obediencia Debida,
por la Identidad y la Justicia contra el Olvido los testimonios volcados en los Juicios por la
y el Silencio) aglutinando a todos los hijos de Verdad Histórica fueron utilizados como prue-
secuestrados, desaparecidos, torturados y so- ba de otros juicios que sí podían imponer un
brevivientes de la última dictadura; ámbitos castigo penal. El Juicio por la Verdad de la ciu-
novedosos para impulsar el recuerdo y referirse dad de Mar del Plata comenzó en el año 2001
al pasado (en el campo cultural y académico), y continúa hasta la actualidad. A partir de las
otras modalidades de intervenir en el espacio investigaciones llevadas a cabo en esta causa se
público y demandar justicia (como los escar- pudo conocer el entramado civil y militar que
ches), nuevos lugares simbólicos (en esta etapa permitió que las operatorias represivas se desa-
se establece la costanera del Río de La Plata de la rrollaran en el nivel local (Mora, 2005).
ciudad de Buenos Aires como lugar de recorda- Los reclamos de verdad, las demandas de
ción) e iniciativas para marcar el espacio urbano justicia y el imperativo de memoria fueron
como monumentos museos, placas y parques de acciones fundamentales de resistencia contra
la memoria (Feld, 2002, p.109). el olvido y el perdón promovidas por los orga-
nismos de Derechos Humanos frente al esta-
En el plano jurídico con la reforma de la do. Desde la caída de la dictadura, se tornó
constitución nacional de 1994 se incorpora- crucial el problema de “los criterios y valores
ron tratados y pactos internacionales con ran- que debían orientar un trabajo deliberado de
go constitucional, y se creó la figura de habeas la memoria en la nueva situación” (Vezzetti,
data, que establece el derecho a la informa- 2002, p. 23). Así las disputas en torno a la
ción. Gracias a esta innovación legal algunos construcción de la verdad, los reclamos de jus-
abogados contemplaron la posibilidad de ticia y la impunidad atravesaron los sucesivos
asociar la idea de verdad con la explicitación gobiernos y fueron resignificados de formas
de las circunstancias de secuestro de personas disímiles por cada uno de ellos.
detenidas ilegalmente e impulsaron demandas En este trabajo nos proponemos analizar
judiciales en ese sentido (Mora, 2005). En esa un acto de recordación que tuvo lugar en un
misma década fueron derogadas las leyes de contexto sumamente particular de Argentina
Punto Final y Obediencia Debida (1998); sin donde, según Barbuto (2008, p. 15)
embargo, debido a que las derogaciones no
son retroactivas no podían reabrirse las causas algunas nuevas articulaciones hegemónicas del es-
penales iniciadas luego del Juicio a las Juntas pacio político parecieran haber emergido desde
Militares. Por otro lado, a finales de esa déca- el año 2003 – durante el gobierno del ex pre-
da se incorporaron los derechos al reconoci- sidente Néstor Kichner-, a partir de una nue-
miento de la verdad y al duelo (1999). va forma de construcción en la esfera pública3
En este contexto comenzaron a desarrollarse que afirmaba una refundación social y política,
en diferentes puntos del país los denominados en el ámbito nacional, vinculando la democra-
Juicios por la Verdad Histórica. Éstos surgieron cia con los derechos humanos.
como un tipo particular de juicio penal cuyo
objetivo no era castigar a los responsables por La afirmación estatal a favor de juzgar a los
los crímenes que en ellos se denunciaban, sino responsables por los crímenes cometidos duran-
establecer la verdad de lo ocurrido con las vícti- te la dictadura y de construir una memoria sobre
mas. En el año 2004, a partir de la anulación de lo sucedido fue el pilar sobre el que se apoyó la

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construcción de una legitimidad política basada Era la primera vez que una célebre asocia-
en el discurso de los derechos humanos. De esta ción de abogados de nivel nacional, como la
manera, el gobierno nacional tomó las bande- FACA, organizaba una actividad de recordación
ras que venían enarbolando los organismos de por los letrados desaparecidos. El evento contó
derechos humanos y a partir de ellas, intentó además, con la participación de otro organis-
construir discursivamente una refundación social mo de nivel nacional, pero esta vez con calidad
y política del ámbito nacional (Barbuto, 2008). estatal, la Secretaría de Derechos Humanos
En este nuevo contexto político las élites per- de la Nación (SDHN). En años anteriores, el
tenecientes al mundo de la abogacía debieron hecho sólo era rememorado por instituciones
posicionarse frente a este nuevo discurso. locales, tales como el Colegio de Abogados de
Mar del Plata, la Universidad de Mar del Plata,
los organismos de derechos humanos locales y
El acto los familiares de las víctimas residentes en la
ciudad. Pero nunca había sido tenido en cuenta
El 6 de julio de 2004 se realizó en la ciudad ni por las élites del mundo del derecho, ni por
de Mar del Plata, una localidad de la provincia el estado nacional.
de Buenos Aires, ubicada 400 kilómetros al sur En aquella ceremonia se encontraban varios
de la capital de Argentina, un acto para recor- de los representantes de las elites que conforma-
dar a los abogados desaparecidos en este país ban el mundo de la abogacía (local, provincial
durante la última dictadura militar. El mismo y nacional). Según Shils (1961) son las élites
estuvo organizado por una prestigiosa asocia- las que consideran que tienen a su cargo la cus-
ción de abogados, La Federación Argentina de todia de los elementos sagrados de la sociedad.
Colegios de Abogados (en adelante FACA). En este caso, la memoria sobre los crímenes
La fecha y el lugar fueron elegidos para ho- cometidos en el pasado reciente. Este autor
menajear a un grupo de abogados secuestrados sostiene que el sistema central de valores que
entre los días 6 y 9 de julio de 1977 en la ciu- organiza los símbolos y valores que dan orden
dad de Mar del Plata, en un episodio conocido a las creencias que gobiernan una sociedad se
como La noche de las corbatas. Aquel hecho se constituye principalmente por los valores afir-
trató de los secuestros de por lo menos siete mados por las élites.
abogados laboralistas de sus casas y lugares de La conmemoración se realizó en el teatro
trabajo. Todos fueron llevados al centro clan- Auditórium. Un espacio donde se llevan a cabo
destino de detención conocido como la Cueva, ceremonias importantes que hacen a la vida de
el cual funcionó en una estación de radar de la la ciudad: las colaciones de grado de la Univer-
Fuerza Aérea. La mayoría de los abogados des- sidad Nacional de Mar del Plata, los festivales
aparecidos en aquel hecho formaban parte de de cine, los homenajes y algunos actos políti-
una agrupación conocida como la Asociación cos. Shils (1961) sostiene que es el centro el
Gremial de Abogados (en adelante La gremial), que organiza los símbolos y valores que dan or-
una organización que se encargó en la década den a las creencias que gobiernan una sociedad.
de los setenta de defender a detenidos por razo- En este sentido, el teatro Auditórium puede ser
nes políticas y de averiguar – a partir de presen- considerado como un centro activo del orden
taciones ante la justicia – sobre el paradero de social (Shils, 1961) ya que es el lugar donde se
las personas secuestradas durante los gobiernos realizan los actos significativos para las élites de
dictatoriales de aquella década. la ciudad – o de fuera – que afectan a la vida de

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los marplatenses (Geertz, 1994). Los significa- dos de La gremial); y, un representante de la


dos que condensan las ceremonias practicadas Secretaria de Derechos Humanos de la Nación,
en el teatro se derraman al resto de la sociedad quien había pertenecido a La gremial de abo-
y sólo las élites están autorizadas para dispo- gados y había compartido una experiencia de
ner de este espacio. Ellas tienen el control de militancia con varios de los abogados desapare-
los cultos que allí se practican. Sin embargo, cidos en La noche de las corbatas. Entonces, el
como observaremos más adelante, el centro es único de los que se encontraban en el escenario
un espacio en disputa permanente. que había compartido vínculos de militancia
Este era el primer acto de reconocimiento (con las implicancias de lo que esto significaba
realizado por las elites del mundo de la abo- para aquellos que transitaban una situación de
gacía a víctimas de terrorismo de estado en la clandestinidad), y había tenido un compromi-
ciudad de Mar del Plata. El teatro estaba lle- so vital de ayuda y compañerismo respecto de
no. En el público había representantes de los aquellos que eran perseguidos por ciertas élites
distintos organismos de derechos humanos que ocupaban el estado, era el prestigioso fun-
locales: Abuelas de Plaza de Mayo, Madres de cionario perteneciente a la Secretaría de Dere-
Plaza de Mayo, Asociación Madres de Plaza chos Humanos de la Nación.
de Mayo, H.I.J.O.S., Familiares de Deteni- Conviene destacar que, a nivel nacional
dos Desaparecidos y la Asamblea Permanente como se planteó en la introducción, el go-
por los Derechos Humanos. Además, estaban bierno había asumido un discurso de refun-
presentes familiares de los abogados desapa- dación social, político e institucional basado,
recidos, miembros del ámbito de la abogacía entre otras cosas, en la defensa de los derechos
local, la prensa y público en general. Un dato humanos entendida como la tramitación de
curioso fue que los únicos abogados sobre- las causas penales contra los responsables de
vivientes de La noche de las corbatas no con- los crímenes cometidos durante la última
currieron al acto. En uno de los casos, pude dictadura y la construcción de la memoria
constatar que la persona no estaba de acuerdo respecto de ese pasado.
con los organizadores del evento. En el acto, los discursos de las élites de la
En el escenario se encontraban muchos de abogacía – a diferencia del gobierno nacional
los representantes de las élites del mundo de – pusieron su acento en la labor profesional
la abogacía: el presidente de la prestigiosa aso- de los abogados víctimas del terrorismo de es-
ciación de abogados que organizaba el acto; el tado, omitiendo por un lado, cualquier tipo
presidente del Colegio de Abogados de Mar del de mención a sus militancias o filiaciones
Plata; el presidente de la Cámara de Diputados políticas, y por otro lado, la participación de
de la Provincia de Buenos Aires (quien repre- miembros del poder judicial (abogados, fisca-
sentaba al ala de derecha del movimiento pero- les y jueces) en el funcionamiento del sistema
nista, un sector políticamente enfrentado con represivo aquella época.
las agrupaciones a las que habían pertenecido Expresaron por ejemplo:
los abogados a los que se les rendía homena-
je); un representante de la Corte Suprema de la feroz persecución que sufrió la abogacía
la Provincia (quien en la década de los setenta durante el Proceso de Reorganización Nacio-
simpatizaba con una agrupación – La Concen- nal4, [...] el pecado de aquellos colegas había
tración Nacional Universitaria – que también sido ejercer la profesión en la defensa de los
estaba políticamente enfrentada con los aboga- trabajadores y ciudadanos marplatenses [...]

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Eran simplemente abogados que sólo ejer- día se conmemoraba. Esta pregunta provo-
cían el poder de la convicción, de la fuerza có cierta incomodidad e indignación entre
moral, del derecho (Presidente de la asocia- los que estaban arriba del escenario, excepto
ción organizadora del acto). en el funcionario de la Secretaría de Dere-
chos Humanos de la Nación, quien se quedó
A diferencia de esto, el último orador, aplaudiendo junto con el público.
el funcionario de la Secretaría de Derechos El público, al quedarse aplaudiéndolo a
Humanos de la Nación puso el énfasis no Pedro, evidentemente estaba de acuerdo con
sólo en valorar la práctica y el compromiso la política impulsada por la actual gestión de
político de aquellos abogados sino, funda- gobierno (representada en el acto por el fun-
mentalmente, en el papel actual del ámbito cionario de la Secretaría de Derechos Huma-
de la abogacía para tramitar las causas pe- nos), que promovía la tramitación de las causas
nales contra todos los que participaron del penales contra los responsables de los crímenes
funcionamiento del sistema represivo. Esto cometidos en la época de la dictadura.
involucraba a miembros de las élites del po- Cabe aquí una mención, la agrupación
der judicial local, provincial y nacional que H.I.J.O.S. le había pedido a los organizadores
se encontraban presentes en el acto. del acto decir unas palabras y éstos le habían
El funcionario de la Secretaría de Dere- negado aquella posibilidad. Evidentemente, las
chos Humanos de la Nación destacó el papel élites organizadoras del acto al monopolizar la
de los hijos de los abogados desaparecidos en palabra tenían un claro interés en imponer de-
la lucha por los derechos humanos e invitó a terminados sentidos del pasado y no dejar que
subir al escenario a uno de ellos, Pedro. El pa- afloraran otros. El negarle un lugar a la palabra
dre de Pedro había compartido con este fun- de los H.I.J.O.S, en este caso representados por
cionario una experiencia militante vinculada Pedro, puso en evidencia las diferencias políti-
a la defensa de presos políticos en la década cas y de intereses de estas élites.
de los setenta. A partir de esa experiencia, Evidentemente, en esa nueva coyuntura po-
mantenía vínculos con Pedro y con muchos lítica los miembros de la comunidad local no
de los organismos de derechos humanos allí estaban dispuestos a que las élites del mundo
presentes, ligados a la reivindicación de ese de la abogacía que, en muchos casos venían de
pasado y a la actual búsqueda de justicia. la capital del país, excluyeran determinados sig-
Una vez en el escenario, luego de agra- nificados políticos del pasado de los marplaten-
decer el homenaje, Pedro preguntó a los ses. A partir de aquel hecho, podríamos pensar
organizadores del acto por qué el Colegio que se produce un descentramiento de las élites
de Abogados local que se había presentado y el centro es colonizado por otros actores que
como parte querellante5 en El Juicio por la pregonan significados diferentes.
Verdad (el cual no emitía una sanción penal) Según Jelin las fechas de conmemoración
no lo había hecho en las causas penales que pública están sujetas a conflictos y debates. Es
se habían reabierto a partir de la anulación así como un mismo acontecimiento puede ser
de las leyes de impunidad. Conviene destacar conmemorado por bandos políticamente anta-
que, una de las mega investigaciones que lle- gónicos (Jelin, 2002). En el escenario se encon-
va adelante el gobierno actual, involucra una traban representantes de determinadas élites
serie de hechos entre los que está incluido del ámbito de la abogacía que habían estado
el caso de La Noche de las Corbatas que ese políticamente enfrentados – en la década de los

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setenta – con los abogados desaparecidos en el Si bien en muchos de estos trabajos como los
episodio de la noche de las corbatas que ese día de Pitt Rivers (1954), Geertz (1967), Bailey
se conmemoraba. Sin embargo, la asociación (1971), Heredia (1996), los instrumentos con-
organizadora del acto intentó hacer desaparecer ceptuales son pensados y elaborados a partir de
las filiaciones políticas e ideológicas del pasado la experiencia en comunidades campesinas, en
con un discurso cuyo énfasis estuvo puesto en muchos casos, resultan sumamente reveladores
la labor profesional: para estudiar las relaciones en otros niveles, o
bien, en comunidades urbanas. Para avanzar en
Ante lo perdido, nos proponemos que la abo- esta dirección nos proponemos reflexionar en
gacía argentina conmemore el 6 de julio de torno a dos ejes principales.
cada año el Día Nacional del Abogado Victima El primero está vinculado a las maneras
del Terrorismo de Estado, en recuerdo de los en que es jugado el juego político de las re-
que padecieron la violencia irracional y de cara putaciones en las comunidades locales en los
a la función social de los hombres y mujeres procesos de evocación pública del pasado. En
del derecho [...] para que nunca más vuelva a nuestro caso un pretérito signado por la vio-
ocurrir tamaña bestialidad. lencia política donde aquellos que recuerdan
fueron sus protagonistas.
Es decir, intentó instalar un recuerdo en El segundo eje de análisis tiene que ver con
tanto corporación el resto de las adscripciones pensar las articulaciones entre la comunidad y el
fueron borradas o dejadas de lado. Tampoco Estado a partir del análisis de los vínculos cons-
fueron reivindicados los reclamos de verdad y truidos por una experiencia de militancia común
justicia promovidos por los familiares. En este tras haber participado en lo que evoca una gesta.
punto es interesante aclarar que estos reclamos En el primer caso, el concepto de reputa-
de justicia involucran a miembros civiles que ción, que propone Bailey (1971), resulta inte-
ocuparon cargos en el poder judicial durante la resante para reflexionar acerca de las distintas
última dictadura; estos civiles formaban parte formas en que se articulan lo local y lo nacional
de los círculos íntimos de las élites que se en- en las disputas por los sentidos del pasado y
contraban en el escenario. sus efectos políticos en el presente. Este autor
El grupo que permaneció aplaudiendo que- sostiene que la reputación de un individuo no
dó representado por el funcionario de Dere- es una cualidad que él posea, sino más bien las
chos Humanos. Éste era el único de todos los opiniones que la gente tiene acerca de él. En
oradores que podía ser considerado como com- este sentido, la reputación es uno de los facto-
pañero de los abogados desaparecidos debido res que determina las formas en las que se pue-
a que en el pasado mantuvo con ellos y con de interactuar con otras personas. Esto informa
miembros que pertenecían a La gremial lazos a los actores de qué manera jugar el juego social
de compañerismo vinculados a su militancia. y cómo ganarlo (Bailey, 1971).
Según Bailey aun aquellos que viven en la
*** llamada vida anónima de los alrededores urba-
nos, derivan su identidad, encuentran sus repu-
La antropología nos provee de una serie de taciones y están en interacción con un círculo de
conceptos para analizar la relación entre lo lo- gente que se conoce entre sí, que hablan sobre
cal y lo nacional, la comunidad y el Estado, la ellos y que, por lo tanto se interesan (tanto para
comunidad y lo que le es dado desde afuera. lo bueno como para lo malo) del otro. De esta

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manera, la importancia de la reputación de un que están signadas por haber compartido una
hombre disminuye en tanto disminuya la inten- experiencia política, por haber participado
sidad de la interacción social (Bailey, 1971). de una gesta, vinculadas a los lazos de ayuda
En Mar del Plata, si bien no es una comu- compartidos en una situación de clandestini-
nidad rural, las personas interactúan en peque- dad, por haber pertenecido a un grupo o bien,
ños círculos donde todos se conocen. En estos “por compartir un compromiso traducido en
círculos todos saben acerca de todos. Y si real- actitudes vitales” (Diez, 2000, p.10).
mente no conocen sobre una persona en parti- Este acto nos permite a partir del análisis de
cular, saben quién puede hablar de ella. Debido las articulaciones entre las élites, el gobierno na-
a que las personas transitan por más de un cir- cional y las comunidades locales dar cuenta sobre
culo social (en el caso analizado, la universidad, las maneras en que estas relaciones cobran forma
el colegio de abogados, el poder judicial, or- en los procesos de elaboración de la memoria y
ganizaciones políticas, de derechos humanos), de demanda de justicia respecto de los crímenes
generan un fondo de conocimiento común que cometidos en el pasado reciente. A partir de los
se construye en base a las reputaciones; es decir, ejes planteados resulta interesante pensar por un
sobre aquello que los otros dicen de uno. lado, como juegan políticamente las reputaciones
Analizar de qué manera se ponen en juego de los protagonistas de este evento (tanto de los
tanto las reputaciones de las víctimas que son organizadores como las de los homenajeados) en
homenajeadas como las de los organizadores los procesos de construcción de los sentidos del
del acto permite comprender la manera en que pasado, por otro lado, reflexionar sobre las for-
es jugado el juego político y las formas en que mas en que los lazos de compañerismo del pasado
éste puede ser ganado. anudan relaciones políticas en el presente.
Una segunda línea de análisis para pensar
el caso es a partir del instrumento conceptual
que presenta Pitt Rivers (1954) en “Un pueblo Las amistades del pasado: los com-
de la sierra”. El trabajo de este autor, uno de pañeros
los primeros escritos de lo que luego se llamó
antropología del Mediterráneo, plantea una Uno de los oradores del acto, es hoy un
forma novedosa de estudiar la relación entre la alto funcionario de la Secretaría de Derechos
comunidad y el Estado a través de las institu- Humanos de la Nación y perteneció en la dé-
ciones de amistad y autoridad. cada de los setenta a la Asociación Gremial de
Si bien sabemos que las instituciones pro- Abogados (La gramial). La misma había sido
puestas por aquel autor pertenecen a un con- creada con el objetivo de proteger a los pre-
texto particular, su trabajo ha sido revelador sos políticos de las reiteradas persecuciones
para pensar las relaciones entra la comunidad que sufrían por parte de ciertos sectores que
y el Estado a partir de los lazos que se esta- formaban parte del Estado y de determinadas
blecen por haber compartido una experiencia élites de la sociedad.
militante que, para muchos de los actores, En 1971, durante la dictadura del General
se designa bajo el término de compañeros. Lanusse, se crea la Cámara Federal en lo Pe-
En nuestro caso, a diferencia de las amista- nal conocida como Fuero Antisubversivo6. Este
des que se establecen por la proximidad y la fue un tribunal especial con jurisdicción fede-
vecindad en “Un pueblo de la sierra” (Pitt ral constituido por nueve jueces más un fiscal
Rivers, 1954), se trata de amistades públicas encargado de juzgar oralmente y en instancia

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única una amplia gama de delitos. Éstos eran determinadas circunstancias todos ellos se iden-
considerados como actividades subversivas, de- tificaran y actuaran en pos de un objetivo común
nominación con la que se abarcaba frente a otros grupos antagónicos (por ejemplo
determinadas élites que ocupaban el poder judi-
un amplio abanico de situaciones: desde actos de cial). Esto nos remite a pensar en las lógicas seg-
intimidación, o actos que se cometieran con la mentarias que señalaba Evans-Pritchard (1940)
finalidad de provocar el alzamiento o la resisten- para el caso de los Nuer donde
cia contra disposiciones de las autoridades na-
cionales, hasta los previstos en la ley de represión cada uno de dichos grupos es, o forma parte de un
de actividades comunistas 17.401 (Sarrabayrou- sistema, en función del cual se define, y en conse-
se; Villalta, 2004, p. 5). cuencia la posición de sus miembros, cuando ac-
túan como tales en relación unos con otros o con
Como sostienen estas autoras el funciona- extranjeros no está diferenciada (1940, p. 16).
miento del Fuero Antisubversivo fue un claro
ejemplo de persecución ideológica implemen- Desde esta perspectiva, tomando en cuen-
tado desde el poder judicial. ta sus creencias y su afinidad ideológica, en la
En este contexto, como consecuencia de la década de los setenta, había más cercanía entre
persecución judicial de las actividades políticas en las agrupaciones adscriptas a posiciones políticas
sentido amplio, se creó en la localidad de Mar del de izquierda tanto peronista como no peronista,
Plata una delegación de la Asociación Gremial de que entre el ala derecha del peronismo y el ala
Abogados o La gremial como era denominada por izquierda de este mismo movimiento7.
sus miembros (la cual mantenía estrechos víncu- Pese a que, como ya se mencionó, las pro-
los con la que funcionaba en Buenos Aires a la cedencias políticas de los integrantes de La
que perteneció el funcionario de la Secretaría de gremial eran diversas debido a que común-
Derechos Humanos de la Nación). Esta organiza- mente defendían a militantes pertenecientes
ción surgió como una forma de protección frente a las agrupaciones del peronismo de izquierda
a los acosos que sufrían los abogados que litiga- (como el Peronismo de Base) o a miembros de
ban en el fuero laboral, defendiendo a muchos de organizaciones armadas (como por ejemplo, el
los sindicatos y gremios de la ciudad. Ejército Revolucionario del Pueblo o Montone-
La Gremial marplatense tenía un carácter ros8), el poder militar los consideraba como la
evidentemente multisectorial. Los abogados cara visible de ésta última y eran sistemática-
que la conformaban provenían de diferentes mente perseguidos.
sindicatos y tenían diversas filiaciones políticas. A mediados de la década de los setenta las
La gremial estaba constituida, entre otros, por agrupaciones gremiales, sindicales, estudianti-
abogados que provenían del Partido Comunis- les, de trabajadores pertenecientes al Estado,
ta (PC), del Partido Comunista Revoluciona- entre otras, estaban atravesadas por
rio (PCR), del Partido Revolucionario de los
Trabajadores (PRT), del peronismo e, inclu- la radicalización del conflicto interno del pero-
sive, algunos de sus miembros no tenían una nismo, y el agravamiento de la violencia que no
adscripción política definida. era privativa de este, sino de fuerzas revolucio-
Si bien, las diferencias políticas entre los narias y actores sociales e institucionales: en una
disímiles grupos que conformaban La gremial época en que diversos factores habían llevado al
eran un dato evidente, esto no impedía que en conflicto social a ese grado de agudización y a la

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visualización de la lucha armada como única vía Muchos de los profesionales marplatenses
de resolverlo (Lorenz, 2007, p. 101) que pertenecían a La gremial de abogados (o que
se los asociaba a la misma) eran considerados por
En ese contexto, las agrupaciones que respon- la CNU sus enemigos políticos y hostigados per-
dían a los sectores de derecha del movimiento manentemente con golpes y amenazas de muerte
peronista en la ciudad de Mar del Plata estaban en sus domicilios y lugares de trabajo. Años más
custodiadas por una burocracia sindical y por un tarde, integrantes de la CNU formaron parte de
grupo de choque perteneciente a la Concentración inteligencia del ejército y de las patotas de las fuer-
Nacional Universitaria (CNU). Los grupos de cho- zas armadas encargadas de secuestrar personas para
que, son una extracción de la agrupación la cual se llevar a los centros clandestinos de detención que
dedica a hostigar sistemáticamente a sus adversa- funcionaron en la ciudad de Mar del Plata.
rios políticos en diversos espacios sociales.
La CNU tenía delimitados territorios que es-
taban bajo su custodia: la Universidad Nacional El juego de las reputaciones
de Mar del Plata donde sus bedeles revisaban a las
personas que ingresaban a la institución, el único El episodio de La noche de las corbatas que se
juzgado federal donde los miembros de la CNU conmemoraba en el acto, no se trató de cualquier
exhibían sus armas como forma de persuasión caso sino de los secuestros de un grupo de hom-
ante los familiares que iban a radicar las denun- bres del derecho. Si bien, no todos estos abogados
cias sobre las desapariciones. mantenían relaciones entre sí y tenían filiaciones
La CNU no sólo estaba inserta en el espa- políticas diferentes, se los asoció a un mismo gru-
cio universitario, en los sindicatos y en el poder po por litigar en el fuero laboral y/o defender a
judicial sino que además tenía simpatizantes en presos políticos pertenecientes a determinadas
las fuerzas armadas y de seguridad quienes le li- agrupaciones políticas (como ya se mencionó).
beraban territorios para el accionar represivo. El Muchos de estos profesionales pertenecían a La
año anterior a la última dictadura militar exis- gremial, en algunos casos compartían sus estudios
tieron áreas en la ciudad que estuvieron bajo jurídicos o eran compañeros de militancia.
el control de grupos armados pertenecientes a Entre los letrados desaparecidos en aquel episo-
la CNU. Ese mismo año, los cargos del único dio, se destacaba un abogado de importante pres-
juzgado federal fueron ocupados también por tigio que había participado en la redacción de una
miembros de la CNU que hoy están en la Cá- ley de contrato de trabajo, cuyos artículos fueron
mara Federal de Apelaciones y forma parte de dejados sin efecto por el poder militar en marzo de
las élites del mundo de la abogacía. 1976. Este letrado tenía vínculos estrechos con di-
Es por esto que puede pensarse el funciona- versos sectores sindicales, el poder judicial y el mun-
miento de la CNU como el de una facción. Según do de la política. En este sentido, gozaba de una
Beatriz Heredia y Moacir Palmeira, “la unidad so- destacada reputación debido a la cantidad de espa-
cial significativa del tiempo de la facción existe ape- cios de interacción social por los que transitaba.
nas en razón directa de la intensidad del conflicto Todos los abogados desaparecidos en aquel
que delimita” (1997, p.167). Para que la facción hecho gozaban de una importante reputación
encuentre su razón de ser el conflicto no debe ser debido a la cantidad de espacios sociales por los
disminuido sino llevado a su límite. La hostilidad que transitaban (la Facultad de Derecho, el Co-
de la facción se expresa a través de la segregación de legio de Abogados, los tribunales, los espacios
lugares públicos, inclusive áreas. de socialización, los grupos de militancia, etc.).

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Se trató de un grupo que, en términos de Bailey corbatas”. Pedro, sin la ayuda de aquel alto funcio-
(1971), contaba con una serie de reputaciones nario, no hubiera conseguido acceder al escenario.
vinculadas a los diversos espacios sociales, polí- A su vez, este último (investido de autoridad) no
ticos y laborales en los cada uno de estos profe- hubiera podido hacer el reclamo en los términos y
sionales se desempeñaba. La reputación, definida con la euforia que lo hizo Pedro. Es aquí donde el
como todo aquello que los otros dicen de uno, epígrafe de este trabajo cobra sentido.
emerge de las interacciones en las que un hom-
bre se compromete en una comunidad (Bailey, Le ganas a tu rival si puedes convencer a otra gente
1971). Visto desde esta óptica, La noche de las de que has actuado por los intereses de la comunidad
corbatas fue un caso que, por estar inmerso en mientras que el otro fue egoísta (Bailey, 1971, p.2).
una red de relaciones sociales y políticas particu-
lares y por tratarse de un grupo de profesionales El alto funcionario al aplaudir los reclamos
del derecho, logró tener una visibilidad que no de Pedro junto con el público demostró que sus
tuvieron otros casos de desaparecidos marpla- intereses coincidían con los de las personas que
tenses. Tal es así que, La noche de las corbatas es el se encontraban en el auditorio. Sin dudas, logró
único hecho de represión política en el periodo posicionarse como el guardián de la justicia y de
1976-1983 que figura como un acontecimiento la memoria a nivel local y nacional.
destacado en la página oficial de la ciudad de Cuando indagamos acerca del pasado, nos
Mar del Plata. Según da Silva Catela (2003) la encontramos con una lucha política activa acer-
memoria pública de los desaparecidos es la que ca del sentido de lo ocurrido, pero también acer-
puede ser ejercida, producida y distribuida por ca del sentido de la memoria misma y de sus
aquellos que portan capitales políticos y cultura- efectos en el presente. Según Jelin,
les para hacerlo, en este caso: las asociaciones de
abogados (a nivel municipal, provincial y nacio- el espacio de la memoria es entonces un espacio
nal), la Universidad Nacional de Mar del Plata. de lucha política y no pocas veces esta lucha es
concebida en términos de lucha contra el olvido
(2002, p. 6)
Conclusiones
No obstante, la memoria contra el olvido
Sintetizando el caso a modo de conclusión: la oculta lo que es en realidad una lucha entre me-
agrupación H.I.J.O.S. le había pedido a los orga- morias rivales (Jelin, 2002).
nizadores del acto decir unas palabras y éstos se Este acto puso en evidencia no sólo los dife-
negaron. El alto funcionario de la Secretaría de rentes sentidos acerca del pasado que intentaron
Derechos Humanos de la Nación abrió el juego instaurar los participantes sino además, los dis-
invitando a la agrupación H.I.J.O.S. a subir al tintos intereses en el presente. En alguna medi-
escenario para expresar sus reclamos. Pedro (cuyo da, este homenaje revela el estado actual de la
padre había compartido una experiencia de mili- trama de relaciones que hicieron posible los crí-
tancia con este funcionario) se convirtió en porta menes en el pasado. Las élites que quieren impo-
voz de la denuncia, ante el público local, sobre la ner determinados sentidos del pasado tienen un
falta de compromiso de los organizadores del acto claro interés en desechar determinados sentidos
(las élites del mundo de la abogacía) con relación a que pueden influir en su presente.
la tramitación de las causas por los crímenes come- El acto fue organizado por una prestigiosa
tidos en el episodio denominado “La noche de las asociación de nivel nacional, la cual se enfrentó a

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 63-74, 2008


Amistad en el pasado, política en el presente | 73

otra autoridad nacional (apoyada por el gobier- víctimas y/o a sus familiares) y la Fase de Impunidad
no nacional), la Secretaría de Derechos Huma- (amnistías, prescripciones y perdones). Estas fases no
se dan necesariamente separadas sino que, en muchos
nos de la Nación. Ganó el juego aquella que a
casos se dan superpuestas. El autor reconece además
partir de sus amistades políticas y vínculos locales los debates en torno a una Fase de expiación, Reconci-
fundados en haber compartido un compromi- liación y/o Reconstrucción Social. (Cohen, 1997)
so político vital en el pasado logró conmover a 3
A diferencia de Habermas, para quien al esfera pública es
la comunidad y convencerla de que sus inte- “una arena de relaciones discursivas, un teatro para deba-
reses eran los mismos. Este acto demuestra las tir y reflexionar en el cual los individuos privados deba-
maneras en que se ponen en juego los lazos del ten acerca de los problemas o asuntos de preocupación
pública (public concern) o interés común, […] donde
pasado, en este caso basados en una experiencia
la esfera publica connota un ideal de irrestricta discusión
compartida para ganar la partida. racional sobre los asuntos públicos” (Pita, 2004, p. 455).
Según Pita, la esfera pública es el espacio de desenvolvi-
Friendship in the past, policy in the pre- miento de conflictos “donde los significados son genera-
sent: Community and state in the configura- dos, circulan, se disputan y reconstruyen y, por lo tanto,
tion of memories and justice claim process se constituyen en arenas de construcción de hegemonía
que expanden el espacio discursivo” (p. 458).

abstract From the analysis of an act of remem-


4
Es interesente destacar que Proceso de Reorganiza-
ción Nacional fue el nombre que le asignó la Junta
brance, in this work we intend to study the way
Militar al periodo de la dictadura (1976-1983).
in which the different articulations between local 5
En el sistema penal argentino se denomina querella
and national, community and state take shape in
a la parte que demanda al acusado.
the configuration of memories and justice claims 6
Este fuero fue conocido en el mundo tribunalicio
process. Furthermore, we are interested in exami- como el “Camarón” o la “ Cámara del Terror”, fue
ning the manner in which friendship and solidarity disuelto dos años más tarde luego de la asunción del
bonds tie political relationships in the present. presidente Héctor Cámpora (Sarrabayrouse; Villal-
keywords Political Partners. Political Game. ta, 2004).
Communities. State. Memory. 7
Para ver las distintas agrupaciones y vertientes ideo-
logías que confluyeron en lo que fue el movimiento
peronista ver: Gillespie, Richard. Soldados de perón.
Historia crítica sobre los Montoneros. Buenos Aires:
Notas Editorial Sudamericana, 2008.
8
Para conocer más sobre el funcionamiento de la orga-
1
La última dictadura militar argentina implementó un
nización político militar llamada Montoneros puede
sistema represivo basado en secuestrar personas pre-
verse Calveiro (2005), Oberti y Pittaluga (2006),
viamente designadas, mantenerlas prisioneras en cen-
Gillespie (2008), entre otros.
tros clandestinos de detención distribuidos por todo
el país, quebrarlas física y psicológicamente a través
de la tortura, asesinarlas y ocultar sus cadáveres.
2
Stanley Cohen analiza cuáles han sido las fases por las Referências bibliográficas
que atravesaron los distintos estados para juzgar crí-
menes políticos de regímenes anteriores, planteando la BARBUTO, Valeria. Inscribir el futuro: las estrategias
imposibilidad – o las dificultades – de que los estados se de patrimonialización de la memoria como política
juzguen a sí mismos. Para esto, distingue tres períodos de Estado. In: IX Congreso Argentino de
o fases, la Fase de Verdad (investigación, develamiento Antropología Social, Fronteras de
y reconocimiento social de los hechos), la Fase de Jus- la Antropología, 2008. Anales de IX Congre-
ticia (responsabilización penal punitiva, separación de so Argentino de Antropología Social, Fronteras de la
sus cargos a los responsables y compensaciones a las Antropología, Misiones, Argentina, 2008, CD. 20 p.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 63-74, 2008


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autor Nazarena Belén Mora


Doutoranda em Ciências Antropológicas/UBA

Recebido em 28/03/2008
Aceito para publicação em 19/01/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 63-74, 2008


Para além da canoa de papel
Cauê Krüger

resumo O presente artigo propõe-se a contribuir ma acessória e apropriando-se de alguns conceitos


para o debate acerca da análise antropológica dos fe- e orientações segundo interesses próprios, alheios
nômenos teatrais nas sociedades contemporâneas. Para aos objetivos propriamente antropológicos.
tanto, parte da análise das implicações da “Antropolo- A abordagem de Barba parte de discussões
gia Teatral” de Eugênio Barba que, apesar de gozar de específicas acerca da arte da interpretação teatral,
repercussão mundial e ampla aceitação em inúmeras tais como “o que é a presença do ator? Por que ao
pesquisas na área de artes cênicas, não possui qual- executar a mesma ação um ator é crível e outro
quer validade antropológica. Em contraposição a esta não? Será o talento também uma técnica? Um
perspectiva acerca do teatro, as obras de Victor Turner, ator pode conseguir a atenção do espectador por
inaugurando o que se convencionou chamar de Antro- meio da sua imobilidade? No que consiste a ener-
pologia da Performance, fornecem um arcabouço va- gia no teatro? Existe um trabalho pré-expressivo?”
lioso, mas que não raro vem sendo utilizado de forma (Barba, 1994, p.11). Frente a tais questionamen-
a-histórica, mecânica e descontextualizada. O objetivo tos, por que a antropologia seria importante para
desta contribuição está em destacar a importância da o teatrólogo? Passemos a acompanhar a apropria-
dimensão da experiência na obra de Victor Turner, ção (ou interpretação) muito particular da Antro-
bem como a validade da análise, já clássica, de Pierre pologia segundo Eugênio Barba.
Bourdieu em sua obra As Regras da Arte (1996).
palavras-chave Antropologia Teatral. Antropo-
logia da Performance. Antropologia da Experiência. A “Antropologia Teatral” de Eugênio
Barba

Introdução Após trabalhar como assistente de Jer-


zy Grotowski, diretor polonês imortalizado
Eugênio Barba não é um nome conhecido por sua concepção de “teatro pobre”1, Barba
no círculo antropológico, tampouco suas obras passou a desenvolver um método próprio.
A Canoa de Papel (1994) e A Arte secreta do Ator Fundou seu grupo, o Odin Theatret, e viajou
(1995). Entretanto, no meio teatral, Barba é re- muito para países asiáticos, principalmente
verenciado e aclamado não apenas como um Bali, Taiwan, Sri Lanka e Japão. Segundo o
dos mais importantes teóricos vivos, mas tam- autor (1994, p. 19-20):
bém como o criador da “Antropologia Teatral”.
Os subtítulos das obras acima: “Um Tratado de Vi muito teatro e muita dança. Não há nada mais
Antropologia Teatral” e “Dicionário de Antropo- sugestivo para um espectador europeu do que ver
logia Teatral” denunciam a ambição do autor de um espetáculo tradicional asiático dentro de seu
inaugurar uma abordagem antropológica sobre o contexto, geralmente tropical e ao ar livre, com
teatro. Contudo, como iremos demonstrar, a “an- um público numeroso e que reage, uma música
tropologia teatral” de Barba não guarda qualquer constante que cativa o sistema nervoso, vestuá-
semelhança com a concepção desta área nas ciên- rios suntuosos que deliciam o olhar e intérpretes
cias humanas, valendo-se da antropologia de for- que realizam a unidade de ator-bailarino-cantor-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-304, 2008


76 | Cauê Krüger

narrador. Ao mesmo tempo, não existe nada mais A utilização do termo “técnica” neste contex-
monótono, sem ação ou desenvolvimento que os to por si só remete ao clássico texto de Marcel
compridos diálogos de dezenas de minutos du- Mauss (1974a), “As técnicas corporais”. De fato,
rante os quais os atores falam em sua incompre- este estudo trouxe tamanha influência para Eu-
ensível língua, com uma melodia que se repete gênio Barba e Nicola Savarese, que extratos dele
implacavelmente. Nessas monótonas situações, se encontram publicados em A Arte Secreta do
minha atenção criava uma tática para não aban- Ator. Contudo, a utilização do texto de Mauss
donar o espetáculo. Tentava concentrar-me e se- pelos autores visa legitimar, por oposição, o
guir, sem trégua, somente um detalhe de um ator: principal postulado da “Antropologia Teatral”
os dedos de uma mão, um pé, um ombro, um centrado no conceito de “extracotidiano”:
olho. Por meio dessa tática contra a monotonia
notei uma coincidência singular: os atores e baila- O modo como usamos nossos corpos na vida
rinos asiáticos atuavam com os joelhos dobrados cotidiana é substancialmente diferente de como
exatamente como os meus atores do Odin Theatret os usamos em situações de representação. Na
[...] Assim foi-me revelado um dos princípios da vida cotidiana usamos uma técnica corporal que
Antropologia Teatral: a alteração do equilíbrio. foi condicionada pela nossa cultura, nossa po-
sição social e profissão. Mas numa situação de
Esta citação por um lado nos faz compre- representação o uso do corpo é completamente
ender o interesse de Barba pela antropologia, diferente. Portanto, é possível diferenciar entre
uma vez que destaca a diversidade das expres- a técnica cotidiana e a técnica extracotidiana.
sões culturais com que o autor se deparou no (Barba; Savarese, 1995, p. 227).
contexto asiático (bem como a dificuldade em
compreendê-las em profundidade). Por outro, Para Barba, o trabalho do ator funde três
demonstra com exatidão a distância dos interes- “aspectos diferentes” e “bem distinguíveis”2.
ses do autor daqueles caros à antropologia, pois O primeiro aspecto é o individual e envolve-
frente à incompreensão do fenômeno, o autor ria a “personalidade do ator, sua sensibilidade,
passa a observar o detalhe, o particular, a técni- sua inteligência artística, sua individualidade
ca teatral empregada. Esta ênfase logo passa a se social”3; o segundo seria relativo ao gênero es-
tornar a preocupação central do estudo de Eu- petacular, ou seja, à
gênio Barba e sua “Antropologia Teatral” que
[...] particularidade da tradição cênica e do
[...] foi definindo-se a meus olhos e em minha contexto histórico-cultural através dos quais a
mente observando a capacidade de meus atores irrepetível personalidade do ator se manifesta
de entrar em um determinado esqueleto/pele – (Barba, 1994, p.25).
ou seja, determinado comportamento cênico,
uma particular utilização do corpo, uma técnica Por fim, chegaríamos ao aspecto comum
específica – e logo sair deste. Este “desvestir-se” entre todos os atores de tempos e culturas di-
e “vestir-se” da técnica cotidiana à técnica extra- ferentes, e que seria, na perspectiva do autor,
cotidiana e da técnica pessoal a uma técnica for- universal e recorrente, referente à
malizada asiática, latino-americana ou européia,
obrigou-me a formular a mim mesmo uma série [...] utilização do corpo-mente segundo
de perguntas que me conduziram a um novo técnicas extracotidianas baseadas em prin-
território (Barba, 1994, p. 20-1). cípios-que-retornam transculturais. Estes

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 79-88, 2008


Para além da canoa de papel | 77

princípios-que-retornam constituem o que a o trabalho e a pesquisa confirmaram a existência


Antropologia Teatral define como o campo da de princípios que, no nível pré-expressivo, per-
pré-expressividade4. mitem gerar a presença teatral, o corpo-em-vida
do ator, capaz de fazer perceptível aquilo que é
Encontramos aqui o axioma central dos invisível: a intenção (Barba, 1994, p. 21).
escritos de Barba, pois o conceito de “Antro-
pologia Teatral” é definido como “o estudo do Tal tomada de posição deve-se à concepção
comportamento pré-expressivo do ser huma- de Barba daquilo que julga um dos mais noci-
no em situação de representação organizada” vos “etnocentrismos teatrais”: “O etnocentris-
(Barba, 1994, p.24). O emprego dos termos mo que observa o teatro do ponto de vista do
aqui não é casual. Barba concebe a “pré-ex- espectador, isto é, do resultado” (Barba, 1994,
pressividade” como uma dimensão humana p. 25), que para o autor levaria a omitir o pon-
“universal”, fisiológica e anterior a qualquer to de vista complementar, o processo criativo
influência individual, social ou estética e, por- do ator. Segundo o teórico,
tanto, a teoria do teatrólogo se aproximaria de
um obscuro “estruturalismo fisiológico”5. o estudo da representação no Ocidente tem-se
A distância entre a “Antropologia Teatral” concentrado, na maior parte, em teorias e uto-
de Barba e os objetivos acadêmicos da ciência pias, esquecendo uma abordagem empírica para
antropológica devem já ter ficado evidentes. os problemas do ator-bailarino (Barba; Savarese,
Dilacerado entre o fascínio com a manifesta- 1995, p. 5).
ção espetacular “exótica” das diferentes tra-
dições cênicas asiáticas e o tédio decorrente Em sua busca de ir contra este “etnocentris-
da incompreensão dos significados culturais mo teatral” e propondo novo etnocentrismo em
de tais performances, Barba encontra sua contrapartida, ao argumentar que “A antropo-
saída específica: a ênfase na técnica. Assim logia teatral é um estudo sobre o ator e para o
o autor vale-se do referido texto de Mauss ator” (Barba, 1994, p. 27), Barba busca distin-
para construir, por oposição, sua idéia de guir sua abordagem de “outras antropologias”:
comportamento “extracotidiano”, visando
destacar que cada tradição cultural constrói [...] a Antropologia Teatral não está preocu-
uma forma corporal particular de atuação cê- pada com aqueles níveis de organização que
nica. Neste sentido, a antropologia teatral de tornam possível a aplicação dos paradigmas
Barba não passa da coleta e aprendizado de da antropologia cultural ao teatro e à dança.
técnicas espetaculares de distintas culturas. Ela não é o estudo dos fenômenos de atuação
Apesar do uso inapropriado do termo “an- daquelas culturas que são tradicionalmente es-
tropologia” para tais objetivos, os antropólo- tudadas pelos antropólogos. Nem deveria ser
gos não teriam maiores motivos de crítica confundida com a Antropologia do espetáculo
aos postulados de Barba se suas pretensões se (Barba; Savarese, 1995, p. 5).
encerrassem por aí. Mas não é o que ocorre,
pois os postulados de Barba promovem ainda O parco conhecimento e o uso equivocado
maiores problemas. Isto porque o autor acaba das noções de “pesquisa empírica”, “etnocen-
por atribuir ao “comportamento extracotidia- trismo” ou mesmo “análise transcultural” já são
no”, ou seja, à técnica, o motivo do interesse suficientes para questionar a autoridade do tea­
da platéia pelo teatro. Como argumenta, trólogo de circunscrever os limites da atuação

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78 | Cauê Krüger

antropológica. Mas devemos ir além e destacar o Além da curva do rio: feiticeiros,


problema central da teoria de Barba: a aparente aprendizes e farsantes
crença de que ao centrar sua preocupação teó-
rica em uma dimensão “fisiológica” do uso do Um dos mais conhecidos textos antropoló-
corpo em cena, no suposto nível universal “pré- gicos acerca da complexidade dos fenômenos
expressivo” e extra-cotidiano (e leia-se aqui ante- simbólicos (e, por isto, radicalmente distinto da
rior a qualquer significado cultural) este estaria visão acima) é o ensaio “O Feiticeiro e Sua Ma-
“fora da cultura”, fora do âmbito antropológico gia”, de Claude Lévi-Strauss (1970). Tratando
“convencional” e paradoxalmente, no cerne da de um fragmento de autobiografia indígena re-
“produção de sentido cênico”. O autor acredita: gistrada por Franz Boas, Lévi-Strauss apresenta
“o teatro me permite não pertencer a nenhum a trajetória de um rapaz que não acreditava no
lugar, não estar ancorado a uma só perspectiva e poder dos xamãs e, buscando desmascará-los,
permanecer em transição” (Barba, 1994, p. 22). aceitou ser iniciado. Quesalid aprendeu então
Ora, este obscuro “estruturalismo fisioló- o ofício, constituído por uma
gico” é absolutamente contrário aos preceitos
antropológicos, sendo que o próprio Marcel estranha mistura de pantomima, de prestidi-
Mauss, no texto de referência de Barba, “As gitação e de conhecimentos empíricos, onde se
técnicas corporais”, argumenta (em uma pas- encontram misturados a arte de fingir o desfale-
sagem deliberadamente omitida na versão do cimento, a simulação de crises nervosas, o apren-
texto publicado por Barba e Savarese): dizado de cantos mágicos, a técnica para se fazer
vomitar [...] (Lévi-Strauss, 1970, p. 202-203).
[...] concluí que não se poderia ter uma visão
clara de todos estes fatos, da corrida, do nado, Mesmo após sua iniciação, Quesalid man-
etc., se não se introduzisse uma tríplice consi- tinha ainda a mesma descrença sobre o xa-
deração, quer fosse ela mecânica e física, como manismo. Contudo, sua fama já se espalhava
em uma teoria anatômica e fisiológica do andar, pelos arredores, de forma que, solicitado pela
quer fosse, ao contrário, psicológica ou socioló- família de um doente que sonhara com ele
gica. É o tríplice ponto de vista, do ‘homem to- como seu salvador, efetuou sua primeira cura.
tal’, que é o necessário (Mauss, 1974a, p. 215). Justificando o fato, por seu espírito crítico,
como fruto do acaso, Quesalid não estava ain-
É desta forma que a “canoa de papel” de da convencido de seus dotes, o que ocorreu
Barba naufraga, no exato momento em que pro- apenas quando, ao encontrar-se com xamãs
põe novo etnocentrismo teatral para combater da tribo vizinha, descobriu que estes dispu-
aquele que identifica como derivado da tirania nham de técnicas distintas daquelas nas quais
da platéia e da cobrança do “resultado” cênico. havia sido iniciado. Fundamentalmente não
O ponto mais nocivo da análise do autor está dominavam o “truque” de apresentar um pe-
em eliminar totalmente a dimensão simbólica, queno tufo de penugem misturado com san-
histórica e cultural do fenômeno estético e com gue como materialização da doença retirada
isso excluir também a platéia de sua teoria te- do corpo do enfermo pelo trabalho do xamã.
atral, que, pretende ser um trabalho de atores Nas palavras de Lévi-Strauss (1970, p. 204):
para atores, voltado à conquista da pré-expres-
sividade, estrutura primeira que garantiria um E eis aqui, pela primeira vez, nosso herói vaci-
comportamento cênico exitoso por definição. lante, por poucas ilusões que tenha mantido até

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Para além da canoa de papel | 79

o presente acerca de sua técnica, ele encontrou feiticeiros, ou ao menos os mais sinceros dentre
uma ainda mais falsa, mais mistificadora e mais eles, acreditam em sua missão e que essa crença
desonesta do que a sua. não esteja fundada na experiência de estados es-
pecíficos (Lévi-Strauss, 1996, p. 207).
Com fama cada vez maior, ofuscando com
isso outros xamãs já célebres, ele foi convoca- Um dos principais ensinamentos que pode-
do para um desafio no qual triunfou com uma mos reter da perspectiva de Lévi-Strauss (em
cura em que seu desafiante havia fracassado. A oposição aos postulados de Barba) é a per-
partir deste acontecimento, Quesalid (concebi- cepção de como as representações coletivas (a
do então como um dos mais famosos feiticei- crença no xamanismo), as ações simbólicas e
ros de todos os tempos) prosseguiu sua carreira a construção do sentido cultural interferem
com atitude distinta: diretamente na vida social da comunidade e
também na prática e visão de mundo de cada
defende calorosamente, contra todas as escolas indivíduo inserido neste contexto. Apontando
rivais, a técnica da plumagem ensangüentada, para a complexidade dos fenômenos simbólicos
da qual parece ter perdido de vista, completa- e aludindo ao limite do pensamento lógico, seja
mente, a natureza falaciosa, e da qual zombara no que se refere à eficácia simbólica do com-
tanto no início (Lévi-Strauss, 1996, p. 206). plexo xamanístico ou mesmo da psicanálise6, o
antropólogo dá conta de englobar a ação sim-
O texto de Lévi-Strauss alerta para a impor- bólica, os princípios de orientação no mundo
tância e complexidade do imaginário presente (“cosmologias”) e sua eficácia em uma mesma
nas práticas simbólicas das sociedades. O an- abordagem. Este texto célebre se torna parti-
tropólogo trata analiticamente a questão, da cularmente importante aqui por demonstrar
seguinte forma: como a técnica, a crença individual e a ação so-
cial de um indivíduo se encontram necessaria-
Esta fabulação de uma realidade em si mesma mente inseridas em um contexto sócio-cultural
desconhecida, feita de procedimentos e repre- específico e que, diferentemente do que queria
sentações, é afiançada numa tripla experiência: a Barba, as atividades “extracotidianas” não exis-
do próprio xamã que, se a sua vocação é real (e, tem em “um mundo próprio e isolado”.
mesmo se não o é, somente pelo fato do exercí-
cio), experimenta estados específicos, de nature-
za psicossomática; a do doente, que experimenta Um rio caudaloso
ou não uma melhora; enfim a do público, que
também participa da cura, e cujo arrebatamento Uma das orientações mais fecundas da
sofrido, e a satisfação intelectual e afetiva que análise antropológica dos fenômenos expres-
retira, determinam uma adesão coletiva que sivos deve-se ao antropólogo britânico Vic-
inaugura, ela própria, um novo ciclo. Esses três tor Turner7, que partindo de uma formação
elementos daquilo que se poderia denominar de estrutural-funcionalista, no decorrer de suas
complexo xamanístico são indissociáveis. Mas publicações passou a postular uma análise
vê-se que eles se organizam em torno de dois processual dos fenômenos sociais, dando ori-
pólos, formados, um pela experiência íntima gem ao que chamou de Antropologia da Per-
do xamã, o outro pelo consensus coletivo. Não formance. A obra de Turner (à semelhança
existe razão para duvidar, efetivamente, que os dos objetivos propriamente antropológicos

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80 | Cauê Krüger

de Lévi-Strauss) está centrada na forma como rompimento não puder ser solucionado rapi-
os símbolos são concretizados em práticas e damente) em que há a tendência da ampliação
relações sociais. Conferindo importância à do conflito. Alguns mecanismos de “ajuste”
qualidade performativa das ações rituais e e “compensação” (formais ou informais) são
artísticas, o autor enfatiza o caráter dinâmi- aplicados para tentar conter a crise, como con-
co dos símbolos, que, em sua ação no mundo selhos pessoais, ações da máquina jurídica,
social, suscitam freqüentemente novos signi- legal ou mesmo a performance de rituais públi-
ficados e interferem diretamente na estrutura cos. A última fase do “drama social” é a solução
e nas sociedades. do conflito com a reintegração do grupo ou a
Em Schism and Continuity, percebemos o consolidação de uma separação irreconciliável,
primeiro passo para esta orientação, pois nela através de um procedimento compensatório.
o autor cunha seu famoso conceito de “dra- Nas palavras do autor10:
ma social”. Apesar de manter-se fiel a alguns
postulados de seu orientador, Max Gluck- Em resumo, a forma processual do drama social
man8, Turner buscava não apenas aprimorar pode ser formulada como (1) quebra; (2) crise;
seus conhecimentos sobre os Ndembu, mas (3) ação compensatória; (4) re-integração ou re-
também questionar as análises antropológi- conhecimento do cisma (Turner, 1957, p. 92)11.
cas “estáticas” de seu período, que acabavam
por colocar as mudanças e as inovações como Nesta obra, Victor Turner incorpora os
externas ao sistema social, que seria, suposta- princípios estruturais da sociedade Ndembu,
mente, estável. Assim, o drama social de Tur- as genealogias, as fissões das aldeias, as relações
ner relaciona um processo social com uma de poder e prestígio destacando também as es-
forma estética, à luz da sociedade Ndembu: tratégias individuais dos homens em busca de
tornarem-se chefes de aldeias. Segundo o autor,
(…) não era apenas com a coleta de um tipo os princípios fundantes da organização social da
diferente de dados que eu estava preocupado vila eram a descendência matrilinear e a virilo-
[...] mas com uma forma diferente de análi- calidade. Tal fato obrigava os homens a “impor-
se. Ao formular a noção de “drama social” eu tar” mulheres e “exportar” irmãs (que passavam
tinha em mente a comparação explícita da es- a morar na vila do marido), provocando a con-
trutura temporal de certos tipos de processos tradição masculina entre o papel de pais que
sociais com aqueles dos dramas do palco, com querem manter sua mulher e filhas junto de si
seus atos e cenas, cada um com suas qualidades e tios, que buscam resgatar a fidelidade de suas
peculiares e todos cumulando em um clímax irmãs e sobrinhos. Este paradoxo, segundo o
(Turner, 1957, p. XXXIV)9. autor, é a razão fundamental do alto grau de
fissão e de mobilidade individual na sociedade
O drama social refere-se a um distúrbio Ndembu, algo visto como extremamente ma-
na vida social de um grupo particular em que léfico e indesejado pelos próprios nativos que
duas facções se formam e a erupção do con- valorizam a manutenção dos grupos sociais.
flito, em geral, segue um determinado padrão, A boa administração de tal fenômeno,
obedecendo a uma forma processual. Segundo inevitável na sociedade Ndembu, é essencial
o autor, há o rompimento público das relações para que o homem consiga chegar ao posto de
sociais regulares, orientadas pelas normas so- chefe de sua vila e, para Turner, a profusão e
ciais. A isto sucede um período de crise (se o a freqüência da execução de diversos tipos de

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rituais é o que confere unidade aos aglome- mentalmente teóricas, pois o autor afasta-se do
rados locais, pois a “comunidade moral” dos trabalho de campo), Victor Turner amplia seus
Ndembu tem, nestes fenômenos simbólicos, a instrumentos de análise, distanciando-se desta
mais sólida forma de salientar valores e proce- abordagem extremamente fecunda de mesclar
dimentos que todos os integrantes desta socie- trajetórias individuais, valores, estrutura social
dade têm em comum: e expressão simbólica.
Em sua caminhada em direção a uma
Ao estabelecer laços de co-participação nos análise processual, a proveitosa colaboração
cultos que operam independentemente do pa- que Victor Turner desenvolveu com Richard
rentesco e das linhagens locais, o sistema ritual Schechner15 incentivou e respondeu a uma
é uma compensação, em alguma medida, pela série de posicionamentos teóricos de diversos
amplitude limitada do controle político efeti- estudiosos, que passaram a convergir para os
vo e pela instabilidade dos laços de parentesco estudos da performance16.
e afinidade, através dos quais o valor político é Partindo da perspectiva clássica de Arnold van
anexado (Turner, 1957, p. 291). Gennep, em Os Ritos de Passagem, Turner concebe
a existência de uma “estrutura social” (uma lógica
Assim, o autor consegue integrar, de forma organizada, racionalizada, um sistema de desem-
exemplar, em uma mesma análise, os valores penho de papéis sociais), e de uma “anti-estrutu-
comunitários, a estrutura social dos Ndembu, ra” (momentos separados da vida social cotidiana,
as trajetórias individuais (destacando as estra- que permitem a manifestação de outras práticas,
tégias dos homens que, na luta pela chefia da lógicas e simbologias), salientando a qualidade li-
vila valem-se das normas sociais buscando para bertária destes momentos chamados “liminares”.
si benefícios políticos), bem como a freqüência Em tais manifestações, segundo o autor, ocorre
e necessidade12 das performances rituais. Neste a suspensão dos constrangimentos (coerções, pa-
quadro, pode-se compreender mais claramente péis e deveres) da vida social habitual, para uma
a conhecida relação que o autor faz quando re- liberação cognitiva, afetiva, volitiva e criativa dos
laciona o “destino” Ndembu com o teatro, ou indivíduos, podendo concretizar uma forma de
com os “dramas sociais”13: socialização livre entre os participantes, um efeito
espontâneo de grande reciprocidade que Turner
[...] está claro que as diferentes personalidades en- chama de “communitas”. O que o autor perce-
volvidas ocupam posições sociais que inevitavel- be nestes momentos especiais é a possibilidade
mente deverão entrar em conflito, e cada ocupante de diacronia, da mudança social em que: “(…)
de uma posição deve apresentar seu caso em ter- novos modelos, símbolos, paradigmas, etc. emer-
mos de normas geralmente aceitas [...] A situação gem – de fato, como as sementeiras da criativida-
na vila Ndembu aproxima-se bastante daquela en- de cultural” (Turner, 1982, p. 28).
contrada no drama grego, em que se testemunha Assim, unindo tais postulados a idéia dos ri-
o desamparo do homem individual ante o destino: tuais de rebelião de Gluckman e sua concepção
mas nesse caso, o destino é a necessidade do pro- de drama social, Turner notabilizou-se por en-
cesso social (Turner, 1957, p. 94). fatizar as possibilidades criativas da anti-estru-
tura, vista pelo autor como algo além da mera
Mas se o “erro trágico” grego encontra aqui liberação momentânea assinalada pelas análises
a devida expressão antropológica14, no progres- dos estrutural-funcionalistas que o precederam.
so de suas contribuições acadêmicas (funda- Para Turner o comportamento desordeiro não

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seria apenas a compensação pela overdose de re- p.74). Nesta obra, podemos ver a tentativa
gras sociais, mas uma forma de aprendizado, de Turner de postular uma análise intercul-
experimentação, mudança social17. tural dos fenômenos expressivos, ou nos ter-
Se com esta perspectiva o autor estimulou mos do autor, sua “simbologia comparada”
uma gama de estudos sobre os aspectos rituais centrada
e performáticos em diversas sociedades, per-
mitindo que o arcabouço analítico do estudo [...] nas relações entre símbolos e conceitos,
antropológico dos rituais fosse mobilizado para sentimentos, valores, noções, etc. associados
compreender e explicar fenômenos de socieda- com eles pelos usuários, intérpretes ou exege-
des contemporâneas, por outro lado, não raro tas: em resumo, ela tem dimensões semânticas,
as contribuições para a Antropologia da Per- ela pertence ao significado na linguagem e con-
formance acabam enfatizando a mera aplicação texto (Turner, 1982, p. 20).
do modelo de inversão ritual, postulando uma
relação entre “mundo estético” e “mundo so- No texto em que buscam a definição da
cial” fundamentada em um frágil modelo “vi- atua­ção da Antropologia da Performance, Tur-
sual”, conforme o esquema abaixo: ner e Burner escrevem:

Mundo Social Mundo Estético Nesta perspectiva, uma expressão nunca é um


texto isolado e estático. ���������������������
Ao contrário, ela en-
volve uma atividade processual, uma forma de
Fenômenos
Manifestos verbo, uma atividade enraizada numa situação
social, com pessoas reais em uma cultura par-
Fenômenos ticular e em uma era histórica dada. Um ritual
Implícitos
tem de ser encenado, um mito recitado, uma
narrativa contada, um romance lido, uma peça
performatizada, e estas encenações, recitações,
declamações, leituras e performances são o que
A linha vertical separaria a esfera do fazem os textos serem transformadores e o
“mundo social” da segunda, que simboliza o que nos capacitam a re-experienciar nosso
“mundo estético” e a linha horizontal dividi- legado cultural. Expressões são constitutivas
ria os fenômenos manifestos dos implícitos18. e moduladoras, não como textos abstratos,
Turner busca defender a relação entre arte e mas na atividade que atualiza o texto. É neste
mundo como um processo em constante re- sentido que os textos têm de ser performa-
tro-alimentação: os dramas sociais manifestos tizados para serem experienciados, e o que
estimulariam o processo estético implícito, é constitutivo está na produção. Nós lidamos
dando origem a uma performance manifesta com textos performatizados, reconhecendo que
que alimentaria a parte latente dos dramas so- a antropologia da performance é uma parte da
ciais e assim consecutivamente. antropologia da experiência. Como expressões
Tal posicionamento, concebido pelo pró- ou textos performatizados, unidades estrutura-
prio autor como reconhecidamente “equili- das da experiência como histórias ou dramas é
brista”, tem o mérito de apontar para “[...] que as unidades de significado são socialmente
a relação dinâmica entre o drama social e os construídas (Turner; Bruner, 1986, p. 7, grifo
gêneros culturais expressivos” (Turner, 1982, meu).

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A citação acima aponta para a impossibi- gia da Performance no país) é extremamente co-
lidade da descontextualização dos fenômenos mum em obras de diversos filósofos, lingüistas,
simbólicos, por tratar a Antropologia da Per- semiólogos e historiadores, como diagnostica
formance como submetida a uma área maior, Pierre Bourdieu em As Regras da Arte (1996).
a Antropologia da Experiência, apta a com- Para o autor, apesar de divergências evidentes
preender tanto a dimensão da expressão como sobre a especificidade da obra de arte, a maioria
a da experiência em relação ao seu contexto dos analistas concorda em atribuir à definição
cultural. Porém, diversas aplicações recentes de arte propriedades tais como a gratuidade,
da Antropologia da Performance não enfati- a ausência de função (ou o primado da forma
zam o contexto, o sentido local e tampouco sobre esta), o desinteresse etc. Como exemplo
vão além de um espelhamento simplista entre deste tipo de definição, Bourdieu remete a Ha-
a expressão artística e mundo social. rold Osbourne, para quem:
Em seu trabalho apresentado na 25ª
Reunião Brasileira de Antropologia19, poste- [...] a atitude estética caracteriza-se pela con-
riormente transformado em artigo, Mariza centração da atenção (separa – frames apart
Peirano, após destacar o grande número de – o objeto percebido de seu entorno), pela
pesquisas recentes nesta área da antropologia suspensão das atividades discursivas e analíti-
no país, critica a ênfase da teoria antropoló- cas (ignora o contexto sociológico e histórico),
gica do ritual em detrimento das perspectivas pelo desinteresse e o desprendimento (afasta as
empíricas nestas contribuições. Argumentan- preocupações passadas e futuras) e, enfim, pela
do que “(...) a concepção de que um evento indiferença à existência do objeto (Bourdieu,
‘é diferente’, ‘especial’, ‘peculiar’, tem que ser 2005, p. 319).
nativa” (Peirano, 2006, p.10), a autora se con-
trapõe exatamente àquela aplicação simplista Bourdieu discorda amplamente das pers-
e descontextualizada da Antropologia da Per- pectivas fundamentadas nesse pressuposto,
formance que se privaria de realizar o “recorte pois tais análises centram-se na experiência
antropológico” na análise do fenômeno esté- subjetiva da obra como aquela de seu autor,
tico, pois as performances seriam já “destaca- sem perceber a historicidade dessa experiência
das” por definição. Portanto, seriam tratadas e do objeto em questão:
apenas como: as “nossas histórias [dos antro-
pólogos] sobre as histórias deles [nativos]” [...] operam, sem o saber, uma universalização do
(Turner; Bruner, 1986, p. 10), ou, de forma caso particular [...] em norma transhistórica de
análoga: a interpretação das pessoas quando toda percepção artística (Bourdieu, 2005, p. 320).
elas estão se auto-interpretando.
Segundo o teórico, tais perspectivas não
tratam das condições históricas e sociais da
Sobre canoas, barqueiros e viajantes: possibilidade da experiência artística, nem
a contribuição de Bourdieu das condições de produção, reprodução e fa-
bricação da disposição estética que exigem,
Este nocivo procedimento de descontex- objetivo último de uma sociologia ou antro-
tualização do fenômeno artístico (que vemos pologia da arte.
deliberado em Eugênio Barba e freqüente em Para contemplar tais perspectivas de forma
algumas aplicações equivocadas da Antropolo- adequada, Bourdieu ressalta uma importante

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postura metodológica necessária ao analista, é o da teoria e do conceito sem ser por isso,
que deve evitar tratar a percepção de uma como querem com freqüência aqueles que
obra cultural como um ato intelectual de de- lhe sentem a especificidade, uma espécie de
cifração, uma “leitura” realizada por um leitor participação inefável no objeto conhecido
“escolástico”. Para o autor: (Bourdieu, 2005, p. 349-350).

Este ponto de vista é o fundamento do “fi- Tratando a experiência social “como


lologismo” que, segundo Bakhtine, leva a experiência prática que se adquire na fre-
tratar a linguagem como letra morta desti- qüentação de um universo social particular”
nada a ser decifrada (e não a ser falada ou (Bourdieu, 2005, p. 353) e escapando as-
compreendida praticamente) e, de maneira sim da visão essencialista acerca da arte e do
geral, do hermeneutismo que conduz a con- suposto “olhar puro” recorrente em grande
ceber todo ato de compreensão segundo o parte das análises que se baseiam em pers-
modelo da tradução e a fazer da percepção pectivas “intra-estéticas”, a contribuição de
de uma obra cultural, qualquer que seja, um Bourdieu está em indicar uma perspectiva
ato intelectual de decodificação que supõe histórica da gênese do artista e do campo
trazer a lume e empregar conscientemente artístico, do conjunto de mecanismos so-
regras de produção e interpretação [...] é ciais que possibilitam a criação deste “lugar
preciso, para suprir a ausência da compre- social” do artista bem como do fetiche que
ensão (verdadeira) imediatamente dada ao é a obra de arte, buscando demonstrar o
indígena contemporâneo, fazer um trabalho encontro de um habitus específico com seu
de reconstrução do código que aí se encontra campo gerador.
empregado; mas sem esquecer por isso que Esta abordagem, que não chega a ser
a característica da compreensão original é inovadora (pois como confessa o autor, o
que não supõe de modo algum tal esforço procedimento que adota é semelhante ao
intelectual de construção e tradução; e que de Mauss em seu clássico “Ensaio sobre a
o indígena contemporâneo, à diferença do Magia” (1974b), além de influenciada pe-
intérprete, emprega em sua compreensão es- los escritos de Weber sobre a religião) vem
quemas práticos que nunca afloram enquan- sendo desprezada em diversas contribui-
to tais à consciência (à maneira, por exemplo, ções acadêmicas recentes, que acabam por
das regras de gramática). Em suma, o analis- posicionar-se a partir da perspectiva de um
ta deve introduzir em sua teoria da percep- “leitor especializado”, ou mesmo realizando
ção da obra de arte uma teoria da percepção a descontextualização e universalização re-
primeira como prática, sem teoria nem con- preendidas por Bourdieu.
ceito, da qual se dá a si mesmo um substi-
tuto pelo trabalho que visa construir uma
chave de interpretação, um modelo capaz de O fim da viagem: à guisa de conclusão
explicar as práticas e as obras [...] A ciência
do modo de conhecimento estético encontra Ao procurar estudar de forma total os
seu fundamento em uma teoria da prática fenômenos cênicos que ocorrem nas dife-
enquanto prática, ou seja, enquanto ativida- rentes culturas, buscando compreender os
de baseada em operações cognitivas que em- valores, práticas e significados veiculados
pregam um modo de conhecimento que não (tanto em seu processo de produção quanto

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no de recepção), sem deixar de relacioná-los O autor busca uma ciência “capaz de deter-
ao seu contexto, à história de sua consoli- minar o sentido que as coisas têm para a vida
dação e ao processo de criação das compe- ao seu redor”20. Por isto,
tências para sua fruição, o analista poderá
por fim, compreender e explicar esta cons- A capacidade de uma pintura de fazer senti-
trução simbólica de forma competente, do (ou de poemas, melodias, edifícios, vasos,
sem descontextualizá-la ou intelectualizá- peças teatrais ou estátuas), que varia de um
la. Esta perspectiva permite ao teórico es- povo para o outro, bem assim como de um
quivar-se do mero “espelhamento” entre a indivíduo para outro, é, como todas as capa-
arte e o mundo, ou mesmo da concepção cidades plenamente humanas, um produto da
desta como algo “externo ao mundo social” experiência coletiva que vai bem mais além
(evidente na versão de Barba acerca do “ex- dessa própria experiência [...] A participação
tracotidiano”) e também de análises a-his- no sistema particular que chamamos de arte
tóricas e descontextualizadas inspiradas na só se torna possível através da participação no
Antropologia da Performance. sistema geral de formas simbólicas que cha-
A devida abordagem antropológica do mamos cultura, pois o primeiro sistema nada
teatro deve compreender e explicar os sen- mais é do que um setor do segundo. Uma teo-
tidos, valores e significados atribuídos à ex- ria da arte, portanto, é ao mesmo tempo, uma
pressão cênica por seus participantes, como teoria da cultura e não um empreendimento
ressalta Clifford Geertz (1997, p 146): autônomo (Geertz, 1997, p. 165).

O maior problema que surge com a presença Uma vez que novos progressos das análises
do fenômeno estético, seja qual for a forma antropológicas dos fenômenos estéticos ve-
em que se apresente ou a habilidade que o nham a ser difundidos, ampliando e desenvol-
produziu, é como anexá-lo às outras formas vendo tal orientação, sem dúvida haverá menor
de atividade social, como incorporá-lo na tex- espaço e legitimidade para perspectivas teóricas
tura de um padrão de vida específico. E essa “apressadas” como a de Eugênio Barba, basea-
incorporação, esse processo de atribuir aos das antes em interesses pragmáticos do mundo
objetos de arte um significado cutural, é sem- teatral que buscam legitimidade teórica ao ma-
pre um processo local [...] nipular termos e conceitos das ciências huma-
nas. “Passar-se por outro” no campo acadêmico
Tal como Bourdieu, Clifford Geertz foi é certamente muito diferente do que sobre o
também inspirado pela importante obra de palco italiano, pois se ali nos maravilhamos
Michael Baxandall (1991), O Olhar Renascente, com a ilusão dramática, a “ilusão teórica” é, no
e de forma semelhante, o antropólogo indica mínimo, desoladora.
que para ser eficaz

[...] a semiótica terá que ir além do estudo de Beyond The Paper Canoe
sinais como meios de comunicação, como um
código a ser decifrado, e considerá-los formas abstract The present article intends to
de pensamento, um idioma a ser interpretado contribute to the debate about anthropological
(Geertz, 1997, p. 181). analysis of theatre in contemporary societies. It
analyzes the impact of the Theatre Anthropo-

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logy of Eugenio Barba, which despite its global 8


Em sua obra, Max Gluckman trabalha com a ques-
diffusion and acceptance in the theatre research tão das “liberdades” e da “rebelião” na África, che-
gando, em Custom and Conflict in Africa, à tese
area, does not have any anthropological validi-
de que as divisões sociais (antagonismos) em áreas
ty. In opposition to this view, the work of Vic-
restritas (micro) acarretariam, em uma dimensão
tor Turner, giving origin to the Anthropology ampla (macro) uma força de coesão social ampla.
of Performance, has been used as an important Assim o autor articula os conflitos com as normas
support, despite many a-historical, mechanical sociais, de forma evidentemente estrutural-funcio-
and de-contextualized applications. This article nalista, com ênfase em “rebeliões esperadas”, ritua-
lizadas e geradas pela “tradição”.
intends to recall the importance of the dimen-
sion of “experience” in Turner’s work, and also
9
Tradução livre feita pelo autor.
the already classical analysis of Pierre Bourdieu’s
10
Todos os trechos de Victor Turner foram traduzi-
dos livremente pelo autor.
work The Rules of Art.
keywords Theatre Anthropology. Anthropolo-
11
Turner salienta que o processo não precisa neces-
sariamente correr harmoniosamente, sendo que,
gy of Performance. Anthropology of Experience.
por exemplo, a falha do mecanismo compensatório
(ação compensatória) pode levar novamente à crise.
12
De fato o termo revela aqui o vínculo do autor à
Notas perspectiva estrutural-funcionalista que posterior-
mente iria ser criticada em suas obras.
1
Sobre o autor, ver Grotowski (1992). 13
Tanto no que se refere à análise do parentesco feita
2
Idem por Turner, à síntese das estratégias individuais dos
3
Ibidem atores sociais bem como a noção de drama social,
ver o artigo de Maria Laura Viveiros de Castro Ca-
4
Idem
valcanti (2007).
5
Tomamos a liberdade de utilizar esta expressão 14
Ver o artigo de Maria Laura Viveiros de Castro Ca-
de forma comparativa, para aludir ao conceito
valcanti (2007), que não apenas trata da questão
de estrutura de Claude Lévi-Strauss e evidenciar
do conceito de drama social e da análise do paren-
a diferença entre as teorias. Ao invés de preocu-
tesco feita por Turner em Schism and Continuity
par-se com uma forma operatória do inconsciente
in an African society, como destaca os procedi-
humano, que organiza os fatos do mundo a par-
mentos “dramatúrgicos” utilizados na etnografia,
tir de oposições mentais, Barba parte da suposta
de modo a destacar as estratégias individuais dos
“universalidade fisiológica” do homem para frisar
atores sociais.
sua capacidade de aprender e executar quaisquer
“técnicas corporais”.
15
Schechner era diretor de um famoso grupo norte-
americano chamado The Performance Group e
6
No referido ensaio, Lévi-Strauss, em um procedi-
vinha dedicando-se cada vez mais aos estudos an-
mento relativista e crítico da razão ocidental, com-
tropológicos e à teoria social. Em 1967, publicou
para o processo cognitivo do complexo xamanístico
um livro que tornou-se clássico para os estudos da
com as terapias psicanalíticas, demonstrando suas
performance, intitulado Performance Theory. O
semelhanças.
autor também é editor de The Drama Review, uma
7
Victor Witter Turner (1920-1983) foi um dos das revistas mais influentes no debate acadêmico
mais conhecidos expoentes do que se convencio- das artes cênicas.
nou chamar de Escola de Manchester. Participou 16
Em 1986 a coletânea de Turner e Bruner, Anthro-
do instituto Rhodes-Livingstone, dirigido por Max
pology of Experience, apresenta um capítulo intro-
Gluckmann e publicou diversas obras de grande in-
dutório chamado Anthropology of Performance.
fluência no meio antropológico, entre elas Schism
and Continuity in an African Society (1957), Fo-
17
Tal como Milton Singer (de quem o autor retirou
rest of Symbols (1967) e From Ritual to Theatre o termo “performances culturais”) que percebia em
(1982). tais fenômenos a forma paradigmática de propa-

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Para além da canoa de papel | 87

gação das “tradições” (ver Singer, Milton When a dernos de Campo, São Paulo, n.16, 2007, p. 127-137.
Great Tradition Modernizes, 1972), Victor Turner GEERTZ, Clifford. O Saber Local. Petrópolis: Vozes,
não concebe as manifestações rituais como dotadas 1997. 366 p.
da mesma subversão que identificava em outros
GLUCKMAN, Max. Custom and Conflict in Africa.
gêneros das sociedades modernas, industrializadas
(leia-se ocidentais). Nestas sociedades, os fenô- Oxford: Blackwell, 1966. 173 p.
menos anti-estruturais se apresentariam de forma GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de Um Teatro Pobre.
particular, batizadas por Turner de “liminóides”, Rio de Janeiro: Ed. Civ. Brasileira, 1992. 220 p.
e seriam caracterizados por sua individualidade, LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio
voluntariedade, pluralidade, reflexividade e maior de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. 456 p.
propensão à subversão do status quo, tendendo a
MAUSS, Marcel. As Técnicas Corporais. In: Sociolo-
satirizar, burlar ou colocar abaixo valores centrais
desta mesma sociedade. gia e Antropologia. Vol. II, São Paulo: E.P.U/Edusp,
1974a. p. 209-233
18
Ver Turner (1982, p. 73).
_____. Ensaio sobre a Magia. In: Sociologia e Antro-
19
A 25ª Reunião Brasileira de Antropologia, ocor-
rida em Goiânia, em junho de 2006 contou com pologia. Vol. I, São Paulo. Editoras: E.P.U/ Edusp,
a presença, na mesa-redonda de tema “Do Ritual 1974b. p. 37-176
à Performance: abordagens teóricas num campo PEIRANO, Mariza. O Dito e o Feito. Rio de Janeiro:
emergente no Brasil” dos antropólogos Mariza Pei- Relume-Dumará, 2002. 228 p.
rano, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti _____. Temas ou Teorias? O estatuto das noções de
e John Dawsey sob a coordenação de Esther Jean
ritual e performance. Campos, Curitiba, n.7, v.2, p.
Langdon.
9-16, 2006.
20
Idem
TURNER, Victor. Schism and Continuity in an African
Society: a Study of Ndembu Village Life. Manchester
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social: notas sobre um tema de Victor Turner. In: Ca-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 79-88, 2008


88 | Cauê Krüger

autor Cauê Krüger


Mestre em Antropologia Social/UNICAMP

Recebido em 28/03/2008
Aceito para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 79-88, 2008


Imagens do poder: a política xinguana na etnografia1

Marina Vanzolini Figueiredo

resumo O artigo apresenta uma revisão dos vida nativa - incluindo sistemas de classificação
modos pelos quais a liderança indígena tem sido de parentes, norma de casamento preferencial,
descrita nas etnografias do conjunto multilíngüe mitologia, rituais – apontaram outro elemen-
xinguano (MT). A análise aponta para uma opo- to compartilhado pelos habitantes da região, a
sição entre trabalhos que delineiam um socius hie- saber, uma certa distinção hierárquica interna
rárquico e centralizador e aqueles que focalizam às aldeias, associada à transmissão hereditária
o que poderíamos caracterizar como vetores cen- de posições de liderança. Mais do que isso,
trífugos do processo político local. Mesmo que essa configuração política não só estaria pre-
tal divergência corresponda em alguma medida a sente de maneira similar nas diversas unidades
realidades etnográficas diversas – diferença entre lingüísticas que participam da ‘comunidade
perspectivas Aruaque e Carib, por exemplo – a moral’ xinguana (Basso, 1995) como estaria
oposição é tratada aqui sobretudo como produto intimamente ligada ao kwarup (nome Tupi
dos diferentes alinhamentos teóricos dos etnógra- pelo qual é mais conhecido), o ritual funerá-
fos. O objetivo deste trabalho não é escolher a des- rio intercomunitário que, assim como o uluri,
crição mais verdadeira ou propor uma descrição ainda hoje simboliza o Alto Xingu na imagina-
alternativa da política xinguana, mas relacionar as ção antropológica e leiga. É sobre tal aspecto
etnografias aos modelos que as informam e, simul- da vida xinguana – uma filosofia política cujos
taneamente, enfatizar a necessidade de constante traços de centralização e hierarquia parecem
revisão da linguagem antropológica pelo confron- distingui-la de outras socialidades ameríndias
tamento com as práticas nativas. - que pretendo me debruçar.
palavras chave Alto Xingu. Política amerín- Uma análise antropológica motivada pelo
dia. Modelos etnográficos. encontro com a alteridade, que não se conten-
te em reafirmar as concepções espontâneas do
antropólogo, há que problematizar a própria
A região dos formadores do Xingu, no cen- delimitação do campo de estudo. Via de regra,
tro-norte do Mato-Grosso, tornou-se conheci- em abordagens inspiradas por um sociologis-
da na etnografia como sistema social xinguano mo durkheimiano ou marxista, “política” ou
ou sociedade xinguana em função da consta- “economia” são apontadas como a razão última
tação, já presente nos primeiros relatos sobre da “organização social”, a verdade cuja existên-
os habitantes da região (Steinen, 1940), de cia pode-se entrever sob o véu da vida “religio-
grande homogeneidade cultural entre os povos sa”. Para pensar o que é a política xinguana,
ali residentes, a despeito de sua variedade lin- no entanto, talvez seja preciso nos afastarmos
güística. Para expressar esta homogeneidade, de uma noção fundada no modelo ocidental
e referindo-se ao uso generalizado do adereço do Estado, atrelada ao paradigma da coerção e
pubiano feminino, Galvão (1953) denominou do controle econômico3. Sob a perspectiva do
a região área do uluri2. As etnografias produzi- Estado, de fato, os povos ameríndios só podem
das ao longo do século XX, além de confirmar figurar como sociedades da falta – um proble-
a abrangência regional de diversos aspectos da ma que conduziu os americanistas a rejeitarem

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os modelos derivados, sobretudo, dos estudos poder no lugar errado (Santos-Granero, 1993,
africanos, como veremos melhor a seguir. 2002; Descola, 1988). Questionando a asso-
Como bem sublinham Goldman e Lima ciação feita por Clastres entre poder e coerção,
(2003, p.19) na introdução da reedição brasi- alguns autores apontam o poder do xamã (que
leira de A sociedade contra o Estado, o trabalho detém os ìmeios místicos de reprodução so-
de Pierre Clastres é um marco fundamental cialî e assim controla a produção econômica,
do esforço de desenvolvimento de um modelo nas palavras de Santos-Granero) como o ver-
de política genuinamente ameríndio, isto é, dadeiro poder político (mas não-coercitivo),
um modelo que analisa positivamente as fei- enquanto o chefe-sem-poder seria apenas uma
ções particulares das socialidades amazônicas. ficção antropológica criada para dar conta de
Não é que a noção de poder em Clastres se papéis sociais diversos. A partir dessa crítica, a
transfigure mas, vendo-a ainda sob a figura do fissura entre sociedades com Estado e socieda-
poder coercitivo, o que o autor procura deter- des sem Estado perde sentido: o xamã podero-
minar é um modo propriamente ameríndio de so descrito por Descola e Santos-Granero está
lidar com esse poder (Sztutman, 2005, p.36). em continuidade com o chefe “de Estado” na
Ao invés de se perguntar que condições pro- medida em que seu poder não é, por princí-
piciam o acúmulo e a manutenção do poder, pio, regulado pelo grupo.
Clastres indaga sobre as condições sociais e Um comentário de Philippe Erickson
filosóficas que permitiriam a não-acumulação (1988) à tese de Santos-Granero complica
do poder. O autor interpreta, deste modo, a de maneira pertinente o problema do poder
ausência de Estado em certas sociedades como na figura do xamã ou chefe com poderes so-
produto de um esforço histórico tão grande brenaturais. Erickson lembra que mesmo o
quanto o demandado pela presença do Estado controle místico não é tido como legítimo
em outras. Para Clastres, haveria uma descon- senão sob a confirmação da sua efetividade:
tinuidade radical entre o chefe ameríndio e o o sucesso na caça e a atualização do ideal de
chefe de Estado, pois o chefe primitivo repre- generosidade seriam necessários como índi-
senta a negação do poder, ou o poder da so- ces de conexões místicas poderosas. Sem me
ciedade contra o Estado (1974, p.223). Mais prolongar na discussão, noto apenas que ela
do que isso, a unidade política primitiva seria aponta para uma considerável complexidade
anti-estatal não só por ser contra-hierárquica, no imbricamento das relações humanas com
mas também por ser movida por uma lógica seres sobrenaturais, das relações entre huma-
do centrífugo: tendência à dispersão das uni- nos que legitimam as primeiras e assim por
dades no espaço, das pessoas em unidades au- diante, complexidade esta que não se con-
tônomas de tamanho controlado, e do poder funde com aquela da centralização do poder
dentro de cada unidade política. através do controle dos meios de produção
Ainda que lançando as bases para um mo- ou da força física. Em outras palavras, mes-
delo ameríndio de liderança, Clastres foi acu- mo em se tratando do poder ìmísticoî, um
sado de manter-se atrelado à noção ocidental termo que não me agrada muito, é possível
de poder, mantendo-o associado a coerção fí- que encontremos uma certa dinâmica “con-
sica e controle econômico. Críticas à sua teo- tra o Estado”, isto é, contra a cristalização do
ria sugerem que a idéia paradoxal de um chefe poder, nas socialidades ameríndias. A seguir
sem poder é um engano etnográfico, como se veremos como essa hipótese pode ser profí-
o autor tivesse sistematicamente procurado o cua para o caso xinguano.

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Ao questionar a distinção radical entre so- princípio me guia na crítica às etnografias xin-
ciedades estatais e sociedade sem Estado, a tese guanas, não no sentido de defender o abandono
de Sztutman (2005) sobre formas de lideran- dos modelos teóricos em prol de uma suposta
ça entre os Tupinambá quinhentistas também fidelidade ao real, e sim no apontamento da ne-
oferece um caminho interessante para uma re- cessidade de contínua revisão da linguagem an-
apropriação das análises de Clastres. Seguin- tropológica. Veja-se, por exemplo, o problema
do a filosofia de Deleuze e Guattari, Sztutman da tradução de termos indígenas: as etnografias
sugere que os mecanismos anti-estatais dos indicam que para os xinguanos inúmeras posi-
índios sul-americanos não constituíram uma ções de liderança sobrepõem-se, distinguindo-
outra forma de vida social em relação à forma se entre elas uma que os índios hoje traduzem
Estado, mas uma máquina de guerra, uma po- por cacique ou chefe, por vezes desdobrada em
tência de desestabilização da estrutura social, dono da aldeia e capitão, e outra a que denomi-
presente tanto lá como em sociedades estatais. nam pajé5. Não é preciso, no entanto, aceitar
A imagem deleuze-guattariana de uma plura- a tradução nativa como definitiva, assumindo
lidade de centros que podem por vezes coin- de antemão uma perfeita coincidência de sen-
cidir e formar núcleos de poder, mas podendo tido entre a palavra cacique pronunciada por
também ser atravessados por linhas contrárias um xinguano e o mesmo termo redigido numa
que desfazem estas estruturas (Deleuze; Guat- monografia. A tradução de termos indígenas
tari, 1980, p. 94), permite a Sztutman fugir por chefe deve ser problematizada, ou então é a
da tipologização e do grande divisor nós/eles noção ocidental de chefe que precisará se alar-
para entender os processos pelos quais figuras gar para comportar os predicados do chefe em
de poder puderam e podem se constituir nos uma aldeia xinguana6.
socius ameríndios. É no sentido de identificar Meu ponto de partida é uma descrição bas-
onde há formação de centros de poder e onde tante particular da política xinguana, apresen-
estes são atravessados por linhas de fuga, ou tada por Michael Heckenberger (2000, 2000b,
vetores centrífugos, para retomar Clastres, 2005) em trabalhos recentes baseados na com-
que a análise de Sztutman pode ser bastante binação de pesquisa arqueológica com obser-
inspiradora para uma descrição da vida po- vação participante entre os Kuikuro (Carib
lítica xinguana. Note-se que esta morfologia xinguano). A diferença fundamental entre sua
da política está necessariamente associada ao pesquisa e outras etnografias da região é que
conteúdo do poder político, ou àquilo que Heckenberger produz menos uma descrição da
está em jogo na política, tema das críticas de política no Alto Xingu hoje do que a imagem
Descola e Santos-Granero. Sztutman, como de como ela teria sido no passado e, o que me
estes autores, demonstra a necessidade de as- parece mais complicado, como seria agora não
sociar a liderança entre os ameríndios a pro- fosse a tragédia demográfica decorrente da co-
cessos de apreensão de potência ìmísticaî, isto lonização. A partir de uma construção hipoté-
é, exterior ao mundo humano; a instabilidade tica resultante da combinação de dados atuais
da posição do líder derivaria em larga medida com a interpretação de vestígios arqueológicos,
da natureza extra-social dessa potência4. Heckenberger localiza a política xinguana num
O que há em comum aos trabalhos de Clas- quadro tipológico, sugerindo em seguida que
tres e seus críticos é a postulação da necessidade a não coincidência entre práticas nativas e o
de descrever processos políticos em termos das tipo ideal, retirado da etnologia polinésia, se-
práticas e do pensamento nativos. Este mesmo ria explicável pela interrupção de um processo

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evolutivo das formas políticas baseado na dis- re a uma forma de constituição de identidade,
tinção hierárquica de linhagens e no controle e conseqüentemente, de liderança, através da
progressivo das linhas superiores sobre os bens apreensão de potência estrangeira, horizontal
simbólicos em circulação na aldeia. Neste ce- ou verticalmente distante, isto é, uma potência
nário pré-colonial já estaria presente, sugere o adquirida de outros sociológicos e/ou cosmoló-
autor, ao menos uma “idéia de Estado” (2005, gicos (modelo utilizado, por exemplo, na tese
p. xiii). Isso não difere muito do que disse Clas- de Sztutman (2005), referida acima).
tres, mas me parece que os autores conferem Vejamos mais de perto o teor da crítica de
valores opostos a tal “idéia”. Heckenberger (2001) e a análise que ele propõe
Heckenberger articula sua argumentação da política xinguana. Em seguida, um sobrevôo
sobre uma crítica direta a algumas descrições às etnografias stricto sensu (baseadas apenas na
bastante influentes da política ameríndia a observação participante) oferecerá contraponto
partir de meados do século XX. Em primei- a esta análise e nos permitirá aprofundar a con-
ro lugar, a classificação dos alto xinguanos no sideração das resistências que o caso xinguano
Handbook of South American Indians (Lévi- pode apresentar a diferentes modelos teóricos.
Strauss, 1948), como povos da floresta, isto é,
comunidades igualitárias e isoladas, com fraca
liderança e pouca ênfase nas linhas de descen- Uma idéia de Estado
dência. Heckenberger propõe uma nova posi-
ção para o Alto Xingu dentro de um quadro A crítica à classificação do sistema xingua-
tipológico traçado fundamentalmente sobre no no Handbook of South American Indians é
os mesmos princípios que orientam a classifi- bastante anterior à tese de Heckenberger alu-
cação do Handbook, mantendo-se, portanto, dida acima. Robert Carneiro (1978, 1995),
no mesmo regime conceitual daquela obra. pesquisando também entre os Kuikuro, havia
Outra crítica do autor se dirige à tese desen- utilizado suas observações no Alto Xingu para
volvida por Clastres acerca das sociedades sem questionar a teoria, bastante influente então, da
Estado, comentada acima. Clastres usara, aliás, arqueóloga Betty Meggers (1971, 1995) sobre
uma etnografia xinguana (Murphy & Quain, a (não) evolução dos sistemas políticos amazô-
1955 apud Clastres, 1974) para exemplificar a nicos. Enquanto Meggers via nos ambientes
falta de poder coercitivo do chefe ameríndio, fora da várzea amazônica condições ambientais
e a imagem esboçada então coincidia em cer- definitivamente limitadoras para a constituição
ta medida com aquela das sociedades da floresta de sociedades de larga escala – que permitis-
que aparecia no Handbook – se bem que te- sem o desenvolvimento de estruturas políticas
nham resultado de bases teóricas, propósitos e e econômicas complexas7 – Carneiro argumen-
métodos analíticos radicalmente diferentes. Por ta que o território habitado pelos xinguanos,
fim, entre os alvos da crítica de Heckenberger, por exemplo, ofereceria as condições suficien-
está a noção de preensão relacional, desenvolvi- tes para o desenvolvimento de chefaturas, tipo
da por Viveiros de Castro (1986) a partir do de organização intermediária entre a tribo e o
cruzamento de material histórico Tupinam- Estado8. O problema desse tipo de região, para
bá com a etnografia Araweté (Tupi-Guarani). Meggers, seria a baixa fertilidade do solo, mas
Posteriormente tomada como modelo para a Carneiro sustenta que o fator ambiental rele-
descrição das cosmologias de outros povos das vante relacionado ao crescimento demográfi-
terras baixas do continente, esta noção se refe- co seria o acesso mais ou menos garantido, ao

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longo do ano, à proteína animal - mais fácil Sobre a constituição da liderança, Hecken-
quando a dieta é baseada na pesca, caso dos berger afirma que o pertencimento a uma li-
xinguanos. Deste modo, Carneiro não só ex- nhagem de chefes seria condição necessária,
plicou o que considerava ser a complexidade mas não suficiente, para a ascensão de um
atual do sistema sócio-econômico xinguano, indivíduo a uma posição de liderança oficial
mas também sugeriu a existência de uma or- (2005, p.269). Esta hierarquia seria objetifi-
ganização muito mais complexa no passado. É cada e reproduzida à medida que membros de
quase como se, antes, o Alto Xingu fosse mais linhagens de alto status detêm o acesso a bens
plenamente xinguano, no sentido de mais de- simbólicos, tais como conhecimentos rituais,
senvolvido naquilo que Carneiro identificava objetos distintivos e títulos de posse do terri-
nos Kuikuro do tempo da sua pesquisa: hie- tório, da praça central da aldeia e dos cami-
rarquia social, poder centralizado e integração nhos; estes dariam, por extensão, acesso a bens
regional pacífica. econômicos e a direitos políticos, isto é, poder
Ao mesmo tempo em que segue a agenda de mobilização de pessoas. A aldeia circular
de Carneiro, Heckenberger evita uma argu- assume um papel fundamental neste modelo,
mentação puramente materialista – baseada enquanto reflexo e promotora da assimetria so-
na relação entre base alimentar, crescimento cial: o acesso à praça central, lugar da palavra
populacional e formação de organizações po- e da ação pública, seria restrito aos indivíduos
líticas – e sugere que centralização do poder e de status superior, enquanto os demais ficariam
hierarquia seriam características de uma base confinados aos espaços politicamente passivos
cultural anterior à fixação dos povos xingua- da periferia. Também o posicionamento das
nos no território atual9. Em linhas muito ge- casas importantes em pontos cardeais definidos
rais, o autor afirma que a “sociedade regional” é visto como fixação física e simbólica da hie-
do Alto Xingu é resultado de um processo rarquia no espaço.
de aculturação assimétrico de grupos Carib O elemento fundamental para a constitui-
por grupos Aruaque que ocupavam a área no ção de hierarquia entre linhagens, segundo o
período entre 500-880 e 1750 d.C., depois modelo de Heckenberger, seria a superiori-
acompanhados de outros contingentes etno- dade das linhas de primogênitos. Os chefes,
lingüísticos, que também teriam passado por serem primogênitos, seriam os indivíduos
pelo mesmo processo de xinguanização, isto genealogicamente mais próximos dos heróis
é, no entendimento do autor, de adoção da culturais. Nas suas próprias palavras, o autor
cosmologia e do ethos Proto-Aruaque10 (He- delineia aí um processo de institucionalização
ckenberger, 2005, p.152). O autor sustenta e fixação de uma “nascente estrutura hierár-
ainda que esta hierarquia de origem Arua- quica”, o modo
que operaria em nível local, dentro de cada
aldeia, e no nível regional, entre as aldeias pelo qual padrões incipientes de hierarquia ba-
de todas as matrizes étnicas constituintes do seados em princípios de gênero [subordinação
conjunto cultural xinguano, o que justifica- das mulheres aos homens] e idade [subordina-
ria sua caracterização como sociedade regio- ção dos mais novos aos mais velhos] e incor-
nal. Esta ênfase na imagem de uma unidade porados na praça puderam ser transformados
política centralizada lhe permite sugerir que em controle real do ritual e da ação/processo
mudanças ocorreram basicamente no sentido políticos por certos segmentos da sociedade
de enfraquecimento de certas instituições. (2005, p. 311).

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Este processo derivaria da combinação de um aspecto central do pensamento e da expe-


uma ideologia hierárquica (ideologia que te- riência de alguns povos, não deveria implicar
ria o estatuto, no modelo de Heckenberger, numa homogeneização das etnografias; pelo
de um arbitrário cultural, isto é, de um dado contrário, como observa Strathern acerca do
sócio-cosmológico primordial dos povos Aru- método comparativo, um dos efeitos deste
aque) com condições ambientais determina- procedimento, que consiste em projetar sobre
das, a saber, condições que favorecessem um outras sociedades um traço cultural observado
crescimento demográfico tal que a distribui- num dado grupo, é a percepção da variação
ção das casas em círculo em volta da praça, de valor conferido àquele aspecto: central para
em anéis concêntricos, representasse uma dis- uns, periférico para outros (Strathern, 1991,
tinção real e simbólica entre os mais próximos p. xviii). O rendimento de um conceito para
e os mais distantes do centro da aldeia, que realidades diferentes daquela em que foi pro-
seria de fato um centro de poder. duzido só poderia ser analisado, de fato, no
É necessário contextualizar a insistência decorrer da investigação. De preferência, além
de Heckenberger quanto à especificidade do disso, o modelo será reformulado ou alargado
ethos Aruaque em relação a outros autores que à medida em que confrontado com aquelas
têm procurado distinguir esta mesma “matriz” realidades12.
num quadro de ontologias amazônicas11. O A mesma observação vale para a noção de
argumento principal destes autores é que um chefatura utilizada por Heckenberger (2005).
modo de constituição da identidade e, conse- Como lembra o autor, no contexto america-
qüentemente, do poder, tipicamente Aruaque nista o termo fora utilizado por Oberg para
não poderia ser descrito por um modelo que descrever o sistema “multiétnico” (freqüente-
privilegia a predação, como o desenvolvido mente comparado ao xinguano) do noroeste
por Viveiros de Castro (1986) para interpre- amazônico. De Oberg, Heckenberger toma o
tar a cosmologia Araweté e o material qui- conceito de chefatura teocrática para classifi-
nhentista, simultaneamente. Ao que parece, o car a política xinguana, a qual seria, segundo
regime predatório é entendido pelos autores sua descrição, baseada na proximidade genea-
como um tipo no qual se encaixariam algu- lógica de chefes com ancestrais míticos. Mas
mas formas sociais das terras baixas e outras é da etnologia sobre material polinésio que
não. Seria preciso considerar, no entanto, o Heckenberger tira as linhas principais de sua
rendimento de uma distinção tipológica para descrição do Alto Xingu (em seu hipotético
o conhecimento sobre os povos amazônicos, a apogeu). Refiro-me especialmente à noção de
fim de evitar os reducionismos ou oposições clã cônico, característico de um tipo de estru-
simplistas que poderiam resultar deste pro- tura em que linhagens de primogênitos teriam
cedimento. Mesmo que a noção de preensão estatuto superior às demais linhagens. De fato
relacional tenha se confirmado como modelo Heckenberger reconhece que a etnografia
pertinente para a descrição de diversos regi- xinguana apresenta não poucas contradições
mes de subjetivação amazônicos, seu valor em relação ao modelo polinésio, no que diz
não poderia ser mais que instrumental, por respeito, significativamente, à constituição de
permitir o aparecimento, em meio aos dados linhagens de primogênitos. Mas que outros
recolhidos em campo, de certos conceitos ou modelos poderiam ser traçados para uma me-
lógicas indígenas. Isto é, a observação de que lhor compreensão das práticas/pensamentos
a relação com o exterior do socius parece ser dos xinguanos atuais acerca da liderança?

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Descendência: ser e não ser chefe perceber e descrever mecanismos de abertu-


ra daquela comunidade ideal, isto é, meios
Uma considerável variação de bases teó- pelos quais novos grupos poderiam passar a
ricas marca o material etnográfico já produ- compartilhar daquela identidade comum re-
zido sobre o Alto Xingu, não muito vasto se conhecida pelos xinguanos13. Este ponto será
comparado à produção sobre outras regiões melhor discutido a seguir.
amazônicas, e do qual apenas uma parte nos Galvão é também um dos precursores, no
interessa para o presente exercício. Como já Alto Xingu, da crítica à aplicabilidade do con-
foi dito, o primeiro relato disponível sobre ceito de linhagens, forjado pela antropologia
os povos desta região provém dos registros africanista, à realidade ameríndia14. Tendo cen-
de von den Steinen (1940) em sua viagem de trado sua pesquisa sobre os Kamayurá, Galvão
1886. Apesar de resultarem de contatos bas- descreve o chefe xinguano como o cabeça de
tante breves, estes escritos revelam um olhar uma família extensa, cuja influência é exerci-
extremamente aguçado sobre os xinguanos. da quase que somente sobre seus co-residentes.
Steinen registra, por exemplo, a prolifera- Para o autor, a grande extensão dos termos de
ção das figuras de liderança em cada aldeia, parentesco possibilitaria uma alta flexibilidade
a flexibilidade das regras de sucessão e até as na formação de grupos baseados nas relações de
dificuldades enfrentadas por um chefe, como obrigação entre parentes. Galvão problematiza
aparece neste trecho curioso sobre um certo ainda a aparente organização das famílias xin-
líder Bakairi (grupo então agregado aos hoje guanas em grupos de descendência, alegando
considerados xinguanos) ìa quem coube a vez ser esta uma falsa impressão sobre a composição
de ficar cacique; preferiu emigrar, ëcom medo frouxa da família extensa, dada a possibilidade
de tratar genteíî, de modo que outro lhe ocu- do indivíduo escolher a que grupo se unirá.
pou o lugar (Steinen, 1940, p.426). A obra Quanto às disputas em torno da chefia, Gal-
deste autor tem assim o grande valor de pro- vão observa, tanto na aldeia Kamayurá quanto
piciar certa profundidade histórica aos traba- entre os Trumai (língua isolada), que indivídu-
lhos mais recentes, além de trazer uma coleção os auto-proclamados chefes tinham seu status
impressionante de dados da cultura material. questionado por um grupo oponente com base
Os trabalhos seguintes de que tratarei já em acusações de falsa descendência, mau com-
apresentam a forma da etnografia moderna, portamento e impureza étnica (por descender
principalmente no que concerne à preocupa- de pai ou mãe de outra etnia). Tais observações
ção com a descrição da ìestrutura socialî, das levam o autor a afirmar que a chefia estaria li-
ìbases econômicasî e dos ìrituaisî. O trabalho gada não somente à transmissão do status em
de Galvão (1953) é especialmente relevante linhagem preferencialmente patrilinear, mas
pela pregnância da definição do Alto Xingu sobretudo ao apoio de uma parentela extensa
como área cultural, denominada pelo autor e ao comportamento do indivíduo que pleiteia
área do uluri. Quanto a este aspecto, a pesqui- a posição de liderança. É a flexibilidade do sis-
sa muito posterior de Patrick Menget (1977) tema classificatório de parentes, aparentemen-
entre os Txicão, grupo que na época passava te intrínseca ao sistema, que aparece aí como
por um processo de incorporação ao sistema elemento fundamental da disputa pelo poder,
xinguano, oferece um interessante contrapon- tanto pelo seu papel na formação de grupos
to. Pela posição peculiar dos recém-chegados quanto pela ampla possibilidade de estabeleci-
Txicão entre os xinguanos, Menget consegue mento de linhas de transmissão de status.

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A mesma direção é indicada na monogra- abrangência contextualmente determinada:


fia de Ellen Becker (1969) sobre os Kalapalo parentela, facção, co-residentes, co-aldeãos.
(Carib). Pode-se dizer que um dos objetivos da Além de observar que um parente pode ser
autora era definir a ìestrutura socialî Kalapalo mais ou menos próximo, e dependendo do
a partir da constatação da inaplicabilidade do contexto parente ou não-parente, no que diz
conceito de linhagem, segundo sua formulação respeito à chefia, Basso descobre uma gradação
na antropologia africanista. Esta inaplicabili- entre chefes fortes, de status inquestionável
dade de conceitos exógenos não se restringia à (em Kalapalalo, anetu ekugu) e chefes de status
etnologia dos grupos xinguanos, tendo se apre- questionável (anetu intsoño = chefe pequeno),
sentado em dado momento como uma proble- distinção que corresponderia melhor ao sis-
mática americanista (Overing Kaplan, 1976), tema classificatório nativo que uma oposição
além de ter sido apontada para outras macro- discreta e rígida entre chefes e não-chefes. Esta
regiões, como a Melanésia15. Basso busca pro- gradação seria relativa ao seguinte critério: o
duzir, a partir desta crítica, uma descrição da chefe forte (anetu ekugu) é o primogênito de
ìflexibilidadeî do parentesco xinguano em ter- um chefe cujo status também é coletivamente
mos de princípios sociológicos estruturais e reconhecido, enquanto o pequeno chefe (anetu
não de uma discrepância entre teoria e prática intsoño) é herdeiro do status por outras vias (fi-
ou de involução de um sistema complexo. lho de mãe chefe, filho do irmão do chefe, filho
Ao invés de linhagens funcionando como não-primogênito de um chefe ou filho de um
grupos corporados, a autora encontra entre os chefe de status questionado). Ao lado deste sis-
Kalapalo um termo que define uma parentela tema gradativo, Basso revela a freqüente con-
cognática ego-centrada de limites variáveis, o testação da legitimidade dos chefes. O fato de
otomo. Quanto mais genealogicamente distan- que é possível ser mais ou menos chefe, neste
tes, as pessoas são classificadas como parentes caso, resultaria em um sistema em que nenhum
ou não-parentes com progressivamente maior ou quase nenhum homem parece ser chefe o
liberdade, de acordo com interesses pessoais16. suficiente e inversamente, ninguém é suficien-
A categoria otomo também pode designar, em temente não-chefe. Isso poderia explicar a au-
outros contextos, um grupo faccional, isto é, sência de termos nativos para não-chefes17.
as pessoas em torno de um líder que o apóiam Num trabalho posterior, Basso (1975)
em situações de disputa. Este grupo é isomor- demonstra que em larga medida a facção é
fo à(s) casa(s) de um grupo de germanos; a determinante das alianças matrimoniais, en-
casa constitui, portanto, uma unidade política fatizando com isso o aspecto indeterminado
dentro da aldeia ñ além de ser também a uni- do sistema de parentesco já apresentado na
dade produtiva mais consistente. Alternativa- tese de 1969 e, indiretamente, sugerindo
mente, diz Basso, otomo designa o conjunto ser mais a facção que a linhagem a unidade
dos habitantes da aldeia; aqui, como já nota- pertinente de cooperação e troca. Segundo
ra Maybury-Lewis para os Xavante, a facção a autora, um dos critérios para designar um
e a aldeia são tornadas homólogas pela rela- indivíduo como casável (suficientemente
ção com o chefe ñ são o conjunto de pessoas distante, isto é, não-parente) ou não-casável
que têm o líder em comum (Maybury-Lewis, (próximo demais, parente), dada a abrangên-
1967). Vale notar que, entre os Kuikuro, Bru- cia indeterminada do otomo, é o pertencimen-
na Franchetto (1986) também encontra a to a uma facção diferente de ego. Em outras
palavra otomo designando uma categoria de palavras, é mais o interesse em classificar tal

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indivíduo como consangüíneo não-casável se (“ficam”) amulaw ao longo do tempo.


ou como possível aliado que vai orientar o Para entender este processo de ìficarî che-
termo de parentesco empregado por ego, e fe, é preciso rever, com Viveiros de Castro, a
não uma relação ìrealî genealógica. O aspec- noção de pessoa Yawalapití. O autor define o
to estratégico dessa escolha é em grande parte pensamento Yawalapití como particularmente
referido pela autora ao jogo político em tor- preocupado com uma lógica de substâncias e
no da chefia, mais especificamente em torno do fazer do corpo. No que diz respeito à che-
da ocupação da posição de representante da fia, a etnografia obriga a uma revisão da noção
aldeia. É como se os Kalapalo fizessem alia- de transmissão de status, pois postula que a pes-
dos (e casas) para fazerem chefes melhores, soa é fabricada não só na concepção, recebendo
de status inquestionável. Isso, talvez possa- substância paterna (esperma) e materna (sangue;
mos extrapolar, como condição de sobrevi- haveria controvérsia quanto à contribuição fe-
vência, contra a violência das acusações que minina), mas também nos rituais de transição
pairam sobre indivíduos de status ambíguo, como iniciação e couvade. Esta fabricação do
tema que desenvolvo à frente. corpo se daria pela perda e acumulação de subs-
A etnografia de Viveiros de Castro (1977) tâncias determinadas, e também por sonhos que
sobre os Yawalapití desdobra as observações de associam o indivíduo a seres sobrenaturais que
Basso relacionando a flexibilidade do sistema possuem as características desejadas. A reclusão,
de classificação de pessoas ao que poderíamos especificamente, seria um momento fundamen-
chamar de flexibilidade do sistema cosmoló- tal de constituição de indivíduos amulaw, pois
gico. A gradação nos sistemas classificatórios ela determina o sucesso do jovem como futuro
já observada na distinção entre chefes fortes e lutador, o que, por sua vez, seria condição fun-
fracos Kalapalo é retomada e explorada a fun- damental para o posterior exercício da lideran-
do a partir de modificadores lingüísticos que ça. O amulaw condensa assim dois princípios,
indicam maior ou menor proximidade dos re- a transmissão de substância na concepção (ca-
ferentes em relação aos conceitos-protótipos do ráter ìdadoî da posição social) e a educação/fa-
cosmos nativo. Para os Yawalapití, diz Viveiros bricação corporal pela indução de determinados
de Castro, tudo que existe ser pode ser identi- comportamentos (caráter ìconstruídoî da mes-
ficado a um protótipo mítico daquele ente, di- ma). Como vimos, a ausência de termo nativo
vino mas também monstruoso (caso em que o para designar não-chefes pode indicar o amulaw
nome é associado ao sufixo -kumã), ou, segun- como protótipo da pessoa Yawalapití; como se
do um regime de aproximações sucessivas do todo indivíduo, devidamente ìfabricadoî, pu-
protótipo, é classificado como versão natural do desse ser amulaw. Na reedição de seus comen-
ente sobrenatural (-ruru), como imagem apro- tários sobre a cosmologia Yawalapití, Viveiros
ximada dele (-mina) ou apenas como imitação de Castro enfatiza a conexão entre os conceitos
imperfeita do protótipo (-malú). Importante de fabricação e metamorfose: a fabricação como
para nossa discussão é que aí reencontramos tentativa de fixar identidade humana num mun-
a distinção entre chefes fortes (amulaw-ruru) do onde o risco de metamorfosear-se em outro é
e fracos (amulaw-mina). Mais precisamente, a constante (2002, p.73). Nesse sentido, o chefe é
condição de “nobreza”18 (amulaw) seria expres- uma super sujeito, alguém cuja posição de sujei-
são da realização em vida do protótipo de che- to num cosmos povoado de sujeitos em poten-
fe, uma vez que os Yawalapití entendem que cial está assegurada19. Chamo ainda atenção para
todos os indivíduos nascem “maus” e tornam- a diferença relevante entre a noção de fabricação

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da pessoa e a concepção de que os rituais são da aldeia” e, ao que parece, são prerrogativas
marcadores (símbolos) de status diferencial ad- desta posição as funções normalmente associa-
quirido no nascimento, segundo encontramos das ao chefe – exortação do grupo ao traba-
em Heckenberger (2005). lho, representação regional, fala cerimonial. O
Utilizei até agora os termos “nobre” e “che- irmão mais novo deste dono da aldeia era, por
fe” com liberdade, já que meu objetivo imedia- sua vez, considerado dono de um grupo restri-
to era mostrar de que maneira certas etnografias to dentro da aldeia; com a saída deste grupo,
mostram e procuram explicar a indistinção passa a ser o ajudante principal do seu irmão
ou ambigüidade de status num sistema social mais velho. Já o filho do irmão mais novo, jo-
idealmente hierárquico. Considero a seguir o vem que então representava os Yawalapití nos
problema colocado pela terminologia para a contatos com o branco, estava sendo preparado
descrição da política xinguana. para substituir o irmão de seu pai como dono
da aldeia20. Segundo informação pessoal do au-
tor, o dono da aldeia Yawalapití tinha um filho
Alianças homem, apenas ligeiramente mais jovem que
o filho do seu irmão mais moço. Em nenhum
Se as sócio-lógicas ou cosmo-lógicas nativas momento os Yawalapíti teriam explicado a Vi-
surgem em algumas etnografias como impedi- veiros de Castro as razões para a não-escolha
mento para a formação de camadas sociais rigi- desse rapaz como futuro dono da aldeia. A vo-
damente distintas, também a noção ocidental cação de Aritana, aquele que estava sendo pre-
de chefe é (mesmo que implicitamente) pro- parado entre os brancos para substituir seu tio
blematizada pela percepção das diversas figu- paterno, era para aquele grupo um fato.
ras de liderança as quais nenhuma, em certas Muitas outras relações são pensadas em ter-
descrições, parece responder isoladamente por mos de “posse” ou “domínio” (no sentido de
algum tipo de poder. Basso aponta a condição maestria) pelos xinguanos: o feiticeiro Kalapalo
de dono cerimonial como um meio de obten- é “dono de dardos” que penetram no corpo de
ção de prestígio independente das relações de uma pessoa fazendo-a adoecer, conhecimento
parentesco e sugere que a necessidade de acres- transmitido pelos pais aos filhos homens no
centar este status ao de chefe seria um recurso período de reclusão (Becker, 1969, p. 213). O
dos indivíduos ambiguamente classificados, guerreiro Kalapalo, herói das narrativas míticas,
chefes fracos, para fortalecer sua posição. O é o “mestre do arco” (Basso, 1995). Um bom
status de dono, assim, deveria ser visto como orador Mehináku é um “mestre das palavras”, o
caminho alternativo para a obtenção do status pajé cantador, um “mestre da canção”21. Basso
de chefe representativo. Segundo a etnografia (1969, 1973) traduz o Kalapalo oto alternati-
de Viveiros de Castro, porém, a chefia como vamente por dono (owner) e patrono (sponsor),
atividade não seria indissociável da condição pois o dono de uma cerimônia é a pessoa que,
de dono. Viveiros de Castro (1977) descreve ajudada por sua parentela, produz comida para
o chefe como um dono dos espaços públicos, distribuir aos participantes do ritual (cantores/
mas de outras coisas também. Assim, descreve dançarinos e convidados). Viveiros de Castro
o autor, havia entre os Yawalapití um homem (1977) propõe, para os Yawalapití, uma asso-
que “tomava conta” do grupo, representava-o ciação entre dono cerimonial e pai: ambos esta-
nas interações formais com outras aldeias, co- riam em posição de alimentar/tomar conta – o
ordenava a cerimônia de troca; este era o “dono primeiro, na relação com o espírito patogênico

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(a cerimônia é “filha” do dono, dizem os Yawa- figura do pai através da figura do chefe...
lapití), o segundo, na fabricação do filho (ver A pesquisa recente de Aristóteles Barcelos
acima sobre fabricação da pessoa Yawalapití). Neto (2004) entre os Wauja (Aruaque) sobre
A relação de filiação mais evidente notada por a fabricação e uso de máscaras rituais é bastan-
muitos etnógrafos é aquela do chefe que fala te elucidativa quanto à atribuição do estatuto
diariamente à comunidade, referindo-se aos de dono cerimonial e suas relações com a lide-
aldeãos como seus filhos, os quais aconselha e rança. Segundo a mitologia Wauja, espíritos
exorta ao trabalho22. Esta fala seria de fato uma patogênicos, apapaatai, são transformações
prerrogativa do “dono da aldeia”. Vê-se, por- de espíritos ancestrais que viviam no mundo
tanto, que o chefe pode ser descrito como um hoje habitado por humanos. Apapaatai é a
dono, e o dono como um pai. forma pela qual esses ancestrais se apresentam
Existem no entanto algumas divergências aos Wauja, mas isso não acontece e nem deve
entre interpretações de tal relação “paternal” acontecer normalmente. Num encontro inad-
entre chefe e comunidade. Heckenberger apre- vertido, pode ocorrer que parcelas de alma da
senta este fato de modo a justificar a caracte- pessoa se percam, indo passear com o apapa-
rização do sistema xinguano como chefatura, atai em seu mundo, o que significa, para o
isto é, afirmando que o chefe é tratado como vivo, doença. No ritual de cura, contexto de
ancestral comum - descendente direto dos he- produção das máscaras que “representamî os
róis fundadores e conexão destes com os ho- espíritos23, o doente recupera as parcelas per-
mens atuais - o que teria por efeito a fixação didas de sua alma e estabelece uma relação de
crescente (acompanhando o crescimento demo- proximidade amistosa com o apapaatai raptor.
gráfico e a limitação do acesso a certos bens ou A produção do ritual envolve toda a comuni-
símbolos de poder) das distinções hierárquicas. dade na confecção das máscaras de apapaatai,
Com relação ao mesmo fato entre os Xavante, na produção de comida para os dançarinos
Maybury-Lewis enfatiza a posição paradoxal que vestem as máscaras e na execução de flau-
do chefe, simultaneamente representante da tas sagradas. O grupo se divide entre o dono
comunidade e de uma facção. Ele é pai (ge- do apapaatai, que fornece matéria-prima para
nealógico ou classificatório) da sua linhagem, a produção das respectivas máscaras e comida
constituída basicamente por seus descendentes para os dançarinos, e os dançarinos e artesãos
e co-residentes, afins tornados consangüíne- de máscaras. A relação de proximidade ou co-
os pela proximidade (1967, p. 227). Torna-se laboração com os apapaatai perdura enquanto
“pai” da comunidade apenas enquanto esta pode o ex-doente e dono do ritual mantiver a ali-
ser considerada isomorfa à facção – enquanto mentação de seus dançarinos, mesmo fora do
sua facção é dominante –, mas isso não implica contexto ritual. Em troca da alimentação, es-
a fixação de posições. A própria maleabilidade da tes últimos oferecerão ao ex-doente artefatos
estrutura genealógica Xavante indicaria que a li- como panelas, pás de virar beiju, casas, roças
nhagem e, portanto, a legitimidade de status por de mandioca etc. O ciclo de trocas constitui
descendência, constituem mais uma linguagem o que Barcelos Neto chama de ìmáquinas de
que uma entidade. O que não diminui a neces- produçãoî, das quais depende a manutenção
sidade de tradução da noção dupla de pai-chefe. da relação com os apapaatai. A eficácia dos
Mas ao invés de identificar o chefe a um pai objetos residiria no fato de tornarem visível e
(segundo o modelo genealógico), talvez pudés- durável a aliança com os apapaatai que entra-
semos fazer o contrário, procurando entender a ram em contato com o doente. As máscaras

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e outros objetos seriam, assim, um canal de os espíritos. Em ação coordenada, todos os


transferência da potência dos apapaatai para indivíduos que participam desse processo for-
determinados indivíduos. A efetividade da mam o que Barcelos Neto chama de sistema de
transferência, prossegue o autor, é sustentada distribuição de poderes políticos, fundado na
pela qualidade formal dos objetos, sua decora- interdependência dos estatutos sociais.
ção gráfica, durabilidade, excelência técnica. Baseado na pesquisa de Barcelos Neto sobre
Segundo Barcelos Neto, porém, nem todo os rituais de máscaras Wauja, Sztutman (2005)
doente parece poder receber um diagnóstico compara os ritos xinguanos em torno da doença
de ataque por apapaatai e tornar-se dono de e os ritos guerreiros dos antigos Tupi da costa. A
ritual; é preciso ter substância nobre, isto é, ser tese do autor é que a extensão das unidades po-
amunaw, ìchefeî ou descendente de chefe em líticas seria homóloga à extensão de pessoas, isto
linhagem paterna ou materna24. Este indivíduo é, o tamanho do grupo depende do tamanho
também deve ser alguém que merece a con- do status reconhecido ao líder; variações corres-
fiança/respeito do grupo por ter demonstrado ponderiam, entre os Tupinambá, à distância en-
possuir certas qualidades, especialmente a ge- tre tempo de paz e tempo de guerra, este último
nerosidade, além de possuir uma parentela que tornando possível a magnificação do guerreiro
o ajude a manter o fornecimento de alimentos e a conseqüente ampliação de seu domínio po-
aos (dançarinos de) seus apapaatai. Se os chefes lítico. Em relação ao Alto Xingu, Sztutman se
são aqueles que, por nascimento, já merecem pergunta então quais mecanismos permitiriam
respeito do grupo social e se, por meio da rela- essa variabilidade (2005, p.226). Ora, se consi-
ção com apapaatai, ganham condições maiores deramos, seguindo o autor, a doença xinguana
de demonstrar sua generosidade e gerar mais como mecanismo de magnificação análogo à
respeito, o sistema ritual é visto como uma ritualística guerreira Tupi, isso contradiz as con-
máquina operando em prol da manutenção siderações de Gertrude Dole (1966) e Michael
da ordem e das posições de liderança na hie- Heckenberger (2000, 2005) sobre o impacto
rarquia social. das epidemias no sistema político xinguano.
Ao mesmo tempo em que caracteriza o sis- Segundo estes autores, a doença teve o duplo
tema ritual Wauja como máquina de reprodu- efeito de esfacelar as linhagens cognáticas e au-
ção do poder, Barcelos Neto identifica ali o que mentar a influência dos pajés visionários, que
chama de ìdesconfiança do poder absolutoî só então teriam passado a representar poder
(2004, p. 285). Isso porque o chefe depende concorrente ao do chefe hereditário. Alternati-
do diagnóstico do pajé e da colaboração de seus vamente, inspirados pela tese de Sztutman, po-
dançarinos para estabelecer uma boa relação deríamos pensar na possibilidade de uma maior
com apapaatai. O pajé, cujo poder deriva da concentração do poder do chefe ñ por acúmulo
introdução em seu corpo de substâncias apa- de estatutos cerimoniais adquiridos via doença
paatai, é responsável por determinar no diag- - relacionada à baixa demográfica. É possível,
nóstico divinatório quantos e quais apapaatai por exemplo, que poucos homens tenham pas-
estão em relação com o doente. Depende do sado a monopolizar diversas posições de ìdonoî
número e dos atributos ìtecnológicosî dos apa- antes distribuídas por mais membros do grupo.
paatai patogênicos a potência transferida ao Pelo mesmo raciocínio, podemos considerar a
dono do ritual. Os dançarinos são responsáveis hipótese de a baixa demográfica ter favorecido
pela produção de objetos rituais e, portanto, o acúmulo das funções de chefe e pajé. O que
pela manutenção da relação do ex-doente com mudaria um pouco as coisas.

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É forçoso notar ainda que, se no regime Sobre os Wauja, Barcelos Neto (2004)
Tupinambá o chefe enquanto matador/preda- sustenta que um impedimento à acumulação
dor se magnífica incorporando a potência do do poder político deriva da necessária não
inimigo morto, e assim estende a sua influên- coincidência dos papéis de xamã e chefe re-
cia por um grupo maior de chefiados, entre os presentativo. O autor, contudo, não focaliza
xinguanos o chefe se magnífica no processo de as ambigüidades classificatórias subjacentes à
ser predado pelo espírito patogênico, e que o divisão faccional. Se não há dúvidas quanto à
subseqüente apaziguamento do espírito preda- legitimidade de um chefe, seu poder é contro-
dor requer que seja constantemente alimenta- lado na medida em que ele depende de outros
do pelo ex-doente. Haveria, portanto, algumas homens de destaque. Se a legitimidade dos
diferenças interessantes quanto ao regime des- chefes nunca é totalmente segura (como apon-
crito por Sztutman relacionadas aparentemente ta Basso), a própria ambigüidade do estatuto
ao dito pacifismo xinguano: no Alto Xingu, o desestabiliza sua situação ñ daí que a aquisição
chefe é o anti-guerreiro por excelência, ele não de outros estatutos, quer dizer, poderes, torna-
fica bravo (Ball, 2007, p.93-94). De modo que se estrategicamente importante. Em todo caso,
a aplicação do modelo da preensão relacional o peso da participação do pajé na política xin-
neste contexto requer atenção às particularida- guana atual contrasta com a insistência com
des do regime local25. que Michael Heckenberger recusa conceder-
O pajé xinguano não herda o status de seus lhe uma importância paralela à da chefia here-
ancestrais. Os conhecimentos do pajé podem ditária. Para Heckenberger, no ìantigo regimeî,
ser transmitidos de pai para filho, mas a ini- a doença teria papel marginal, e conseqüente-
ciação pode ser feita por qualquer pajé expe- mente também o pajé, em relação aos grandes
riente mediante pagamento, o que parece ser rituais de confirmação de substância nobre e
mais comum (Murphy & Quain, 1955; Dole, produção de ancestrais, tais como o kwarup e a
1964; Becker, 1969; Gregor, 1977; Viveiros furação de orelhas.
de Castro, 1977). Sendo aquele que profere o
diagnóstico sobre a natureza da doença (qual o
espírito patogênico, se é mais ou menos pode- Contra poder
roso), é o pajé que define quem vai tornar-se
dono de qual cerimônia (Barcelos Neto, 2004). Se a ambigüidade da classificação de pes-
Considerando-se que a chefia é conseqüência soas, segundo autores como Basso e Galvão,
do acúmulo de posições de destaque (Basso, fundamenta a disputa pela liderança, as acusa-
1969, 1973) ou que a descendência nobre ções de feitiçaria são apresentadas em algumas
do chefe precisa ser ìpotencializadaî (Barcelos etnografias como instrumento por excelência
Neto, 2004) pelo patrocínio de cerimônias da disputa faccional. Von den Steinen notara
de espíritos, a importância do diagnóstico que a acusação de feitiçaria é sempre dirigi-
xamãnico na distribuição de poder político é da a alguém de outra aldeia; na mesma linha,
considerável. A aliança constituiria assim um Quain sugere que a feitiçaria substitui a guerra
contraponto ao poder das linhagens nobres, nas relações intertribais xinguanas; Oberg tam-
aliança tanto em nível sociológico (do iniciante bém encontra sempre xinguanos de outras al-
com o pajé iniciado não-parente) quanto cos- deias sendo acusados pelos Kamayurá; Gregor
mológico (do pajé com o espírito que lhe con- nota que a acusação de feitiçaria se dirige sem-
fere poderes visionários). pre contra um homem não-parente e não-co-

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residente do acusador. O feiticeiro xinguano é do – aquele com o qual os acusadores não


comumente descrito como paradigma negativo têm proximidade reconhecida de parentesco.
de socialidade, sendo ora contraposto ao che- Num caso analisado por Bastos, a acusação
fe (Gregor, 1977, sobre a oposição homem da suscita por parte do chefe principal da aldeia
praça versus homem dos fundos da casa), ora ao acusada uma reação em nome da coletividade,
xamã (Viveiros de Castro, 1977). A feitiçaria, na forma “nós Yawalapití não somos feiticei-
assim como os conhecimentos xamãnicos, não ros”; mas isso talvez porque era a sua facção
é transmitida na concepção, mas normalmente que estava implicitamente sendo acusada por
ensinada pelo pai, secretamente, ao filho, no um grupo adversário Mehináku (ligado a seus
período da reclusão. Sendo assim, o filho de opositores Yawalapití).
um homem acusado de feitiçaria será também A análise de uma narrativa Aweti (Tupi),
ele alvo preferencial de futuras acusações. por Marcela Coelho de Souza, fornece uma
Rafael Bastos é talvez o etnógrafo que mais perspectiva sobre a relação entre chefia e feiti-
detalhadamente registrou a relação entre fei- çaria. Segundo a autora, que se inspira na tese
tiçaria e faccionalismo. Em dois artigos sobre supracitada de Menget, enquanto a chefia mar-
a história recente xinguana do ponto de vista ca a pacificidade que idealmente define o limite
de alguns indivíduos Yawalapití e Kamayurá, da xinguanidade, a feitiçaria seria o “elemento
Rafael Bastos faz um levantamento detalha- de abertura do sistema”. Como versão xingua-
do das trocas de acusações entre uma facção na da guerra, a feiticeira seria o meio pelo qual
Mehináku, de um lado, e uma conexão Yawa- os “de fora” seriam incorporados como outros
lapití-Kamayurá, de outro, acusações referen- - inimigos, feiticeiros - mas já segundo o códi-
tes ao adoecimento de uma mulher Mehináku go xinguano, isto é, tornando-se parcialmente
(Bastos, 1984/85). Num trabalho posterior, mesmos (Coelho de Souza, 2000, p. 373). Ao
o autor investiga a intervenção mais ou me- invés, portanto, de definir os limites de um sis-
nos involuntária dos irmãos Villas-Boas, ao tema social e cultural (definindo, pelo negati-
tempo da formação do Parque Nacional do vo, a moral pacifista que permitiria marcar as
Xingu, nas disputas faccionais pré-existentes fronteiras do mundo xinguano), como sustenta
(1987/88/89). Suas pesquisas revelam que a Gregor (1977), por exemplo, a feitiçaria apon-
associação entre feitiçaria e disputas faccio- taria o ilimitado neste sistema26.
nais nem sempre é evidente, pois, muitas Bastos (1984/85) aponta também a dificul-
vezes, as acusações não são feitas diretamen- dade de definir fronteiras, neste caso, dos gru-
te contra líderes faccionais, ou nem mesmo pos locais, quando descreve as facções como
contra indivíduos específicos, mas apenas parentelas interligadas regionalmente por casa-
dirigidas a aldeias que abrigariam feiticeiros. mentos entre aldeias, sendo, portanto, fatores
Por outro lado, os artigos de Bastos indicam importantes da integração supralocal, tanto
que as acusações são feitas pelo grupo faccio- quanto os rituais intertribais que celebram a
nal de uma aldeia de acordo com suas rela- morte e a iniciação de chefes/nobres27. Estes
ções de amizade ou inimizade – geralmente mesmos líderes seriam os pivôs de disputas fac-
traçadas por parentesco classificatório - com cionais, e sua atuação, a nível supralocal, parece
uma facção da aldeia acusada. Assim, mesmo interferir tanto no jogo faccional local quanto a
que um nome não seja apontado, o alinha- força de sua facção em garante sua posição re-
mento do grupo acusador indica ao menos presentativa em contexto regional. Deste modo
qual grupo da outra aldeia está sendo acusa- o autor desfaz a imagem corrente das facções

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Imagens do poder: a política xinguana na etnografia | 103

como subgrupos circunscritos à política inter- africanas ou o do clã cônico polinésio, e tam-
na da aldeia, e dos rituais intertribais como co- bém talvez o próprio modelo da preensão rela-
nectores de unidades políticas isoladas. cional elaborado no solo teórico americanista.
A ênfase no conflito coincide, portanto, Evidentemente essa resistência aos modelos
com o questionamento da visão congelada de não é um privilégio dos xinguanos; qualquer
uma unidade pacífica, e com uma tentativa de descrição etnográfica se constitui no jogo de
abordagem processual que diverge considera- comparação com outras etnografias, além de
velmente da teoria da colonização Aruaque. Na ser moldada de acordo com os problemas que
análise de Rafael Bastos (1984/85), os limites os antropólogos se propõem.
da “sociedade” xinguana tornam-se muito mais Assim, se é inegável que a colonização re-
difusos do que muitas vezes se faz crer – quan- presentou uma catástrofe de proporções in-
do, por exemplo, índios (considerados inimigos calculáveis para a vida dos povos ameríndios
pelos xinguanos) Txikão ou Kayabi são inclu- em perdas de vidas e de conhecimentos, isso
ídos no jogo faccional sob acusação de terem não torna menos interessantes ou legítimas as
sido pagos por gente do Alto Xingu para matar formas de organização elaboradas pelos so-
um indivíduo xinguano. A mesma indefinição breviventes que, diga-se de passagem, no Alto
dos limites sociais é marcada em um conjun- Xingu ao menos, já há algum tempo aumen-
to de narrativas Kalapalo traduzidas e comen- tam em número. Quanto à possibilidade de
tadas por Ellen Basso (1995): nelas, o termo conferirmos sentido, partindo da vida atual,
angikogo, índios bravos, em oposição a kuge aos vestígios da vida passada – o caminho per-
(xinguano, mas também humano em determi- corrido por Heckenberger – será tanto mais
nados contextos) se refere alternativamente aos promissor quanto maior a compreensão do
inimigos e aos próprios Kalapalo, antes da sua que está em jogo na política xinguana hoje, e
incorporação ao regime moral xinguano. de como ela é jogada.
O que considero interessante a respeito do
Alto Xingu é o aparente paradoxo entre, de um
Imagens paradoxais lado, a imagem de unidade pacífica, consagrada
a partir dos rituais intercomunitários em prol
Mais do que descobrir o que é a política xin- dos líderes mortos a partir de onde também
guana, interessava-me aqui delinear algumas são iniciados novos líderes – imagem associada
coisas que ela talvez não seja, e principalmen- à ênfase da descrição tanto nas distinções hie-
te identificar alguns empecilhos que ela colo- rárquicas quanto em valores compartilhados; e,
ca para a tentativa de tradução antropológica. por outro lado, o universo fragmentado que se
Neste sentido, em primeiro lugar acredito que revela no constante questionamento da legiti-
a política praticada pelos xinguanos hoje de- midade dos chefes, na dificuldade de um ho-
finitivamente não precisa ser lamentada como mem para “tratar gente”, lembrando as palavras
resultado de perda de “complexidade”, ou da enigmáticas de von den Steinen, e na violência
falta de condições para complexificar-se. Ao das divergências entre grupos domésticos em
contrário, espero ter mostrado que as práticas um mundo dominado pela feitiçaria. É claro
acerca da liderança xinguana são extremamen- que o pacifismo e a unidade hierarquicamente
te complexas, no sentido não evolucionista do ordenada do socius constituem um ideal que os
termo, e desafiam qualquer descrição baseada xinguanos expressam e professam, para si mes-
em modelos exógenos, como o das linhagens mos e para seus visitantes. No entanto, a cons-

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tante ameaça de subversão dessa ordem por Apontei aqui apenas alguns das muitos
forças poderosas como a feitiçaria está igual- questionamentos possíveis sobre a liderança
mente evidente nos discursos/práticas nativos. xinguana, e se alguma solução foi esboçada
A questão é o valor que se dá a cada uma dessas creio que foi mais um deslize que um objeti-
imagens, igualmente projetadas por um coleti- vo desta revisão bibliográfica. Antes, e acima
vo que a partir delas se define em relação a um de tudo, pretendi mostrar que há ainda muitas
fora, e que pelo mesmo movimento se abre, tal- coisas sobre o Alto Xingu, e além, que justifi-
vez, para a exterioridade (como sugere Coelho cam a interminável tarefa de re-escrever.
de Souza, 2001). E não só isso. Há ainda muito
que entender dos sentidos nativos de “chefe”, Images of power: xinguano politics in eth-
“gente”, “feitiço”, “parente”, “espírito” etc. nography
Apesar de ter usado as etnografias de Gre-
gor, Dole e Barcelos Neto para questionar a abstract This article reviews the ways indige-
descrição de Heckenberger, sustento que es- nous leadership has been described in the ethno-
ses autores trabalham com uma ênfase muito graphies of the multilingual ensemble of the Upper
grande na figura da pax xinguana, deixando de Xingu (MT, Brazil). The analysis points out to an
lado o elemento disruptivo, as forças desagrega- opposition between works that delineate a hierar-
doras. Vejo o trabalho de Heckenberger, dessa chical and centralizing socius and those that focus
forma, como versão forte de uma história sem- on what could be called centrifugal vectors of the
pre recontada a respeito do Alto Xingu, que é local political process. Even considering that the-
a história da hierarquia e da ordem. Mesmo do se different views could correspond in some way to
trabalho de Galvão, com sua discussão a respei- different ethnographic realities – as in Carib and
to da “flexibilidade” do sistema de parentesco, Arawak perspectives, for instance - the opposition
foi a noção de área do uluri que realmente vin- is considered here mainly as a product of different
gou na imaginação ocidental, fixando a ima- theoretical premises. The aim of the present work is
gem de uma unidade de limites sociais, morais neither to elect the “truer” description, nor to pro-
e cosmológicos não problemáticos. Com cer- pose an alternative description of xinguano politics,
teza Rafael Bastos é um dos mais empenhados but to articulate these etnographies with the the-
em questionar essa imagem, inclusive no senti- oretical premises they are drawn from and, at the
do de avaliar a importância da intervenção dos same time, to stress the need of a constant revision
irmãos Villas-Boas na formação dessa unidade of the anthropological language by confronting it to
(1987/88/89) – assunto que por ora deixo de natives’ practices.
lado, mas que certamente é da maior relevân- keywords Upper Xingu. Amerindian politics.
cia para o desenvolvimento desta discussão. Ethnographic models.
Creio, contudo, ainda estarmos longe da des-
crição exaustiva das forças contra o Estado, para
retomarmos os termos de Clastres, revelados Notas
pelo pensamento e prática xinguanos. Isto não 1
Este artigo expõe o argumento principal de minha
significa necessariamente, devo repetir, reinci- dissertação de mestrado, defendida em março de
dir na grande oposição entre sociedades com 2006 no Museu Nacional/UFRJ.
Estado e sociedades com parentesco, para dar 2
Grupos que formam este complexo multilíngüe hoje
sobrevida às implicações valorativas preconcei- são: Kuikuro, Kalapalo, Nahukwá, Matipu (Carib);
tuosas de tal oposição. Wauja, Mehinako, Yawalapití (Aruaque); Kamayurá

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Imagens do poder: a política xinguana na etnografia | 105

e Aweti (Tupi); e Trumai (língua isolada). Não farei sociais equivalentes de uma tribo, os grupos da che-
referências aos grupos desaparecidos. Reservo para fatura seriam hierarquicamente organizados. Não se
um próximo trabalho, em andamento, a necessária trata ainda de uma sociedade de classes, porque não
discussão sobre a definição dessas unidades, a que os há controle restrito da força e dos meios de produção,
Aweti, grupo que tenho pesquisado desde 2006, se mas é como se, sendo todos parentes e membros da
referem hoje como “etnias”. À frente comento bre- sociedade, uns fossem mais membros que outros, por
vemente a problemática definição do próprio “siste- serem de descendência superior. A hierarquia carac-
ma” xinguano. terística de estruturas semi-complexas como a chefa-
3
Veja-se, por exemplo, a introdução de African Politi- tura estaria fundada no clã cônico, estrutura em que
cal Systems, onde Radcliffe-Brown define organiza- o grupo de descendentes de um ancestral comum é
ção política como o “estabelecimento e manutenção dividido em um ramo superior, de primogênitos, e
da ordem social, dentro de uma moldura territorial, linhas de irmãos mais moços.
pelo exercício organizado da autoridade coercitiva 9
O autor retoma na verdade a tese de Max Schmidt
através do uso, ou possibilidade de uso, de força fí- (1917). Segundo Schmidt, a difusão de povos falan-
sica” (In: Fortes; Evans-Pritchard, 1940, p. xvi). Para tes de línguas Aruaque carregou consigo uma matriz
uma associação direta entre controle dos meios eco- cultural comum, que, com a migração desses povos,
nômicos e poder político, ver por exemplo Sahlins combinou-se a outras bases culturais formando hí-
(1963; 1968) e Earle (1991). bridos culturais e lingüísticos. O traço fundamental
4
Cf. Sztutman 2005, p. 79. dessa matriz cultural (e motor principal da sua disper-
são no continente) seria a economia de base agrícola
5
O português é hoje uma língua franca entre os pró-
e sedentária. Este regime econômico teria conduzido
prios habitantes do PIX. A respeito do uso de termos
os povos Aruaque à expansão por três motivos: busca
de parentesco neste idioma nas relações inter-lingüís-
de terras férteis para o cultivo; busca de mão-de-obra
ticas, ver Basso (1973).
subordinada para realizar os trabalhos de caça, pesca
6
Veja-se Viveiros de Castro, 2004, a respeito da noção e procura de lenha; e necessidade de estabelecimento
de equivocação como condição de possibilidade da de redes de troca para obtenção de utensílios como
antropologia. as pedras próprias para a confecção de machados e a
7
Uso aqui a noção de ‘sociedade complexa’ seguindo cana de flecha, recursos que seriam escassos nas ter-
seu sentido corrente no pensamento evolucionista. ras favoráveis à agricultura. Schmidt acreditava que
Sabemos que a noção de complexidade é desenvolvida a expansão dos povos Aruaque teria se dado em levas
segundo o modelo do Estado, portanto é com base na sucessivas de grupos avançando em busca de povos
maior ou menor semelhança a este referente que o ter- “inferiores” a serem submetidos economicamente,
mo deve ser compreendido. Seus traços fundamentais sugerindo que a divisão da sociedade em classes se-
são a distinção de esferas de ação política, econômica ria produto da incorporação de povos dominados.
e social, a divisão da “sociedade” em classes, e o desen- Essa incorporação teria se dado de maneira pacífi-
volvimento de uma estrutura de governo associada ao ca, através de alianças de casamento e do controle
controle de bens materiais. Ou, mais simplesmente, o econômico, ou belicosa, com o rapto de mulheres
Estado caracterizaria um sistema de poder centraliza- e crianças. A tese se baseia no estudo comparativo
do, em oposição a sistemas menos centralizados. de duas áreas que o autor considera de “colonização”
8
Um resumo esclarecedor e sintético desta tipologia é Aruaque, onde povos falantes de línguas distintas te-
apresentado em Sociedades Tribais (Sahlins, 1968). riam sofrido um processo de “aruaquização”: o Alto
O autor caracteriza a tribo pela falta de autoridade so- Xingu e o Rio Negro.
berana sobre as diversas comunidades que a compõe, 10
“Proto-Aruaque” é o termo usado pelo autor para
ausência de limites do grupo e ausência de institui- designar a cultura expansivo-dominadora que teria
ções que regem a economia, política e religião, cuja se dispersado pelas terras baixas formando as etnias
organização seguiria então o regime de parentesco. Aruaque atuais.
Sahlins localiza temporalmente a sociedade tribal en- 11
Cf. Hill e Santos-Granero, 2002.
tre uma suposta organização menos complexa de ca- 12
O problema do essencialismo cultural contido nes-
çadores/coletores e a chefatura, estágio intermediário
ta crítica é que ele deriva de uma concepção estática
entre a tribo e o Estado. Diferentemente das unidades

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106 | Marina Vanzolini Figueiredo

de cultura e/ou sociedade, quando grande parte de 23


Não seria o caso de discutir aqui a noção de “repre-
literatura antropológica recente, e particularmente sentação” implicada no uso das máscaras rituais, mas
uma teoria informada pela etnografia dos índios sul- é preciso ao menos notar o caráter complexo dessa
americanos, se volta para o questionamento dessa relação imagem-espírito, que constitui aliás um tema
concepção. Em acordo com esta corrente teórica, central da monografia de Barcelos Neto. O que se diz
sugiro que não é preciso remeter a essências culturais nessas ocasiões rituais é que o espírito está sendo ali-
para notar diferentes modos relacionais. Ver a defini- mentado pelo dono.
ção de Viveiros de Castro e co-autores no projeto de 24
Isso vale, sobretudo, explica o autor, para apapaatai
pesquisa Transformações Indígenas: “Qual, afinal, o poderosos como as flautas kawoká.
objeto da nossa disciplina? A sociedade, a cultura, 25
Em artigo recente, Barcelos Neto (2007) descreve o
a natureza humana? Admitamos, pois se há de co-
processo de adoecimento entre os Wauja como ante-
meçar por algum lugar, que a matéria privilegiada
cipação de um devir sobrenatural que só se realizaria
da antropologia seja a socialidade humana, isto é,
após a morte: a alma do morto é apapaatai. A cura
o que chamamos de ‘relações sociais’; e aceitemos a
representaria a preensão da potência apapaatai ainda
ponderação (De Gell 1998, p. 4) de que a ‘cultura’,
em vida, como se apapaatai fosse a origem de potên-
por exemplo, não tem existência independente de
cia vital para a constituição da agência humana. Em
sua atualização nessas relações (o mesmo se poderia
certa medida, o autor situa apapaatai na posição dos
dizer, aliás, da ‘natureza humana’: que ela não existe
deuses canibais Araweté (Viveiros de Castro, 1986).
fora da matriz relacional). Resta, ponto importante,
que tais relações variam no espaço e no tempo; e se
26
Cf. Gregor, 1977, e Zarur, 1975, sobre o feiticeiro
a cultura não existe fora de sua expressão relacional, como um pária e a feitiçaria como mecanismo de
então a variação relacional também é variação cultu- controle moral.
ral, ou, dito de outro modo, ‘cultura’ é o nome que 27
Seria preciso aqui analisar cuidadosamente quais mor-
a antropologia dá à variação relacional” (Viveiros de tos são homenageados, e qual o processo decisório
Castro et al 2003). que leva à realização de um kwarup para determinado
13
Ver também Coelho de Souza, 2000. morto. Segundo os Aweti, não só “chefes” (morekwat)
são celebrados, ou antes, motivo da realização de um
14
Idem.
kwarup, mas também crianças e jovens reclusos.
15
Cf. Strathern, 1988.
16
Cf. Coelho de Souza, 1995.
17
Em Aweti, diz-se de um não-chefe que é “gente ape- Referências bibliográficas
nas”, mo’at tene, onde mo’at = humano ou xinguano,
dependendo do contexto de enunciação (observação BALL, Christopher G. Out of the Dark: Trajectories of
pessoal) e tene = apenas, somente. Esta pode ser uma Wanja (Xingu Arawak) Language and Culture. Tese
boa pista para entendermos a noção de “chefe”, mo- (Doutorado). The University of Chicago. Chicago,
rekwat (observação pessoal). Illionois, 2007. 283 p.
18
O autor prefere a noção de nobre à de chefe para BARCELOS NETO, Aristóteles. Apapaatai: rituais de
tradução do termo nativo, justamente por associá-lo máscaras no Alto Xingu. 2004. Tese (Doutorado em
mais a uma condição da pessoa que à uma posição Antropologia Social). Universidade de São Paulo. São
institucional. Paulo. 2004. 310 p.
_______. Witsixuki: desejo alimentar, doença e morte
19
Remeto mais uma vez à tese de Sztutman sobre a
entre os Wauja da Amazônia Meridional. Journal de la
constituição da chefia Tupinambá.
Société des Américanistes. Vol. 93-1, p. 73-95, 2007.
20
Idem, p.76. BASSO, Ellen B. The Kalapalo Indians of Central Bra-
21
Para outros tipos de dono, cf. Gregor, 1977, p. 250. zil. Nova Iorque: Holt, Rinehart and Winston,
22
Noto que o termo aweti usado pelo chefe, kaminu’aza, 1973. 157p.
não se refere necessariamente aos filhos de um ho- _______. The use of portuguese relationship terms in
mem, e sim às crianças designadas por um adulto. A Kalapalo (Xingu Carib) encounters: changes in a cen-
relação marcada aqui, a meu ver, é de diferença gera- tral Brazilian communications network. Language in
cional e não descendência (observação pessoal). Society, 2, p. 1-21, 1973.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 89-109, 2008


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quisa que deu origem à minha dissertação foi
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possível graças à bolsa concedida pelo CNPq
nos anos de 2004 e 2005. Agradeço, sobretu-
do, aos Aweti por terem me recebido em suas
casas então e agora; esta investigação bibliográ-
fica não teria sentido não fosse a perspectiva de
reaprender, em seguida, com eles.

autor Marina Vanzolini Figueiredo


Doutoranda em Antropologia Social PPGAS/UFRJ

Recebido em 31/03/08
Aceito para publicação em 12/11/08

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Prácticas cotidianas e intersecciones entre la
Iglesia Católica y grupos familiares en assenta-
mientos populares del Gran Buenos Aires
Laura Santillán

resumo Este artigo tenta descrever e analisar, a producidas dentro del campo religioso, ya sea
partir de uma perspectiva antropológica, as relações por fuera como dentro del catolicismo. Como
e os processos de intersecções da Igreja Católica nos muchos autores lo desarrollan, desde las úl-
bairros populares da Grande Buenos Aires. O nosso timas décadas, la práctica religiosa se viene
interesse é, principalmente, documentar as práticas modificando en las grandes ciudades y urbes
e as interações entre a Igreja Católica e os grupos latinoamericanas (Levine; Mainwaring, 2001;
sociais pertencentes às zonas de bairros populares, Mallimacci, 2001; Forni; Cárdenas, 2002;
especialmente em referência à resolução das diferen- Contins; Campo Gomez, 2005). Un rasgo
tes dimensões da vida social tais como: a educação, que cruza a los cultos que se han expandido,
o cuidado infantil e a organização urbana. Diferen- como el Pentecostal, la Iglesia Metodista o la
temente das abordagens que têm a tendência de se- experiencia católica Carismática, es su adhe-
parar as experiências dos sujeitos das suas condições sión generalizada en los grupos socioeconómi-
estruturais, propomo-nos realizar um estudo etno- camente más desfavorecidos de la población
gráfico que recupere as urdiduras das intersecções (Franzoni, 2005).
da Igreja Católica em sua dimensão cotidiana e vin- En ese proceso, distintos trabajos advierten
culada às relações de poder. cómo, en Latinoamérica, la Iglesia Católica se
palavras-chave Igreja Católica. Grupos fami- ha presentado en las últimas décadas como un
liares. Práticas cotidianas. Intersecções. actor cada vez más relevante para la problema-
tización y la resolución de la cuestión social, las
reivindicaciones populares y la construcción
Introducción del campo de la política (Levine; Mainwaring,
2001; Forni; Cárdenas, 2002; Woods, 2003;
En nuestra región de América Latina, his- Mariz; Silva, 2005). Como advierten algunos
tóricamente la Iglesia Católica intervino en la autores, la relación entre política, sociedad y re-
modelación de comportamientos de los sectores ligión, inspirada en la propuesta de la Teología
subalternos (Grassi, 1999; Moreno, 2000). La de la Liberación, se ha desplazado a otras expe-
historia deja testimonio de cómo a fines del si- riencias “pastorales” (Mariz; Silva, 2005).
glo XIX y principios del XX, “el niño” y las “fa- En Argentina, la orientación en las últimas
milias” de los sectores pobres y urbanos fueron décadas de la Iglesia Católica hacia la cuestión
objeto, por ejemplo, de la observación e inter- social debe ligarse con las transformaciones su-
vención en diversos campos, que comprende fridas en la institución en los años 60, los con-
tanto al Estado y la beneficencia privada así flictos internos y también la deslegitimación
como a la caridad cristiana (González, 2000). sufrida a partir de la actuación cómplice de
En simultáneo con este registro de la his- la cúpula eclesial durante la última dictadura
toria, en la actualidad somos testigos de la militar (1976-1983) (Woods, 2003). Con el
emergencia de nuevas formas y experiencias retorno de la democracia, las recomendaciones

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de privatización de lo público, la tercerización y mientos y las prácticas que signan la actuación


focalización de las políticas sociales que formu- de la Iglesia en los barrios populares y también
laron los organismos de financiamiento interna- nos preguntamos ¿Con qué movimientos loca-
cionales, favorecieron la ingerencia de la Iglesia les se “encuentra” y “trama” el quehacer de la
Católica en la gestión e implementación en los Iglesia Católica? En definitiva ¿Cuáles son las
territorios locales de las políticas de orientación condiciones sociales, políticas y económicas
compensatoria (Santillán; Woods, 2005). de esta actuación? y ¿Cuáles son los niveles de
Un conjunto de estudios sociológicos en intersección y apropiaciones por parte de los
nuestro país se han dedicado a describir y analizar sujetos involucrados?
la progresiva vinculación de la Iglesia Católica en En el siguiente estudio nos interesa docu-
la organización de demandas y reivindicaciones mentar las estrategias y modalidades de acción
populares (Mallimaci, 1996; Gonzalez Bombal, de la Iglesia Católica, en vista de sus confi-
1995; Forni, 1989; Forni; Cárdenas, 2002). guraciones cotidianas y entrecruzamiento con
En buena medida, estos trabajos incluyen en el las relaciones de poder y tradiciones preexis-
análisis las experiencias, vivencias y sentidos que tentes que signan a estos espacios. El punto
adquieren para los sectores subalternos la parti- de partida de esta indagación es la investiga-
cipación en iniciativas comunitarias. ción doctoral que hemos realizado referida a
Sin embargo, desde nuestro punto de vista, la relación entre educación y modos de vida
se tratan de análisis que sobresalen por su ten- subalternos en los contextos contemporáneos
dencia a interpretar la inclusión de los sectores de transformación en la actuación del Esta-
populares en espacios de la religiosidad exal- do1. Uno de los aspectos sobresalientes de esta
tando casi con exclusividad la dimensión “vi- investigación ha sido la constatación, a través
vencial” y “emancipatoria” de las experiencias del registro empírico, de la presencia signi-
(Forni; Cárdenas, 2002). En buena medida en ficativa de la Iglesia Católica y los múltiples
estos estudios la recuperación de “lo local” en- niveles de intersección con los pobladores y
cierra cierto supuesto de una captación directa grupos familiares de las barriadas populares.
de la realidad y la experiencia de los sujetos. Un En vista del interés que marcó a esta inves-
aspecto poco revisado en tal caso es por qué y tigación, para el análisis que sigue, se tornan
bajo qué condiciones los sujetos significan su muy relevantes categorías teóricas tales como
experiencia y construyen sus narrativas sobre vida cotidiana (Heller, 1994; De Certau,
las realidades que viven (Menéndez, 2002). 1996) y apropiación (Heller, 1994; Rockwell,
Es decir, la voz del investigador se fusiona con 1996) que se recuperan a fin de posibilitar
la voz de los sujetos con quienes se investiga, una perspectiva relacional sobre el papel que
omitiéndose además la inclusión de actores que despliega la Iglesia Católica en esferas estra-
son estratégicos para comprender las relaciones tégicas para la reproducción cotidiana de los
de poder que permean los contactos personales sectores subalternos.
dentro de los escenarios locales.
Frente a este estado de conocimiento del Acerca de la metodología de análisis y
tema, nos preguntamos: ¿Cómo se plasmaron el referente empírico
en definitiva, en los barrios populares las mo-
dalidades de acción de la Iglesia Católica en los El análisis que sigue se basa en los regis-
contextos contemporáneos de transformación tros etnográficos que realizamos en el marco
social y desigualdad? Nos interesa los procedi- de nuestro trabajo en terreno. Se trató de un

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trabajo de campo con presencia regular y pro- junto de villas de emergencia3 y asentamientos
longada en el tiempo que tuvo lugar entre el populares4 que se ubican en las márgenes infe-
año 2001 y el 2005 en la Zona Norte del Gran riores del Río “Reconquista”, en los distritos de
Buenos Aires, Argentina. Tigre y San Fernando. El Área, o Región Me-
La metodología empleada durante la in- tropolitana de Buenos Aires, constituye un am-
dagación combinó, desde una perspectiva plio conglomerado cuya extensión tuvo lugar
antropológica, observación participante con en distintas coyunturas políticas y económicas
entrevistas en profundidad, tanto no directi- del país5. La Zona Norte del Gran Buenos Ai-
vas y otras semiestructuradas (Achilli, 2005). res, territorio de nuestro estudio, se caracteriza
En función de los objetivos propuestos, por concentrar a los sectores poblacionales con
el análisis se basa en las entrevistas que rea- los más altos niveles de ingresos, a la vez que
lizamos a hombres y mujeres que resultaron haya importantes bolzones de pobreza.
significativos para los procesos que procu- La Zona Norte, desde el período de “organi-
ramos describir de actuación de la Iglesia e zación nacional” (a fines del siglo XX), sobre-
intersección con los pobladores de los asen- salió por su “distinción” por cuanto numerosas
tamientos populares. Realizamos un total de familias con alto poder adquisitivo poseían re-
45 entrevistas, 15 de ellas a referentes de la sidencias permanentes o casonas de veraneo en
Iglesia Católica (sacerdotes, diáconos y vo- chacras, generalmente ubicadas sobre las barran-
luntarios) y 30 a vecinos con distinto nivel cas que dan al río de La Plata. Los procesos de
de participación/integración en la vida ba- suburbanización metropolitana de Buenos Aires
rrial y de la Iglesia. no contrarrestaron, sino que más bien consoli-
La mayoría (aunque no todas) de las daron la diferenciación histórica entre el Norte,
entrevistas las realizamos siguiendo como tendencialmente ocupado por sectores sociales
enfoque el tipo biográfico. Como plantean de mayores recursos y el Sur – Oeste preferente-
otros estudios, entendemos que la perspecti- mente lugar de asentamiento de los sectores con
va biográfica, en tanto práctica social, no se menores recursos (Pirez, 1994).
restringe a una técnica o método, sino que Ahora bien, los procesos de suburbani-
permite lograr la articulación entre el nivel zación se concretaron en nuestro país, bajo
de los procesos más estructurales con la di- formas más complejas y contemplan otras dife-
mensión subjetiva y de las prácticas de los renciaciones, además de la marcada por el nú-
sujetos entrevistados (Bertaux, 1988). cleo Norte – Sur. En nuestro país, siguiendo la
Otra decisión metodológica fue historizar tendencia de otros países de Latinoamérica, los
nuestro “presente etnográfico”. Es decir que procesos de suburbanización se apartaron del
buscamos hacer visibles y legibles las huellas patrón “clásico” (de Estados Unidos y Europa,
que dejó el curso de la historia en las acciones por ejemplo), en el cual los sectores de altos
que registramos de la Iglesia Católica y la vida recursos se ubicaron, con una infraestructura
barrial (Ezpeleta; Rockwell, 1985; Rockwell; adecuada, en la periferia (Oszlak, 1991).
Ezpeleta, 1985). Entendemos que esta opción Los barrios ubicados en las márgenes infe-
permite cuestionar cualquier intento de natu- riores del Río Reconquista forman parte del úl-
ralización de las categorías y atributos tal como timo cordón urbano6. Sus distritos de cabecera,
se presentan en la “realidad” de nuestro objeto Tigre y San Fernando, aún cuando pertene-
de indagación2 (Neufeld, 1996). cientes a la Zona Norte, presentan las caracte-
El trabajo de campo se focalizó en un con- rísticas sociodemográficas de los partidos más

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pobres del conurbano, con un índice del 23% tólica se hizo presente a través de formas que, si
de la población total con necesidades básicas bien continúan con esta tradición caritativa, se
insatisfechas. Por cuanto nuestro abordaje so- destacan por incorporan nuevas modalidades
bre las relaciones y procesos de interactuación de actuación. Veamos cómo se puso en juego
entre la Iglesia Católica y las clases subalternas esta presencia en nuestra zona de estudio.
se sitúa en este espacio urbano fuertemente En primer lugar, la Iglesia Católica fue la
marcado por la polarización social. referencia por excelencia de un número im-
El análisis que sigue tendrá en cuenta las portante de familias con quienes dialogamos
modalidades de acción de la Iglesia Católica y que en el momento en que las contactamos
(en términos del trabajo pastoral y social en los atravesaban condiciones sociales muy deterio-
barrios) en detrimento de expresiones más co- radas. La entrega de alimentos, colchones, y
múnmente conocidas de la religiosidad tales materiales para la vivienda, sobre todo duran-
como las “peregrinaciones”, los “rezos”, la “de- te las inundaciones que azotaron al lugar, fue-
voción”. Cabe aclarar también que el abordaje ron señalados por muchos pobladores como
que presentamos aquí tiene como interés, más elementos fundamentales en momentos de
que recuperar en forma exclusiva la dimensión la llegada y asentamiento en estos barrios. Si
“simbólica” de “lo religioso”, como suele ser bien hoy, otras instituciones concentran bue-
propio de los trabajos adscriptos en Antropolo- na parte de la distribución de la ayuda social
gía de la Religión, atender al andamiaje políti- (como el gobierno local a través de distintas
co y social de los procesos que describiremos. secretarías y ONGs) muchas de las referencias
de los vecinos siguen marcando a Caritas Dio-
cesana como institución clave para los proce-
La presencia de la Iglesia Católica en sos de reproducción cotidiana8.
los barrios populares Debemos tener en cuenta que los poblado-
res que habitan en las villas de emergencia y los
Sin descartar la presencia de otros credos, asentamientos ubicados en la Zona Norte del
en la Zona Norte del Gran Buenos Aires, la Gran Buenos Aires han recibido muy fuerte-
influencia de la Iglesia Católica se destaca por mente, como parte de los sectores más empo-
su pronunciada visibilidad. Históricamente, brecidos, el impacto de las políticas de corte
el Obispado de San Isidro7 ha sostenido en el neoliberal de las últimas décadas. Nos referi-
tiempo vinculaciones con los sectores econó- mos al trastocamiento de las protecciones liga-
micamente más influyentes de esta zona y ha das con el trabajo y la forma de intervención
ejercido múltiples iniciativas ligadas a la cari- redistributista del Estado que primó en nuestro
dad. La implementación temprana de espacios país hasta la década del 70 (Grassi, 2003; Gras-
dedicados a la catequesis, la concreción de si; Neufeld, 2003).
distintas obras de beneficencia, entre las que En el momento de nuestro trabajo de cam-
se encuentran el levantamiento de numerosas po, un alto porcentaje de los pobladores se
escuelas primarias y de artes y oficios, institutos encontraban desempleados o bajo relaciones
para “deficientes” físicos y mentales, asilos para laborales profundamente precarizadas. Las
huérfanos dan cuenta de la impronta de este “changas”9 en albañilería, pintura, plomería y
Obispado en el trabajo basado en la caridad jardinería fueron las opciones más frecuentes
(Lozier, 1986). Sin embargo, en las últimas dé- que muchos ex-trabajadores del mercado for-
cadas, en los barrios periurbanos, la Iglesia Ca- mal eligieron para sortear las adversidades que

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produjo el desempleo. En simultáneo, las acti- volucramiento en experiencias de “reconversión”


vidades de “cartoneo”10, tradicionales en esta y evangelización definidos por nuestros entre-
zona, se extendieron a un importante número vistados como fuente de “contención moral”
de familias. En definitiva, prácticamente la to- y “crecimiento personal”. La interpelación al
talidad de los grupos familiares que entrevis- laicado a través de nuevas experiencias como el
tamos revistaban como receptoras de diversos Movimiento Columna11 constituye una tercera
subsidios estatales vinculados con la alimenta- modalidad que reconocimos durante el trabajo
ción, la desocupación y asistencia a la pobreza. de campo y que, si bien se articula con las otras
Sin embargo la relación entre los pobladores formas de vinculación con la Iglesia, adquiere
y la Iglesia Católica no se restringe, como ve- rasgos particulares.
remos, a la entrega de recursos materiales. En En vista de este recorrido que alude a prác-
segundo lugar, la “presencia” de la Iglesia Cató- ticas heterogéneas y protagonizadas por distin-
lica en los barrios visitados se liga con la actua- tos actores sociales, nos interrogamos: ¿Cómo
ción y mediación que realizaron importantes se fue concretando en definitiva la presencia
conjuntos de clérigos y voluntarios de la Iglesia de la Iglesia Católica en los barrios? ¿En qué
en los procesos de acción colectiva y organiza- coyunturas tuvo lugar esta intervención? ¿Con
ción urbana que tuvieron lugar en esta zona del qué procesos y relaciones más amplios (y loca-
conurbano entre los años ochenta y noventa. les) se vincula esta presencia? En los siguientes
Como veremos en las siguientes páginas, en apartados pretendemos hacer visibles nudos
los barrios ubicados en las márgenes del Río Re- fundamentales de la dinámica y las apropia-
conquista, entre mediados de los años ochenta ciones que implicó entre los años ochenta y la
y durante los noventa tuvo lugar un proceso de actualidad la presencia de la Iglesia Católica en
asentamiento “no legal” de tierras que incluyó la los barrios del conurbano bonaerense. Si bien,
disputa por diversos recursos, entre ellos la de- como dijimos, una vasta bibliografía que nos
manda por los servicios colectivos y programas antecede ya se ha referido a las nuevas experien-
compensatorios del Estado. En ese recorrido, cias de vinculación entre el campo religioso y
y según reconstruimos en nuestro trabajo de los sectores subalternos, nos interesa describir
campo, la Iglesia Católica fue reconocida por con densidad etnográfica y atenta a los proce-
nuestros entrevistados como un actor relevante sos cotidianos, dicha presencia y sus condicio-
en la mediación y articulación con las agencias nes de posibilidad, no siempre abordados por
del Estado. Los pobladores de los barrios visita- la literatura sociológica. En primer lugar nos
dos insistieron en la importancia que tuvo para dedicaremos a los procesos de “entrada” de la
su propia actuación el acompañamiento de un Iglesia Católica en los barrios, para pasar luego
grupo de clérigos que se asentaron en el lugar y al tratamiento de los procedimientos de actua-
de cuya actuación hablaremos más adelante. ción y las apropiaciones de estos procedimien-
En tercer, junto con estas formas de inter- tos en los escenarios locales.
vención en la resolución de problemas sociales,
la presencia del catolicismo en los barrios de
la periferia se puso en juego a través de nuevas La entrada de la Iglesia Católica a los
formas de la evangelización y orientación de con- barrios
ductas. Para un número importante de hombres
y mujeres que entrevistamos, la vinculación con La entrada de la Iglesia Católica a los barrios
la Iglesia Católica se materializa a partir del in- de la periferia de la Zona Norte del Gran Buenos

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Aires tiene lugar entre fines de los años setenta y za a sentirse con la llegada de congregaciones
durante los ochenta, a través de distintos movi- que, al menos entre algunos de sus miem-
mientos que se articulan y dan en simultáneo. Se bros, acuerdan con las posturas eclesiales
trata, como veremos, de una “entrada” y luego tercermundistas. En los barrios periféricos
“permanencia sostenida” que se concreta bajo ubicados en el partido de Tigre, se trata de la
rasgos particulares, algunos de ellos son el inte- llegada de la congregación Pía Sociedad San
rés de los referentes de la Iglesia por captar los Cayetano13, fuertemente centrada en el traba-
modos de vida locales y su activa participación. jo con los pobres y los más necesitados.
En los barrios ubicados en las márgenes in- En los barrios de la periferia, el primer
feriores del Río Reconquista, el ingreso de la acto de “presencia” de la Iglesia Católica fue el
Iglesia Católica tuvo como uno de sus puntos “oficio de la misa”. Dado que ninguno de los
de partida el proceso de descentralización que barrios de las márgenes contaba con construc-
concretaron varias parroquias “cabeceras” de las ciones específicas, una tendencia fue utilizar
localidades que integran dichos asentamientos. los edificios de las escuelas públicas ubicadas
Son varios los motivos que, según reconstrui- en cada uno de los territorios. En el Barrio
mos, se pusieron en juego en este proceso de Reconquista14, en el Partido de Tigre, como
descentralización. Entre las causas, no podemos ocurrió en otros distritos bonaerenses, a fines
omitir la creciente presencia que comenzaron de los años 70, el edificio de la escuela co-
a tener hacia fines de la década del 70 en los mienza a usarse no sólo para la celebración de
barrios populares otros credos como el Pente- las misas sino también para la enseñanza del
costal, los Testigos de Jehová, los Mormones y catecismo. Una vez terminada la hora de clase,
la religión Umbanda. La Zona Norte del Gran fue común que los niños de determinada edad
Buenos Aires, como otros distritos peri-metro- se quedaran en la escuela para recibir la cate-
politanos, se configuró un escenario propicio quesis. Progresivamente, la escuela comenzó a
para la entrada y presencia de credos que hasta usarse también para otros oficios propios de la
ese momento no contaban con una fuerte he- Iglesia Católica, como son la “confesión”, el
gemonía en nuestro país12. “bautismo” y la “comunión”15.
La descentralización de las parroquias ca- El uso de las escuelas públicas por parte
beceras a cargo de las congregaciones loca- de la Iglesia Católica para la evangelización
les no fue un hecho aislado, sino que contó nos da pie para introducir otro movimiento
significativamente con el apoyo del Obispa- que nos sitúa de lleno en las condiciones de
do de San Isidro. La entrada a los barrios se posibilidad de la entrada de esta institución,
fundamentó a partir de la percepción de la histórica en nuestro país, en la periferia del
“limitada” llegada de la evangelización a los Gran Buenos Aires. Por cuanto, al mismo
habitantes de las periferias. Tal como lo ex- tiempo que las parroquias céntricas ponían
pusieron algunos informantes claves, en esta en marcha los procesos de descentralización,
apreciación confluyó tanto la observación de la presencia de la Iglesia fue en simultáneo
la escasa presencia numérica de los poblado- una solicitud de los pobladores más influyen-
res de las villas y asentamientos en las misas tes de los barrios populares.
y peregrinaciones (que se hacían en el centro Nos estamos refiriendo sobre todo a los
de las localidades afectadas) como la emer- vecinos fundadores de los barrios, aquellos
gencia de una sensibilidad social y dirigida que, como adelantamos, ocuparon el se-
hacia los más pobres, que, sobre todo, empie- gundo cordón del conurbano a partir de lo

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loteos a precios populares de tierras que se dro y que en esos momentos tenían importante
realizaron en la metrópolis bonaerense entre adhesión en la Zona Norte. Nos referimos a
1950 y 1960: los llamados “Cursillos de la Cristiandad”, una
suerte de retiros espirituales basados en una
En ese momento [fines de la década del 70] fuerte impronta del laicado y la propagación
había una directora muy buena, que después de valores dominantes sobre “la familia” y la
se fue y vino otro director muy bueno. Él era “vida social”, que en la Zona Norte sobre todo
de un grupo católico y yo le decía “Uds mu- se difunden entre fines de los años setenta y
cho BLA, BLA, BLA, pero nunca traen a nadie durante los ochenta en coincidencia con la dic-
aquí. Traigan al barrio algunas chicas que en- tadura militar. Así nos lo relataba Carlos, uno
señen a los chicos catequesis”. Nunca vino un de nuestros entrevistados:
cura por acá! Entonces yo un día dije: “vamos
a hacer una cosa, vamos a hacer una Iglesia acá Yo empiezo a participar de los cursillos “De
en Reconquista, porque no hay nada de nada”. Colores” de la Iglesia. Era muy lindo. A mí me
Entonces yo un día, ya en esa época estaba un llevó un compañero del partido [peronista]. Ahí
Intendente, que era del Proceso, puse un cartel empecé a conocer un montón de gente de San
grande aquí en la esquina que decía “aquí va a Isidro. Toda gente bien educada, que no tuvo
ser la Iglesia San Cayetano” (Carlos P., vecino problemas en venir a visitarme a Reconquis-
del barrio Reconquista). ta cuando tuve el accidente [cerebrovascular]
(Carlos P, vecino del barrio Reconquista.)
En tal caso, los miembros de las primeras
Juntas Vecinales, si por algo sobresalieron, De acuerdo a la reconstrucción de los he-
fue por su tenacidad por convertir, entre los chos, estos cursos otorgaron a algunos re-
años 60 y 70, a las zonas en las cuales vivían ferentes barriales la posibilidad de nuevas
en “barrios respetables”. Como señalan otros interacciones sociales y amistades que excedie-
estudios, las Juntas Vecinales, expresión de los ron los límites de los barrios. Este dato no es
movimientos fomentistas, se constituyeron en un aspecto menor, por cuanto de algún modo
las formas asociativas más comunes por parte anuncia el progresivo pasaje que hicieron varios
de los vecinos en los momentos de su asenta- referentes barriales de un mayor protagonismo
miento periurbano (Di Stefano et al, 2002). En en las acciones colectivas y políticas barriales a
este escenario, fueron los vecinos más antiguos las actividades que organizaban las parroquias
de los barrios quienes acompañaron sostenida- céntricas. Debemos recordar que se trató de un
mente a clérigos y voluntarios en las primeras período en el cual imperaba en nuestro país las
“visitas” a los asentamientos. disposiciones de los gobiernos de facto en don-
Es importante decir que la vinculación en- de la militancia política y partidaria estaba pro-
tre los integrantes activos de las Juntas Vecina- hibida. De algún modo, la vacancia que deja la
les y la Iglesia Católica se concreta a partir de clausura de espacios de participación social y
acciones específicas y en una coyuntura muy política es ocupada, entre otros, por la Iglesia.
particular en Argentina. En buena medida, ¿Qué rasgos asumieron estas primeras vin-
las relaciones se materializan cuando varios de culaciones entre la Iglesia y los pobladores de
estos referentes comienzan a participar en un los barrios populares? Lejos de tratarse de mo-
conjunto de iniciativas de interpelación del lai- dalidades de interacción estables en el tiempo,
cado organizadas por el Obispado de San Isi- las vinculaciones entre los representantes de la

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Iglesia Católica y los pobladores más antiguos de alguna manera extendidas hasta los años 70
los barrios sufrieron importantes fluctuaciones. a la clase trabajadora, pero que sufren el im-
Una tendencia fue que, con el tiempo, se produ- pacto de las medidas de desindustrialización,
jeran importantes tensiones entre los sacerdotes estratificación salarial y opresión política im-
y los vecinos. Las tensiones tuvieron diversos plementadas por el gobierno de facto entre
orígenes. Por un lado, se destaca la progresiva 1976 y 1983. En las barriadas populares, el
diputa por la ocupación de las tierras. Una cues- asentamiento no legal de tierras es vivido por
tión reincidente en los barrios fue la discusión los vecinos fundadores como una invasión y
acerca de las posibilidades de acceso y uso de los verdadera amenaza de los valores de “civili-
terrenos. Al tratarse casi todas de zonas inunda- dad” que alimentaban el ideal del “barrio”.
bles, muchos terrenos quedaban sin ocupar por Una característica que en definitiva fue co-
largos períodos de tiempo aún cuando tuvieran mún en las formas de proceder de la Iglesia
dueño. Por cuanto, emplazar las capillas y pe- en los barrios de la Zona Norte fue la fuerte
queñas parroquias incluyó un importante nivel relación que estrecharon los cuadros de base
de conflicto en torno a quien adjudicar la pro- católicos con los protagonistas de “las tomas”.
piedad y uso del espacio urbano16. Estas relaciones tuvieron lugar de modos he-
Por otro lado, otro factor detonante de terogéneos. Entre otras, los sacerdotes fueron
las rupturas entre los vecinos fundadores y figuras claves e influyentes, que posibilitaron
los referentes de la Iglesia, fue la progresiva el acceso de varias familias a los terrenos. Tam-
vinculación que, sobre todo los clérigos, co- bién en esta etapa participaron varias mujeres
menzaron a tejer con los pobladores que iban voluntarias de la Iglesia, casi todas vecinas
instalándose en forma no legal en los barrios, pertenecientes al momento fundacional de
relación que se fue consolidando en el tiempo. los territorios. Junto con la organización de
Al compás que se agudizaba la crisis econó- las tomas, clérigos y voluntarias serán además
mica en nuestro país – en los barrios crecía el ejecutores de un conjunto de iniciativas que
número de familias que iban ocupando tierras incluyen algunas redefiniciones y también
ubicadas en el sector más anegadizos de la co- continuidades respecto a las relaciones entre
nurbación. Las acciones de la Iglesia comenza- la Iglesia y los sectores populares, como anali-
ron progresivamente a dirigirse a estos nuevos zaremos a continuación.
pobladores, cambiando así el escenario y las
relaciones de fuerzas en el espacio barrial.
La ocupación de terrenos, cuyo punto de Nueva presencia y modalidades de ac-
partida son las tomas masivas en el sur del ción de la Iglesia Católica
conurbano bonaerense a inicios de la década
del 80, tiene como protagonistas a hombres En la literatura especializada sobre las rela-
y mujeres, muchos provenientes de villas ale- ciones entre la Iglesia y los sectores subalternos,
dañas y de la Capital Federal (sobre todo tras una característica común es que las formas de
la expulsión masiva que provoca el gobierno intervención de las distintas religiones se des-
militar) que no pueden acceder al lote propio. criban como fenómenos más estáticos (ese de-
Básicamente esta imposibilidad al acceso de la cir, descriptos portando razgos asumidos una
propiedad se liga con la falta generalizada de vez y para siempre) que dinámicos. A contra-
trabajo y el deterioro pronunciado de protec- partida de ello, como veremos, las acciones de
ciones sociales, que en nuestro país estaban de la Iglesia Católica en las décadas de los ochenta

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y noventa se caracterizan, en nuestra zona de ¿Cuáles fueron en específico las acciones lle-
estudio, por la presencia sostenida (antes que vadas adelante por la Iglesia Católica una vez
intermitente) en el territorio. Uno de las ex- concretada la entrada a los barrios? ¿Bajo qué
presiones de esta presencia tuvo que ver con la modalidades se concretaron las prácticas e in-
decisión que tomaron algunas congregaciones teracciones locales? Básicamente, en el período
eclesiales, entre ellas que sus clérigos se instalen que marca la transición de la dictadura militar
a vivir en los barrios. y el retorno de la democracia, el accionar de
Esta ya había sido una experiencia que la Iglesia Católica en los barrios periurbanos
tuvo lugar en la década del 70 por parte de los se basó en una interpelación más directa ha-
curas villeros17. Sin embargo resultó una prác- cia el laicado, recuperando para ello formas de
tica inédita para los asentamientos populares acción ligadas con la “animación comunitaria”.
ubicados en el segundo cordón que comenza- Es decir, si bien en los barrios ubicados en la
ban a poblarse. En el barrio Reconquista de periferia de la Zona Norte del Gran Buenos Ai-
Tigre, por ejemplo, la llegada y permanencia, res, la distribución de bienes a los pobladores
primero de un diácono, tiene lugar a fines de más necesitados fue una constante, el período
la década del 70, creciendo el número de clé- sobresale por una nueva forma de organizar la
rigos que comienzan a vivir en el barrio du- pastoral a través del interés por captar los senti-
rante los años ochenta y noventa. mientos y la pertenencia efectiva de los sectores
La presencia permanente de sacerdotes y populares en la Iglesia.
diáconos en las villas y asentamientos popu- En los barrios de la periferia de la Zona
lares tendrá efectos concretos en las dinámi- Norte tuvieron lugar diversas experiencias de
cas barriales, sobre todo cuando a los clérigos interpelación del laicado. Sin embargo una
comienzan a sumarse grupos numéricamen- experiencia que sobresale ha sido el Programa
te importantes de laicos a través del trabajo N.I.P (Nueva Imagen de Parroquia) por la con-
“voluntario”. En la Zona Norte, sobre todo vocatoria que tuvo y los sentidos – múltiples y
se tratará de la presencia activa de grupos de encontrados – que logró aglutinar.
mujeres, vecinas pertenecientes a los “mo- El Programa Nueva Imagen de Parroquia
mentos fundacionales” de los barrios, quie- constituye una propuesta de renovación parro-
nes se dedicaron afanosamente a secundar a quial, post conciliar18, a la vez que se desprende
los clérigos en sus nuevas labores sociales y del movimiento Por un Mundo Mejor, fundado
pastorales en las zonas más humildes. Esta en los años 50 y basado en la animación co-
diferenciación que marcamos al interior de munitaria19. La propuesta N.I.P, surgida es-
la Iglesia es importante, por cuanto mientras pecialmente para el contexto latinoamericano
los sacerdotes y diáconos que actúan en el y aún vigente en varios países, consiste en la
barrio sobresalen por su impronta tercermun- implementación de un trabajo pastoral a tra-
dista, las mujeres que secundan a los clérigos vés de niveles, detalladamente planificados de
definen sus acciones desde modos más hete- inserción en el espacio local y con estructuras
rodoxos. Desde su lugar como voluntarias de claramente delimitadas de participación a tra-
Cáritas, las recorridas de estas mujeres por vés de la conformación de CEBs (Comunidades
los sectores más humildes de los asentamien- Eclesiales de Base) o Comunidades de Familia.
tos serán muy influyentes, como veremos, en Surgida en el postconcilio, y recuperando a
la cotidianeidad del barrio y los modos de la vez el espíritu del movimiento Por un Mun-
vida familiares. do Mejor, la implementación del N.I.P en los

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barrios de la Zona Norte fue una decisión de res de las acciones adaptaron acorde a las carac-
las parroquias cabeceras e implicó la puesta en terísticas locales del lugar.
práctica de un conjunto de iniciativas en las Las mateadas, tal como fueron denomi-
barriadas populares. En los barrios investiga- nadas las reuniones que organizó la Iglesia en
dos, este Programa comienza a implementar- los barrios ubicados en las márgenes del Río
se en el año 1982, continuando con algunos Reconquista, lograban una gran convocatoria
altibajos durante la década del noventa. En- popular. Para muchos hombres y mujeres que
tre sus iniciativas, una muy relevante, por la entrevistamos estas reuniones son recordadas
movilización que implicó para los pobladores como una experiencia muy significativa en sus
de los barrios ubicados en la periferia, fue la historias de vida. Más que nada, se trató de la
formación de agentes: posibilidad de ampliar los lazos sociales y de
ayuda mutua dentro y fuera del barrio, el ac-
En esa época trabajábamos con el N.I.P., que ceso a recursos, muchos de orden simbólico,
nos enseña con la “metodología prospéctica” ligados con el prestigio de ayudar a otros y per-
[sic], ¿Qué pasará dentro de diez años con la tenecer a una institución que en esos momen-
población de aquí si no se hace nada? Entonces tos contaba con una gran legitimación dentro
la gente, despacito, aprende a leer la realidad, de los barrios. Las reuniones tenían lugar en
“bueno la realidad es ésta y lo más urgente es los domicilios particulares de los vecinos e iban
esto, esto, y esto”. Así la gente de Reconquista, rotando. En dichos encuentros, la práctica de
comenzó a participar de las programaciones y la “Lectura de la Biblia”, así como el “Análisis
las evaluaciones. Simultáneamente también se de la realidad barrial” fueron llevadas a cabo en
da nuestra participación en Nueva Tierra como forma regular, empleándose para su desarrollo
centro de formación para una pastoral pensada estrategias de animación participativa.
para los sectores populares que es bien diferente Junto con las mateadas, las voluntarias de
que una pastoral para los sectores medios (…) la Iglesia fueron también ejecutoras compe-
También nos acercábamos a la lectura de la teo- tentes de las iniciativas que ponían en juego
logía de la liberación de Gutiérrez que viene a las vicarías y capillas de los barrios en vista
la Argentina y compartíamos la experiencia con de intervenir sobre las problemáticas de los
los hermanos que están en Brasil que estaban pobladores. Las visitas a los hogares son ac-
viviendo procesos análogos y también empeza- ciones aún muy recordadas en los barrios y
mos a mamar lo que es la pedagogía de Freire, que las voluntarias de la Iglesia realizaron con
porque Nueva Tierra lo que hace es aplicar al regularidad en las zonas más empobrecidas
proceso formativo popular de grupos de base los de los asentamientos. Un cuaderno, ya arrui-
criterios pedagógicos de la pedagogía freireana nado, de tapas duras, que en varias oportu-
(Hugo, Diácono que participó con su labor sa- nidades algunas entrevistadas nos acercaron
cerdotal en la periferia de la Zona Norte). mientras conversábamos con ellas, da cuenta
del registro pormenorizado que estas mujeres
La puesta en juego del Programa incluyó dejaron asentado allí acerca de los problemas
la formación en espacios por fuera de los ba- de cada familia y su resolución. El cuidado de
rrios, pero también, como veremos, prácticas enfermos, la obtención de turnos en hospita-
concretas en el terreno. La lectura de la Biblia les, la búsqueda de recursos a través de rifas
y el reconocimiento de la realidad social fueron para trámites, la compra de medicamentos,
iniciativas muy fomentadas y que los animado- el acompañamiento de algunas familias a los

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juzgados, la escuela y la salita y una bolsa de El que estaba más con la gente lo que veía era
trabajo son algunas prácticas de “asistencia” mucho amor, pero por ahí mal puestos, o sea,
que colateralmente al Estado, estuvieron a capaz que lo tienen a upa, a upa y lo besan y lo
cargo de las voluntarias de la Iglesia durante besan y se olvidan que lo tienen que cambiar,
los años 80 y 90. que la comidita tiene que ser a las 12h, que la
Reconocidas estas iniciativas, basadas en el manzana tiene que ser bien lavadita, pero ellas
trabajo “en terreno” y atentas a la animación los quieren mucho de ese modo, capaz están con
comunitaria: ¿Qué implicancias tuvieron? ¿Qué los chiquitos a todos lados (Sara, voluntaria de
efectos de sentidos tuvieron los procesos de in- la Iglesia Católica).
tervención de la Iglesia en las comunidades lo-
cales y en los sujetos que participaron allí? Entre otros se trató de las recomendacio-
Los distintos actores sociales que se invo- nes que varias de las voluntarias de la Iglesia
lucraron en esta modalidad pastoral basada Católica dieron sobre todo a las mujeres acerca
en la animación comunitaria no recuperaron de los horarios de las comidas de los niños, las
linealmente sus directrices, sino que algo pautas de limpieza y el cuidado personal. Tam-
hicieron con la “letra” de los Programas. El bién se trató de la elaboración, por parte de las
concepto de apropiación trabajado por El- voluntarias, de juicios de valor sobre la educa-
sie Rockwell (1996) resulta pertinente para ción de los niños, los problemas de salud y el
comprender las distintas interpretaciones buen cuidado que en ocasiones implicó la supe-
que se pusieron en juego20. ditación de las decisiones parentales. La inter-
En el caso que analizamos, aún cuando vención directa de las voluntarias de la Iglesia
los lineamientos y las acciones del Programa en la resolución de problemas (en la escuela,
N.I.P. estuvieron detalladamente diseñados, los centros de salud) sorteando muchas veces
los distintos actores que intervinieron se apro- el consentimiento de los adultos a cargo de los
piaron selectivamente de él. De ese modo, en niños, así como el alejamiento temporario o
las articulaciones entre las voluntarias de la permanente de algunos niños de los hogares
Iglesia y las familias más empobrecidas del ba- de origen a partir de advertir malos cuidados,
rrio, la ayuda y contención no estuvo exenta de son algunas expresiones de la supremacía que
relaciones asimétricas y desiguales. Por cuan- adquirieron algunas voluntarias de la Iglesia
to, en el transcurso de su implementación, sobre las decisiones de los tutores de los niños
fueron varias las voluntarias de la Iglesia que (Santillán, 2003).
se valieron de los espacios de “participación” y Esto que vamos señalando acerca de cómo
tradujeron los lineamientos del programa pas- las interacciones entre las voluntarias y las ma-
toral tercermundista en una forma convencio- dres están permeadas por relaciones de ayuda
nal de evangelización y “recreación” de cierto mutua pero también de coerción y modelación
orden moral, que recayó con fuerza sobre las de conductas nos parece relevante por cuanto
formas en que debía organizarse (y llevar a este último aspecto no suele estar siempre re-
cabo) la vida familiar. Esto incluyó una ten- flejado en la literatura local. Como dijimos,
dencia bien definida hacia la modelación de en buena medida, los análisis sobre las inte-
hábitos, estilos de vida y concepciones en tor- racciones entre la Iglesia y las clases populares
no a la “domesticidad”, el “cuidado infantil”, suelen exaltar la potencialidad emancipatoria
la vida familiar, tal como nos lo testimoniaron y de impacto positivo en la subjetividad de
varios entrevistados: los sujetos.

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En simultáneo, debemos decir que la que, como ya describimos, se sumaron a las ac-
aceptación y el consentimiento de estas deci- ciones que la Iglesia organizaba en los barrios
siones por parte de los hombres y las mujeres de la periferia. Ahora bien, según testimonia-
que habitaban los barrios no deben verse, sin ron nuestros entrevistados, la participación “en
embargo, como respuestas unívocas ni totali- la Iglesia” podía consistir en asistir a “misa”,
zadoras. La implementación de las directrices aunque no era muy frecuente que ello ocurrie-
principales del Programa N.I.P. no implicó de ra. Para muchos pobladores más bien tuvo que
hecho la recuperación lineal ni de las volunta- ver con colaborar con distintas actividades que
rias de Cáritas ni de los pobladores. Junto con coordinaba la Iglesia, como organizar festivales
la profundización de relaciones de desigualdad, y levantar las construcciones que emprendían
fueron varios los pobladores que, con mayor las congregaciones tales como las capillas, cen-
o menor grado de articulación, respondieron tros de atención a la infancia y la juventud,
activamente a los lineamientos e interacciones entre otros.
que fomentó el Programa de animación laica. Las relaciones entre la Iglesia y los pobla-
Como dijimos anteriormente, en este sector dores de los asentamiento incluyeron, como
de la Zona Norte se estaba produciendo escalo- vimos, formas de regulación y modelación de
nadamente, desde inicios de la década del 80, conductas, sobre todo cuando algunas volun-
la toma no legal de terrenos. Progresivamente tarias consolidaron el espacio de “animación
los pobladores que se asientan van establecien- comunitaria” en formas tradicionales de evan-
do decisiones conjuntas y transformando pau- gelización y enseñanza moral. A la vez, fueron
latinamente las necesidades en reivindicaciones varios los grupos de pobladores que retomaron
específicas. Como los primeros pobladores, se e hicieron suyas las relaciones e interacciones
trata de hombres y mujeres, que arrastrando que se establecían en el marco de la acción de
consigo experiencias previas de una clase tra- la Iglesia para sus propios intereses. No lo hi-
bajadora en ascenso, aspiran también con in- cieron de cualquier modo ni a partir de condi-
sistencia a diferenciar el asentamiento de las ciones indeterminadas.
formas ya generalizadas de las villas de emer- En un escenario marcado por procesos de
gencia. Lo que variará, como veremos, son las organización barrial, los habitantes accedie-
posibilidades de actuación y las vinculaciones ron a varias de las iniciativas que organiza-
que los mismos establecerán con el Estado y ba la Iglesia Católica y al mismo tiempo se
las organizaciones intermedias (como la Iglesia valieron de la cercanía de los sacerdotes para
Católica) para concretar sus reivindicaciones. llevar hasta ellos inquietudes y vicisitudes que
producían las tomas de tierras. Por cuanto los
pobladores de los asentamientos, si bien, esta-
Iglesia Católica y la organización blecieron entre sí relaciones de ayuda mutua y
urbana: intersecciones y apropia- reciprocidad, lograron varias de sus demandas
ciones locales a partir de la intervención de los diáconos que
se establecieron en el lugar:
La implementación de los programas de
renovación pastoral por parte de la Iglesia Ca- Nosotros nos empezamos a juntar con los veci-
tólica implicó un conjunto de acciones que nos. Acá había muchísimo para hacer, no había
buscaron con énfasis la participación activa de luz, había que levantar los terrenos, todo era un
los laicos. Fueron varios los hombres y mujeres barrial. Nosotros por intermedio de los curas

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conseguimos muchas cosas. Por ejemplo, con En los barrios de las márgenes inferiores
ellos armamos la Comisión [de Trabajos comu- del Río Reconquista, por ejemplo, fueron fre-
nitarios], porque ellos eran los asesores nues- cuentes las ocasiones en las cuales los espacios
tros, nosotros les dábamos la inquietud de lo de formación pastoral creados por el Programa
que queríamos y los curas nos asesoraban: está eclesial N.I.P. se fusionaron con la “agenda de
bien, está mal, cómo lo vamos a hacer... y nos discusión” por la resolución de algún problema
vinculaban con gente. Por que hay una realidad, barrial o gestión de plan del gobierno, reinter-
si uno va por su cuenta te dicen “¿De dónde pretando así sus sentidos originarios.
sos?”, “¿Qué sos?” no te dan bolilla. En cam- En momentos de organización territorial,
bio nosotros, de la manito del cura, teníamos los vecinos de la zona de los asentamientos
todas las puertas abiertas. Nosotros íbamos allá discutieron, pensaron y definieron sus pareceres
a la gobernación, en La Plata, subíamos del pri- respecto a cómo convertir el lugar de residen-
mer piso al noveno, a todos le visitamos, pero cia en “barrio”. Estas discusiones incluyeron
¿cómo? De la manito del curita!, entonces no- no solo cómo gestionar los servicios colectivos
sotros le decíamos: “A ver, curita, vamos”… y básicos (como la luz, el agua, el transporte)
entonces íbamos con el cura cuatro o cinco de sino ideas bien definidas acerca de los niños, su
nosotros a la gobernación (Ramón, vecino de la educación y cuidado. Según pudimos recons-
zona de asentamiento, partido de Tigre). truir, fueron varias las ocasiones en las cuales
los lineamientos de los programas pastorales,
En un marco, signado por la crisis de repre- también se vieron influidos por los temas y
sentación (política, social, sindical) en nuestro preocupaciones de los pobladores de los ba-
país, las interacciones entre los vecinos y los rrios, cambiándose en diversas ocasiones la
referentes de la Iglesia fomentaron a la vez “agenda” del trabajo pastoral.
otras acciones que excedían lo exclusivamente El galpón que, por ejemplo, la congrega-
pastoral, tales como la posibilidad de imple- ción San Cayetano logra levantar en el barrio
mentar programas sociales del Estado. De for- Reconquista a mediados de los años ochenta
ma muy significativa, los relatos de nuestros para el oficio de la misa, contribuye a la con-
entrevistados volvieron sobre la referencia del fluencia en un mismo espacio de distintas
plan P.A.I.S.21 que en los barrios investigados acciones e interacciones barriales. En este
se implementa como una prueba piloto para la barrio se recupera en esos momentos una
Zona Norte. tendencia que venían llevando adelante va-
Como señalaron otros estudios, el marco de rias capillas de la zona: construir junto con
precarización de las condiciones de vida y para la iglesia otra edificación de amplias dimen-
la localización urbana no inhabilitó la puesta siones para actividades religiosas, sociales y
en juego de distintas iniciativas por parte de los comunitarias. En esta zona del conurbano
sujetos protagonistas de las tomas (Fara, 1985; este dato no es menor, por cuanto la Iglesia
Cravino, 1999). En tal caso, la ocupación “ile- evangélica y el culto umbanda venían acre-
gal” masiva y organizada de tierras abre un es- centando su presencia a través de edificios
pacio, en términos de lucha política, para las con este tipo de arquitectura. En un con-
reivindicaciones y demandas de los sectores texto de conflictividad social y en donde el
populares, fundamentalmente confrontando la uso del espacio urbano es un bien disputa-
“ilegalidad” con la “legitimidad” del derecho a do, el galpón es recordado como un hecho
la tierra (Fara, 1985). muy significativo para los pobladores de las

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márgenes del Río Reconquista y que rebasa sia Católica desplegó formas de adhesión más
lo exclusivamente pastoral/evangélico: cercanas a la búsqueda de una reconversión y
evangelización que también adquieren, como
Simultáneamente se va trabajando con la for- veremos, algunas rupturas – y también conti-
mación profesional... y empieza a funcionar ahí, nuidades – con los postulados tradicionales de
en el galpón ése... era multiuso, los domingos, la institución, tales como la redención y exone-
la misa, durante la semana estaban los cursos de ración hacia el buen comportamiento.
formación profesional... en la hiper se había ar-
mado los comedores y además había algo como
un mercado comunitario que vendía... eso fue El presente y la apuesta de la Iglesia Ca-
con la hiper... y los sábados, el apoyo escolar. tólica por la sanación y reconversión
Pasaba de todo ahí en ese galpón (Silvia, volun-
taria de la Iglesia Católica). Las relaciones e intersecciones entre los
representantes de la Iglesia Católica y los po-
En ese marco, junto con el reconocimien- bladores de los asentamientos bonaerenses
to que también le otorgan a la Iglesia, desde adquirieron razgos distintivos en el tiempo,
la perspectiva de los vecinos que comienzan a vinculándose estas distinciones tanto con los
organizarse, las instituciones que se levantan programas propuestos por la Iglesia (y sus
en los barrios (centros de apoyo escolar, guar- referentes), como con las respuestas de la co-
derías, comedores, centros de formación profe- munidad local y también con las coyunturas
sional) se definen como “demandas” concretas políticas y sociales. En nuestra zona de estudio,
y de las cuales se sienten participes. Se trata mientras que durante las décadas del ochenta
de demandas e iniciativas que se inscriben en y principios del noventa prevaleció una forma
conjuntos más amplios de reivindicaciones por de actuación eclesial ligada a la pastoral social,
el acceso a beneficios básicos – individuales y en los años que siguen y llegan a la actualidad
colectivos – y que produjeron efectos sobre los las acciones de la Iglesia que cobran mayor
cuadros de bases de la Iglesia y su actuación. legitimidad son aquellas vinculadas con la re
Lejos de mantener una sola dirección, las conversión – bajo formas renovadas – de las po-
intervenciones de la Iglesia Católica en los ba- blaciones en riesgo.
rrios de la conurbación fluctuaron entre los in- En esta fase en la cual se revitaliza la dimen-
tereses de esta institución y las apropiaciones de sión de lo pastoral evangelizadora – en detri-
los pobladores de las acciones concretas puestas mento de la intervención en procesos de acción
en juego. Esto no implicó, de todas formas, la colectiva y social – las villas y los asentamien-
neutralización de las intervenciones más ape- tos periurbanos se encuentran transitando otra
gadas a la interpelación moral de los comporta- etapa en los procesos de organización urbana.
mientos y modos de vida. Siguiendo la tendencia que marcan otros estu-
Como veremos a continuación, la partici- dios, en los barrios ubicados en las márgenes del
pación de la Iglesia en los barrios de la Zona Río Reconquista, la etapa con mayor moviliza-
Norte del Gran Buenos Aires no se mantuvo ción de vecinos y grado de organización barrial
constante, ni se llevó a cabo de un solo modo. se dio en los comienzos de las tomas, pasándose
Mientras se ponían en juego programas ter- luego a una etapa con una movilización más
cermundistas y de actuación directa hacia las baja y relativo peso de las organizaciones de se-
problemáticas sociales de las barriadas, la Igle- gundo grado22 (Cravino, 1999).

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Pero también, en este viraje de una pastoral de problemáticas. Si bien, la agenda de los En-
social a una centrada en la salvación/redención cuentros no es cerrada, la misma se circunscri-
influye las determinaciones que tomó el propio be con notoria fuerza a problemas tales como
Obispado de San Isidro, que progresivamente las adicciones, la delincuencia, la “desidia” (por
fue reemplazando a las congregaciones religio- ejemplo, en el cuidado de los hijos). A través de
sas por clérigos diocesanos, es decir, sacerdotes esta agenda de preocupaciones, el Movimien-
y diáconos directamente alineados con la orga- to Columna recorta la intervención sobre una
nización más jerarquizada de la Iglesia. población definida básicamente a partir de la
En ese marco, las modalidades de inter- situación de “riesgo”.
vención del catolicismo en la Zona Norte, ha La difusión del Movimiento Columna ocurre
intentado mantener su interés por los sectores en forma muy paulatina. La convocatoria para los
populares, pero desplegando para ello formas Encuentros se realiza a partir de la comunicación
tradicionales de evangelización, así como la personal y sobre la base de lazos de confianza y
aplicación más secular de sanación y reconver- confidencialidad. Como una de las apuestas es lo-
sión experiencial. Como veremos, un caso para- grar un verdadero impacto en la experiencia sub-
digmático de esta nueva forma de penetración jetiva, quienes realizan las acciones organizadas
en los modos de vida subalternos lo constituye por este Movimiento tienen como consigna no
el Movimiento Columna. difundir las actividades, ni relatar la experiencia
Como ya dijimos al comienzo, el Movi- personal vivida en los encuentros. Esto fue muy
miento “Columna” es una iniciativa de la Iglesia claro durante el trabajo de campo por lo costoso
Católica que surge en los años noventa como que resultó recabar información respecto de esta
una reformulación del Movimiento “De Colo- iniciativa del catolicismo laico. Sin embargo, las
res” que cobró, como ya se dijo, fuerte difusión huellas de este Movimiento en la vida personal y
en la diócesis de San Isidro en los años 70 y 80. familiar no pasan desapercibidas.
Mientras el Movimiento Cursillista “De Colo- El reclutamiento, es decir, la práctica de ele-
res” tuvo arraigo en las clases medias y altas, el gir a los candidatos para los Encuentros de Co-
Movimiento Columna está dirigido principal- lumna, permea distintos espacios y momentos
mente – aunque no de modo excluyente – a las de la cotidianeidad de los barrios en los cuales
clases populares. se focaliza esta iniciativa. Las escuelas, los cen-
En los barrios que recorrimos, no pasó tros dirigidos a la adolescencia y la juventud,
desapercibida la cantidad – considerable – de los grupos scout o encuentros deportivos son
hombres y mujeres que portan como colgan- instancias propicias para la observación y el re-
te una insignia cristiana no muy corriente. Se conocimiento de la población en riesgo, es decir,
trata de una medalla que representa un rosario, jóvenes y adultos en posible (ó confirmada) si-
y lo portan quienes, en algún momento de su tuación de vulnerabilidad.
trayectoria de vida, integraron algún Encuentro De algún modo en cada barrio se sabe quien
organizado por el Movimiento Columna. integra en forma regular el Movimiento Co-
Este movimiento organiza su accionar bási- lumna23. En diversas ocasiones son los propios
camente a través de Encuentros que se realizan familiares los que se acercan a algún miembro
en determinados momentos del año y por el del Movimiento para hablar sobre la posibilidad
lapso de un número determinado de días. A es- de que el esposo/a, hermano/a o hijo/a sea inte-
tos Retiros asisten contingentes de laicos que se grado a los Encuentros porque está en la mala
disponen a la reflexión acerca de un conjunto junta o transitando un mal momento emocional.

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No fueron pocas las veces que algunos maes- Mucho no te puedo contar porque de algún
tros y educadores de los barrios intercambiaron modo “cada uno” tiene que vivir la experiencia.
pareceres con miembros del Movimiento sobre Pero a mi me salvó. Gracias a que fui a Columna
los cambios (o no) de comportamiento de ado- ahora pienso lo que pienso sobre la crianza de
lescentes que habían asistido a los Encuentros. Elías. Me cambió la cabeza. Ahora estoy segura
En el caso de la educación de los niños, qué quiero para él. Cómo quiero educarlo y que
la iniciativa incluye la movilización de una sea una buena persona (Josefina, vecina de la
batería importante de relaciones y prácticas Zona Norte del Gran Buenos Aires).
concretas, a las que se refirieron varios de los
entrevistados y que entran en disputa con Un aspecto a destacar en estas iniciativas
otras intervenciones en torno a la infancia a de reconversión (a través del impacto en la expe-
cargo de un conjunto diverso de instituciones riencia subjetiva) es cómo la agenda de la Iglesia
(escolares, de la salud, ONGs): Católica, en definitiva, instala desde los últimos
años la problematización y gestión de las “po-
Cuando estamos en el momento de recluta- blaciones en riesgo social” 25. Con ello la Iglesia
miento ponemos el foco en quién está más ne- se introduce, para la disputa de sentidos, a un
cesitado en el barrio. Nos fijamos entre nuestros escenario en el cual convergen distintas agencias
conocidos y vecinos quienes estén en situación y organizaciones sociales (del Estado, ONGs,
de riesgo. Es importante como yo le digo a la universidades, fundaciones, movimientos so-
gente, fijarnos en aquel que por alguna razón ciales). Según nuestros registros y en referencia
no valoramos, que está en la droga, la violen- a la experiencia de Columna, los sentidos que
cia. Cuando se hace Columnita24, buscamos a fundamentan la acción de la Iglesia Católica
las familias que nos parece que están en riesgo. aluden en buena medida a esquemas de prefe-
También vamos buscando a los chicos según rencias y valoraciones sobre la vida familiar, el
nuestros contactos en la escuela, o el apoyo, en barrio y el cuidado de los hijos estrechamente li-
donde sea (Héctor, vecino del barrio de Recon- gados con los valores legitimados por los secto-
quista, Tigre). res dominantes. Esto no implica que los sujetos
resignifiquen estos sentidos por otros; tomando
Hay que decir que los adolescentes y adul- algunos aspectos y dejando otros. Pero lo que
tos que se involucraron en algún momento en nos interesa dejar visible aquí es cómo, a través
el Movimiento Columna no necesariamente de acciones renovadas, las acciones de la Iglesia
se encontraban en las situaciones definidas en los barrios populares, ya en una etapa cercana
como “riesgo” (drogadicción, alcoholismo, a la actual, contienen rupturas en las formas de
delincuencia). De hecho quienes viven y/ó organizar la interpelación del laicado, así como
hacen trabajo social o educativo en el barrio elementos de vieja data que reifican de algún
suelen aconsejar asistir al menos alguna vez a modo las dimensiones más ligadas a la prédica y
los Encuentros. evangelización.
De modo semejante a la entrada a otros
credos (como el evangelismo), la participa-
ción en esta iniciativa católica fue señalada Reflexiones Finales
por nuestros entrevistados como un punto
de inflexión relevante y transformador de las El abordaje histórico y etnográfico reali-
ideas en torno a la vida personal y familiar: zado en los barrios ubicados en las márgenes

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inferiores del Río Reconquista nos permitió el ne lugar en una coyuntura particular que
reconocimiento de un conjunto de iniciativas imprimirá sus efectos de sentido tanto en
e intersecciones que de manera diferencial y las acciones puestas en juego, como en los
específica tuvieron como protagonistas a dis- sujetos involucrados. Como dijimos la co-
tintos estratos de la Iglesia Católica y también yuntura de dictadura militar y transición
a los sectores subalternos. democrática en nuestro país, a inicios de los
Si bien la Iglesia Católica ha intervenido his- años ochenta, se caracteriza por la inestabli-
tóricamente respecto a los modos de vida sub- dad/debilitamiento de las estructuras polí-
alternos y sus problemáticas sociales, estamos ticas, cuestión que posibilitó un escenario
en presencia de nuevas formas de injerencia de propicio para que instituciones por fuera del
esta institución, que como vimos sobresalen Estado (como la Iglesia Católica) intervenga
por su desplazamiento hacia el territorio local en la problematización de la cuestión social
de los barrios, a partir de acciones llevadas a (Woods, 2003).
cabo por diversos representantes de la Iglesia Como ya lo desarrollaron varios estudios,
(el Obispado, los sacerdotes, las voluntarias, los la participación en ámbitos eclesiales, y espe-
laicos) de actuación heterogénea entre sí y que cialmente en las CEB, permitió a los sectores
se empalma con las demandas y recuperación populares, en distintos momentos de conflic-
activa de los destinatarios. tividad social, como en el transcurso de las
En este trabajo nos propusimos abordar las dictaduras de los años ´70 en Latinoamérica,
modalidades de acción de la Iglesia Católica que canalizar acciones de resistencia y protesta ante
tuvieron lugar en las últimas décadas en los ba- la clausura y represión operadas contra las orga-
rrios de la conurbación, centrándonos para ello nizaciones sociales y políticas (Villareal, 1985;
no sólo en el impacto de esta actuación sino Levine; Mainwaring, 2001). Pero, siguiendo a
en sus condiciones de posibilidad. Como in- otros estudios, resulta conveniente estar aten-
tentamos dar cuenta, la entrada y permanencia tos entonces a cómo se juegan en escenarios
de la Iglesia Católica no constituye un proce- concretos la relaciones de poder y desigualdad
so lineal, unívoco ni sostenido con los mismos que invisibilizan todo un campo de lucha ideo-
sentidos a lo largo del tiempo. En buena medi- lógica (Woods, 2003).
da, si bien la entrada a “los barrios” por parte Esto no implica desconocer cómo la Igle-
de la Iglesia tuvo que ver con las motivaciones sia Católica, a partir de su intervención terri-
de posturas más ligadas a la opción por lo pobres, torializada, contribuyó en la construcción de
se trató de una inserción fomentada, desde un demandas y reivindicaciones de los sectores
inicio, por los estratos más jerarquizados de la subalternos, sobre todo en momentos en los
institución (como el Obispado de San Isidro) y cuales se llevaron adelante los procesos co-
que pudo concretarse también por la legitimi- lectivos de asentamiento en la conurbación.
dad que le dieron los sectores más tradicionales Sino advertir cómo esta intervención por
de los barrios elegidos (sobre todo por parte de “fuera del Estado” operó, entre otros, a tra-
vecinos pertenecientes a una clase trabajadora vés de una suerte de “despolitización” de las
“en ascenso”). acciones y los sujetos que ocupaban espacios
La entrada y quehacer de la Iglesia Ca- significativos en la organización barrial (San-
tólica en los barrios de la periferia del Gran tillán; Woods, 2005) y de la pretensión de
Buenos, lejos de producirse en forma aisla- moralización y normalización de los modos
da de relaciones sociales más amplias, tie- de vida populares.

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El abordaje de las modalidades de interven- narrativas y las acciones de los sujetos, sus in-
ción de la Iglesia Católica desde el registro de teracciones, no como episodios discontinuos,
lo cotidiano permitió, entre otras cuestiones, ni aislados de la estructura social más amplia.
no dicotomizar el análisis. Más bien habilitó Como lo desarrolló Ágnes Heller (1994), lo
a poner de relieve los matices que incluyeron, cotidiano no sólo forma parte de los procesos
e incluyen, las acciones de la Iglesia Católica, de reproducción social, sino que constituye una
las contradicciones que encierran, el lugar ac- estructura en la que se puede observar el origen
tivo de los sujetos y cómo, en definitiva, las y el movimiento de acontecimientos más gene-
intervenciones locales son también engranajes rales de lo social. Desde nuestro punto de vista,
claves en los procesos más amplios de repro- las iniciativas pastorales y de animación comu-
ducción social, caracterizados por el ejercicio nitaria organizadas por la Iglesia Católica, en la
desigual del poder. historia reciente, no resultan un movimiento
Es decir, consideramos que la actuación de simple, sino que articula de forma muy comple-
cuadros de base de la Iglesia Católica en los ja diversos modos de interactuación que, según
barrios de las periferias se fundamentó en los podemos advertir, se caracteriza por guardar en
objetivos delineados por programas atentos a los sí contenidos nuevos, así también como con-
modos de vida subalternos, pero se tramaron en tinuidades; apropiaciones heterogéneas a la vez
el cruce concreto de tradiciones preexistentes y que experiencias que no pueden sustraerse de
de las lógicas de quienes intervinieron, que en relaciones sociales más amplias marcadas por la
un amplio espectro incluye a laicos y sacerdo- desigualdad y diferenciación social.
tes enrolados a las concepciones tercermundista
como a la cúpula como es el Obispado. Esto Daily practices and intersections the Ca-
implica que las acciones desarrolladas no ope- tholic Church and familiar groups in popular
raron a través de los mismos modos y ni con- settlements of the Buenos Aires Suburban
figuraron sentidos homogéneos. Como vimos, Area
la intervención de las mujeres voluntarias de la
Iglesia sobresalieron por la impronta que tuvo abstract The interest of this article is to descri-
orientada hacia la modelación de las conductas be and analyze, from an anthropological perspecti-
y comportamientos de quienes fueron destina- ve, the relations and the processes of intervention
tarios de las acciones. of the Catholic Church in popular neighborhoods
A la vez, la inclusión de los pobladores y in the suburban area of Buenos Aires City (known
las familias en las acciones organizadas por la as “Gran Buenos Aires”). We are particularly inter-
Iglesia dejaron huellas en los modos de actua- ested in documenting the practices and the interac-
ción y las convicciones de los cuadros de base tions between the Catholic Church and the social
de esta institución. Esto no implica que se haya groups that belong to popular settlements, especia-
logrado la neutralización del discurso morali- lly regarding the resolution of different dimensions
zante que permeó a la mayoría de las acciones, of social life such as education, children care and ur-
pero nos advierte sobre el peligro de abordar ban organization. Unlike the approaches that tend
los procesos sociales recuperando sólo algunas to separate the experiences of the subjects from the
de sus direcciones. structural conditions, we propose an ethnographic
En definitiva, consideramos que recuperar study which recovers the network of interventions
la escala de la vida cotidiana implicó compren- of the Catholic Church in its everyday life dimen-
der y situar los acontecimientos observados, las sion and related to the relations of power.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 111-132, 2008


Práticas cotidianas e intersecções entre a Igreja Católica e grupos familiares | 129

keywords Catholic Church. Daily practices. una política redistributista. Más adelante, durante las
Intersections. Familiar groups décadas del 50 y 60, a partir de cambios en el patrón
industrial y también por el desarrollo del transporte
automotor, la población se expandió hacia la segunda
corona del conurbano, a través de loteos económicos y
Notas con escasa o nula infraestructura, consolidando así la
presencia de barrios precarios y autoconstruidos con
1
Dicha investigación se realizó en procura de alcanzar múltiples necesidades (Pirez, 1994).
el título de doctorado en la Universidad de Buenos 6
El partido de San Fernando está referenciado dentro
Aires y se inscribió dentro del Proyecto UBACyT del Primer cordón suburbano. Sin embargo, los ba-
“Escuelas, modos de organización familiar y políti- rrios que tomé en cuenta se ubican en el límite con
cas estatales en el marco de procesos de desigualdad Tigre ubicado en el segundo cordón.
social y diversidad sociocultural en América Latina. 7
El Obispado de San Isidro comprende los partidos de
Una mirada histórico-etnográfica” dirigido por María
San Fernando, San Isidro, Tigre, Vicente López y las
Rosa Neufeld, sito en el Instituto de Ciencias Antro-
secciones 1, 2 y 3 de las islas del Delta Bonaerense y
pológicas, Facultad de Filosofía y Letras, UBA. En
fue creado con la bula “Quandoquidem adoranda” de
simultáneo esta investigación doctoral fue posible
Pío XII en 1957.
gracias a una beca otorgada por la Secretaría de Cien-
cia y Técnica de la Universidad de Buenos Aires entre
8
La institución Cáritas diocesana, definida como “la
el año 2001 y 2005. caridad organizada” del Obispado, es el órgano que se
dedica fundamentalmente a coordinar la obra social y
2
Siguiendo estos planteos, sumamos entonces al
caritativa de la diócesis y el trabajo solidario.
registro etnográfico, el recorte de la historia. Espe-
cíficamente una historia ligada con la propuesta de
9
Bajo el nombre de “changas” se reconoce a los traba-
recuperar una perspectiva “desde abajo” (Thompson, jos por cuenta propia, fuera del mercado “formal”,
1992) fundamentalmente teniendo en cuenta los que sobresalen por su intermitencia y transitoriedad
actores, los procesos y las relaciones sociales por los y exclusión de protecciones sociales.
cuales se delimita el problema de análisis. 10
Con el nombre de “cartoneo” aludimos a la recolec-
3
Las villas de emergencia o villas miseria se trata de ción de material reciclable (plástico, papel, cartones)
asentamientos informales (favelas brasileñas o los para su venta.
barrios de ranchos de Caracas) que en la Ciudad de 11
Como desarrollaremos más adelante, el Movimiento
Buenos Aires tienen como origen las migraciones del Columna consiste en una iniciativa de la Iglesia Ca-
interior del país durante la década del 30 a partir de tólica dirigida a los sectores populares y que funda
la aceleración del proceso de industrialización por el espíritu de los llamados cursillos de la cristiandad,
sustitución de importaciones que requería abundante todas experiencias que postulan principalmente la
mano de obra. interpelación del laicado católico a través de moda-
4
Bajo el nombre de “asentamientos populares” desig- lidades de participación basadas en la animación co-
namos al fenómenos ocurrido en las grandes urbes de munitaria y la experiencia subjetiva.
ocupación “no legal” de tierras, públicas como priva- 12
Los trabajos de Floreal Forni y equipo dan cuenta
das, ya sea con organización social previa o producto de la presencia creciente de grupos y organizaciones
de una forma más espontánea que, desde las dos últi- religiosas que entran en fuerte competencia con el
mas décadas, adopta formas urbanas circundantes en predominio del credo católico (Forni, 1989; Forni;
cuanto a amanzanamiento y dimensiones de los lotes Cárdenas, 2002).
encuadradas en la normativa vigente en nuestro país 13
La Pía Sociedad San Cayetano se crea en Vicenza (Ita-
(Cravino, 1999). lia), en 1941, por obra del Padre Ottorino Zanón.
5
El primer anillo que rodea a la ciudad Capital se forma Surge como respuesta a las necesidades de los jóvenes
a partir de la instalación de amplios sectores de trabaja- huérfanos y abandonados, víctimas de la guerra. Ac-
dores urbanos durante la fase sustitutiva de importacio- tualmente la congregación se centra su accionar hacia
nes entre 1930 y 1940 y en el transcurso de la primera los más pobres, desde una pastoral cotidiana y ligada
etapa del modelo nacional popular caracterizado por a las clases trabajadoras.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 111-132, 2008


130 | Laura Santillán

14
El nombre del barrio fue modificado para preservar el se planteó como objetivos articular la distribución de
anonimato de nuestros entrevistados. subsidios para la cobertura alimentaria de comedores
15
La antropóloga María Rosa Neufeld realizó con an- comunitarios con la incorporación de la población en
terioridad un registro sugestivo acerca de la presencia proyectos de generación de empleos y de organizacio-
de la Iglesia Católica en las escuelas públicas ubicadas nes sociales a redes preexistentes comunitarias (Chia-
en el contexto de Islas y el Delta Bonaerense a co- ra, 1996).
mienzos de la década del ochenta (Neufeld, 1991). 22
Esto no quita que los vecinos de los asentamientos y
16
En esta “disputa” por el uso del espacio urbano, la villas que conocimos no hayan continuando estable-
“Iglesia” obtendría una relativa ventaja sobre todo si ciendo estrategias de acción colectiva y reivindicación.
tenemos en cuenta, tal como lo reconstruyeron al- Sino, más bien, que las movilizaciones barriales se cen-
gunos de nuestros entrevistados, que cada vez que traron en nuevas demandas, tales como el problema
se inauguraba una obra de la Iglesia Católica en los de la “inseguridad”, la contaminación del ambiente,
asentamientos populares, el propio obispo de San Isi- la obtención de rebajas de precios en los consumos
dro, Jorge Casaretto, se encargaba de asistir al lugar colectivos (del agua, de la luz, del gas) y comenzaron
y legitimar la adquisición del terreno a través de su a llevarse adelante a través de la actuación de (ó en
bendición y argumentando que la obtención se trata- articulación con) otras organizaciones y movimientos
ba de “un regalo del cielo”. (tales como los movimientos de “desocupados”) antes
que la Iglesia.
17
En referencia al Movimiento de sacerdotes ligados
con las posturas tercermundistas y de opción por los
23
El Movimiento contempla, por un lado, a miembros
pobres, que llevaron a cabo el trabajo pastoral y social más permanentes que figuran como coordinado-
en las villas de emergencia de la Ciudad de Buenos res de los Encuentros y reclutamiento y miembros
Aires. transitorios (aquellos que realizan la experiencia de
los “Encuentros” pero no continúan participando de
18
En referencia al Concilio del Vaticano II, inaugurado
reuniones u otras actividades del Movimiento).
por el Papa Juan XXIII en el año 1962, y encargado
de renovar aspectos centrales de la Iglesia Católica,
24
Con el nombre de Columnita los entrevistados se re-
tal es el oficio religioso, la intervención en los proble- firieron a la experiencia de “Columna” para los ado-
mas del mundo, la atención hacia los países del Tercer lescentes (los varones de 12 a 16 años de edad y las
Mundo. mujeres de 11 a 15 años).
19
El Movimiento Por un Mundo Mejor surge en
25
El recorte de las poblaciones en “riesgo social” reúne
el marco de lo que se conoce como “Proclama Un en nuestro país, en forma heterogénea, a distintos
Mundo Mejor”, el mensaje dado por el Papa Pío XII sectores sociales (jóvenes, mujeres, niños, desocupa-
a la diócesis de Roma, en febrero de 1952, como un dos) y problemáticas (la alimentación, la educación
llamado a la Iglesia a renovarse, previo al Concilio del de calidad, la salud) y agentes de intervención (el Es-
Vaticano II. tado, ONGs, fundaciones, Universidades, Centros de
investigación).
20
Elsie Rockwell propone, recuperando los aportes de
Agnes Heller (1994), el uso del concepto de apro-
piación para describir justamente aquellos procesos a
través de los cuales los sujetos responden a los condi- Referências bibliográficas
cionamientos estructurales a partir de la recuperación
de los recursos que obtienen en sus ambientes inme- ACHILLI, Elena. Investigar en Antropología Social. Los
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autora Laura Santillán


Professora e investigadora do Departamento de Ciências Antropológicas/UBA
Doutora em Antropologia Social

Recebido em 31/03/2008
Aceito para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 111-132, 2008


Pesquisando crianças e infância: abordagens
teóricas para o estudo das (e com as) crianças
Flávia Pires1

resumo O artigo tece um painel teórico par- da infância, com os quais me deparei na bus-
cial dos estudos sobre (e com) crianças nas ciên- ca dos meus próprios interesses de pesquisa.
cias sociais – especialmente na antropologia, que Dessa forma, este artigo não pode ser tomado
embora não se pretenda exaustivo, cubra parte da como um panorama geral ou o estado da arte
produção da acadêmica brasileira, norte-americana da disciplina. O artigo deve, outrossim, ser lido
e européia; focando-se principalmente na interse- como um recorte da teoria produzido de acor-
ção dessa literatura com os estudos sobre religião. do com certos objetivos.
A pesquisa bibliográfica que permitiu a realiza- Observa-se, tanto no Brasil quanto no ex-
ção deste artigo foi realizada como parte do meu terior (Reino Unido, Estados Unidos da Amé-
doutoramento em antropologia social e, por isso, rica, Portugal, França, países nórdicos), um
o levantamento bibliográfico leva o recorte desta crescimento do interesse dos antropólogos e
pesquisa. No entanto, o texto pretende levantar sociólogos na criação de um campo de estudos
algumas discussões mais gerais relevantes para a específico para o estudo do tema2. Na França,
pesquisa antropológica, como a definição e os usos os estudos sobre criança estão vivendo uma fase
dos conceitos de cultura e de sociedade. de crescimento quantitativo e de abertura de
palavras-chave Antropologia da infância. An- novas frentes teóricas, tendo sido reconhecidos
tropologia da criança. Religião. pela Associação Internacional dos Sociólogos
de Língua Francesa (AISLF) − apesar de, como
afirma Eric Plaisance (2004, p. 222), ainda ser
Introdução “um campo de pesquisa disperso, mal circuns-
crito, trabalhado por pesquisadores que mal se
O campo de estudos sobre a infância a partir conhecem e têm poucas interações”. Do mes-
de uma perspectiva sociológica ou antropológi- mo modo, no Brasil, a Associação Brasileira de
ca é relativamente recente. Em conseqüência Antropologia (ABA) incluiu em 2006, pela pri-
disso, pode-se dizer que a literatura sobre o meira vez na sua reunião bianual, um grupo de
tema não é extensa. Ademais, os pesquisadores estudos voltados para a temática (GT 41: Por
não estão de acordo em vários pontos, inclu- uma antropologia da Infância).
sive sobre a própria história dos estudos sobre As abordagens que relacionam religião e in-
criança. Neste texto, apresentarei uma seleção fância são ainda mais raras. Consegui localizar
de algumas idéias e algun(ma)s pesquisadore(a) alguns poucos estudos que se concentram em
s da infância e da criança, com o intuito de uma interface entre religião e infância, embo-
realizar um breve (e não completo) histórico ra não se restrinjam à antropologia (Astuti, no
do tema, concentrando-me principalmente na prelo; Coles, 1991; Bovet, 1928; Elkind, 1978;
literatura produzida fora do Brasil. No entan- Garbarino, 1996; Hardman, 1999; Heller,
to, o levantamento não se pretende exaustivo. 1986; Nesbitt, 1993, 2000a, 2000b; Robinson,
Meu objetivo é apenas traçar alguns dos desen- 1977). Segundo Nesbitt (2000), autora que
volvimentos do campo de estudos da criança e vem trabalhando com crianças de origem Sikh

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-304, 2008


134 | Flávia Pires

na Inglaterra, a literatura sobre criança e reli- Goldman não acredita possível realizar tal
gião concentra-se em uma abordagem quan- empreendimento de pesquisa porque, segun-
titativa e altamente psicológica. Os exemplos do ele, as crianças pequenas não teriam ainda
citados por ela são Bushnell (1967), An- conceitos ou percepções religiosas: “o insight
thony (1971), Gates (1976, 1982), O´Keeffe religioso geralmente começa a aparecer entre os
(1986), Bullivant (1987), Francis (1987), doze e treze anos de idade” (Goldman, 1964, p.
Hyde (1990), Lall (1999), Davies (1997) – 226, tradução minha).
sendo os dois últimos direcionados à comu- Além disso, estudar infância, como afirmam
nidade Sikh. Há, no entanto, um campo de Robinson (1977) e James, Jenks e Prout (1998,
estudos sobre educação religiosa ou espiritu- p. 183), apresenta, dentre outros, o problema
al que conta inclusive com alguns periódicos de que muitos sentem-se autorizados a expres-
como Religious Education, British Journal of sar sua opinião, como se o fato de já terem sido
Religious Education, The international Journal crianças os autorizasse a teorizar sobre a infân-
of Children´s Spirituality3. cia. Como se pode observar em outro texto de
Alguns pesquisadores discorreram sobre James, “Eu não simplesmente estudei crianças,
uma impossibilidade de empreender tal projeto mas fui criança e tive crianças!” (James, 1993,
de pesquisa com crianças pequenas. p. 14, tradução minha), ser mãe ou ter sido
criança é, em si mesmo, afirmado como garan-
O trabalho descrito por Edward Robinson em tia de uma boa pesquisa. Outro problema re-
The Original Vision (1977: 11) sugere que as corrente da literatura sobre o tema é considerar
pessoas que se lembram de terem tido alguma a memória, por meio dos relatos sobre infância,
consciência espiritual da sua infância, eram ge- como a própria expressão da voz das crianças,
ralmente incapazes de falar sobre o fato. Além como fez Robinson (1977)4. A memória, como
disso, muitas dessas pessoas também disseram se sabe, é um exercício reflexivo que dota ao
que foi apenas quando elas se tornam adultas passado, valores de acordo com o momento
que reconheceram a importância desses even- presente. Para se estudar as idéias e as expe-
tos. Isso parece sugerir que qualquer tentativa riências infantis, é preciso estudar as crianças
de discutir assuntos “espirituais” com crianças propriamente ditas, e não o que os adultos têm
muito pequenas é infrutífero (McCreery, 1996, a dizer sobre a sua infância ou a dos seus filhos.
p. 197, tradução minha). Não estou dizendo, no entanto, que se devam
excluir os adultos das pesquisas sobre infância
Ronald Goldman vai mais longe e descreve: (ponto a ser discutido adiante).
Meu trabalho de campo foi desenvolvido
Percepções e conceitos religiosos não são ba- no semi-árido nordestino, em uma cidadezinha
seados em dados sensoriais diretos, mas são chamada Catingueira durante catorze meses
formados a partir de outras percepções e (2000-2005). Minha tese de doutorado tem
conceitos de experiência. Os místicos, que como objetivo estudar o processo de tornar-se
afirmam terem sensações divinas diretas, são adulto em Catingueira. Naquela cidade, a re-
exceções, mas como eles são casos extrema- ligiosidade sempre se mostrou um tema pun-
mente raros, ainda mais raros na adolescência gente, abraçando várias esferas da vida social.
e praticamente desconhecidos na infância, nós Minha dissertação de mestrado (Pires, 2003),
não precisamos explorar a sua significância por exemplo, trata da Festa de São Sebastião,
(Goldman, 1964, p. 14, tradução minha). padroeiro da cidade, momento no qual a cida-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 133-152, 2008


Pesquisando crianças e infância: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças | 135

de recebe turistas e se reinventa em tradições e Segundo Prout (2005), os estudos sobre


efervescência social sob as benções do santo e da a infância têm início na modernidade, jus-
igreja católicos. A presença dos chamados “cren- tamente porque somente nesse momento foi
tes” e espíritas kardecistas nesta festa religiosa, a concebida a separação entre a infância e a ida-
princípio católica, é um dos desdobramentos da de adulta. Philippe Ariès (1981 [1962]) é o
dissertação. No entanto, na tese de doutorado, grande representante da teoria moderna nos
trabalhei com crianças dos três aos treze anos de estudos da infância. Como se sabe, ele argu-
idade, adultos e idosos, na tentativa de compor menta pelo “nascimento” da infância na épo-
um quadro tão completo quanto possível sobre ca moderna. Seu trabalho é reconhecido por
o entendimento e a experiência religiosa naque- ter introduzido definitivamente as crianças
la comunidade. Ao fazê-lo, deparei-me com a nas pesquisas acadêmicas e por ter afirmado
existência de seres chamados “mal-assombros” a condição da infância como uma construção
que podem ser, em alguma medida, chamados social. No entanto, a crítica mais corrente ao
de religiosos, uma vez que mantêm relações pri- seu trabalho é que ele padece de um viés et-
vilegiadas com o chamado o “outro mundo”, nocêntrico, na medida em que não reconhece
o mundo após a morte. Para os adultos e os outras formas históricas de infância, a não ser
idosos estes mal-assombros são, basicamente, a aquela da modernidade. Sempre houve crian-
alma de pessoas falecidas. Para as crianças, por ça em todas as épocas históricas; o que não
sua vez, os mal-assombros são uma larga gama havia era criança tal como a concebemos na
de seres e acontecimentos. Interessante notar modernidade (Pollock, 1983). Outra crítica
que o medo dos mal-assombros, altamente en- corrente a Ariès é o seu viés evolucionista, na
fatizado pelos adultos e idosos, não o é pelas medida em que traça as mudanças nas idéias
crianças. Isto se explica pelo fato de que para os sobre organização familiar e sobre a crian-
adultos e, principalmente, para os idosos todos ça desde a idade média até o final do século
os mal-assombros são temíveis, uma vez que XVIII. Apesar de nunca ter afirmado que es-
existe uma relação, a princípio inquestionável, ses estágios de transformação das idéias sobre
entre eles e o diabo. Para as crianças, as coisas família e criança eram inevitáveis, a teoria foi
não se passam desta maneira. O mal-assombro lida dessa forma por alguns pesquisadores.
assusta menos e quando o faz, a razão não pode É praticamente impossível estudar crianças
ser colocada na sua associação com o mal. Cres- e infância sem se referir à psicologia e a alguns
cer em Catingueira implica em entender que o dos seus grandes mestres, como Freud, Piaget e
mal-assombro é assustador pela sua associação Vygotsky. O desafio parece ser como atualizar
ao demônio. Ao mesmo tempo, a pessoa vai se esses autores para a pesquisa antropológica. Ex-
tornando católico ou evangélico ou espírita de periências de pesquisa atuais tentam conciliar a
acordo com as experiências que leva a cabo no herança psicológica com o olhar sociológico e/
decorrer deste processo. É interessante ressaltar ou antropológico, na tentativa de não repetir
que há diferenças na percepção e na etiqueta de erros do passado. Um desses erros fundamen-
relação com os mal-assombros de acordo com tais está expresso na seguinte frase:
as diferentes religiões existentes na cidade. Para
entender melhor o que se passa, convido o lei- [...] a antropologia tem ignorado as crianças
tor a ler a minha tese (Pires, 2007), já que, no na cultura, enquanto os psicólogos do desen-
momento, o espaço é restrito para relatar em volvimento têm ignorado a cultura na infância
profundidade essa pesquisa. (Schwartz, 1981, p. 4, tradução minha).

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Christina Toren (1999), por exemplo, usa Na sociologia, podemos afirmar que
o conceito de esquema de Piaget em paralelo Durkheim (1922, 1925, 1979 [1911]) foi um
ao conceito de autopoiesis cunhado por Ma- dos primeiros a estudar as crianças, a quem ele
turana e Varela. Segundo ela, estes conceitos chamou “o adulto a ser” (1979 [1911], p. 149,
são similares, na medida em que autopoiesis é tradução minha). Preocupado com as questões
uma estrutura dinâmica que permite o rela- da educação, trabalhou o tema da socialização,
cionamento com o mundo, em um processo vista por meio de um modelo vertical, em que
microhistórico. Por sua vez, o esquema permite um traço recorrente em todas as sociedades e
esse mesmo processo de “tornar-se” na história épocas históricas é a ação da geração mais velha
cotidiana no nível cognitivo, que para a autora sobre a geração mais nova. A educação, como
diz respeito à pessoa como um todo em relação todo fato social, é então percebida como uma
aos outros e no decorrer da história5. força de imposição e coerção. A socialização
De acordo com James e Prout (1990), até o culmina, segundo seu argumento, com a inte-
final dos anos 70, os estudos sobre crianças pa- riorização de normas e valores.
deciam de um viés evolucionista altamente in- No Brasil, parece que a primeira contribui-
fluenciado por Piaget e pela sua teoria sobre os ção da sociologia e antropologia, no sentido de
vários estágios de desenvolvimento ou evolução reconhecer a criança como um sujeito huma-
da criança6. As crianças eram tratadas em termos no de pouca idade e um agente de socialização
de simplicidade, irracionalidade e mundo natu- considerável, vem de um trabalho realizado na
ral, em contraposição ao mundo adulto, comple- década de 1940 por Florestan Fernandes, mos-
xo, racional e cultural. Segundo James, Jenks e trando a rua, além da família e da escola, como
Prout, Piaget “nega a agência na criança e o cará- lugares privilegiados da infância. Escrito ori-
ter socialmente construído da infância” (James; ginalmente em 1944 para o concurso Temas
Jenks; Prout, 1998, p. 173, tradução minha). Brasileiros, instituído pelo Departamento de
Porém, concordo com Gates ao afirmar que Cultura do Grêmio da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade
[...] apesar do desenvolvimento psicogenético de São Paulo, esse trabalho foi publicado em
criar certos constrangimentos à capacidade de 1947 sob o título As “Trocinhas” do Bom Re-
entendimento da criança, é evidente que a ra- tiro. Trata-se do registro inédito de elemen-
zão está dada, desde os primeiros anos de vida, tos intrínsecos à vida das crianças, captadas a
no entendimento da fé, fato e fantasia. (Gates, partir de observações sobre grupos de crianças
1996, p. 135, tradução minha) residentes nos bairros operários da cidade de
São Paulo que, depois do período da escola,
Parece-me claro que a obra de Piaget pode juntavam-se nas ruas para brincar. Entenden-
ser utilizada se olhada de uma perspectiva mais do a criança como participante ativo da vida
generosa − como o fez Toren (1990). Além dis- social, o jovem Florestan observa, registra
so, Woodhead, Montgomery e Burr (2003a, p. e analisa o modo como se realiza o processo
25-28) argumenta a favor de Piaget dizendo de socialização das crianças, como constroem
que ele foi um ouvinte atencioso das crianças e seus espaços de sociabilidades e quais as carac-
que seus erros foram o de tratá-las como seres terísticas destas práticas sociais.
ainda em constituição (como potencialidades), O caráter original das “Trocinhas” do Bom
além de enfatizar por demais o que era natural Retiro está no fato de F. Fernandes anunciar a
no processo cultural. linguagem que posteriormente trataria as crian-

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Pesquisando crianças e infância: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças | 137

ças como atores sociais completos, reconhe- jacente, raramente como tema principal (sal-
cendo agência no mundo infantil. Ele chega a vo raras exceções como Kidd (1906) e Mead
utilizar o termo culturas infantis, e afirma que (1930)). O mais comum era introduzir uma
as crianças, quando estão brincando, não estão sessão no capítulo sobre família, descrevendo o
imitando os adultos, mas estão envolvidas nas nascimento e a socialização infantis. Na década
elaboradas culturas infantis: de 30, porém, Margaret Mead desponta efetu-
ando um grande salto nos estudos sobre crian-
[...] há entre as crianças (até 7 ou 8 anos entre ça na antropologia. Apesar de muito criticada,
os meninos e até mais entre as meninas) brin- a autora teve um papel crucial na descoberta da
quedos cujos motivos são aspectos da vida do infância pelos antropólogos. E embora dispo-
indivíduo adulto, tais como “fazer comidinhas”, nha de uma obra etnográfica bastante avanta-
“brincar de casinha” etc. (...) nos brinquedos, jada e, portanto, ainda aberta a interpretações,
a criança não imita seu pai ou sua mãe. Pai e foi largamente criticada por utilizar uma noção
mãe são entes gerais, representam uma função de cultura constrangedora da agência infantil,
social. As crianças abstraem da pessoa A, B ou enfatizando por demais a socialização infantil
C, para falar de “pai” e “mãe” de modo gené- como ação da sociedade adulta sobre as crian-
rico, desempenhando nas brincadeiras as suas ças. Não é demais mencionar que Mead repre-
funções (Fernandes, 1979 [1961], p. 387)7. senta, junto com Edward Sapir e Ruth Benedict
dentre outros seguidores de Franz Boas, o “Cul-
Ao prefaciar o texto em pauta, Roger Bas- turalismo” na tradição antropológica; corrente
tide (1979) observa o quanto o estudo da vida teórica que se expandiu nos EUA enfatizando
infantil era negligenciado e o quanto era neces- a necessidade crucial de se entender a “cultura”
sário reconhecê-lo. Constata o autor: de um povo. O culturalismo preocupou-se, en-
tre outros, em entender como uma cultura se
[...] há entre o mundo dos adultos e o das crian- reproduz através da socialização das crianças.
ças como que um mar tenebroso, impedindo a A idéia básica de socialização de Mead,
comunicação. Que somos nós, para as crianças tida como via de mão única, na qual o adul-
que brincam ao nosso redor, senão sombras?. to ensina à criança como se tornar social em
determinada sociedade, deslanchou uma forte
Contrariando Durkheim (1922), Bastide crítica por parte dos chamados new social stu-
defende a necessidade de se multiplicarem as dies of childhood, a partir da década de 80 do
pesquisas deste tipo, ressaltando a importân- século XX. O principal objetivo desses estudos
cia de se estudar as representações infantis, de era estabelecer a compreensão dos fenômenos
conhecer o mundo dos brinquedos, das brin- da infância a partir do social, inaugurando,
cadeiras e jogos8. então, a era do construcionismo social nos
estudos infantis. As crianças deixariam de ser
vistas como passivas e dependentes do mun-
Uma cultura ou sociedade das do adulto, para serem pensadas como sujeitos
crianças? plenos, rompendo a relação necessária entre
família-socialização-criança a fim de conceber
Na antropologia, por sua vez, a infância a infância como um objeto de estudos váli-
sempre foi contemplada nas monografias de do em si mesmo. A ênfase voltava-se para a
modelo clássico, porém sempre como tema ad- fenomenologia com Merleau-Ponty, para os

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estudos literários, e privilegia-se o trabalho primeiros anos da vida. Infância, como dis-
de campo e as descrições como métodos mais tinta da imaturidade biológica, não é uma
adequados para o estudo da diversidade das característica natural e nem universal dos
experiências e formas de infância. grupos humanos, mas aparece como um
A partir dos new social studies, na psico- componente estrutural e cultural específico
logia, criticou-se a noção de desenvolvimento em muitas sociedades.
(infantil) tido como excessivamente individual 2. A infância é uma variável da análise social.
e biológico. Na sociologia e na antropologia, Ela não pode nunca ser separada das outras
fortaleceu-se a crítica da noção de socialização, variáveis, como classe, gênero ou etnicidade.
como ação de sujeitos plenos (adultos) sobre Análises comparativas e interculturais reve-
sujeitos incompletos (crianças): lam uma variedade de infâncias e não um
fenômeno único e universal.
Na abordagem sociológica da infância o concei- 3. As relações sociais das crianças são válidas
to central é socialização. Um sinônimo para este como objeto de estudo em si mesmas, inde-
processo poderia ser aculturação, na medida em pendentemente da perspectiva e das preocu-
que este termo implica que na aquisição cultural pações dos adultos.
as crianças não são vistas como indivíduos com- 4. As crianças devem ser vistas como ativas na
pletamente equipados para participar em um construção e determinação de suas próprias
mundo adulto complexo, mas como seres que vidas, na vida daqueles que as cercam e das
têm o potencial para serem trazidos lentamente sociedades onde elas vivem. As crianças não
para o contato com os seres humanos” (Ritchie; são simplesmente sujeitos passivos frente às
Kollar, 1964, tradução minha). estruturas e processos sociais.
6. A etnografia é uma metodologia particu-
Deste modo, como conseqüência larmente útil para o estudo da infância. Ela
permite que a criança participe mais e tenha
de um membro adulto ser considerado natural- uma voz mais direta na produção do dado
mente maduro, racional e competente a criança é social em comparação ao que normalmente
vista, em justaposição, como não completamen- é possível usando estilos de pesquisa experi-
te humano, não acabado e incompleto”(Jenks, mentais ou surveys.
1982, p. 19, tradução minha). 7. A infância é um fenômeno em relação ao
qual a dupla hermenêutica das ciências so-
Os new social studies questionaram estes ciais se apresenta (veja Giddens 1976). Pro-
conceitos de criança e adulto, propondo alter- clamar um novo paradigma para a sociologia
nativas que enfatizassem a agência infantil. da infância é também se engajar no e res-
Alan Prout e Allison James, grandes repre- ponder ao processo de reconstrução da in-
sentantes deste paradigma, também chamado fância na sociedade (James; Prout, 1990, p.
new paradigm in the sociology of childhood, ela- 8, tradução minha).
boraram uma síntese bastante elucidativa deste
período da disciplina, que gostaria de apresen- Woodhead, Montgomery e Burr (2003a)
tar, apesar da extensa citação. prefere usar no lugar de criança socialmente
1. A infância deve ser entendida como uma construída ou estruturada, termo consagrado
construção social. Como tal, ela provê um pelos new social studies of childhood, o termo
quadro interpretativo para contextualizar os criança sócio-cultural ou criança na sociedade,

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já que os primeiros enfatizam por demais a […] antropologia tende ainda a assumir que o
abordagem sociológica. Segundo ele, Prout ponto de chegada da socialização é sabido. Esta
(2005) e outros autores, o campo de estu- suposição está na raiz no desinteresse da antro-
dos da infância é um campo necessariamen- pologia pelas crianças.
te interdisciplinar. O autor condensa os seis
tópicos propostos acima em apenas dois prin- A autora não apenas sugere que a sociali-
cípios. Quais sejam: zação não tem fim no adulto, como também
afirma que o desinteresse da antropologia pelas
O primeiro é sobre infância: a infância é social- crianças pode estar ligado a este mau entendi-
mente construída em todos os níveis e isso tem mento do processo de aprendizagem.
implicações em como ela é estudada e teorizada. Por sua vez, a socialização tal como foi tra-
A segunda é sobre criança: deve-se reconhecer tada pelos antropólogos e sociólogos que ten-
seu status e os seus direitos como o ponto de taram entender a infância de uma perspectiva
partida para a pesquisa, política e prática (Woo- social não dá conta do processo que culmina
dhead; Montgomery; Burr, 2003, p. 16-17, tra- com uma pessoa que crê, por exemplo, na
dução minha). aparição de espíritos, para citar o meu campo
de estudos. Em 1970, J. Briggs lançou o livro
Ele afirma, além disso, que não adianta Never in Anger, no qual ela mostra como a
apenas ouvir as crianças e transcrever suas sociedade Inuit e a infância Inuit são criadas
falas. É preciso que a análise do pesquisa- simultaneamente. Ela afirma posteriormente
dor esteja em sintonia com os interesses das (1992) que os adultos, assim como as crian-
crianças e não com os do pesquisador e da ças, nunca cessam de reelaborar sua cultura e
sociedade adulta (Woodhead; Montgomery; identidade. Daí a afirmação de que também
Burr, 2003, p. 32). a cognição adulta deve ser tratada como flui-
A idéia de socialização, criticada pelos da, em processo e contextualizada, já que os
new social studies, pressupõe um indivíduo adultos também estão reelaborando sua cul-
adulto que impõe sua visão de mundo a uma tura constantemente. Dessa forma, estudar
criança. Hoje em dia essa idéia de socializa- crianças pode levar não apenas a repensar o
ção é considerada ultrapassada. Ao contrário processo de aprendizado, mas aos conceitos
disso, aceita-se que as crianças são agentes da de cultura e ao seu correlato, de sociedade,
sua própria socialização, paralelamente ao incluindo dinâmica na análise de processos
adulto. O problema, nesse caso, é que os new culturais e societais.
social studies tenderam a inverter a balança, Parece-me que os new social studies of chil-
colocando a criança como sujeito pleno da dhood enfatizaram sobremaneira a agência in-
sua própria socialização sem, no entanto, 1) fantil – o que criou um descompasso entre as
reconhecer o papel do adulto neste processo, relações crianças-adultos, esvaziando o poder
e 2) criticar a própria noção de socialização destes sobre aquelas de maneira incoerente.
enquanto aprendizado estático e previsível. Veja esta citação de Corsaro e Molinari (2000,
Como afirmou Mayer “a socialização tem p. 197-8, tradução minha):
lugar durante toda vida, ela não termina na
infância (1970, p. 82, tradução minha)”. To- a socialização não é alguma coisa que aconte-
ren (1993, p. 461, tradução minha) vai mais ce com as crianças, é um processo pelo qual
longe e afirma as crianças em interação com os outros, pro-

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duzem a sua própria cultura e eventualmente das crianças, uma sociedade das crianças que
reproduzem, estendem ou compartilham o existe concretamente em oposição à sociedade
mundo adulto. dos adultos9. Como toda cultura, a cultura in-
fantil teria suas representações, regras, concei-
[…] as crianças são agentes sociais ativos e tos, formas adequadas de ação social, símbolos,
criativos, que produzem a sua própria e única linguagem10. Tendo, no entanto, a concordar
cultura das crianças, enquanto simultanea- com James, Jenks e Prout (1998) no sentido
mente contribuem para a produção de socie- de que as
dades adultas (Corsaro, 2005 [1997], p. 4-5,
tradução minha). [...] abordagens sobre a cultura das crianças são
problemáticas porque de diferentes maneiras
A infância, como afirma Toren (1999), é eles retiram o contexto social da vida das crian-
um espaço de intersubjetividades. Uma crian- ças que não concerne à relação com as outras
ça aprende sobre o mundo que lhe cerca e crianças (James; Jenks; Prout, 1998, p. 82, tra-
toma conhecimento dele nas relações sociais dução minha).
que estabelece com os outros membros da sua
comunidade, sejam eles adultos ou crianças. Do mesmo modo, Mayall (1995) argumen-
O material de pesquisa que coletei está repleto ta que tratar as crianças em separado do mun-
de histórias contadas pelas crianças relatando do adulto é ir em sentido contrário à realidade
experiências de parentes próximos, mãe, pai, da criança, que vive em um mundo cercado
avó, etc., com os mal-assombros. Com isso, também de adultos.
parece que a ênfase deve estar colocada nas re- Falar sobre a cultura das crianças ou as cul-
lações sociais, nas palavras de Strathern (1996) turas das crianças traz alguns outros problemas.
e Toren (1999), na rede de attachement como Primeiro porque a cultura é um conceito chave
quer Latour (2000) ou ainda no rizoma, se- para antropologia, mas passou a ser a causa e o
gundo Deleuze (1980). Essas idéias, embora efeito, quando talvez fosse mais produtivo ser
guardem suas discordâncias, concordam que tida como ponto de partida para investigações.
o lócus da vida social está nas relações que es- Em segundo lugar, na pesquisa que realizei, per-
sas pessoas, adultas ou crianças, estabelecem cebi que não há como tomar as crianças como
entre si e entre os outros elementos da rede. um mundo à parte. Durante o meu trabalho
E Latour deixa claro que estes elementos não de campo, uma menina de doze anos de idade
são apenas humanos, deixando uma brecha uma vez indagou-me por que não ir à sua casa
para incluir as entidades mal-assombradas – conversar com a sua mãe sobre os mal-assom-
no caso do campo de pesquisa específico den- bros. Ela não entendia o motivo de eu priorizar
tro do qual trabalho. a sua versão dos fatos, já que, na sua opinião, a
Baseada nos dados de campo que produ- sua mãe e o seu pai entendiam muito mais do
zi, sugiro que quando estudamos as crianças assunto que ela própria. Não há criança sem
é preciso incluir os adultos. Alguns autores, adulto, e não faz sentido estudar somente as
como Wartofsky (1983), Tammivaara e Enri- crianças como um mundo à parte e fechado
ght (1986), W. Corsaro (1993, 1997, 2003), em si mesmo, simplesmente porque isso não
Thorne (1993), Sarmento e Pinto (1997) e corresponde à realidade. Sabemos muito bem,
Corsaro e Molinari (2000) pensam o contrá- depois de ler Robert Redfield e Levi Strauss,
rio, argumentando nos termos de uma cultura só para citar alguns mestres, que nenhuma so-

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Pesquisando crianças e infância: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças | 141

ciedade sobrevive de “portas” fechadas. Que a da Criança e do Adolescente, que perpetuam


“cidade” e o “campo” enquanto conceitos são um viés considerado ultrapassado por estes teó-
partes de uma mesma realidade e foram forma- ricos, no qual as crianças eram invariavelmente
dos exatamente no mesmo instante, por meio vistas como excessivamente passivas e depen-
de uma relação de interdependência. As crian- dentes do adulto e à mercê de proteção e tutela.
ças são parte da sociedade e, quando digo isso, No entanto, para além das políticas públicas e
não retiro a agência infantil; pelo contrário, da política acadêmica, parece haver incutido no
afirmo-a. As crianças têm suas particularida- diálogo uma lógica científica muitas vezes pen-
des na forma de conceber e experimentar o dular entre pensamentos que se sucedem no
mundo: é sábio não negligenciá-las. Mas no tempo. O que quero dizer é que uma mudança
mundo, o que opera são as relações entre as de perspectiva dentro dos estudos que enfati-
pessoas, sejam adultos ou crianças. Ambos são zavam as crianças pode ser melhor entendida
parte da sociedade, com inserções diversifica- se referida ao conjunto da produção acadêmi-
das e, portanto, com pontos de vista diferen- ca antropológica; que parece ter influenciado
tes que devem ser explorados para se chegar a mudança do paradigma culturalista para um
a um retrato mais fiel de uma comunidade. paradigma que valorizava mais a agência, ao
Não acredito que a opção teórica que fiz retire mesmo tempo em que, em detrimento da no-
o poder das crianças. A agência, me parece, ção de cultura, passa-se a priorizar o indivíduo
é uma condição do indivíduo em sociedade, inserido nela.
não importa que categoria de indivíduo. Não Nessa direção, vemos ocorrer recentemente
acredito que seja útil, pelo menos para a an- uma crítica interna aos new social studies of chil-
tropologia, estudar as crianças em si mesmas, dhood nos livros de Alan Prout (2000, 2005),
como ambiciona o quarto tópico de Prout e como mostra a citação:
James (1990) citado anteriormente.
Muito esforço foi dispensado no começo [...] nós precisamos descentralizar a agência,
da descoberta da infância enquanto fenômeno perguntando-nos como é que as crianças algu-
social pela antropologia e sociologia, nas últi- mas vezes a exercitam [...]. A observação de que
mas duas décadas do século passado e, no meu as crianças podem exercitar a agência deveria ser
ponto de vista, ocorreu um certo exagero. Tal- um ponto de análise inicial e não um ponto de
vez na tentativa de estabelecer esta área de pes- chegada (2000, p. 16, tradução minha).11
quisa dentro do jogo das políticas acadêmicas,
tendeu-se a enfatizar em demasiado a chamada Allison James também parece rever suas
agência infantil e, com isso, caiu-se em outro próprias afirmações quando menciona que a
extremo, em que as crianças eram vistas como ausência dos adultos – no caso, os pais – nos
um mundo à parte da sociedade adulta, com estudos sobre infância é similar à operação de
regras, linguagem, rituais próprios e indepen- exclusão das crianças dos estudos sobre família
dentes. Para quê? Entre outras coisas, para cor- (James, 1999, p. 184)12. De um lado, a agência
rigir uma injustiça praticada desde sempre na não deve ser levada ao extremo, como também
história da antropologia e da sociologia, para não deve deixar de ser contemplada. É preci-
dar vozes àqueles que mais intensamente que as so, como sugere Prout (2005), pesquisar até
mulheres foram silenciados enquanto sujeitos que ponto ela opera. O exemplo de Palmer e
nas pesquisas. Também para denunciar as polí- Hardman (1999) pode ser interessante. Elas
ticas de proteção às crianças, como o Estatuto organizaram um livro sobre as crianças nas

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novas religiões. Dividiram-no em duas partes. família como, por exemplo, não responder às
Na primeira parte, enfatiza-se a agência infan- perguntas sobre o tema ou mentir, dizendo
til, no sentido de como as crianças modificam que uma criança que estava muito doente foi
estes movimentos religiosos. A segunda parte para casa quando, na verdade, havia morrido.
trata de como estes movimentos moldam as Por sua vez, James (1993) elaborou a sua
crianças. É preciso não partir do pressuposto classificação de como as ciências sociais vêm
da agência (ou da construção social), mas ave- trabalhando as crianças, na qual afirma que elas
riguar até que ponto ela está presente (Pires, foram tratadas das seguintes formas:
2004).
• Criança em desenvolvimento. Tratada
como incompleta, sem status e relativa-
Outras classificações mente incompetente.
• Criança tribal. Tratada como competente
Outra maneira de compreender os estudos por ser parte de uma cultura que deve ser
sobre infância é classificá-los como estudos que estudada em si mesma, a cultura infantil,
concebem as crianças como índices13 do mundo mas não pertencendo ao mesmo mundo
adulto e estudos que trataram as crianças como comunicativo do pesquisador. Em parte,
agentes. Como afirmei, os estudos de crianças desenvolveu-se como resposta às aborda-
como agentes tratam de analisar a infância de gens da criança em desenvolvimento (Ja-
uma perspectiva mais interpretativa, fenome- mes; Jenks; Prout, 1998, p. 180).
nológica e literária. O objetivo é compreender • Criança adulta. Vista como socialmente
as crianças segundo elas mesmas, como seres competente da mesma forma que o adul-
ativos e participativos na sociedade envolven- to.
te e mais, com particularidades que requerem • Criança social. É vista de maneira dife-
métodos e teorias apropriadas. Nessa perspec- rente em relação ao adulto, mas não ne-
tiva, há uma ênfase em como as crianças en- cessariamente com competências sociais
quanto agentes criam, interpretam, adquirem inferiores.
e recriam a cultura juntamente com os adul-
tos e com outras crianças. Um bom exemplo a Em livro posterior, juntamente com Jenks
ser citado é o livro de Bluebond-Langner, The e Prout, James (1998) apresenta uma classifi-
private world of dying children, de 1978. Ela cação dos estudos das crianças de maneira am-
demonstra, por meio de uma pesquisa com pliada. Exponho aqui uma elaboração pessoal
crianças portadoras de câncer, como elas são a partir das idéias deste livro paralelamente às
capazes de elaborar seu próprio entendimento idéias do livro de Smart, Neale e Wade (2001).
sobre o mundo em que foram inseridas, sobre De tal modo, estudos que incluíram a infância
o funcionamento do hospital, drogas, morte, poderiam ser divididos entre aqueles que trata-
estágios da doença e nomes médicos, ainda ram a criança como 1) ser pré-social e, poste-
que não tenham sido ensinadas formalmente. riormente, como 2) ser social.
Além disso, a autora assinala como as crian- 1) Os estudos da criança pré-sociológica
ças sabem que vão morrer com certa precisão dividem-se em:
temporal. Mesmo que haja todo tipo de ten-
tativas de esconder a possibilidade da morte • A criança má. A corrupção e a maldade são
das crianças por parte da equipe médica e da os elementos primários da constituição da

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Pesquisando crianças e infância: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças | 143

criança, de acordo com Hobbes, o Antigo com o relativismo e com o construtivismo


testamento, a criminologia, a prática peda- social, estuda as formas das identidades in-
gógica e a moral pública. As crianças eram fantis.
vistas como pequenos demônios marcados • A criança socialmente estruturada. Infância
com o pecado original. Como resposta a é uma constante e um reconhecido compo-
isso, métodos severos de educação foram nente de todas as estruturas sociais através
desenvolvidos na Europa Puritana nos sé- do tempo e do espaço. Qvortrup é o grande
culos XVI e XVII. Uma variação do modelo representante deste tipo de abordagem mais
é a criança como um pequeno selvagem ou comprometido com um conceito global
bárbaro, em que ela é vista como inciviliza- de infância. A infância, segundo ele, sem-
da, mas não necessariamente má. pre existiu, não concordando, desta forma,
• A criança inocente. Em Rousseau, temos o com a tese da invenção da infância na época
maior exemplar da concepção da criança moderna.
naturalmente boa, pura, inocente e gentil. • A criança tribal. Concentra-se em estudar o
A bondade da criança é um dado da natu- mundo infantil, as brincadeiras, a escola, a
reza, e não social. Ele propunha ao invés da literatura. Teve grande repercussão nos anos
punição, a proteção e a celebração da sua 1950 e 1960 com o casal Iona e Peter Opie,
bondade14. principalmente na antropologia. A ação so-
• A criança em desenvolvimento natural ou cial da criança é estruturada, mas por meio
modelo embrionário. Na psicologia de Jean de um sistema não conhecido pelos adul-
Piaget, tido como um modelo evolucionis- tos; portanto, são necessárias as etnografias.
ta, a criança inicia a vida como um simples Pode ser vista como uma versão poten-
organismo biológico, e termina por alcan- cialmente politizada e empírica da criança
çar os variados estágios de desenvolvimento socialmente construída. Parte de uma visão
através do progresso físico e intelectual. O particularista que vê a criança localizada no
conceito de criança, em Piaget, é a - histó- espaço e no tempo e imbuída de agência.
rico, generalizado e hipotético. “A criança” • A criança enquanto um grupo minoritário. A
representa todas as crianças. Além disso, ela infância é socialmente estruturada. Há uma
era vista como um ser em potencial, não relação de poder entre crianças e adultos que
um ser completo; por isso, o nome modelo necessita ser mudada. A sociologia ou an-
embrionário. tropologia devem existir “para as crianças” e
não apenas “sobre as crianças”. Em relação
2) No modelo da criança sociológica, ela foi aos seus direitos, a infância é uma categoria
tratada em si mesma como lócus de pesquisa universal. É uma abordagem universalista e
e não como intermediária para as questões da global, que vê a criança como ativa e cons-
família ou da escola. Subdivide-se em: ciente. Como se vê, pode ser pensado como
uma modificação mais empírica e politizada
• A criança socialmente construída. A aborda- da criança socialmente estruturada.
gem nasce contra o positivismo da sociolo-
gia britânica nos anos 1970, com inspiração De acordo com a figura abaixo (James;
em Husserl e Heidegger. Acredita que não Jenks; Prout, 1998, p. 206), as abordagens da
há uma criança universal, mas uma plurali- criança socialmente construída e criança como
dade de formas de infância. Comprometida minoria social têm tantas relações entre si,

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quanto a criança socialmente estruturada e a meio de dois autores que me parecem interes-
criança tribal. santes para se distinguir entre a antropologia
da criança e a antropologia da infância.
Voluntarismo
Agência
Diferença Antropologia da criança

Criança Criança enquanto William Corsaro, sociólogo norte ameri-


Tribal grupo minoritário
Particularismo Universalismo
cano, vê as crianças como agentes sociais que
Local Glocal contribuem para a reprodução da infância e
Mudança Continuidade
Criança Criança
da sociedade através da negociação com adul-
socialmente socialmente tos mas, principalmente, através da produção
construída estruturada
criativa de culturas de crianças com seus pares.
O autor desenvolveu o conceito de reprodu-
Identidade
Estrutura ção interpretativa, segundo o qual as crianças
Determinismo ativamente contribuem para a preservação ou
reprodução e modificação da sociedade. Este
conceito representa sua tentativa de conciliar
Antropologia da criança / o que ele denominou os modelos deterministas e
antropologia da infância os modelos construtivistas.
O modelo determinista compreende os mo-
Gostaria de esclarecer, já chegando ao fim delos funcionalistas dos anos 50 e 60 que se
deste artigo, o que se acredita ser a diferen- concentraram nos aspectos superficiais da in-
ça entre os estudos das crianças e da infância. ternalização das normas sociais requerida pelo
De maneira geral, a antropologia da infância processo de socialização. Para T. Parsons, um
visa a estudá-la como uma instituição social, dos representantes deste modelo, as crianças
como uma representação cultural, como um são uma ameaça à sociedade e devem ser en-
discurso ou como uma prática. Por sua vez, quadradas nela. Os modelos reprodutivos,
a antropologia da criança atém-se a estudar o incluídos entre os deterministas, foram desen-
crescimento, o aprendizado, o trabalho e as volvidos por Bourdieu, Bernstein, Passeron.
brincadeiras das crianças (Woodhead; Mon- Segundo Corsaro, Bourdieu oferece uma visão
tgomery, 2003, p. 8). Tentei trabalhar na mi- um pouco menos determinista reconhecendo,
nha tese de doutorado tanto na perspectiva da apesar de sutilmente, a agência infantil – sem,
antropologia da criança, que se concentra nas no entanto, conceber a criança como agente
próprias crianças em ação, como também na de nenhum papel ativo na mudança cultural.
perspectiva de uma antropologia da infância, A criança apenas participa e reproduz a cul-
na qual os constrangimentos e as especifici- tura. O modelo determinista concebe a crian-
dades de uma geração em uma determinada ça como um ser passivo que pode contribuir
sociedade ou cultura é que estão em jogo. para a manutenção da sociedade e que deve ser
Acredito que seja mais profícuo tentar pen- controlada pela educação. Segundo Corsaro,
sar, ao mesmo tempo, as duas perspectivas, ou a fraqueza do modelo reside na simplificação
seja, as crianças inseridas em um contexto de demasiada de processos complexos e à falta de
infância específica, que varia historicamente e atenção à importância da criança e da infância
culturalmente. Exemplificarei a distinção por na sociedade.

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Pesquisando crianças e infância: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças | 145

Por sua vez, os modelos construtivistas conce- São eles: educacional, familiar, comunitário,
bem a criança como agente ativo e como jovem econômico, cultural, religioso, político e ocu-
aprendiz, argumentando que ela ativamente pacional. Para o autor, o desenvolvimento in-
constrói seu mundo social e seu lugar dentro dividual está envolvido na produção coletiva de
dele. Este modelo tem como ícones Piaget e uma série de culturas infantis que, por sua vez,
Vygotsky. O segundo elaborou a teoria do de- contribuem para a reprodução e a mudança no
senvolvimento intelectual como uma progres- mundo adulto. O diagrama espiral torna possí-
são por meio de séries de estágios de habilidade: vel a visualização da participação constante das
desde os primeiros dias de vida, a criança in- crianças em uma rede em que estão envolvidos
terpreta, organiza e usa as informações do am- os adultos e as crianças e, conseqüentemente,
biente para construir as concepções conhecidas a visualização do fato de que as duas culturas,
como as estruturas mentais. Ao contrário de adultas e infantis, estão necessariamente impli-
Piaget, para quem o desenvolvimento humano cadas. Apesar de não concordar com os termos
é primariamente individual, dado em proces- “cultura infantil” e “cultura adulta” tendo a
sos cognitivos e estruturais. Segundo Corsaro, concordar com Corsaro quanto à participação
a debilidade do modelo construtivista reside no necessária das crianças e dos adultos na análise
seu foco central no desenvolvimento indivi- do mundo social. Resulta disso a implicação
dual, com pouca consideração em relação às de que a pesquisa deve ser realizada tanto com
experiências interpessoais no desenvolvimento crianças quanto com adultos. Implicação com
individual. Vygotsky, de outro lado, com uma a qual Corsaro, curiosamente, não comparti-
visão sociocultural do desenvolvimento huma- lha, já que concebe as crianças como consti-
no concebe a criança como tendo um papel tuindo um mundo autônomo em relação aos
ativo do desenvolvimento humano, sendo este adultos e que, por isso, deve ser estudado em
entendido como primariamente coletivo, dado si mesmo16.
na história e no contexto.
A proposta de Corsaro de reprodução inter- Antropologia da infância
pretativa vê a criança como participante ativo
na sociedade e reconhece a importância da co- Por sua vez, Jens Qvortrup (1990, 1993a,
letividade, da relação com os adultos e com os 1993b) do Norwegian Centre for Child Resear-
pares. Para ele, o termo socialização é por de- ch, na Noruega, trabalha com uma perspectiva
mais equivocado e deveria ser abandonado. A diferente da de Corsaro. A infância, nos seus
sua noção captura a idéia de inovação e criati- termos, é um fenômeno social construído so-
vidade na participação em sociedade (interpre- cialmente, mas é também uma categoria estru-
tativa) e, ao mesmo tempo, a sua contribuição tural que deve ser explicada por meio da relação
para a reprodução cultural (reprodução)15. O entre as outras estruturas sociais. Infância não
autor concebe um diagrama do the orb web mo- é uma fase transitória, é sim uma estrutura que
del (1997, p. 25) como metáfora da reprodução se encontra em todas as sociedades.
interpretativa. No centro do diagrama em for-
ma de espiral, vemos a família de origem. À A concepção [de infância] vincula a idéia que
medida que a espiral vai se expandindo, a idade infância é uma estrutura permanente em qual-
vai aumentando, de idade pré-escolar, pré-ado- quer sociedade, mesmo se os seus membros são
lescência, adolescência, até a idade adulta. Todo continuamente substituídos (1990, p. 8, tra-
o diagrama é atravessado por diversos campos. dução minha).

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146 | Flávia Pires

Portanto, sua pesquisa concentra-se na in- reito “natural” de exercer poder sobre as crianças
fância, e não nas crianças em particular. Ele (Qvortrup et al., 1994, p. 3, tradução minha).
argumenta ainda sobre a ausência das crianças
nas estatísticas oficiais sobre política, macroeco- Finalmente, a ideologia da família, que pre-
nomia, bem-estar social. Avançando um pouco ga que a criança é sua propriedade e sua respon-
a discussão, eu diria que não se deve apenas de- sabilidade, constitui uma barreira que impede
senvolver dados estatísticos sobre as crianças, o bem-estar social e os interesses das crianças
mas que a opinião das próprias crianças deve de serem alcançados.
ser levada em conta para o desenvolvimento Podemos dizer que Qvortrup e os outros
de projetos de ação social voltados não apenas pesquisadores que seguem a linha da infância
para a infância, mas para a sociedade abran- como um fenômeno social, como ele mesmo
gente – uma vez dado que a criança também intitula, abordam o tema de uma perspectiva
faz parte da sociedade17. Qvortrup acredita diversa dos new social studies of childhood na
que a infância é uma parte integrante da so- medida em que 1) não concebem o estudo das
ciedade e afeta o mundo social e econômico. crianças enquanto válido em si mesmo, além de
Por exemplo, as crianças, mesmo quando não 2) não conceberem diferença ontológica entre
trabalham, também fazem parte da divisão crianças e adultos. Por fim, estes pesquisadores
social no trabalho, dado que é o seu estudo tecem uma crítica à antropologia e sociologia
que permite aos pais trabalharem. da criança, entendida em contraponto à antro-
Para o autor, não se deve separar infância pologia e sociologia da infância.
de outras variáveis da análise social, como
gênero, classe social, etnicidade – ela deveria
ser vista como uma variável entre tantas. As Conclusões
crianças, segundo Qvortrup (1993), não são
apenas recipientes da cultura dos adultos, mas Como vimos, há uma variedade de inter-
também co-construtoras da própria infância pretações sobre a história do campo de estudos
e da sociedade. Elas estão expostas às mes- das crianças. De outro lado, não há ainda um
mas forças sociais que os adultos, como, por corpus teórico hegemônico ao qual os neófi-
exemplo, a economia e as instituições, mas tos possam se reportar. Em contrapartida, há
de uma maneira específica. Como pertencen- um conjunto de teorias de ciências afins que
tes a um grupo minoritário, em relação ao pode ser utilizado para a elaboração de pesqui-
status e aos privilégios do grupo dominante sas com as crianças. Ao mesmo tempo, como
(os adultos), as crianças estão sujeitas a ten- mostrei, há diferentes maneiras de pesquisar as
dências de marginalização e paternalismo. A crianças, já testadas ou em desenvolvimento, no
autora afirma que não há diferença ontológi- seio da antropologia, o que atesta a vitalidade
ca entre crianças e adultos, e é uma diferença e a pertinência do tema. Além disso, É interes-
construída que permite o uso do poder pelos sante lembrar que a velhice e a juventude têm
adultos (human beings) e não pelas crianças se colocado como temas centrais de pesquisas
(human becomings). acadêmicas e de políticas públicas com as mo-
dificações que a pirâmide etária vem sofrendo
Questionar o princípio das diferenças ontológi- em diversas sociedades, principalmente com o
cas entre os adultos e as crianças é uma objeção ao aumento do número de idosos e a diminuição
argumento ideológico de que os adultos têm o di- do número de jovens e de crianças.

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Pesquisando crianças e infância: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças | 147

Studying children and childhood – some experiências religiosas mais intensas que os adultos
theoretical approaches to the study of (and porque naturalmente os seres humanos são equipa-
with) children dos com uma consciência religiosa que vai sendo es-
quecida com o passar dos anos. Os autores afirmam
sua filiação a Alister Hardy (1965, 1966, 1979), um
abstract: The paper draws a partial theoretical
zoólogo darwinista da Universidade de Oxford que
approach to the studies of (and with) children in the trabalhou com a “[…] hypothesis that what he called
social sciences – particularly in anthropology. While ‘religious experience’ has evolved through the process
this does not intend to be complete, it is able to cover of natural selection because it has survival value to
parts of Brazilian, European and American academic the individual” (Hay; Nye, 2006 [1998], p. 22). Para
eles, “By locating spirituality in the human organism
production; with a focus on the intersection with
it places a focus on childhood and on spirituality is
religious studies. This text is based on my doctoral intrinsic rather than taught” (Hay; Nye, 1996, p.
studies as the research which informs this bibliogra- 13). Eles ainda afirmam que “We will thus be able to
phical account was undertaken as part of these stu- move beyond an understanding of children´s spiri-
dies. However, this paper wishes to raise some generic tuality based on ‘knowledge’ towards a more general
anthropologic discussions, such as the definition and psychological domain of spirituality as a basic form
of knowing, available to us all as part of our biolo-
use of concepts like culture and society.
gical inheritance” (Hay; Nye, 1996, p. 10). E con-
keywords: Anthropology of childhood. An-
cluem dizendo que “Spirituality is characterized here
thropology of children. Religion. as a natural form of human awareness” (Hay; Nye,
1996, p. 6). Espiritualidade, em seus termos, é algo
mais abrangente que a religiosidade, e é encontrada
Notas em ambientes seculares. A minha pesquisa do douto-
rado distingue-se da pesquisa ora citada, na medida
em que não estou interessada em pesquisar as origens
1
Este artigo é uma reelaboração da segunda parte da
da religião ou da experiência religiosa.
Introdução da minha tese de doutorado, recentemen-
te defendida no Programa de Pós-Graduação em An-
4
Para este autor (Robinson, 1977), a experiência re-
tropologia Social do Museu Nacional – UFRJ, cujo ligiosa é uma experiência ordinária que ocorre de
título é “Quem tem medo de mal-assombro? Reli- primeira mão e, por isso, de maneira mais completa,
gião e Infância no Semi-árido Nordestino”. Gostaria na infância. A esta experiência, ele denomina “a vi-
de agradecer à Wenner Gren Foundation e à CAPES são original”. Como na experiência mística, o sujeito
pelas bolsas concedidas para a realização da pesquisa sente que foi abalado por um poder maior que ele
bibliográfica que aqui apresento. E aos meus orien- próprio. Para o autor, essa experiência é essencial para
tadores, Otavio Velho e Christina Toren, por todo o o desenvolvimento do entendimento maduro, não se
apoio recebido durante os anos da pesquisa. tratando de fantasia, mas sim de conhecimento. “I
believe that what I have called “the original vision” of
2
Há espaço para variadas formas de se conceber a in-
childhood is no mere imaginative fantasy but a form
fância. Uma delas, por exemplo, é a teoria que procla-
of knowledge and one that is essential to the develo-
ma o fim da infância (Buckingham, 2000; Postman,
pment of any mature understanding” (p. 16).
1994). Neste terreno, os meios de comunicação, como
a televisão e a internet, são considerados os culpados
5
A partir disso, a autora chega a sua definição de mind.
pela indistinção da fronteira entre idade adulta e idade “Mind is a function of the whole person constituted
infantil. Na contracorrente desses estudos, outros pes- over time in intersubjective relations with others in
quisadores afirmam que as novas mídias eletrônicas são the environing world” (Toren, 1999, p. 12).
responsáveis pela tomada de poder pelas crianças em 6
Segundo Piaget, dos três a seis anos predomina na
relação aos adultos, já que os primeiros as dominam criança o estágio pré-operacional: nele, a criança vê
com mais facilidade que os seus pais. o mundo segundo termos antropomorfos. Aos seis
3
Hay e Nye (2006 [1998]), preocupados em estudar ou sete anos, a criança adquire as operações concre-
a educação espiritual, afirmam que as crianças têm tas que lhe proporcionarão no futuro a possibilidade
de uma relação pragmática com o mundo. Aos onze

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148 | Flávia Pires

ou doze anos, tornam-se possíveis as operações for- infância. Erikson, Du Bois, Spiro, são tidos como te-
mais, com novos modos de pensamento e aquisição óricos importantes desse tipo de análise.
de concepções abstratas a respeito do espaço, tempo e c) Neodarwinismo: as práticas de educação infantil
causalidade. foram estudadas em relação às pressões do ambiente,
7
Posteriormente, em outras palavras e por uma femi- cujo representante teórico é Le Vine.
nista norte-americana, chegamos a formulações deste d) Psicologia do desenvolvimento:: a partir da teoria
tipo: “As interações das crianças não são preparações dos estágios universais de desenvolvimento cognitivo
para a vida, já são a própria vida” (Thorne, 1993, p. desenvolvido por Piaget, observou-se como as crian-
3, tradução minha). ças desenvolviam o entendimento do mundo, desde
8
Segundo Bastide, “para poder estudar a criança é pre- a manipulação de objetos concretos até o raciocínio
ciso tornar-se criança. Quero com isso dizer que não lógico-moral e abstrato. A partir de Vygotsky, pes-
basta observar a criança, de fora, como também não quisou-se como os universais da biologia do desen-
basta prestar-se a seus brinquedos; é preciso penetrar, volvimento eram mediados por contextos históricos
além do círculo mágico que dela nos separa, em suas culturais e pelos processos sociais cotidianos. Alguns
preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinque- teóricos: Dasen, Shildkrout, Levy, Goodman.
do” (Bastide, 1979, p. 154, tradução minha). e) Papéis (role play): explorando a natureza relacional
9
Sylvia Anthony (1971, p. 78) fala de uma “sub-cultu- da vida social, teríamos a natureza relacional do papel
ra” de crianças. do adulto e do papel da criança, que só fazem sentido
10
Para Corsaro, a cultura simbólica infantil alimen- se remetidos um ao outro. Harkness, Super, Goody,
ta-se da mídia e da literatura dirigida às crianças e Carsten são pesquisadores tidos como representantes
das figuras míticas e lendas (1997, p. 100), como a desta abordagem.
língua do Pê. f ) Autoconsciência: como as crianças movem-se de
11
Citação completa: “[...] we need to decentre agency, uma inconsciência primitiva a uma reflexividade
asking how it is that children sometimes exercise it, adulta, paralelamente a humanidade, com a suces-
that is bring about some effect in the relationships in são de gerações, tem maiores condições de controlar
which they are embedded, [whilst on other occasions a consciência em relação ao cosmos e a si. Ong é a
they do not]. The observation that children can exer- representante desta abordagem.
cise agency should be a point of analytical embarka- g) Política social: foca-se as vidas das crianças como
tion not a terminus”. marcas dos níveis de bem-estar social de uma sociedade
12
“[...] somewhat ironically, therefore, this new exclu- com privações ou desvantagens na contemporaneida-
sion of parents from childhood studies mirrors the de. Alguns teóricos que desenvolveram essa abordagem
somewhat longer exclusion of children from studies são Ennew, Lacey, Heath, Weisner, Qvortrup.
of family where, traditionally, children’s interests h) Crítica social: as crianças são peças-chave na
were assumed to be congruent with those of the fami- reprodução dos discursos hegemônicos sobre desi-
ly represented, in turn, as being the interest of their gualdade social e cultural, na mesma linha dos tra-
parents” (James, 1999, p. 184). balhos de Gramsci e Bourdieu. Jenkins, Hebdige,
13
Segundo a classificação de N. Rapport e J. Overing Scheper-Hughes, Willis são exemplos de pesquisa-
(2000, p. 29-32), as crianças foram estudadas enquan- dores que abordaram a infância a partir deste para-
to índices do mundo adulto por diversas correntes: digma.
a) Relativismo cultural: a infância e a juventude fo-
14
Apesar de incorrer no sentimentalismo, a abordagem
ram usadas como argumento para provar o privilégio de Rousseau foi importante na medida em que con-
da influência da cultura sobre a biologia. Mead e Be- cebeu características positivas aos pequenos, abrindo
nedict são apresentadas como exemplos neste tipo de espaço para outras abordagens mais generosas para
abordagem. com as crianças.
b) Neo-freudianismo: diversas práticas e cuidados
15
“[...] as crianças e suas infâncias são afetadas pelas
infantis foram analisados em várias sociedades e es- sociedades e culturas das quais elas são membros.
tudadas em termos freudianos, esclarecendo que as Estas sociedades e culturas, em contrapartida, têm
características adultas são reflexões de conflitos na sido moldadas e afetadas pelo processo de mudança

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Pesquisando crianças e infância: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças | 149

histórica” (1997, p. 18, tradução minha) do qual as CORSARO, William; MOLINARI, Luisa. Entering
crianças são parte ativa. and observing in children´s worlds: A reflection on
16
“[...] children’s peer cultures have an autonomy that a longitudinal ethnography of early education in It-
makes them worthy of documentation and study in aly. In: CHRISTENSEN, P. M., JAMES, A. (orgs.)
their won right” (1997, p. 41). Research with Children: Perspectives and Practices.
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152 | Flávia Pires

autor Flávia Pires


Professora do Departamento de Ciências Sociais/UFPB

Recebido em 15/03/2007
Aceito para publicação em 12/11/08

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 133-152, 2008


Gustav von Aschenbach, civilizado: hipóteses
para uma teoria social das pulsões
Clark Mangabeira

resumo Filmes são importantes modos de in- gem central. A idéia de “ser civilizado” aparece
terpretação da realidade social: não apenas mos- como uma característica próxima de reservado
tram esta realidade, mas também revelam seus e, na verdade, não deixa de ser. Levando em
detalhes e possibilitam transformação na atuação consideração, contudo, que não se trata de uma
dos indivíduos. Conseqüentemente, o objetivo pessoa civilizada, mas sim, de forma mais geral,
deste trabalho é apresentar as teorias sociais de de uma época civilizada, com costumes civi-
Norbert Elias, Georg Simmel e Sigmund Freud em lizados, em oposição – se quisermos – a uma
seus pontos de convergência e divergência, aplica- época de bárbaros, quando salta quase à boca
das à análise do filme Morte em Veneza, em contato o complemento “entregues às paixões”, então
com o livro de Thomas Mann, principalmente na a sinopse está enganada: Aschenbach não era
relação entre os personagens Tadzio e Gustav As- civilizado, ele estava civilizado.
chenbach. O tema central é a repressão social das Lógico que se trata de uma história fictí-
pulsões e a relação indivíduo versus sociedade no cia: um filme baseado em um livro sobre um
contexto histórico, e a finalidade é tentar lançar homem que estava civilizado. Ao viajar para
novas questões e algumas respostas à interação en- Veneza para descansar de um esgotamento pro-
tre os níveis macro e micro sociológico. fissional, ele encontra no seu hotel um jovem
palavras-chave Psicanálise. Cultura. Processo adolescente (Tadzio) cuja beleza lhe encanta,
Civilizador. História. Teoria Social. fazendo surgir daí uma paixão arrebatadora, po-
rém, impossível de acontecer. Jorge Luís Borges
afirma ser a arte um instrumento de leitura do
Introdução espaço socialmente construído, possibilitando
a percepção da realidade e permitindo que o
Em 1971, Luchino Visconti dirigiu o filme homem reflita sobre sua existência e dê novos
Morte em Veneza, baseado na obra de Thomas paradigmas para sua vida, uma forma de leitura
Mann, de 1912, de mesmo nome. A sinopse e ação sobre o mundo (Barbosa, 2000). Neste
do filme resume de forma bem sucedida o ar- sentido, ao pensarmos sobre esta história não
gumento central: estaremos analisando simplesmente uma obra
de arte, mas, de forma mais complexa, a rea-
De férias no exterior, o compositor Gustav As- lidade subjacente que lhe deu corpo, direção:
chenbach (Dirk Bogarde) parece um homem trata-se de uma forma de análise do social.
reservado e civilizado aos olhos daqueles que o Morte em Veneza apresenta-nos duas re-
conhecem. Basta, no entanto, o início de uma alidades quase opostas, mas, acima de tudo,
paixão secreta para que comecemos a notar o complementares: de um lado uma civilização
presságio de sua destruição.1  opressora e, de outro, os desejos que ardem.
Nesta relação, o cerne deste trabalho será a
O fato notável é a utilização do termo civili- discussão destas duas realidades a partir das
zado para descrever a personalidade do persona- obras de Freud, Norbert Elias e George Sim-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-304, 2008


154 | Clark Mangabeira

mel, autores que, longe de se excluírem, com- partir de formas específicas. O conteúdo (tudo
plementam-se. O foco será a tensão do amor que possibilita ações dos indivíduos uns sobre
impossível entre Aschenbach e Tadzio, princi- os outros) e as formas de interação constituem
palmente o ponto da repressão que surge no o todo social, uma realidade unitária a partir
primeiro e – perdoe-me o leitor por adiantar o da qual a interação individual ocorre, e que é a
final do filme – leva indiretamente à sua mor- própria interação:
te, uma metáfora clara na qual os desejos, se
não forem controlados pela civilização, levam Somente quando a vida desses conteúdos adqui-
à destruição; e, também, a análise da estrutura re a forma da influência recíproca, só quando
psíquica em relação à estrutura social da época se produz a ação de uns sobre os outros – ime-
retratada, a partir do conceito de figuração de diatamente ou por intermédio de um terceiro
Norbert Elias. Ademais, embora o cinema e a –, é que a nova coexistência social, ou também
literatura sejam artes completamente diferen- a sucessão no tempo dos homens, se converte
tes, como nosso foco será a relação proibida das numa sociedade (Simmel, 1983, p. 61).
personagens centrais, usaremos passagens do
livro para melhor retratar a história e a chave Da mesma forma, Norbert Elias vê a dinâ-
interpretativa proposta. mica social a partir de um ângulo relacional.
Os indivíduos constantemente são levados a
interagir a partir de seus planos racionais ou
A base social da civilização – emocionais, seja de forma conflituosa ou não.
interdependência e sociedade A ordem que surge a partir daí, a sociedade
em última instância, é o fator que permite ao
A discussão sobre o que é a civilização e o indivíduo realizar-se em sua individualida-
seu impacto na estrutura psíquica dos indiví- de: não existe indivíduo fora da sociedade e
duos deve passar pela relação indivíduo versus a sociedade só existe no indivíduo, que nasce
sociedade, já que é nesta relação que a opressão sob instituições devendo conformar-se com
e os desejos surgem. Assim, a partir desta dico- elas. O entrelaçamento das metas individuais,
tomia seremos capazes de discutir a repressão a interdependência, ocorre no substrato so-
e a eficiência desta sobre as pulsões, especifica- cial, parâmetro a partir do qual e para o qual
mente no caso de Aschenbach. as finalidades são tecidas, desenvolvendo-se
Em primeiro lugar, antes de analisarmos a individualidade. Neste sentido, o processo
a relação entre Aschenbach e Tadzio, convém civilizador, um processo de repressão das pul-
salientarmos a base teórica sobre a qual nossa sões cujo percurso não foi previsto, mas que,
interpretação está pautada. Georg Simmel par- mesmo assim, possui uma ordem, se constitui
te do conceito de interação para desvendar o nesta dinâmica:
que vêm a ser a sociedade. Tendo como cen-
tro a idéia de que os indivíduos estão sempre Esse tecido básico, resultante de muitos planos
interagindo, tal ação produz uma nova ordem e ações isolados, pode dar origem a mudanças
de realidade que exerce influência sobre os ho- e modelos que nenhuma pessoa isolada plane-
mens e também é influenciada por eles. Na jou ou criou. Dessa interdependência de pessoas
dinâmica destas interações, todo conteúdo da surge uma ordem sui generis, uma ordem mais
vida psíquica – interesses, finalidades, desejos irresistível e mais forte do que a vontade e a ra-
e pulsões – é matéria deste ato que se realiza a zão das pessoas isoladas que a compõem. É essa

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 153-167, 2008


Gustav von Aschenbach, civilizado: hipóteses para uma teoria social das pulsões | 155

ordem de impulsos e anelos humanos entrela- finição do propósito da vida é o princípio do


çados, essa ordem social, que determina o curso prazer, ou seja, a finalidade de experimentar in-
da mudança história, e que subjaz ao processo tensamente o prazer ao mesmo tempo em que
civilizador (Elias, 1993, p. 64). se deseja impedir os sofrimentos. No entanto,
como nossas felicidades são restringidas pela
A partir desta sociedade relacional que nossa própria constituição, a partir das relações
ambos os autores exemplificam, a experiên- com o outro, com a pressão das possibilidades
cia individual ganha forma e pode acontecer. de sofrimentos, os homens passaram a moderar
O substrato social é aquilo que dá possibi- suas reivindicações a partir do mundo externo,
lidade de realização à vida, e tal experiência ou seja, social: opõe-se, assim, ao princípio do
deve se coadunar com a interdependência prazer, o princípio da realidade que leva ao con-
que existe. Da mesma forma, a dinâmica que trole psíquico dos instintos. Em última instân-
Elias explica sobre o processo civilizador diz cia, o princípio do prazer seria impossível, pois
respeito a uma mudança na maneira como sua realização máxima seria o aniquilamento
estas relações se modificam e a subseqüente do outro, o que passa a ser combatido pela re-
modelação das personalidades para se con- alidade ou civilização (Freud, 1997). Tanto na
formarem com ela: a modificação na relação obra de Elias quanto na de Freud, a civilização
entre as pessoas é a base para a direção do tem um caráter de opressão da realização indi-
processo civilizador. vidual no tocante às suas pulsões, um caráter
A modelação das personalidades na dinâmi- de controle instilado na vida mental por uma
ca do processo civilizador fica mais clara, his- agência controladora, o superego; a diferença
toricamente, com a existência cada vez maior consiste no fato de que, enquanto para Freud o
de relações e interações e com o monopólio da superego seria uma instância a-histórica, Elias
força física pelo Estado. O indivíduo, em tal o historiciza a partir das diferentes redes de
rede, precisou regular sua conduta de forma interdependência que existiram ao longo dos
mais estável e uniforme, atendendo aos dife- tempos e que modelaram diferentemente a es-
rentes relacionamentos, sem poder se deixar trutura psíquica individual.
levar pelos seus desejos momentâneos, que, na O caráter social da civilização é o ponto de
maior parte das vezes, culminava com violên- partida para a análise da relação de Aschenbach
cia e agressões contra os outros, agora proibi- com Tadzio, e dele consigo mesmo. O músi-
das. Segundo Elias, o controle mais complexo co2 é apresentado como um homem refinado,
e forte da conduta passou a ser interiorizado extremamente controlado a ponto de refutar
no indivíduo como autocompulsão, autocon- qualquer manifestação mais forte de uma atitu-
trole, a princípio consciente, mas destilado de passional não concordante com a realidade
pelo hábito em uma instância permanente de na qual está inserida. Um bom exemplo é sua
controle intrapsíquico: o autocontrole, deseja- reação de desaprovação em face de um senhor
do pelo controle social, passa a agir dentro da querendo aparentar ser mais jovem, o qual,
mente humana a partir de reflexões do próprio completamente maquiado, se encontra no por-
indivíduo, tratando-se de uma instância con- to de desembarque em Veneza:
troladora que, na base freudiana utilizada por
Elias, tem o nome de superego. Mas apenas Aschenbach o olhara melhor, perce-
A proposta de Elias parte da análise de Freud beu com uma espécie de horror que o jovem era
acerca da vida psíquica. Freud afirma que a de- falsificado. Tratava-se de um velho, sem dúvi-

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da alguma! Rugas lhe circundavam os olhos e a vida. Elias sustenta que a partir do hábito auto-
boca. O suave carmezim das faces era arrebique; matizado, o autocontrole – superego – se torna
a cabeleira castanha, sob o panamá de fita mul- uma agência controladora que age incessante-
ticor, uma peruca; o pescoço, flácido, macilen- mente e de forma automática na própria estru-
to. O bigodinho como que colado e a môsca no tura da personalidade, uma agência que agora
queixo estavam pintados. [...] Não era possível! é parte do indivíduo, mais estável e que escapa
Aschenbach cobriu a testa com a mão. Cerrou do alcance consciente direto.
os olhos, que ardiam, porque dormira pouco. Paralelamente, o conceito de cultura na
Tinha a impressão que tudo isso era diferente do teoria simmeliana, “cultura é o caminho
habitual, que um devaneio esquisito começava a da alma para si mesma” (Simmel, 2005, p.
tomar conta dêle, que o mundo estava a ponto 77), indica o trajeto que o processo civiliza-
de assumir feições estranhas, e que tal evolução dor percorre a partir das realizações sociais
talvez pudesse ser sustentada, se êle tapasse a vis- para a vida individual. As idéias que Elias e
ta por um instante e logo depois tornasse a olhar Simmel demonstram nas palavras processo e
ao seu redor (Mann, 1965, p. 74). caminho, respectivamente, de um ser huma-
no em constante realização, de uma relação
A aversão que Aschenbach sugere de for- que flui incessantemente e que nunca acaba,
ma quase instintiva e o descompasso daquela denotam uma realização individual (relacio-
pessoa no quadro geral da cena de uma Ve- nal) na esfera e de acordo com o mundo so-
neza calma, tranqüila e – se quisermos, nova- cial que só assim pode existir. A partir das
mente, usar o termo – civilizada (que as cenas realizações objetivas da sociedade – a arte,
do filme mostram até aquele momento) é uma os objetos, as idéias e tudo o mais que nós
representação visual do controle que a civiliza- criamos –, que constituem a cultura objetiva,
ção exige dentro do indivíduo, e que a socie- diz Simmel, o homem pode cultivar-se, ou
dade sempre cobra a partir dos seus meios de seja, desenvolver-se enquanto uma persona-
coerção, sejam os institucionalizados, como o lidade como totalidade e unidade. O cultivo
monopólio da força física, seja através das co- do indivíduo ocorre com o desenvolvimento
erções sociais rotineiras, como desaprovação da nossa cultura subjetiva, quando saímos de
social e vergonha. Assim, nós mesmos, alcançamos a pluralidade desen-
volvida da cultura objetiva, e voltamos a nós
Verdade é que desde a sua juventude, Aschen- mesmos, agora desenvolvidos (cultura como
bach considerara a pouca satisfação consigo síntese): os refinamentos e conhecimentos
mesmo como a essência e a íntima natureza do adquiridos apenas nos cultivarão, contudo,
talento. Por causa dela, tinha o hábito de repri- se fizerem parte de nossa centralidade aní-
mir e temperar o sentimento, sabendo que êste mica, se fizerem parte da nossa totalidade e
tende a contentar-se com a aproximação feliz e agirem conforme uma pulsão interna, e não
a perfeição parcial.3 se continuarem a existir apenas como uma
realidade extrínseca internalizada:
Aparecendo o autocontrole como uma ins-
tância dinâmica e marcada dentro da estrutura Aquelas formações espirituais objetivas [...] –
da personalidade dos indivíduos, Simmel pode arte e moral, ciência e objetos formados segun-
nos ajudar a compreender a forma pela qual do uma finalidade, religião e direito, técnica e
este autocontrole é suscitado ao longo de uma normas sociais – são estações pelas quais o su-

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jeito deve passar para alcançar o valor próprio que formou seu superego, com base, mais uma
especial, que é a sua cultura. Ele deve abrangê- vez, na sociedade, no olhar do outro. No livro,
las em si, mas também as deve abranger em si e Thomas Mann afirma que “a palavra favorita
não simplesmente deixa-las existir como valores de Aschenbach era perseverar” (Mann, 1965,
objetivos. O fato de a vida subjetiva – que sen- p. 63) e, no filme, na conversa que teve com
timos em sem continuo fluir e que, a partir de seu amigo Alfred a respeito da qualidade da
si, impele à sua perfeição interior – não poder arte, Aschenbach nos diz muito a respeito da
absolutamente, da perspectiva da idéia de cul- sua concepção de vida, considerando que
tura, alcançar esta perfeição a partir de si, mas
somente por meio daquelas criações em que se Não é possível alcançar o espírito através dos
tornaram totalmente estranhas a ela e que se sentidos. Não é possível. É somente através de
cristalizaram em uma instância fechada, consti- absoluto controle dos sentidos que se pode,
tui o paradoxo da cultura.4 um dia, alcançar sabedoria, verdade e dignida-
de humana. [...] Sabe, Alfred, a arte é a fonte
A aproximação que pode ser feita é no sen- mais elevada da educação e o artista tem que ser
tido de que aquilo que Elias chama processo exemplar. Deve ser um modelo de equilíbrio e
civilizador – e a conseqüente formação do su- força; ele não pode ser ambíguo.5
perego – é proveniente do cultivo do indivíduo,
tal qual Simmel o descreve: se só existe cultivo Este controle absoluto dos sentidos e a ne-
quando há o contato entre o espírito subjetivo cessidade de não ser ambíguo relaciona-se a um
e o universo objetivo, culminando com as rea- padrão social de civilização que pede por este
lizações objetivas como parte da personalidade controle. Aschenbach aumenta seu círculo de
e não como meras manifestações objetivas inte- atuação a ponto de englobar sua profissão e a
riorizadas – cultura como síntese –, o que Elias produção artística dentro do padrão de con-
chama de um processo civilizador bem suce- trole que impõe a si mesmo, fato até desejado
dido é exatamente não sentir a opressão que a por uma sociedade que admira o autocontrole.
civilização impõe como opressão, ou seja, estar A ambigüidade e as tensões devem ser contro-
munido de um padrão de conduta bem adequa- ladas, muito embora existam: este é, efetiva-
do ao contexto social através do qual a sensação mente, o papel de um superego estável que se
de prazer prevalece em relação à sensação de relaciona cada vez mais com um número maior
opressão, no qual o superego surge como parte de pessoas, com cada vez mais olhares sobre si.
da estrutura psíquica do sujeito. De qualquer Tanto Simmel quanto Elias admitem a
maneira, ambos os autores partem do universo existência de tensões no caminho para a cul-
social, e é este universo o centro da constitui- tivação e no processo civilizador. Elias afirma
ção do superego e do cultivo subjetivo. ser a relação do superego com as pulsões quem
Voltando ao filme, se até o momento do determina a maneira como as pessoas orientam
primeiro encontro visual com Tadzio, As- suas relações com as outras e a própria estrutu-
chenbach se mostra uma pessoa metódica, ra da personalidade. A interdependência nunca
que aprendera a controlar de forma forte suas cessa durante toda vida e, obviamente, as mo-
pulsões cultivando-se, o encontro com o rapaz dificações das relações com as demais pessoas
o faz sentir toda a pressão que ele próprio se imprimem tensões no indivíduo e na relação. O
coloca a partir do seu contexto social, a par- processo de civilização é sempre doloroso, pois
tir do universo objetivo cultivado dentro de si implica numa constante adequação de si consigo

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mesmo e com os outros. Desta forma, as tensões sujeito, são sentidas como um meio termo
vão sendo reconciliadas, controlando-se os con- entre um processo bem e um mal sucedido,
flitos do superego com os impulsos de maneira e o esforço que esta transformação custa ao
que se pode falar em processos civilizadores bem indivíduo é um preço que deve ser pago para
sucedidos, nos quais este controle não é sentido uma vida coerente.
como opressão consciente e processos civiliza- Os dois autores estão escrevendo sobre a
dores mal sucedidos, quando ou o autocontrole adequação do indivíduo diante da estrutura
é efetivado como opressão que causa constante social mais forte e, enquanto para Simmel, o
insatisfação, ou quando o próprio controle das resultado possível é o embotamento do ser em
pulsões não é conseguido completamente. si mesmo incapaz de reagir de forma intensa
Da mesma forma, o cultivo na teoria de a vários estímulos externos, para Elias, o au-
Simmel também compreende tensões inerentes tocontrole que se desenvolveu tem resultados
ao próprio caminho. A tragédia da cultura, en- diversos e custa ao indivíduo um constante
tre a cultura objetiva e a subjetiva, se efetiva no controle, às vezes consciente, se ele está em
momento em que a lógica interna que uma das face de uma pulsão6 – na definição freudiana,
instâncias obedece no seu curso não coincide um estímulo pulsional de origem no próprio
com a lógica da outra: com a constituição de organismo, ou, como ele diz, “o melhor termo
um universo objetivo autônomo que segue suas para caracterizar um estímulo instintual seria
leis próprias, entre este universo e a estrutura ‘necessidade’” (1969, p. 124) – mais abrasiva,
da personalidade surgem tensões a partir das que deve forçar a adequação. Podemos consi-
quais não se torna mais possível a subjetivação derar as duas saídas como saídas concorrentes:
dos objetos que agora, pela sua própria lógica ou o indivíduo “foge” da dinâmica da relação
interna, distanciaram-se tanto da origem quan- com a tragédia da cultura, embotando-se em
to da sua finalidade. si (e aqui a atitude blasé surgiria como opção
As conseqüências a que ambos os autores ao longo da vida) se em face de um estímulo
chegam das tensões inerentes da constituição externo, ou ele assume o caráter mais forte do
da personalidade humana podem ser inter- processo civilizador para não sofrer as coerções
pretadas como complementares. Para Sim- sociais sobre si, e se impõe um regime mais
mel, a situação do homem moderno é que forte, mais constante e, agora, consciente, re-
agora ele está diante de inúmeros elementos sistindo às pulsões. De qualquer maneira, em
culturais que lhe aparecem desprovidos de ambas as “possibilidades”, é o apaziguamento
qualquer significado, possuidores de opres- dos desejos que está em jogo, seja com o dis-
são neles mesmos, visto que os homens não tanciamento do objeto, se os estímulos vêm
podem mais assimilá-los, nem descartá-los, de fora cada vez mais intensos, porém frutos
embora precise deles e eles o estejam estimu- de uma lógica incompreensível; seja com o
lando. Este trajeto vai culminar na famosa controle do sujeito e de suas pulsões inerentes
atitude blasé (Simmel, 1987) do sujeito, que a ele próprio, como “necessidades” constantes
é quando o indivíduo recebe vários estímu- em si mesmo.
los mas está incapaz de reagir a todos de for- Aschenbach segue as duas “possibilidades”
ma coerente, intensa e prazerosa. Por outro durante o filme. Com a presença constante de
lado, para Elias, as tensões inerentes do pro- Tadzio próximo de si, afinal, ambos estavam no
cesso civilizador, principalmente o ociden- mesmo hotel, o músico sente as pulsões virem
tal, que deixam cicatrizes na constituição do à flor da pele:

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Ver aquêle vulto cheio de vitalidade, ainda horários e lugares específicos para comer,
não viril, na sua graça áspera, com a cabelei- beber e se divertir, o que força os encontros
ra gotejante, ver aquêle vulto formoso como ocasionais. O ápice deste controle é a tenta-
uma divindade esbelta, a sair das profundezas tiva frustrada de ir embora antecipadamente,
do céu e do mar, erguendo-se e escapando do controlando seu desejo de permanecer e ver
elemento líquido – tal visão, forçosamente, o menino. Com um problema na bagagem e
evocava associações míticas. Qual lenda pri- a necessidade de voltar para o hotel, o sorriso
meva, transmitida pela bôca de um bardo, que surge no rosto do músico é o retrato do
fazia pensar na origem das formas e no nas- seu desejo, da sua vontade, bem como da di-
cimento dos deuses. Cerrando os olhos, As- ficuldade que foi a partida:
chenbach escutava a melodia que ressoava no
seu íntimo e mais uma vez achou que era bom De seu mirante alto, Aschenbach reconheceu-o
encontrar-se nesse lugar e que convinha ficar imediatamente, ainda antes de fixar os olhos
(Mann, 1965, p. 94). nêle. Esboçou um pensamento parecido com:
“Vejam só, o Tadzio também está aí!”. No mes-
O desenvolvimento das normas sociais, mo instante, porém, notou que a constatação
que segue uma lógica própria, passa a não displicente emudecia e esvaía-se perante a verda-
mais coincidir com a lógica do seu ser, e o ca- de de seu coração. Deu-se conta do entusiasmo
minho que ele tinha escolhido até então, qual do seu sangue, da alegria e do pesar de sua alma.
seja, o de evitar qualquer contato, qualquer Reconheceu que fôra por causa de Tadzio que a
ambigüidade, qualquer sensação mais forte, despedida se lhe tornara tão penosa.8
desmorona diante de um estímulo que advém
dele próprio. Até então, Alfred, seu amigo (no A força do controle despejado para, agora,
filme), assim o caracterizava, em relação ao enfrentar Tadzio sem nunca poder dirigir-lhe
afastamento dos estímulos: a palavra é esgotante psiquicamente por que
seu desejo trai não só as normas sociais, mas
Você é um homem que se esquiva, que se de- a instância que elas representam dentro dele,
sagrada, que mantém distâncias, teme contato o superego, sendo este conflito interno o mais
direto e sincero com o que quer que seja. De- forte. Em uma sociedade cuja constituição
vido aos seus rígidos padrões morais, quer que social impede este tipo de relacionamento em
seu comportamento seja tão perfeito quanto a dois níveis, uma relação homossexual e uma
sua música. Cada escorregão é uma catástrofe e relação pedófila, o autocontrole despendido é
resulta em irreparável contaminação.7 duplamente forte, duplamente carregado de
tensões, duplamente esgotante:
Com a presença do desejo por Tadzio, um
desejo que contraria todas as regras sociais Não pode haver relações mais estranhas, mais
vigentes devidamente interiorizadas, cultiva- melindrosas do que as de pessoas que só se co-
das em si, e que desembocaram na constitui- nheçam de vista, que se encontrem e se obser-
ção do seu superego, ele opta pelo controle, vem mutuamente todos os dias, hora por hora,
pelo autocontrole consciente diante do me- e todavia estejam coagidas, devido a convenções
nino que é obrigado a ver na sua estadia no ou caprichos particulares, a fingirem fria indi-
hotel, onde ambos estão sujeitos a mesma ferença, sem se cumprimentarem nem falarem
gestão racional do tempo e do espaço, com uma com a outra.9

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Em termos emocionais, diz Elias, essa mo- ceou já ter andado por muito tempo atrás do
delação das pulsões engloba dois sentimentos: belo menino. Teve mêdo de despertar a atenção
do ponto de vista de Aschenbach sobre si mes- de Tadzio, de enfrentar a sua mirada indagado-
mo, a vergonha, traduzida como o sentimento ra. Tomou mais um impulso. Malogrando, re-
de medo da degradação social que surge na me- nunciou e passou por ele, cabisbaixo.10
dida em que a pessoa está prestes a fazer algum
ato que vai contra outros a quem está ligado e A relação do superego com os impulsos con-
contra sua própria agência controladora, num trolados é aprofundada por Freud no contexto
conflito intrínseco com a sua personalidade; e, da civilização. Com a constituição da instância
a partir de uma hipotética atitude face a Ta- intrapsíquica de controle que inibe a agressi-
dzio, o embaraço, que surge quando alguém vidade para o exterior, voltando-a para o inte-
ignora as proibições sociais representadas no rior no combate contra as pulsões, o resultado,
superego do outro e, assim, invade seu espaço além da vergonha e do embaraço, é a culpa,
de controle. Tal dinâmica, a luta interna entre pois embora a inibição seja dos atos concretos,
as pulsões e o controle, que no filme é mais os desejos, se não controlados, pressionam a fe-
bem retratada pelas expressões corporais, fica rida. A culpa aparece quando combato a mim
demasiadamente clara na seguinte passagem do mesmo, não se podendo fugir dela visto que
livro que, mais uma vez, cabe para ilustrar nos- não há como dar livre caminho aos desejos que
sa proposta interpretativa: se chocam com o mundo social:

Na manhã seguinte, quando estava a ponto de A tensão entre o severo superego e o ego, que a
sair do hotel, ocorreu que êle deparasse do alto ele se acha sujeito, é por nós chamada de sen-
da escadaria com Tadzio, que já se encontrava a timento de culpa; expressa-se como uma ne-
caminho do mar. O rapaz caminhava sozinho. cessidade de punição. A civilização, portanto,
Nesse momento aproximava-se do tornique- consegue dominar o perigoso instinto de agres-
te. Era óbvio, impunha-se mesmo o desejo, a são do indivíduo, enfraquecendo-o, desarman-
idéia natural de aproveitar a oportunidade para do-o e estabelecendo no seu interior um agente
travar de modo simples e alegre conhecimento para cuidar dele, como uma guarnição numa
com aquêle que, sem sabê-lo, causara tamanha cidade conquistada (Freud, 1997, p. 84).
emoção e abalo. Seria fácil dirigir-lhe a palavra,
folgar com a resposta e ôlhar o garoto. O for- Deste modo, em uma sociedade que pri-
moso jovem andava vagarosamente. Era pos- vilegia o controle das pulsões, que condena
sível alcançá-lo. Aschenbach estugou o passo. relações pedófilas e homossexuais, a estrutura
Na senda coberta de tábuas, que corre atrás das psíquica de Aschenbach e a rachadura no seu
barracas, chegou perto do rapaz. Já sentia o an- controle do desejo por Tadzio o condenaram
seio de colocar a mão na cabeça, no ombro de a uma esfera de desprazer, insatisfação, culpa
Tadzio; uma palavra qualquer, alguma gentile- e angústia que não foi suportada e que o le-
za pronunciada em francês estava na ponta da vou invariavelmente à sua morte. Obviamente,
língua. Mas, no mesmo instante percebeu que Veneza estava assolada por uma epidemia e a
seu coração, talvez em conseqüência da marcha causa imediata da morte fora esta, mas, indi-
acelerada, batia qual martelo e que, sem fôlego, retamente, e aqui é que a arte impõe toda sua
só conseguiria falar com voz opressa, trêmula. magia, o que o fez ficar na cidade infestada não
Hesitou. Procurou controlar-se. De repente re- foi o prazer das férias, mas seu amor por Ta-

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dzio, sendo este amor, assim, metaforicamente, da sociedade, tentando-se articular aquelas três
a verdadeira causa do fim do nosso herói: variáveis, é possível verificar o ponto de torque
da constituição individual na sociedade e vice-
Assim, sentia Aschenbach um obscuro conten- versa, possibilitando a articulação do processo
tamento em face daquilo que ocorria nas ruelas civilizador no seu período histórico.
imundas de Veneza e que as autoridades se em- Freud caracteriza os estímulos pulsionais
penhavam em esconder – êsse sinistro segrêdo como estímulos que surgem no interior do
da cidade que se confundia com o seu próprio organismo do indivíduo e que atuam sempre
segrêdo, que tanto lhe importava ocultar. Pois com um impacto constante; uma espécie de
aquele homem enamorado temia unicamente necessidade que apenas seria sanável com sua
que Tadzio pudesse partir. Com real espanto, satisfação, o que, se ligarmos a Elias, é impos-
dava-se conta que já não saberia viver se tal sível em determinados contextos figuracionais:
acontecesse (Mann, 1965, p. 119). diferentemente de outros estímulos, não há
como fugir destes, eis que é inerente à estrutura
A constituição do padrão de sexualidade da personalidade.
não abria espaço para desejos como os do mú- Ainda de acordo com Freud, as pulsões apre-
sico e a força que o controle exigiu foi demais: sentam quatro elementos que as caracterizam.
Aschenbach até vai longe, ao se maquiar e pin- O primeiro, a pressão, é a quantidade de força,
tar os cabelos para tentar parecer mais jovem de exigência de trabalho, que emana de toda e
para Tadzio (que, vale ressaltar, apenas cruzou qualquer pulsão, sendo a própria essência do
olhares com ele no hotel), resistindo à vergo- conceito de estímulo pulsional. Em segundo, a
nha e ao embaraço similar àquele que o senhor finalidade da pulsão, sua satisfação, apenas será
no desembarque de Veneza lhe causou. No atingida com o término do estímulo em sua
entanto, todos temos um limite, e o controle fonte. O objeto da pulsão, sendo a coisa através
sentido como pura opressão, quando não se é da qual o instinto atinge sua finalidade, é o que
mais possível escapar do objeto e resistir aos há de mais variável; e sua fonte, que é o processo
seus estímulos, é uma força arrebatadora. orgânico de leva ao estímulo, localizado no cor-
po, mas apenas conhecido na estrutura psíquica
por suas finalidades (Freud, 1980).
As pulsões e os controles históricos A complementação desta análise à luz do
processo civilizador vem com o enquadramento
A chave para o entendimento do aprisiona- destas pulsões em contextos históricos e sociais,
mento pulsional é o contexto social e histórico de acordo com a possibilidade ou não de mani-
e a análise figuracional dos seres humanos em festação dos desejos, e com a necessidade ou não
formação, em um contexto relacional que con- de repressão. Assim, em cada contexto histórico,
sidera ao mesmo tempo a estrutura psíquica e e de acordo com a estrutura social vigente, é a
a estrutura social. A contribuição de Elias neste pressão, a finalidade e o objeto da pulsão que
campo é fecunda a partir do seu conceito de sofrem modificações quanto a sua efetivação.
figuração, que relaciona três elementos funda- A pressão, a quantidade de força ou tra-
mentais para análise da sociedade: a histórica, balho despendido para consecução do estí-
a sociologia e a psicologia. Se, como vimos, a mulo, mantém-se inalterada enquanto força,
rede de interdependência molda as pulsões dos enquanto uma constante de qualquer estí-
indivíduos para concordarem com a estrutura mulo em qualquer época, mas pode variar no

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tocante à sensação desta força por parte do adquirir outra concepção é tentar enquadrá-la
sujeito, em decorrência de um processo ci- idealmente em outra realidade histórica. Logi-
vilizador mais ou menos bem sucedido e de camente, trata-se de uma especulação, que mui-
acordo com a sociedade que permita ou não o to serve às ciências sociais não enquanto ficção,
desejo em questão. Assim, todos os estímulos, mas como plausibilidade. No livro, mais do
em qualquer época, têm força, têm pressão, que no filme, Thomas Mann evoca elementos
mas a efetivação e a sensação daquela diferem da cultura grega para ilustrar a relação proibida
em cada contexto figuracional, em função da e a concepção de beleza para fazer transparecer
“qualidade” do processo civilizador e do auto- o que Aschenbach sentia:
controle exigido em cada época.
A finalidade e o objeto também variam social Muito límpido, corria aos pés da árvore de copa
e historicamente. A finalidade, a satisfação do larga um regato sôbre seixos polidos. Mas, no
estímulo pulsional, só será permitida em con- relvado que suavemente declinava, de modo que
textos que autorizem os objetos sobre os quais quem nêle jazesse podia manter a cabeça ergui-
a pulsão poderá ocorrer, levando, conseqüente- da, repousavam dois homens, um feio e outro
mente, à possibilidade da finalidade, da satisfa- belo, o sábio ao lado do adorável. E por entre
ção da pulsão, ser ou não alcançada, de acordo cumprimentos e galanteios humorísticos, Sócra-
com normas sociais exteriores aos indivíduos tes instruía a Fedro sôbre o anseio e a virtude
já instiladas pela constituição do superego. É o (Mann, 1965, p. 108).
contexto social de interdependência que permite
ou não a satisfação do estímulo pulsional, diante Se pensarmos no contexto figuracional da
da qual a estrutura psíquica dos indivíduos deve Grécia Antiga, a relação entre Aschenbach e
se estruturar através do processo civilizador. Tadzio não seria impossibilitada de acontecer.
Logicamente, Elias não fala em supressão Segundo Michel Foucault (1984), o padrão
total dos estímulos pulsionais pelo processo ci- sexual daquela época coloca a atividade sexu-
vilizador, até por que o próprio autor defende al numa avaliação moral muito diferente da
que a maior parte das pessoas se encontra entre nossa: na Grécia Antiga, os atos de prazer – os
um processo civilizador bem e um mal suce- aphrodisia – não eram considerados quanto
dido. A questão da abordagem sócio-histórica a forma que tomam, mas em relação à ativi-
do controle pulsional define, paralelamente, dade que manifestam. Nesta experiência, os
a presença de pulsões que são permitidas em atos, o prazer e o desejo são considerados em
determinados contextos e outras que não. Am- conjunto; é a dinâmica destes três atos que
pliando-se o foco, os próprios elementos das são avaliados moralmente pelos gregos e não
pulsões são permitidos ou não, controlados ou apenas cada um deles separadamente. Por sua
não, efetivados ou não em cada momento so- vez, a dinâmica sexual é avaliada moralmente
cial histórico, e não apenas a presença do auto- segundo duas polaridades complementares: a
controle: este, na verdade, varia em função de quantitativa, ou seja, a imoralidade consiste
cada um daqueles elementos sobre os quais as na intemperança e no excesso dos atos; e a
normas sociais recaem. questão da polaridade dos papéis sexuais, pre-
Saindo um pouco do campo das probabili- valecendo dois papéis que não se restringem
dades para o campo das possibilidades especu- ao papel masculino e feminino do ato sexual,
lativas, uma forma de pensarmos sobre como mas sim, num termo mais geral, atores ativos
a relação entre Tadzio e Aschenbach poderia e passivos: de um lado, os homens adultos, ci-

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dadãos livres, que exercem a atividade sexual; no excesso e ser dominado pelos prazeres. Os
de outro, os figurantes sobre os quais a ativi- aphrodisia, normais e desejáveis, não podem
dade sexual é exercida, que engloba o grupo levar à revolta e ao excesso: a tônica não é o de-
das mulheres, escravos e rapazes. Assim, saparecimento da vivacidade dos prazeres, mas
a aptidão para saber usá-los.
o excesso e a passividade são, para um homem, Neste contexto figuracional, a atitude de
as duas formas principais de imoralidade na prá- Aschenbach ganharia outro viés. Na Veneza
tica dos aphrodisia (Foucault, 1984, p. 46). do começo do século passado, da mesma for-
ma que atualmente, onde prevalece uma dis-
Encarada como uma atividade natural, a ati- sociação do conjunto ato, prazer e desejo, e o
vidade sexual na Grécia Antiga passa por uma julgamento de moralidade dos atos ocorre não
avaliação moral não através do crivo da anorma- quanto à dinâmica entre estes três elementos,
lidade, mas sim por ser encarada como uma for- mas em relação a eles separadamente, haven-
ça diante da qual o excesso é uma possibilidade. do uma problematização dos três, uma relação
A questão moral da época, segundo Foucault, é com Tadzio é impossível. A apreciação moral
como obter prazer da maneira que convém, e do prazer sexual, numa ética cristã que Foucault
não que prazer deve ser obtido: a reflexão passa chama “ética da carne”, é consubstanciada no
pelo cálculo, pela prudência através da qual os julgamento do valor do ato sexual, e indica em
atos são controlados (chresis aphrodision). No quais condições ele pode ou não ocorrer. As-
controle da atividade sexual devia-se levar em sim, é o objeto da pulsão que está sendo proi-
consideração três elementos: a necessidade, que bido e, conseqüentemente, sua satisfação, sua
regula a satisfação do prazer e do desejo, não finalidade. O objetivo do processo civilizador,
sendo moralmente conveniente estimular mais paralelamente, é dominar a pressão do desejo
prazeres, impedindo-se, assim, de prevalecer o em direção ao abafamento e ao desaparecimen-
excesso; a determinação do momento oportu- to completo da consciência, de maneira que a
no, o kairos, que se enquadra numa escala etária própria definição freudiana de repressão enten-
(a práticas desses prazeres não deve ser estimu- de que seu objetivo consiste em afastar a pulsão
lada nem quando se é muito novo, nem quando do consciente, deixando-a a distância, ao con-
se é muito velho), numa escala dentro do ano trário da enkrateia grega, na qual o controle do
(como melhores estações para a prática) e numa desejo não visa sua repressão, mas a dominação
escala diária (preferencialmente à noite); e, por para não ser levado ao excesso.
fim, o uso do prazer deveria se adequar ao status Percebe-se que a estrutura psíquica de As-
daquele que o usa, de acordo com a polaridade chenbach não consegue adequar-se às exigên-
passividade versus atividade. cias de uma sociedade que preza o julgamento
Foucault ainda fala de uma atitude para do ato sexual, que tenta inibir o desejo e que
com estes prazeres que coloca os desejos em condena o tipo de prazer que ele quer:
um controle que não deseja suprimi-los, como
seria a finalidade do controle sexual da pri- Enquanto se envolvia em tal aventura ilícita, en-
meira metade do século passado, que, por sua quanto se entregava aos mais esdrúxulos exces-
vez, em relação ao atual, pode ser considerado sos da alma, sempre se lembrava da austeridade
mais coercitivo. No contexto da Grécia clássi- comedida e da decência máscula que lhes fôra
ca, a enkrateia define o controle do uso destes peculiar, e ao fazê-lo, sorria melancolicamente
prazeres como um domínio de si para não cair (Mann, 1965, p. 122).

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A relação com Tadzio, assim, pôde ficar mens. Da mesma maneira, o rapaz não podia se
apenas na imaginação, o que levou ao de- colocar neste papel indeterminadamente: havia
sespero, pois está em uma sociedade onde um período de idade no qual cabia ao jovem
tal relação é duplamente condenada, uma este papel, e os primeiros sinais de virilidade,
relação homossexual com adolescentes. Ao o primeiro fio de barba, deveria cortar o laço
contrário, na época grega, o autocontrole de entre os amantes.
Aschenbach não seria a partir do julgamento Embora, como visto, a relação seja pro-
e da tentativa de reprimir seus desejos, mas blematizada e colocada dentro de um jogo de
sim numa dicotomia dominação versus obe- convenções sociais, há a possibilidade, e isto
diência, na qual é encarado como normal e que interessa, de se extravasar estes desejos na
natural sentir desejo por rapazes e seu con- Grécia clássica. Somente a possibilidade de
trole seria no sentido de evitar o excesso, de convidar o jovem a uma possível relação, se
ter uma atitude condizente com a necessida- Aschenbach estivesse lá, poderia suprir sua pul-
de, com seu status individual na sociedade são, dar calma aos seus desejos, sem, contudo,
hierárquica e com o momento oportuno de deixar Tadzio numa posição socialmente com-
efetivar os aphrodisia. Sua estrutura de per- plicada, de acordo com a figuração na qual eles
sonalidade estaria em conformidade com a se encontram. A diferença, vale ressaltar, é que
estrutura social, e não haveria motivos para enquanto no pensamento grego clássico há a
reprimir a pulsão, visto que seu objeto e fina- possibilidade de realização do desejo, em Ve-
lidade seriam permitidos socialmente e sua neza, esse desejo é reprimido enquanto desejo,
pressão estimulada dentro de parâmetros co- enquanto pulsão. Naquele contexto figuracio-
ercitivos muito mais fracos que os atuais: os nal, o controle social e o autocontrole indivi-
padrões da temperança no uso dos prazeres. dual ocorrem na dinâmica do prazer, desejo e
Para Tadzio, uma possível investida de As- ato; neste, o autocontrole é do ato em si, do
chenbach também não seria vista como uma desejo em si, o que enseja uma repressão muito
afronta não só às normas sociais, mas ao seu mais forte do prazer e possibilita uma queda
próprio superego instilado. Em primeiro lugar, muito mais dura.
não havia, na Grécia Antiga, a condenação do
amor de um homem por outro: amava-se o
belo; a condenação moral do ponto de vista da Conclusão – o controle, a tragédia, o
temperança era muito mais importante do que processo
as categorias de prazer, embora este uso exigisse
uma estilística própria, segundo Foucault. As- Freud afirma que nossa vida mental é regi-
sim, na relação de um homem mais velho com da por três polaridades: a antítese sujeito versus
um rapaz, deveria ser levado em consideração objeto (ego versus não-ego), que enseja uma
a posição de ambos e o próprio papel que eles relação na qual a ação muscular (fuga) pode
deveriam desempenhar: de um lado, o homem silenciar determinada classe de estímulos, mas
deveria perseguir o rapaz, ter uma posição de não os estímulos pulsionais (internos aos indi-
iniciativa; de outro, o rapaz, cortejado, não de- víduos); a antítese prazer versus desprazer, liga-
veria ser muito fácil, mas estimar a investida do da aos sentimentos e determinantes das nossas
homem mais velho. No entanto, o adolescente ações; e a antítese atividade versus passividade,
era livre para escolher, para aceitar ou recusar na medida em que o ego é passivo quando
a relação, tendo em vista se tratar de dois ho- recebe estímulos do exterior, e ativo quando

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age através dos próprios estímulos pulsionais sível exteriorizá-la, se transporta para dentro
(Freud, 1980). de nós mesmos, institucionalizada na agência
A tentativa de interpretação das obras de controladora das pulsões que é o superego:
Elias e Simmel para apreender a relação de As-
chenbach e Tadzio foi feita a partir da dinâmica O mandamento “Ama a teu próximo como a ti
entre estas antíteses, na medida em que a tra- mesmo” constitui a defesa mais forte contra a
gédia ocorre quando os estímulos externos são agressividade humana e um excelente exemplo
tão fortes e tão distantes do sujeito que a ati- dos procedimentos não psicológicos do superego
tude blasé é a saída, visto que o ego está numa cultural. É impossível cumprir esse mandamen-
posição de passividade face ao mundo externo to; uma inflação tão enorme de amor só pode
e a fuga é a possibilidade plausível, levando ao rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade.
embotamento do sujeito encapsulado da me- A civilização não presta atenção a tudo isso; ela
trópole; e, de outro lado, a civilização ocorre meramente nos adverte que quanto mais difícil
na ordem intrapsíquica do indivíduo, com o é obedecer ao preceito, mais meritório é proce-
controle interno de estímulos pulsionais ori- der assim. Contudo, todo aquele que, na civi-
ginários do ego (atividade do sujeito) em face lização atual, siga tal preceito, só se coloca em
do mundo externo, surgindo a agência inter- desvantagem frente à pessoa que despreza esse
na controladora das pulsões que deve, para ser mesmo preceito (Freud, 1997, p. 109).
bem sucedido o processo civilizador, encontrar
origem e finalidade na estrutura social vigen- Em uma situação como a de Aschenbach,
te (neste ponto é que a atitude de Aschenbach na qual a opressão da civilização se faz impor
deve ser compreendida, visto ser um estímulo com toda força, o “amar ao próximo como
pulsional o alvo da repressão). a si mesmo” pode ser desmembrada em dois
A morte de Aschenbach no final do filme, mandamentos: “amar ao próximo” e “amar a
atormentado pelos desejos sem nunca poder si mesmo”. Se o centro das relações sociais são
obter satisfação, é a conclusão de um filme as relações de interdependência entre os indiví-
que não fala apenas de repressão dos estímu- duos, relações, por si só, cheias de tensões; se a
los pulsionais, mas principalmente das tensões agressividade ainda existe, mesmo que contida
inerentes ao autocontrole fruto do processo pelo processo civilizador; se amar ao próximo
civilizador, ao passo que Tadzio nunca nem se- sem distinção é um amor que vale menos, e
quer saberá do que aconteceu com o músico, mesmo existindo alguém a quem amar, se esta
nem o amor que ele sentia pelo rapaz. relação não pode se concretizar devido ao pa-
A formulação de Freud acerca do manda- drão social, este mandamento cai por terra. Por
mento “amar ao próximo como a si mesmo” outro lado, “a identificação é conhecida pela
ajuda-nos a entender a conclusão do filme e a psicanálise como a mais remota expressão de
própria conclusão deste trabalho. A impossibi- um laço emocional com outra pessoa” (Freud,
lidade de amar ao próximo como a si mesmo 1976, p. 115), de modo que se a identificação
é fruto de um mandamento no qual um amor é o laço primário do ser humano, a experiência
que não discrimina é um amor que vale menos, de “amar ao próximo” é uma experiência que
além do fato de que nem todos os homens são gera sofrimento, angústia e culpa.
dignos de amor. Ademais, somos todos porta- Paralelamente, a tensão que se estabelece
dores de agressividade que, embora controlada entre o ego e a modelação das pulsões cuja base
pelo processo civilizador por não ser mais pos- está na agência controladora da personalida-

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de do indivíduo, principalmente nos casos de de existe nela e o quanto esta realidade micro
processos civilizadores mal sucedidos quando pode contribuir para entendermos a realidade
a opressão se torna consciente, a inconsistência social mais ampla. De qualquer maneira, a ten-
de uma continuidade da vida para o sujeito e a tativa destes autores de estudar a sociedade em
impossibilidade de ver suas pulsões satisfeitas, estado nascente, sempre em movimento e nas
torna o “amar a si mesmo” também uma fon- pequenas manifestações individuais é uma for-
te de agonia, culpa e irrealização plena. Assim, mulação que, para além das críticas existentes,
tanto na relação com o outro, quando na rela- merece nossa admiração.
ção consigo, o indivíduo se torna angustiado,
sozinho e incompleto se suas pulsões de libido Gustav von Aschenbach, civilized: hy-
não podem ser realizadas socialmente, como potheses for a social theory of the deep-
foi o caso de Aschenbach. O músico, por um seated drives
lado, não podia amar Tadzio, embora possuísse
um desejo neste sentido, pois a estrutura social abstract Films are important means of inter-
não permitia: “o amar ao próximo” tornou-se pretation of the social reality: not only they show
impossível, causando desprazer. De outro, a this reality, but also they reveal its details and make
tensão que se estabeleceu na sua personalidade, possible the transformation in the performance of
entre opressão consciente e estímulos pulsio- individuals. Therefore, the objective of this work is
nais, também, por não encontrar parâmetro de to present the social theories of Norbert Elias, Georg
possibilidade de expressão numa configuração Simmel and Sigmund Freud in their points of con-
sócio-histórica que não permitia a relação de- vergence and divergence, applied to the analysis
sejada, transformou o “amar a si mesmo” em of the film Death in Venice, in touch with Thomas
outra fonte de angústia e culpa. O final, nes- Mann´s book, regarding mainly the relationship
te duplo movimento, foi a morte, uma mor- between the characters Tadzio and Gustav von As-
te provocada, metaforicamente, pelos perigos chenbach. Its main theme is the social repression of
dos estímulos pulsionais não controlados e que the deep-seated drives and the relationship between
não podem realizar-se numa figuração que não individual and society as a whole in a historical con-
compreende a estrutura psíquica do sujeito. text and its purpose is to try to launch new ques-
Por fim, o ponto central das análises de tions and some answers aiming at the interaction
Simmel e Elias é a formação do indivíduo sem- between macro and micro sociological levels.
pre em um contexto relacional. A formação de keywords Psychoanalysis. Culture. Civilizing
sua personalidade, ela própria, seus desejos que Process. History. Social Theory.
podem ou não se realizar, tudo depende do ba-
ckground social no qual o indivíduo é formado,
e também é a massa a partir da qual se cons- Notas
titui a sociedade. As obras de Elias e Simmel,
assim, se constituem numa tentativa de tentar 1
A presente sinopse é uma cópia do resumo do filme
superar a dicotomia indivíduo vesus sociedade, constante atrás da capa do DVD de Morte em Veneza
disponível para locação.
enriquecendo o campo da discussão sociológi-
ca. O objetivo deste trabalho foi apenas o de
2
Convém ressaltar que no livro de Thomas Mann, As-
chenbach é escritor e não músico.
tentar elucidar alguns pontos desta sociologia
3
Idem, ibidem, p. 58.
microscópica, mostrando em uma relação de
4
Idem, ibidem, p. 81.
amor platônico fictícia o quanto de socieda-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 153-167, 2008


Gustav von Aschenbach, civilizado: hipóteses para uma teoria social das pulsões | 167

5
Trecho da fala da personagem retirado diretamente ______. Os instintos e suas vicissitudes. In: SALOMÃO,
do filme. Jayme. (trad.). Edição Standard Brasileira das Obras
6
Embora a edição do texto de Freud utilizado neste ar- Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro:
tigo não use a terminologia pulsão mas sim instinto, Imago, 1980. p. 129 – 162.
preferimos optar pela primeira nomenclatura, usada ______. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago
em outras edições do artigo “O instinto e suas vicis- Ed., 1997. 299p.
situdes”, também traduzido como “As pulsões e o MANN, Thomas. A Morte em Veneza – Tristão – Gladius
destino das pulsões”. Dei. Rio de Janeiro: Delta, 1965. 228 p.
SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. In: VE-
7
Trecho da fala da personagem retirado diretamente
LHO, Gilberto (org.). O Fenômeno Urbano. Rio de
do filme.
Janeiro: Zahar Ed, 1987. p. 13-28.
8
Idem, ibidem, p. 102. ______. O Problema da Sociologia. In: FILHO, Evaristo
9
Idem, ibidem, p. 114. de Moraes (org.). Georg Simmel – Sociologia. São Pau-
10
Idem, ibidem, p. 110-111. lo: Ática, 1983. p. 59 – 77.
______. O Conceito e a Tragédia da Cultura. In: SOU-
ZA. Jessé; ÖELZE, Berthold (orgs.). Simmel e a Mo-
dernidade. 2. ed., Brasília: Editora UnB, 2005. p. 77
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e o imaginário social. In: GEOgraphia, Niterói, Ano Título original: Morte a Venezia
II, n. 3, p. 69 - 122, 2000. Gênero: drama
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Vol. 2. Rio de Tempo de Duração: 130 min.
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993. 308 p. Ano de Lançamento (Itália - França ): 1971
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2 – O Uso Direção: Luchino Visconti
dos Prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. 232 p. Roteiro: Nicola Badalucco, Thomas Mann, Luchino
FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do ego. Visconti
In: SALOMÃO, Jayme. (trad.). Edição Standard Bra- Elenco: Singer Dirk Bogarde, Romolo Valli, Mark Burns,
sileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. Nora Ricci, Marisa Berenson, Carole André, Björn
XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 89 – 179. Andrésen, Silvana Mangano

autor Clark Mangabeira


Mestre em Ciências Sociais/UERJ

Recebido em 19/08/2008
Aceito para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 153-167, 2008


“A Origem do Mundo” de Gustave Courbet: realis-
mo e erotismo
Ian Packer

resumo O presente artigo/ensaio pretende ana- uma forma particular de expressão e de conhe-
lisar a tela L’origine du monde (“A origem do mun- cimento do homem.
do”), do pintor realista francês Gustave Courbet Se circunscrevermos nosso olhar ao desen-
(1819-1877), estabelecendo relações com seu con- volvimento da arte na civilização ocidental,
texto social e artístico. Realizada em um momento essa constituição do nu como forma artística
privilegiado da história da arte e da sociedade ociden- específica aparecerá de maneira ainda mais
tal, em que ambas se desembaraçavam de suas formas evidente, pois só por aqui as formas de repre-
tradicionais, “A origem do mundo” (1866) expressa sentação da nudez humana se organizaram em
o caráter inovador de seu tempo por meio da origi- uma verdadeira teoria do nu, a qual estabeleceu
nalidade tanto de sua forma quanto de sua temática: um conjunto claro de regras e convenções de
nela, realismo e sexualidade ocupam o centro da re- representação que deveriam orientar toda apa-
presentação artística. Tal inovação realizada pela obra rição da nudez humana, adequando-a aos mais
de Courbet é trabalhada aqui como uma peça impor- nobres ideais éticos e estéticos da arte. Por aqui,
tante do processo de formação daquilo que Foucault o corpo nu se viu freqüentemente mergulhado
chamou de “dispositivo da sexualidade”. Sustenta- em amplas narrativas míticas e religiosas, que
mos, assim, que aos saberes médico, pedagogico e o envolveram em uma trama de significados
jurídico, que nos séculos XVIII e XIX se articularam meta-históricos e sustentaram, por meio dele,
para a produção de um conhecimento sobre a sexua- determinada visão de mundo e determinados
lidade, uniu-se um saber pictórico, ou visual sobre ela, discursos sociais. Dessa forma, o gozo e o pra-
o qual reorganizou profundamente os modos como zer que no corpo têm origem e as formas e pos-
ela passaria a ser enunciada e, sobretudo, visualizada turas que ele ganha ao expressá-los se viram,
nas sociedades modernas. freqüentemente, enredados em emoções e sen-
palavras-chave Courbet. Realismo. Erotismo. sações de outra ordem, sendo investidos, por
Foucault. exemplo, do sofrimento e da piedade religiosos
e, assim, impedidos de se manifestarem per se.
1. Representações do corpo nu estão pre- No Oriente1, a nudez humana não se orga-
sentes ao longo de toda a história da arte, não nizou de tal forma específica, nem mereceu ser
havendo conceito, por mais sublime que seja, articulada em uma teoria do nu, e isso não por
que já não tenha sido por ele expresso. Nesse falta de representações ou de “ousadia” da parte
sentido, convém tentar compreender essas re- de seus artistas. Pelo contrário, por lá não fal-
presentações não apenas como um tema ou um tam retratos do corpo do homem e da mulher
veículo universal de expressão dos mais varia- despidos, alguns dos quais inclusive tornam as
dos sentimentos e emoções, mas, como nota representações ocidentais que estavam sendo
Kenneth Clark, como uma forma de arte especí- realizadas no mesmo período “inocentes” de-
fica (Clark, 1956) que, se realizando por meio mais em termos de recato e pudor (como os
de diferentes suportes – a pedra ou a tinta, o desenhos de Katsushika Hokusai e Kitagawa
fotograma ou o próprio corpo em performan- Utamaro, por exemplo). A diferença, contudo,
ce –, ultrapassa a todos eles e se constitui em parece residir na atenção que cada uma dessas

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170 | Ian Packer

tradições artísticas despendeu ao corpo, à sua ciabilidade ensejadas pelo contexto urbano e
estética e às suas qualidades, diferenças essas crescentemente industrial que se formava na
que parecem corresponder à distinção realiza- Europa, que propiciou o surgimento de novas
da por Michel Foucault entre a scientia sexualis figuras sociais (e o realocamento das antigas)
ocidental e a ars erótica oriental. Sem querer e possibilitou uma nova experiência da cidade,
entrar no mérito detalhado da argumentação cada vez mais moldada ao universo de relações
de Foucault, por demais conhecida, nos parece capitalistas, constituíam nova matéria social,
necessário dizer apenas que enquanto a scientia que exercia considerável pressão sob as formas
sexualis procurou, pelos mais diferentes e ines- de representação artística e ansiava pelo mo-
perados caminhos, falar ao máximo do sexo, a mento de adentrá-las.
ars erótica procurou, ao contrário, cultivar seu Para compreender esse processo de desman-
segredo e sua discrição, de modo que telamento do gênero do nu, é de grande utili-
dade e interesse acompanhar a argumentação
na arte erótica [...] não é por referência a uma lei desenvolvida por T. J. Clark (2004) a respei-
absoluta do permitido e do proibido, nem a um to do estranhamento que o quadro Olympia
critério de utilidade, que o prazer é levado em (“Olímpia)2 de Manet provocou no público
consideração, mas, ao contrário, em relação a si do Salão de 1865, em Paris.
mesmo: ele deve ser conhecido como prazer e,
portanto, segundo sua identidade, sua qualida- 2. Havia algo em “Olímpia” que escapava
de específica, suas reverberações no corpo e na ao campo de referências dos críticos e aman-
alma (Foucault, 1988, p. 34). tes da arte do século XIX e que lhes causava
profundo estranhamento: segundo Clark, tal se
Essa observação ganha ainda mais pertinên- devia ao tensionamento, levado a cabo por esse
cia, a nosso ver, se pensarmos no modo como quadro, das categorias do “nu” e do “despido”,
a nudez e o sexo passaram a ser representados de “cortesã” e de “prostituta” que vigoravam na
nos séculos mais recentes. Pois acontece que a sociedade francesa do segundo império.
partir do século XVIII, o campo representacio- Segundo Clark, no imaginário da sociedade
nal do nu – e a arte e seus ideais ético-morais francesa desse período havia uma distinção en-
de forma geral – sofreu sucessivos abalos, que tre a figura da prostituta e a figura da cortesã.
provocaram fissuras nos discursos artísticos so- Tal distinção era sustentada pelo cuidado de
bre a nudez que até então vinham sendo enca- não permitir que o caráter ultrajante dos mo-
pados. Os impactos do romantismo, por um dos de vida gerados pelo encontro direto entre
lado, com seu apelo à manifestação da singula- sexualidade e capital irrompesse na vida social
ridade e da vida íntima dos homens, e do ma- da burguesia francesa e se revelasse como sendo
terialismo, por outro, que desde o século XVII seu outro lado, seu contraponto. Assim, a cor-
se organizava como doutrina anti-religiosa e tesã era a figura ideal para que esse encontro
dinamizava em torno de si grandes avanços pudesse ocorrer e ser representado de maneira
científicos (Jacob, 1999), foram fundamen- ideologicamente segura. Dotada de uma beleza
tais nessa desestruturação do ideal de arte e de extraordinária, que elevava o preço de seus ser-
nudez entronizado pelas academias européias, viços e, portanto, peneirava sua clientela entre
possibilitando novas experiências estéticas e as mais importantes e ricas figuras da socieda-
a emersão de novos valores e significados na de, a cortesã rarefazia a relação mercantil entre
sociedade. Além disso, as novas formas de so- cliente e prostituta, entre capital e sexualidade,

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


“A Origem do Mundo” de Gustave Courbet: realismo e erotismo | 171

em uma relação espetacular, de modo que cada em certa medida ameaçado por sua identidade
um desses dois termos deixava de ter relação sexual, porém no final o corpo triunfava. Para
entre si. A cortesã permitia a passagem segura dizer menos metaforicamente: a tarefa do pintor
da mulher honesta à prostituta, remediando o era construir ou negociar uma relação entre o
efeito explosivo que viria do encontro direto corpo como fato particular e excessivo – aquela
entre essas duas figuras. carne, aquele contorno, aquelas marcas da mu-
Dessa forma, o impacto que a prostituta lher moderna – e o corpo como signo, formal e
Olímpia de Manet provocou no Salão de 1865 generalizado, concebido como emblema de se-
deve-se, segundo Clark, ao fato de que ela in- renidade e satisfação. O desejo aparecia no nu,
formava ao espectador qual era sua posição e mas era mostrado deslocado, personificado, não
sua função na sociedade francesa, qual era seu mais um atributo da mulher sem roupa (Clark,
interesse, o que lhe motivava, dando-lhe subsí- 2004, p. 184).
dios para imaginar em que situação ela estava
envolvida, que cena havia precedido ou iria su- Assim, continua Clark, a nudez era fre-
ceder àquela que se podia ver. Tal impacto não qüentemente encenada por meio de ações, sig-
se devia, contudo, apenas ao tema da tela, já nificados e atributos exteriores a ela, de forma
que a prostituição também figurava em telas de que sua força sexual era diluída e direcionada
outros pintores do mesmo período e mesmo de para o ideal ético-moral que a pintura tinha
pintores posteriores a Manet, mas pela forma como função transmitir. Um pouco a manei-
com que Manet o trabalhou, expressando, por ra da Liberdade, no célebre quadro de Eugène
meio da própria nudez de Olímpia, sua origem Delacroix, La liberté guidant le peuple (“A li-
social. berdade guiando o povo”, de 1830), a nudez
É nesse ponto que Clark discorre a respeito estava sempre envolvida em uma narrativa,
da fragmentação que o gênero de pintura do tornando-se uma alegoria de si mesmo, sem
nu estava sofrendo ao longo do século XIX e qualquer referência aos modos reais pelos quais
que sua argumentação é de grande interesse e existia no mundo e às maneiras pelas quais ela
proveito para a compreensão de “A origem do podia ser realmente experimentada. O que dela
mundo”, sobretudo se pensarmos que a dife- se encontra no padrão de representação susten-
rença de datas entre a tela de Manet (1865) e a tado pela teoria do nu
de Courbet (1866) é de apenas um ano. Segun-
do ele, a maioria dos artistas sabia que o moti- é um corpo dirigido ao espectador franca e di-
vo e o apelo da pintura de nus era francamente retamente, mas em grande medida generalizado
erótico, de modo que na forma, arranjado num esquema complexo e
visível de rimas, expurgado de particularidades,
o desejo nunca esteve ausente do nu, e o gênero oferecido como uma versão livre, mas respeito-
oferecia varias figuras nas quais o primeiro podia sa, dos modelos corretos, aqueles que melhor
ser representado: como uma demanda animal enunciam a natureza (Clark, 2004, p.185).
emergindo em uma forma meio humana, meio
caprina; ou, como Eros, guia enamorado que re- O gênero funcionava, assim, para conciliar
presentava o desejo do homem e a desejabilida- o conflito entre a nudez e o prazer sexual, como
de da mulher. Mas o propósito principal do nu verdadeira antítese ao sexo.
era estabelecer uma distinção entre essas figuras Ora, não é difícil de compreender o estrago
e a nudez em si: o corpo era acompanhado e que a “Olímpia” de Manet fez sobre essa tradi-

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ção: com seu olhar fixo no espectador, infor- como uma vitória contra a hipocrisia e o pu-
mando ter consciência dos motivos sexuais dos dor da burguesia, mas como um momento de
olhares que lhes são dirigidos, com sua pilosi- rearticulação do campo discursivo que forma
dade razoavelmente exposta, com sua mão es- a vida social, como um momento de reorgani-
condendo seu sexo e, portanto, declarando que zação dos discursos e dos contra-discursos, dos
ele estava lá. Segundo Clark, Manet figurou em silêncios e dos ruídos, no qual a pintura – dir-
seu quadro não somente uma prostituta; por se-ia melhor, a imagem, a representação imagé-
meio dela, refez as categorias básicas do nu e tica – começava também ela a se tornar uma
da nudez, tornando a sexualidade constitutiva parte importante na elaboração de uma forma
do corpo da mulher, algo que podia ser lido de saber a respeito da sexualidade.
em seu próprio corpo e dentro dele. “Olímpia”
podia ser vista como uma cortesã nua, mas de 3. Retomando do ponto em que paramos
dentro de sua figura pulsava e pressionava a fi- no fim do item 1, e à luz do que expusemos
gura de uma prostituta despida, que promovia o no item 2, gostaríamos agora de nos refe-
encontro da sexualidade e do capital não mais rir especificamente a produção artística de
em um reino abstrato, mas na materialidade de Courbet, escrevendo algumas palavras acerca
seu corpo, como fatores determinantes de sua de seu Rea­lismo.
formação. A narrativa interna do quadro passa- Ponto de chegada da tradição artística do
va a ser o próprio corpo nu. século XVIII, notadamente do Romantismo, e
As formas tradicionais de representação do ponto de partida do modernismo das décadas
nu estavam sendo, assim, fortemente abaladas, de 1870, 1880 e 1890, o Realismo de Courbet
com sua gradativa desintegração apontando configura-se como um momento privilegiado
diretamente para a emersão da sexualidade no da história da Arte, quando esta toma signi-
corpo, no campo de representação visual e na ficativa distância do campo do pensamento
organização da vida social. Se, segundo Clark, abstrato, organizado em torno das narrativas
o nu constituiu uma forma importante – e uma religiosas e meta-históricas, e passa a represen-
das poucas – de aparição do sexo na história da tar – e, sobretudo, a abordar – de maneira mais
arte, sendo o lugar onde o corpo foi revelado, enfática a realidade que a cerca.
recebeu seus atributos e foi submetido à or- Desde sua juventude preocupado com os
dem e percebido como não problemático, não destinos políticos de sua época, republicano
se pode deixar de ter em vista que a partir do convicto e entusiasta da revolução de 1848 e
século XIX ele passa a ser problematizado e a da Comuna de Paris (1871), Courbet incor-
aparecer de diferentes formas, de modo que sua porou bem em sua arte o gosto romântico
sintonia com as outras formas de visibilidade e pela representação do regional, do popular, do
invisibilidade dadas à sexualidade no período homem simples, valendo-se, principalmente,
(e que foram descritas por Foucault) pode ser da paisagem natural e humana que podia en-
investigada – a emergência de uma temática e contrar em sua terra natal, Ornans. A primei-
de uma forma francamente sexual e sexualizada ra fase de sua produção artística é marcada,
de representação do corpo ao longo do sécu- assim, pela realização de grandes telas em que,
lo XIX, correspondendo à própria formação ao contrário das grandes figuras e dos grandes
do dispositivo da sexualidade que o filósofo feitos históricos a quem geralmente elas eram
francês tratou de descrever. A desintegração do reservadas pela academia, viam-se camponeses
nu não deve ser vista, portanto, simplesmente em atitudes banais do cotidiano, a maioria das

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“A Origem do Mundo” de Gustave Courbet: realismo e erotismo | 173

vezes em poses nada heróicas ou extravagantes, particular, não podem ser vistos como sim-
mas simples e estáticas, como se fossem figuras ples expressão da habilidade do artista em
vazias. São dessa fase L’enterrement à Ornans representar de maneira mais ou menos deta-
(“Enterro em Ornans”, de 1849-1850) e Les lhada e fiel o que ele tem diante dos olhos,
casseurs de pierre (“Os britadores de pedra”, mas, ao contrário, como uma construção
1849), telas pelas quais sua arte conquistou que busca provocar um efeito de real (Fried,
grande reputação, mas também foi acusada 1990). De fato, se repararmos no quadro
de ser excessivamente conjuntural, de tomar, que Courbet está pintando ao centro da tela
freqüentemente, a parte pelo todo. Os críticos “O Ateliê”, verificaremos que ele pinta uma
e os biógrafos de Courbet afirmam, de ma- paisagem – gênero classicamente tido como
neira quase consensual, que a tela L’Atelier du dependente de uma observação fiel, precisa
peintre (“O Ateliê do pintor”, 1855) constitui e detalhada da realidade –, sem que para tal
um exemplo bem acabado da primeira fase da se encontre realmente face a ela. Com isso,
obra do pintor francês, interpretação, aliás, Courbet parece sugerir que pinta a paisagem
que parece ser sugerida pelo próprio artista, de memória, ou que a está inventando no
ao ter colocado como subtítulo dessa tela a preciso momento em que a executa, e que
frase Allégorie réelle déterminant une phase de a inspiração, assim, vem antes de sua ima-
sept années de ma vie artistique et morale (“Ale- ginação do que da observação que ele tem a
goria real de sete anos de minha vida artística frente de si. Segundo Fried, esse aspecto ima-
e moral”). Não entraremos aqui no mérito de ginativo do Realismo de Courbet parece ter
uma análise pormenorizada dessa tela tão rica escapado mesmo a Baudelaire que, em 1850,
em personagens, objetos e detalhes, e que já o acusou de estar arrasando com o exercício
foi bem trabalhada e discutida pelos críticos imaginativo da arte com o seu realismo.
e admiradores da obra de Courbet, sem que É interessante dar breves notícias aqui a
qualquer um deles tenha chegado a alguma respeito do amplo processo histórico e artísti-
interpretação definitiva. Nós nos limitaremos co em que Fried insere o Realismo de Courbet
a fazer, a partir dela, apenas alguns comentá- e a partir do qual ele procura compreender
rios que, a nosso ver, oferecem as linhas gerais sua obra. Isso porque partilhamos de sua opi-
dentro das quais pode ser compreendido o nião e acreditamos que ela nos será proveito-
Realismo de Courbet. sa quando nos detivermos mais atentamente
Como o subtítulo do quadro sugere, o sobre “A origem do mundo”. Segundo Fried,
Realismo de Courbet é alegórico, suas telas a tradição artística francesa, desde Diderot,
organizam-se como metáforas de sentidos se emprenhou em desmontar e banir da arte
e de significados que se encontram alhures, aquilo que o crítico francês chamou de teatro
fora das quatro linhas de cada uma de suas e teatralidade da obra de arte. Para Diderot, a
telas – ou entre elas –, não esperando dos es- obra de arte deveria parar de apresentar suas
pectadores uma adesão irrefletida à positivi- figuras atuando como se estivessem na au-
dade da imagem retratada, mas, antes, como sência de qualquer observador. Ao contrário,
disse Michael Fried em uma afirmação um deveriam instituir a posição do espectador,
tanto benjaminiana, uma leitura “contrária a tornando-o uma força ativa e participativa da
fibra do conteúdo ostentado”3 (Fried, 1990, obra. Segundo Fried, com isso Diderot tor-
p. 3). Segundo Fried, a pintura realista, de nou a absorção do observador pela pintura
forma geral, e o Realismo de Courbet, em algo crítico, que deveria ser problematizado

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e elaborado por toda produção artística pos- Para Nochlin, assim, o vanguardismo de
terior. Na leitura de Fried, Courbet constitui Courbet está no fato de ele desvincular sua
precisamente o ponto de realização efetiva obra das grandes narrativas religiosas e his-
desse ataque de Diderot à teatralidade da obra tóricas, apresentando-se, ao contrário, como
de arte, na medida em que suas pinturas efe- um pintor particular, dotado de um interes-
tuam importante deslocamento na concepção se particular – a concretude da experiência do
acadêmica da obra de arte como fato moral – mundo que o cerca –, particularidades estas
que absorve a realidade em detrimento de um que o tornam, segundo ela, o primeiro pin-
ideal ético-estético – e inscrevem-se na reali- tor eminentemente político da história da arte
dade, tornando-se um fato político. (Nochlin, 1989).
Essa argumentação de Fried nos parece No que se refere a essa postura política da
extremamente interessante, ainda por possuir obra de Courbet, é interessante notar como
importantes pontos de contato com as análi- alguns contemporâneos seus o acusaram de,
ses desenvolvidas por Linda Nochlin a respei- a partir dos anos 50, com o fracasso da Re-
to da obra Courbet. Segundo ela, volução de 48, ter imprimido um caráter re-
signado a suas telas, deixando de representar
certamente o pintor que mais encarna as implica- a atividade e a vida cotidiana dos trabalhado-
ções duais – tanto política, quanto artisticamente res e camponeses para voltar-se para a reali-
progressivas – do uso original do termo “avant- zação de retratos da natureza – landscapes e
garde” é Gustave Courbet e seu combativo e ra- still-livings – e de mulheres nuas. As obras de
dical Realismo. “O Realismo”, Courbet declarava sua segunda fase chegaram mesmo a ter seu
ostensivamente, “é a democracia na arte”. (No- significado vulgarmente politizado por seus
chlin, 1989, p. 12) admiradores e companheiros que, com isso,
queriam defender Courbet das acusações que
Ainda segundo Nochlin, Courbet sofria e manter sua obra em sintonia – ain-
da que de forma instrumentalizada – com o
viu seu destino como uma contínua ação de van- cenário político do momento. Como conta
guarda contra as forças do academicismo na arte Thierry Savatier (2006), seu grande amigo,
e do conservadorismo na sociedade. Longe de ser entusiasta e conterrâneo Pierre-Joseph Prou-
um tratado abstrato sobre as últimas idéias so- dhon, por exemplo, insistiu em ver em Vê-
ciais de seu tempo (...), [sua obra] é um emblema nus et Psyché (“Vênus e Psique”) “a sátira das
concreto a respeito do que o fazer artístico e a abominações de seu tempo”5, um ataque ao
natureza da sociedade são para o artista realista. suposto estado de licenciosidade e imoralida-
É através de Courbet que todas as figuras parti- de em que viviam as classes altas francesas, ao
cipam da vida do mundo pictórico, sendo todas invés de ver nessa tela um ataque a própria
elas relacionadas à experiência direta; elas não idéia de moralidade – o que parece estar mais
são abstrações tradicionais como a Verdade ou próximo do projeto de Courbet. Esse comen-
a Imortalidade, nem são lugares comuns como tário de Proudhon, segundo Savatier, indica o
o Espírito da Eletricidade ou do Telégrafo. É, quanto o espírito revolucionário e a burguesia
ao contrário, sua concretude que lhes dá credi- reacionária do período se encontravam no ter-
bilidade e convicção (...), a qual, além disso, as reno da ordem moral6, e o quanto a temática
amarra indissoluvelmente a um momento parti- da segunda fase de Courbet seria necessaria-
cular da história (Nochlin, 1989, p. 12)4. mente mal-compreendida por ambos.

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“A Origem do Mundo” de Gustave Courbet: realismo e erotismo | 175

Tendo isso em vista, é sobre essa segunda o motivo da exaustão das duas jovens moças
fase da obra de Courbet que nos deteremos e o que as faz dormir um sono tão profun-
mais atentamente a partir de agora, sobretudo do: o desejo sexual. Tal impressão também se
sobre as telas que tematizam, de uma forma ou produz quando inserimos as telas de Courbet
de outra, a nudez e a sexualidade. no conjunto das representações de erotismo
que povoaram a imaginação do século XVIII
4. É interessante seguir a explicação que Sa- e XIX. Um exemplo desse notável desenreda-
vatier (2006) oferece para a suposta mudança mento gradativo da sexualidade e do desejo
temática das obras de Courbet a partir dos anos na produção artística do período é fornecido
60. Segundo ele, parte dessa mudança pode ser por Savatier na comparação que realiza entre
pensada a partir de uma sutil coincidência: o mesmo “As dorminhocas” e a escultura Fem-
me piquée par un serpent (“Mulher picada pela
Ora, diz ele, Proudhon morreu em 1865 e a serpente”, de 1847), de Auguste Clésinger. Se-
concordância de datas abre uma perspectiva: sua gundo Savatier, a presença da serpente nessa
morte poderia ter, de alguma forma, libertado obra serve apenas para disfarçar a verdadeira
Courbet de uma patronagem obstruidora e pu- causa da contorção do corpo da mulher, que
dibunda (Savatier, 2006, p. 68)7. deixa de ser uma manifestação do prazer sexual
que o percorre para se tornar expressão do efei-
Dessa forma, as telas dos anos 60 em diante to doloroso do veneno que entra em suas veias.
podem ser compreendidas como oriundas de Contrariamente a esse disfarce, segundo ele, o
uma liberdade de criação que o artista conhe- colar de pérolas quebrado que vemos próxi-
ceu com a morte de seu amigo, pela qual pôde mo ao corpo das amantes na tela de Courbet
desvincular sua obra da cena política e da at- atua como uma espécie de anti-serpente: não
mosfera ideológica do período e passar a reali- disfarça, mas reforça o motivo sexual da cena,
zar uma outra leitura do mundo, ainda política sendo o próprio símbolo da atração sexual e
à sua maneira. da distensão, do apaziguamento, que se segue
Mas passemos às telas. Podemos acompa- à sua satisfação. O sentido sexual do quadro
nhar ao longo das telas de Courbet em que pode ser apreendido ainda se comparamos a
figuram mulheres nuas e seminuas uma grada- cena lésbica que ele retrata ao conjunto das
tiva explicitação do motivo sexual que parece representações do amor entre mulheres que
as envolver. Se passamos de Les baigneuses (“As foram realizadas no período anterior – e mes-
banhistas”, de 1853) a “Vênus e Psique”, e des- mo posterior – a Courbet. Segundo Kosinsky,
ta para Les dormeuses (“As dorminhocas”8, de “As dorminhocas” deve ser visto como uma
1866), vemos como se torna cada vez mais cla- interpretação realista do tema lésbico que está
ro a presença de um desejo sexual constituin- implícito no mito de Diana, um tema freqüen-
do a narrativa da tela. Aquilo que está latente temente trabalhado nos séculos XVIII e XIX.
nas duas figuras femininas do primeiro qua- François Boucher, por exemplo, criou belas te-
dro, mais ainda enredado no tema do banho, las a respeito desse mito, como Diane sortant
torna-se mais aparente na postura de “Vênus du bain (“Diana saindo do banho”, de 1742),
e Psique”, para ser finalmente formulado por Diane après la chasse (“Diana depois da caça”,
meio do abraço íntimo e apertado das duas de 1745) e Jupiter déguisé en Diane et Callisto
jovens moças do quadro de 1866. Nesse úl- (“Júpiter disfarçado como Diana e Calisto”, de
timo quadro, é inescapável compreender qual 1759). Outro pintor que representou o tema

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do lesbianismo foi Toulouse-Lautrec, como na os de caráter erótico e pornográfico –, a qual ele


tela L’abandon ou Les deux amies (“O abando- se liga de maneira positiva.
no ou As duas amigas”, de 1895), em que o
erotismo que envolve as mulheres é claramen- 5. É fundamental conhecer as represen-
te tematizado, ainda que de maneira discreta. tações gráficas populares que circulavam na
Frente a esses quadros, no entanto, “Vênus e França, pré e pós-revolucionária, para que seja
Psique” e “As dorminhocas” são evidentemente possível compreender a maneira como se orga-
mais enfáticos no tratamento do desejo sexual. nizava o imaginário do país naquele momento
Neles, Courbet submergiu a narrativa mito- (bem como as mudanças pelas quais ele pas-
lógica, não apresentando pictoricamente, no sava) e o campo representacional possível em
que se refere ao primeiro desses quadros, por que estava inserido Courbet. No que se refere
exemplo, nenhuma referência à ira ciumenta a produção artística de Courbet, é conhecido o
de Vênus causada pela beleza de Psique, como quanto ela foi influenciada pelo “popular ima-
era dito no mito. Na verdade, a referência mi- gery” – para a usar a expressão do célebre artigo
tológica presente somente em seu título deve de Shapiro (1990) – do período. Shapiro mos-
ser entendida assim como a serpente na escul- trou como a tela Les paysans de Flagey revenant
tura de Clésinger, ainda como uma camufla- de la foire (“Camponeses de Flagery regressando
gem, da qual as amantes de “As dorminhocas” da feira”, de 1850) deve muito de sua compo-
se livrarão totalmente pouco tempo depois. sição a algumas gravuras que circulavam entre
Vemos, assim, como as telas de Courbet, os camponeses franceses no período, as quais
a exemplo da “Olímpia” de Manet, partici- Courbet usou como modelo. Também Savatier
pam do movimento de desintegração do nu e Kosinsky demonstram como para a tela “As
nas artes visuais, tensionando cada um dos dorminhocas” Courbet se inspirou em uma li-
elementos prescritos pela academia para a re- tografia de Achille Deveria de 1837, “Minda e
presentação do nu e suprimindo-os gradual- Brenda”, que havia sido realizada para ilustrar
mente, de modo que o desejo sexual passou o romance de W. Scott, “O pirata”.
cada vez mais a habitar os corpos representa- Nesse sentido, um reservatório especial de
dos e a sexualidade a se desenredar – das redes representações, realizadas muitas vezes por ar-
e do enredo que classicamente as envolviam –, tistas menores e gravuristas, que parecem ter
sendo abordada sem subterfúgios, em um mo- exercido considerável influência em Courbet e
vimento que terá um momento especial em “A suas telas sobre nudez, pode ser encontrado nas
origem do mundo”. Convém notar, contudo, páginas dos romances libertinos e pornográfi-
antes de passarmos finalmente a essa tela, e cos que circulavam pela Europa, tais como os
a fim de chegar a ela com mais propriedade, de Restif de la Bretonne e do Marquês de Sade,
que esse processo não se organiza apenas de em que – e com isso já começamos a entrar no
forma negativa, como se seu desenvolvimento mérito de “A origem do mundo” – a “vulgari-
fosse dependente apenas do fracasso da teoria dade”, o “baixo calão” e o “mau gosto” no trato
acadêmica do nu em zelar por seus padrões de do sexo, da sexualidade e do corpo, já vinham
representação e suas convenções e de sua grada- sendo ensaiados. Com efeito, as gravuras9 que
tiva desintegração. Ao contrário, ele se inspira ilustravam esses romances pornográficos pare-
também em uma outra tradição representati- cem ter usufruído uma liberdade de represen-
va, a das gravuras que ilustravam os folhetins, tação da sexualidade que a pintura demorou a
as revistas e os jornais populares – sobretudo conquistar. Nelas, abundavam representações

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de relações sexuais, de genitálias em pleno uso provava que seus filhos eram de fato filhos do
e ação, e expressões de um desejo sexual carnal rei. Assim, a literatura libertina desempenhou
e livre de qualquer amarra moral. Isso se deveu, um importante papel no sentido de acusar a de-
em parte, à liberdade que a própria linguagem cadência moral da corte que os revolucionários
literária dessa época conheceu, a tal ponto de queriam erradicar. Além disso, ao representar os
ter originado um gênero propriamente erótico políticos, intelectuais e religiosos franceses em
e pornográfico, dotado de um razoável público poses extravagantes ou tendo relações sexuais,
leitor. As gravuras que estampavam as páginas muitas vezes com membros de todas as classes
desses romances participavam, assim, dessa li- sociais, acabavam por secularizar o corpo dos
berdade, já que tinham a função de materia- soberanos da nação, de forma que não apenas
lizar aos leitores as cenas que eram descritas, degradavam a realeza, mas elevavam o homem
de modo que eles pudessem apreciá-las com comum.
os olhos e não apenas com a imaginação. Se é
certo que a qualidade artística dessas gravuras Na nova ordem revolucionária, todos os políti-
era, na maior parte das vezes, desprezível, em cos descobriram que sua conduta estava sujeita à
razão da própria subsunção dessa linguagem crítica e ao escrutínio, e que a sátira pornográfi-
pictórica à linguagem literária que a envolvia ca fazia parte de uma insistência sobre a transpa-
e orientava, não se pode negar, contudo, que rência, a publicidade ou a sinceridade da prática
elas tiveram uma importância crucial para as política (Hunt, 1999, p. 360).
transformações que acometeram as formas
mais altas de representação artística posterior- Passado o período revolucionário, contudo,
mente, constituindo um primeiro exercício de a pornografia encaminhou-se para uma sensível
representação de uma determinada temática e despolitização, na medida em que perdeu um
de determinados valores que viriam penetrar foco político claro e passou a ter como função
com grande força na vida social e na economia provocar o escândalo e a excitação sexual. Se-
visual dos séculos XIX e XX. gundo Hunt, nesse período a pornografia teria
No que se refere ao impacto dessas represen- se autonomizado da filosofia e da política, já
tações na vida social, Lynn Hunt, em interessan- que agora ela “podia ser lucrativa”, não haven-
te artigo intitulado “A pornografia e a Revolução do “necessidade de outra justificativa” (Hunt,
Francesa” (Hunt, 1999), discorre sobre o efeito 1999, p. 363) para se manter.
político da pornografia durante a Revolução É dentro desse contexto político e cultural
Francesa. Segundo ela, enquanto até meados do que se desenvolveu a obra de Gustave Courbet.
século XVII os textos pornográficos dedicavam- É improvável, assim, que não tivesse conheci-
se a contar a vida perniciosa que levavam as pros- mento desses romances e desses retratos por-
titutas, a partir dessa data se tornaram uma forma nográficos, e que não tivesse se inspirado neles,
de ataque à vida de luxúria, licenciosidade e de- mais de uma vez, na elaboração de suas telas.
pravação que levavam os membros da nobreza Ainda que o tema e o enquadramento de “A
francesa, alvejando as principais figuras políticas origem do mundo” não tenha um precedente
da época. A própria rainha Maria Antonieta pas- preciso em telas ou gravuras anteriores – o que
sou a figurar como personagem nesses romances, leva Savatier a dizer que esse quadro é órfão de
sendo acusada de ter hábitos sexuais desregrados fonte artística, ao contrário da Olímpia de Ma-
e de, portanto, ser incapaz de garantir a legitimi- net, que tem ascendência inegável na La Veneri
dade do herdeiro do trono francês, já que nada di Urbino (“A Vênus de Urbino”, de 1538) de

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Ticiano –, pois ela representa o sexo feminino tecido branco. Pode-se dizer que a composição,
em estado bruto e libertado de qualquer ação de maneira esquemática, é composta por três
ou narrativa, não se pode negar que muito de triângulos: um, formado pela maneira como
sua liberdade criativa se deva a essa tradição e o corpo está posicionado; outro, formado pela
a essa atmosfera pornográfica que se formou vagina e pelos pêlos púbicos da mulher; e um
ao longo dos séculos precedentes. Nesse sen- terceiro, formado por um triângulo negro situ-
tido, se não podemos apontar com exatidão ado no canto superior direito do quadro, que
os elementos dessa tradição que Courbet teria dá a impressão da mulher se encontrar em um
aproveitado diretamente na composição de “A ambiente escuro. Isso se virmos a tela somente
origem do mundo”, há, contudo, um aspec- em sua primeira dimensão. Em duas dimensões,
to que a nosso ver é inegavelmente devedor percebemos que o corpo é composto a partir de
a ela. Era freqüente, nessas gravuras, a apre- formas ligeiramente arredondadas, assim como
sentação de cenas de voyerismo, em que uma o pano sobre o qual ela está deitada, que se apre-
figura espionava a intimidade de uma ou vá- senta com diversas dobras. Predominam cores
rias outras sem que ela(s) percebesse(m), seja sóbrias: o preto, o branco e o cinza, o tom de
levantando uma saia, seja escondendo-se atrás pele. Mas podemos reparar que os lábios vaginais
de uma parede, de forma que por meio delas e o mamilo – o sexo, em suma – são pintados em
instituía-se uma determinada relação entre ob- vermelho escarlate, de modo que destoam um
servado e observador, uma determinada relação pouco do conjunto e realçam seu motivo.
de visibilidade. Ora, nos parece que “A origem A pose da mulher suscita uma impressão
do mundo”, com sua exposição franca do sexo monumental. Se organiza como um trapézio
feminino, não faz mais que radicalizar essa rela- e seu ventre se lança em direção ao especta-
ção, deslocando-a do interior da tela para o ex- dor de maneira oferecida ao olhar, disponível,
terior, abrindo-a para o espectador, tornando-o provocante. Frente a ele, é difícil não se sentir
ele próprio o observador da cena indiscreta – o constrangido, em uma situação embaraçosa. A
voyeur. Esse argumento ganha um sentido mais célebre descrição que o crítico Marcel Du Camp
profundo se levarmos em conta a interpretação fez dele em fins do século XIX, quando o viu
do Realismo de Courbet oferecida por Fried, na casa do diplomata egípcio Khalil-Bey, seu
da qual demos notícias acima: “A origem do primeiro proprietário, é um ótimo testemunho
mundo” está, assim, inteiramente voltada para do efeito que o quadro provoca no espectador
o espectador, ela sabe de sua presença e o provo- e da dificuldade que se tem em descrevê-lo sem
ca, não havendo nenhum elemento pictórico perder a discrição:
que o absorva ou anule.
Passemos à tela. Quando se afastava o véu, ficava-se estupefato
ao perceber uma mulher em tamanho natural,
6. “A origem do mundo” é uma tela pe- vista de frente, emocionada e convulsiva, nota-
quena. Mede apenas 55 cm por 46 cm. Qua- velmente pintada, reproduzida con amore, como
se a totalidade da tela é ocupada pelo corpo de dizem os italianos, e dando a primeira palavra
uma mulher que, de pernas abertas, deixa ver do realismo. Mas, por um inconcebível esqueci-
seu sexo de maneira plena. A representação não mento, o artista que copiou seu modelo ao na-
nos permite conhecer o rosto da mulher, mas tural, havia negligenciado de apresentar os pés,
apenas parte de suas coxas, sua barriga e um de as pernas, as coxas, o ventre, o quadril, o busto,
seus seios, estando o outro encoberto por um as mãos, os braços, os ombros, o pescoço e a

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cabeça (Marcel Du Camp apud Savatier, 2006, alizados, que acabavam por torná-la impossí-
p. 72)10. vel de ser desejada concreta e individualmente,
na tela de Courbet essa nudez foi materializa-
Como se nota, a tela é definida pelo críti- da em seus mínimos detalhes, em sua – com
co pela negativa, por tudo aquilo que ela não o perdão da feia palavra – carnosidade. Como
representa, pelas ausências que a marcam, não afirma Michel Haddad,
sendo enunciado em nenhum momento qual é
o seu real sujeito: a nudez escancarada da mu- suprimindo com um traço genial o rosto desse
lher, composta como uma “espécie de Giocon- corpo, Courbet quebrou o efeito pornográfico
da com um sorriso vertical”11. para alcançar o universal do símbolo, reatando
Só que “A origem do mundo” não é apenas com o mesmo golpe com o gosto romântico
um nu: a ausência de um rosto o sublinha. Tra- pelo fragmento (Haddad apud Savatier, 2007,
ta-se, ao contrário, da representação daquilo p. 19)13.
que sempre esteve faltante das representações
do nu feminino para figurar uma mulher com- Com efeito, a pesquisa levada a cabo por
pleta: nada menos que seu sexo. Dessa forma, Savatier, para descobrir quem foi a modelo que
Courbet criou uma tela que passou a ocupar posou para a realização do quadro, chegou à
um lugar singular na história da arte ocidental conclusão de que a modelo mais provável não
por ter dessublimado um “esquecimento” mi- foi Jô Hifferman, de Jô, la belle irlandaise (“Jô,
lenar. Segundo Savatier, a bela irlandesa”), tela de Courbet também
pintada em 1866, como sustenta a versão ofi-
da estatuária grega à pintura do século XIX, nu- cial, nem a mulher morena que contracenava
merosos são os nus masculinos completos com com Jô em “As dorminhocas”, mas provavel-
seu sexo (pensemos no David de Michelangelo), mente uma fotografia erótica de uma mulher
com sua pilosidade natural. Essa especificidade qualquer, como aquelas realizadas por Auguste
a arte – ou melhor, as regras e as convenções – Belloc, o que reforça a possibilidade de com-
recusou sistematicamente à mulher, que se viu preensão da tela como uma espécie de “brasão
sempre paramentada com uma folha de vinha, universal do corpo feminino”14 (Savatier, 2006,
com um oportuno pedaço de tecido, com uma p. 12) – e a possibilidade por nós levantada de
mão judiciosamente colocada [...] ou com qual- uma influência vinda da literatura e das gravu-
quer outro artifício mais ou menos verossímel ras pornográficas em sua composição.
que, com um cuidado onipresente, apagavam Tendo dito isso, gostaríamos de aproveitar
todo traço de pilosidade, com exceção de algu- a frase de Haddad para tecer algumas conside-
mas raríssimas e tímidas tentativas. Quando o rações a respeito do romantismo de Courbet e
artista, por razões estéticas, se livrou do tapa- de sua presença em “A origem do mundo”. É
sexo, o resultado foi pior ainda: ele representava inescapável observar como as opções formais
o nada, a ausência do sexo, o não-sexo, o vazio feitas por Courbet no momento de compo-
[...], em outros termos, a negação da feminilida- sição do quadro remetem à preferência ro-
de (Savatier, 2006, p. 18)12. mântica pela representação da partes, e não
do todo. Ora, podemos dizer que assim como
Nesse sentido, se antes a nudez da mulher as célebres telas de Courbet dos anos 40 e 50,
não era sexualizada em razão de seus traços e que retratam cenas cotidianas da vida dos
de sua figura demasiadamente genéricos e ide- camponeses de sua região de origem, também

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em “A origem do mundo” Courbet retratou as especialmente ilustrativo desse paradoxo que


particularidades de uma região... uma região cerca a presença do fragmento na história da
do corpo da mulher, uma parte, um fragmen- Arte o seguinte trecho de seu texto:
to dele. Nesse sentido, podemos comparar
essa tela de Courbet com as telas do pintor Nas pinturas de Géricault de fragmentos anatô-
romântico francês Théodore Géricault, em es- micos – algumas pernas e braços, neste caso – a
pecial a Têtes coupées (“Cabeças cortadas”, de coerência do corpo é totalmente estilhaçada. Os
1818-19) e Étude de pieds et de main (“Estudo fragmentos dispersados são então reunidos pela
de pés e mão”, de 1817-1819). vontade do artista em arranjos ao mesmo tempo
Segundo Linda Nochlin, no interessan- elegantes e horríveis, dramaticamente isolados
te ensaio The body in pieces: the fragment as a pela sombra e com sua veracidade sensual [...]
metaphor for modernity (1994), é constante na intensificada pelo que parecem ser luzes de ve-
história da arte a representação de fragmen- las. O humor desses trabalhos combinam cho-
tos, os quais são em geral trabalhados em dois cantemente a objetividade da ciência – a fria e
sentidos principais: um, de cunho nostálgico, clínica observação da mesa de dissecação – com
calcado em um sentimento de perda de uma o paroxismo do melodrama romântic15 (No-
totalidade da arte e da vida que nunca mais chlin, 1994, p. 118).
será reconquistada; e outro, dotado de um
sentimento de emancipação da tradição e da Ora, não é difícil aplicar esse comentário à
autoridade do passado, e que constitui, por tela “A origem do mundo”: também ele retrata
assim dizer, uma condição para a liberdade ar- um fragmento de um corpo (decepado de seus
tística. Segundo Nochlin, esses dois sentidos braços, de suas pernas, de seu pescoço e de sua
podem ser encontrados de maneira exemplar cabeça, como o descreveu Du Camp), também
na produção artística de todo o período revo- ele provoca um efeito ao mesmo tempo sedu-
lucionário francês, bem como na postura dos tor e assustador a quem o olha. O enquadra-
artistas e da população em geral frente à arte mento que Courbet fez do corpo nessa tela não
durante esse período: segundo ela, a destrui- deixa de ter, assim, alguma semelhança com os
ção das obras de arte durante o período do fragmentos de membros decepados pintados
Terror foi vista tanto como um gesto de liber- por Géricault, de forma que seu erotismo e
tação e de renovação quanto como um gesto o choque que ele causa estão intrinsecamente
de barbárie pura e simples, como um atestado mesclados à repugnância – e, inversamente, à
do caráter “nefasto” da revolução. Esse du- atração – que sentimos pela visão de um corpo
plo sentido pode ser visto na iconografia da destrinchado. É interessante atentar também,
época, pelas representações realizadas da de- a respeito dessa semelhança, o quanto a forma
capitação dos nobres franceses levada a cabo adotada por Courbet para a composição “A ori-
pelos revolucionários: algumas, representam o gem do mundo” deve alguns de seus aspectos
ato de arrancar a cabeça do rei e dos nobres a uma visão científica do corpo que estava em
como um gesto libertador, ao passo que ou- voga. Como se sabe, a ciência médica estava
tras, como a comprovação do caráter regres- se desenvolvendo rapidamente nessa época, de-
sivo da revolução para a civilização. Seguindo senvolvimento que foi impulsionado em grande
esse raciocínio, a referida série de quadros do parte pela quebra do tabu religioso que proibia
pintor francês Théodore Géricault é bastan- a dissecação de corpo humano. Começava en-
te ilustrativa do argumento de Linda, sendo tão a se tornar comum na prática médica o de-

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“A Origem do Mundo” de Gustave Courbet: realismo e erotismo | 181

cepamento de membros e partes do corpo para que emana do escondido, do impenetrável, e


a realização de estudos, assim como começava também do vulnerável. O que está por detrás
a ser freqüente a realização de gravuras e dese- disto é um modo de experiência pan-erótico,
nhos detalhados dos órgãos para a composição que percebe na natureza uma criatura feminina
de manuais e enciclopédias que tinham como e, conseqüentemente, projeta a experiência da
fim incentivar o ensino da medicina. Dessa for- caverna e da gruta no corpo da mulher17 (Hof-
ma, possivelmente também um desses manuais mann apud Fried, 1990, p. 210).
deve ter auxiliado e influenciado Courbet em
sua composição. De fato, se comparamos “A origem do mun-
Há, contudo, um aspecto desconcertante do” a telas como as duas La source de la Loue
na obra de Courbet que impede que seu rea- (“A nascente do Loue”, de 1863 e de 1864), é
lismo seja tão facilmente inserido no contínuo patente como elas se estruturam a partir de um
de racionalidade e objetividade crescente que mesmo esquema de composição, podendo ser
constitui uma das linhas mestras de interpreta- reciprocamente traduzidas uma à outra.
ção da história ocidental e das transformações Esse aspecto aponta para aquele caráter
pelas quais ela passa. Segundo alguns autores, alegórico do Realismo de Courbet do qual de-
como Fried, Lindsay e Hofmann, as pinturas de mos breve notícia acima. Como àquela altura
Courbet que retratam mulheres nuas retomam dissemos, o Realismo de Courbet não busca
freqüentemente o mesmo esquema de com- uma descrição positiva da realidade, mas antes
posição que suas telas que retratam paisagens praticar uma investigação pela qual se obtenha
da natureza. Argumentando a respeito da tela e se proporcione uma nova experiência dela,
Femme avec chaussettes blanches (“Mulher com pela qual seja possível alcançar e justapor sig-
meias brancas”, de 1861), Lindsay diz que nificados que aparentemente estão distantes e
não têm nada a dizer a respeito um do outro
se olharmos sua estrutura e fizermos um esque- – como o próprio título da tela que estamos
ma dela, mantendo o essencial de sua compo- analisando indica. Nesse sentido, o Realismo
sição, mas transformando as partes humanas de Courbet transmuta-se em um verdadeiro
em rochas e em arbustos, nós chegamos à uma simbolismo, que impossibilita uma interpreta-
típica landscape, bem ao tipo daquelas que pro- ção de sua obra em termos unicamente racio-
fundamente interessavam Courbet – a vagina nalistas e desencantados. Ainda que boa parte
formando a entrada de cavernas e grutas (...), dela de fato adira ao projeto de desencanta-
que são recorrentes em suas telas. Vale à pena mento do mundo – que é o que faz dela uma
fazer esse exercício, porque nos ajuda a ver obra moderna e política, no sentido amplo dos
como ele criou o sólido padrão do corpo pre- dois termos, sobretudo se lembrarmos da in-
sente nessa tela, e como um certo simbolismo terpretação que T. J. Clark (Clark, 2006) faz da
estava presente em muitos de suas landscapes16 tela de Jacques-Louis David La mort de Marrat
(Lindsay apud Fried, 1990, p. 209). (“A morte de Marrat”, de 1793) –, tal adesão
preserva em si uma certa ambivalência. Como
ao que é acompanhada por Hofmann, que sugere Hofmann, na obra de Courbet encon-
afirma que tra-se presente uma experiência pan-erótica do
mundo, experiência que, se remetermos à tese
o que sempre atrai os olhos de Courbet para as weberiana do “desencantamento do mundo” e
cavernas e grutas é a fascinação que ele tem pelo ao seu corolário – a deserotização do mundo –,

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não corresponde à experiência erótica propria- cial e da sexualidade que se construiu, segundo
mente moderna, na qual o erotismo foi “elevado Foucault, a partir do século XIX, colaborando,
à esfera do gozo consciente” e passou a se or- dessa forma, para o processo de disciplinari-
ganizar sobre a individualidade e a vida íntima zação dos corpos que se iniciou naquele mo-
dos homens. Ao contrário, a experiência pan- mento a partir das fábricas, das cadeias e dos
erótica de Courbet parece corresponder àquilo hospitais, a tensão simbólica que ele comporta
que Weber denominou “o naturalismo sóbrio em si possibilitou a Courbet forjar uma corpo-
camponês” (Weber, 1974, p. 394), experiência ralidade própria em suas telas, que o permitiu
erótica que não tem como suporte uma corpo- escapar a esse mesmo mecanismo de que fazia
ralidade bem definida e concentrada, realizan- parte – e a desafiá-lo de dentro. A exemplo da
do-se antes de maneira expansiva, por meio de “Olímpia” de Manet, portanto, “A origem do
uma livre relação entre sujeito e mundo. mundo” também representou um abalo nas
É curioso notar, assim, como “A origem formas de representação e de categorização da
do mundo”, que de certa forma pode ser lida vida social, ainda que tal argumento mereça
como precursora daquilo que, no século XX, ainda certas considerações para se sustentar.
viria a ser chamado de “pornografia”, preser-
va em si uma ambigüidade que a desloca desse 7. Acontece que a tela de Courbet per-
posto, na medida em que deixa entrever um maneceu clandestina por grande parte de sua
tipo de experiência do corpo e da sexualidade vida. Desde a casa de seu primeiro proprie-
que se distancia daquela possível no mundo tário, Khalil-Bey, onde ficava pendurada na
contemporâneo. Como se sabe, a pornografia salle de bain e encoberta por um pequeno
que se desenvolveu no século XX fez uso de véu, passando pelo período em que se tornou
aspectos e modos de representação que muito parte do espólio de guerra da União Soviética
devem ao Realismo de Courbet: uma de suas – que, quando invadiu a Hungria, a retirou
marcas constitui, inegavelmente, a obsessão de seu novo proprietário – e foi tida como
pela representação a mais realista e objetiva desaparecida, até o momento em que chegou
possível do sexo dos homens e, sobretudo, das às mãos de seu mais célebre possuidor, o psi-
mulheres, pela qual ela o aparta do restante do canalista francês Jacques Lacan, e permane-
corpo – por efeitos de zoom e outras técnicas de ceu escondida, em sua casa de campo, sob a
câmera – e o constrói como a materialização do tela do pintor surrealista André Masson Terre
interesse sexual, como local onde habita todo érotique (“Terra erótica”, de 1954), a existên-
desejo sexual e as sua possibilidades de consu- cia dessa tela foi marcada ora pela clandesti-
mação e satisfação. nidade, ora pelo impacto que provocava nas
Ora, mas como vimos acima, ainda que a poucas pessoas que tiveram a chance de vê-la
obra de Courbet, juntamente com a de outros antes de sua entrada no patrimônio cultu-
artistas de seu tempo, desempenhe um papel ral francês e sua exposição permanente no
crucial na produção da sexualidade moderna – Museu D’Orsay, em Paris. Essa condição a
constituindo-se como mais um propulsor das impediu, desde o momento de sua produção
espirais de saber e poder que cercaram o corpo (1866), de ser vista pelo grande público e de
no século XIX –, ela se constitui, ao mesmo exercer sobre o conjunto da vida ideológica e
tempo, como um momento de resistência. Se o dos discursos sociais de sua época o impacto
seu realismo pôde atuar como uma peça a mais que exercia sobre observadores individuais.
do vasto mecanismo de visualização da vida so- Manifestando sua existência apenas por meio

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“A Origem do Mundo” de Gustave Courbet: realismo e erotismo | 183

de segredos, rumores, informações cruzadas e and juridical knowledge that in the 18th and 19th
falsificações, “A origem do mundo” não ocu- centuries have articulated and produced a scien-
pou o lugar no campo de representações de ce about sexuality, which deeply reorganized the
seu tempo da forma como, em um exercício ways through which it should be enunciated and,
imaginativo, poderíamos suspeitar que ela especially, visualized in the modern societies.
possivelmente teria ocupado. Ainda assim, keywords Courbet. Realism. Erotism. Fou-
como tal ausência se deve à sua própria na- cault.
tureza interna, e não a um esquecimento ba-
nal ou uma injustiça histórica qualquer – seu
anonimato tendo sido estratégica e delibera- Notas
damente mantido ao longo dos anos por seus
sucessivos proprietários –, acreditamos que 1
Para o leitor interessado em aprofundar a discussão a
mesmo do fundo de seu considerável silêncio respeito do desenvolvimento do nu em diferentes tra-
dições artísticas – o que não constitui a preocupação
ela tenha participado da economia visual do
central do presente artigo -, conferir a interessante
século XIX e XX, repercutindo subterranea- comparação estabelecida pelo filósofo e sinólogo fran-
mente sobre ela. Isso porque o interdito que cês François Jullien entre as condições metafísicas de
a cercou é função da sociedade e da arte de possibilidade do nu na arte européia e, inversamente,
seu tempo e do equilíbrio das categorias que as condições de impossibilidade de desenvolvimento
as constituíam naquele momento, de forma deste gênero de pintura na cultura chinesa. Cf. De
l’essence ou du nu. Paris: Éditions du Seuil, 2000.
que inevitavelmente “A origem do mundo”
2
Reproduções gráficas de todas as telas ou esculturas
diz algo sobre elas.
citadas neste artigo podem ser encontradas facilmen-
te na internet, pelo portal de busca Google. Para o
leitor que não tem acesso à internet, encontram-se
“The origin of the world” by Gustave Cour- listados, na bibliografia ao final, catálogos onde é pos-
bet: realism and erotism sível encontrar reproduções de algumas delas.
3
A tradução desse trecho e de todos os seguintes é mi-
abstract This article aims to analyse the nha. No original, “against the grain of their ostensible
painting L’origine du monde (“The origin of the content”. In: FRIED, M. Courbet’s realism. Chicago:
The university of Chicago Press, 1990. p. 3.
world”) by the master of realism Gustave Cour-
4
No original, “certainly the painter who most embo-
bet (1819-1877), setting connections with his
dies the dual implications – both artistically and po-
social and artistic context. Realized in a privile- litically progressive – of the original usage of the term
ged moment in the history of Western art and ‘avant-garde’ is Gustave Courbet and his militantly
society, when they were being distangled from radical Realism, ‘Realism’”, Courbet declared fatly, ‘is
their traditional forms, “The origin of the world” democracy in art’. He saw his destiny as a continual
(1866) expresses the innovative character of its vanguard action against the forces of academicism in
art and conservantism in society. Far from being an
time through the originality of both its form and
abstract treatise on the latest social ideas it is a concre-
theme: in this painting, realism and sexuality oc- te emblem of what the making of art and the nature
cupy the center of the artistic representation. The of society are to the realistic artist. It is through Cour-
innovation realised by Courbet’s oeuvre is develo- bet (...) that all the figures partake of the life of this
pped here as an important piece of the formation pictorial world, and all are related to his direct expe-
process of what Foucault named “the sexuality rience; they are not traditional juiceless abstractions
like Thruth or Immortality, nor are they generalized
gadget”. It is argued here that a pictorial or vi-
platitudes like the Spirit of Electricity or the Nike of
sual knowledge joined the medical, educational Telegraph; it is, on the contrary, their concreteness

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


184 | Ian Packer

wich gives them credibility and conviction (...) and XIX siècle, nombreux sont les nus masculins complets
wich, in addiction, ties them indissolubly to a parti- de leurs sexe (songeons au David de Michel-Angel),
cular moment in history” (Nochlin, 1989, p. 12). de leur pilosité naturelle. Cette spécificité, l’art – ou
5
No original, “la satire des abominations de son plutôt les règles et les conventions – la refusa systéma-
temps” (Savatier, 2006, p. 34). tiquement à la femme qui se vit tour à tour affublée
d’une feuille de vigne, du drapé opportun d’un tis-
6
Em interessante artigo, Petra Ten-Doesschate Chu
su, d’une main judicieusement posée (...) ou de tout
comenta, por exemplo, como Proudhon tinha uma
autre artifice plus ou moins vraisemblable avec un
concepção da família como embrião da “sociedade do
souci omniprésent de gommer tout trace de pilosité,
futuro”, visão da qual se desprende uma divisão sexual
à l’exception de raríssimes et timides tentatives (...).
do trabalho que reserva à mulher as tarefas domésticas
Lorsque l’artiste, pour des raisons esthétiques, dût
e ao homem as tarefas históricas. Segundo ela, foi essa
s’affranchir de cache-sexe, le résultat fut pire encore:
visão de mundo que Courbet procurou representar
il representa le rien, l’absence de sexe, le non-sexe, le
no retrato que fez do amigo como uma homenagem
vide (...), en d’autres termes, la négation de la fémini-
póstuma. Ora, as diversas telas de Courbet em que
té” (Savatier, 2006, p. 18).
figuram mulheres nuas e seminuas não parecem de
forma alguma querer atacar as mulheres “devassas”,
13
No original, “en supprimant d’un trait génial le visa-
antíteses da figura feminina idealizada por Proudhon, ge de ce corps, Courbet a brisé l’effet pornographique
mas antes apresentá-las sob um outro ponto de vis- pour atteindre à l’universel du symbole, renouant du
ta. Cf. Gustave Courbet’s Venus and Psyche: Uneasy même coup avec le goût romantique pour le frag-
Nudity in Second-Empire France, 1992. In: JStore. ment” (Savatier, 2006, p. 19).
7
No original, “Or, Proudhon mourut en 1865 et la
14
No original, “bláson univérsel du corps féminin” (Sa-
concordance des date ouvre une perspective: sa mort vatier, 2006, p. 12).
aurait pu, en quelque sorte, affranchir Courbet d’un 15
No original, “In Géricault’s paintings of anatomical
chaperonnage encombrant et pudibond” (Savatier, fragments – severed arms and legs, in this case – the
2006, p. 68). coherence of the body is totally shatered. He dipersed
8
O nome dessa tela foi freqüentemente traduzido fragments are then reconjoined at the will of the artist
para o português como “O sono”. Preferimos aqui, in arrangements both horrific and elegant, dramati-
no entanto, optar por uma tradução literal do título, cally isolated by shadow, their sensual veracity both as
referindo-nos a ela como “As dorminhocas”. individual elements and as asthetic construction in-
tensified by what seems like candlelight spotlighting.
9
Algumas dessas gravuras podem ser vistas no livro or-
The mood of these works shockingly combines the
ganizado por Hunt (1999).
objetivity of the science – the cool, clinical obser-
10
No original, “Lorsqu’on écartait la voile, on demeu- vation of the dissecting table – with the paroxism
rait stupéfait d’apercevoir une femme de grandeur of romantic melodrama” (Nochlin, 1994. p. 119).
naturelle, vue de face, émue et convulsée, remar- Ainda segundo a autora, “art historians like myself,
quablement peinte, reproduite con amore, ainsi qui wrapped up in the nineteenth century and in gender
disent les italiens, et donnant lê premier mot du réa- teory, have a tendency to forget that the human body
lisme. Mais, par un inconcevable oubli, l`artisan qui is not just objet o desire, but the site of suffering, pain
avait copié son modele d’après la nature, avait negligé and death, a lesson that scholars of older art, with its
de presenter les pieds, les jambes, les cuisses, le ventre, insistent iconography of martyrs and victims, of the
les hanches, la poitrine, les mains, le brás, les épaules, damned suffering in hell and the blesses sufering on
le cou et la tête” (Marcel Du Camp apud Savatier, erth, can never ignore”. Idem. p. 118.
2006, p. 72). 16
No original, “if we look its structure and make a ske-
11
Como disse o crítico de arte Gérard Lefort a respeito tch, keeping the essencial layout but transforming
da tela, em recente exposição sobre a obra de Cour- the human section into rocks, tree clumps and the
bet organizada no Grand Palais de Paris. Matéria da like, we arrive at a typical landscape of the kind that
Folha de São Paulo, caderno “Ilustrada”, dia 31 de deeply stirred Courbet – the vagina forming the cave
outubro de 2007. entry, the water grotto, wich recurs in his scenes. The
12
No original, “de la statuaire grecque à la peinture du point is worth making because it helps us to see how

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


“A Origem do Mundo” de Gustave Courbet: realismo e erotismo | 185

he created the wonderfully compact pattern of the HUNT, Lynn. A pornografia e Revolução Francesa. In:
body here, and how a certain symbolism was present HUNT, Lynn (Org.). A invenção da pornografia: Obs-
in many of the landscapes (...)” (Fried, 1990, p. 209- cenidade e as origens da modernidade, 1500-1800. Tra-
210). dução de Carlos Szlak. São Paulo: Hedra, 1999. 371p.
17
No original, “what again and again draws Courbet’s JACOB, Margareth. O mundo materialista da porno-
eyes into caves, crevices, and grottoes is the fascina- grafia. In: HUNT, Lynn (Org.). A invenção da por-
tion that emanates from the hidden, the impenetra- nografia: Obscenidade e as origens da modernidade,
ble, but also the longing for security. What is behind 1500-1800. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: He-
this is a panerotic mode of experience that perceives dra, 1999. 371p.
in nature a female creature and consequently projects JULLIEN, François. De l’essence ou du nu. Paris: Éditions
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cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


186 | Ian Packer

Agradecimentos (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP)


no segundo semestre de 2007, foi de funda-
Agradeço à Lilia Moritz Schwarcz pelo in- mental importância para o amadurecimento
centivo à elaboração deste artigo. A disciplina das questões que levaram à produção deste tex-
“Lendo imagens”, ministrada por ela na Facul- to, bem como para a orientação dos meus inte-
dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas resses de pesquisa para a área de Estética.

autor Ian Packer


Bacharel em Ciências Sociais/USP

Recebido em 31/03/2008
Aceito para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


artes da vida
Tepteré : Festa dos peixes e da lontra entre os Krahô1
Júlio César Borges

O rito retratado neste ensaio, Tepteré, foi et- Notas


nografado durante trabalho de campo realiza- 1. Os Krahô – ou mehim, como se autodefinem – vivem
do em 2007 para elaboração da minha tese de na Terra Indígena Krahô, a maior área de Cerrado
contínuo do Brasil (3200 km2), no nordeste do es-
doutorado junto ao Departamento de Antro-
tado do Tocantins. São falantes de uma variante da
pologia da Universidade de Brasília. O Tepteré família lingüística Jê que, junto com outros aspectos
– “Festa dos Peixes e da Lontra” – ocorreu du- socioculturais, faz parte da configuração conhecida
rante a Feira de Sementes do Povo Krahô, no como Timbira, da qual fazem parte ainda os Canela-
último mês de novembro, na sede da associa- Ramkokamekrá (Maranhão), os Canela-Apaniekrá
ção União das Aldeias Krahô, Kàpej. Fundada (Maranhão), os Krikati (Maranhão), os Pïkobyê (Ma-
ranhão), os Gaviões (Pará) e os Apinayé (Tocantins).
em 1993, a Kàpej representa o povo Krahô no
Além da cosmologia de tipo dualista (Melatti, 1973;
seu esforço coletivo de dominar a linguagem Maybury-Lewis, 1979), outras características dos
dos “projetos” como estratégia de produção e sistemas Jê-Timbira são a organização social baseada
reprodução da sua “forma Timbira” (Azanha, em pares de metades cerimoniais, a vida em aldeias
1984). É por meio dos “projetos” que muitos circulares, o corte de cabelo, as corrida de toras e a
dos rituais (amijekin) centrais para a continui- realização de festas (amjiekin) ao longo de todo o ano
nas quais os cantos estão entre os elementos centrais.
dade do “movimento” do mundo (social e bio-
Sua população, de cerca de 2300 pessoas, está distri-
físico) encontram sua viabilidade2. buída em 21 aldeias.
Conta o mito que a festa de Tepteré foi in- 2. Nesse contexto é que foi performado o rito de Tepteré,
troduzida entre os Krahô depois que um velho em 2007. A Feira de Sementes foi formatada enquan-
dela tomou conhecimento junto aos peixes, no to “projeto” elaborado pela ONG Cavaleiros de Jorge
fundo de um rio. Na volta à aldeia, ele ensi- (Goiás) em “parceria” com os caciques (pahis) das 21
aldeias ligadas à Kàpej. Contou com apoio institucio-
nou a seu povo tudo o que viu e ouviu entre
nal e financeiro da Administração Executiva Regional
os seres subaquáticos. Para realização da festa, da FUNAI (AER Araguaína - TO), EMBRAPA e Pe-
os homens se dividem nas metades cerimoniais trobrás.
Tep (Peixes) e Teré (Lontra); no nascente e no 3. Cf. Nimuendajú (1946, p. 225-30), Melatti (1978, p.
poente, correm com toras. A paisagem sonora é 255-66) e Paes (2004, p. 267-307) para maiores deta-
produzida pelos cantos dos Peixes e da Lontra, lhes sobre o mito e as máscaras Kokrit e para uma des-
mas também pelos m~ ekreré – categoria genérica crição pormenorizada dos ritos em que elas aparecem.

de cantos entoados seja na praça da aldeia, seja


na “rua” circular ou nos caminhos radiais. A
Garça (Kapri) apresenta-se como adversária da Referências bibliográficas
Lontra. Os seres Kokrit fazem sua aparição no
AZANHA, Gilberto. A forma Timbira: estrutura e re-
encerramento do rito, sob a forma de máscaras sistência. 1984, 143 f. Dissertação (Mestrado em
de palha de buriti3. Antropologia Social), Departamento de Ciências So-
Tais são os aspectos vividos no rito que, ciais, FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo.
capturados pela minha câmera, aqui apresento 1984.
para apreciação visual aos leitores da Cadernos MAYBURY-LEWIS, David. (Org.) Dialectical Societies:
the Gê and Bororo of Central Brazil. Cambridge:
de Campo.
Harvard University Press, 1979. 340 p.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


190 | Júlio César Borges

MELATTI, Julio Cezar. O sistema de parentesco dos ín- NIMUENDAJÚ, Curt. The Eastern Timbira. Berkeley, Los
dios Krahô. Série Antropologia (Trabalhos de Ciências Angeles: University of California Press, 1946. 357 p.
Sociais). Brasília: Departamento de Ciências Sociais, PAES, Francisco Simões. Rastros do espírito: fragmentos
Universidade de Brasília, n. 3, 1973. 29 p. para leitura de algumas fotografias dos Ramkokamekrá
__________________. Ritos de uma Tribo Timbira. São por Curt Nimuendajú. Revista de Antropologia da
Paulo: Ática, 1978. 364 p. USP, São Paulo, vol. 47, n. 01, 2004, pg. 267–307.

autor Júlio César Borges


Doutorando em Antropologia Social / UNB

Recebido em 20/03/2008
Aceito para publicação em 06/08/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 189-194, 2008


Artes da Vida | 191

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192 | Júlio César Borges

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Artes da Vida | 193

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194 | Júlio César Borges

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entrevista
Entrevista com Koichi Mori (森 幸一)
André-Kees de Moraes Schouten, Camila Aya Ischida,
entrevistadores:
Enrico Spaggiari, Giovanni Cirino, Rodrigo Gomes Lobo

Professor do Departamento de Letras Orien- fletindo sobre temas centrais de seu trabalho. Seus
tais (área de Língua e Literatura Japonesa) da interesses de pesquisa abarcam, além do xamanis-
Universidade de São Paulo, Koichi Mori não mo okinawano e da imigração japonesa, temas
só é um nome importante da antropologia ja- como globalização e transculturalismo; criação de
ponesa contemporânea, mas também uma re- cultura étnica no bairro da Liberdade; e forma-
ferência importante para os debates teóricos e ção de culturas híbridas. Discorre, também, sobre
epistemológicos sobre aspectos da imigração ja- aspectos do desenvolvimento da antropologia ja-
ponesa no Brasil, cujo centenário foi comemo- ponesa, assim como dos raros diálogos entre esta
rado neste ano de 2008. Porém, o centenário e a antropologia brasileira. Não poderia faltar,
não foi o mote da entrevista. Como será possível por fim, alguns comentários sobre o centenário da
ao leitor perceber, travou-se uma conversa sobre imigração japonesa no Brasil.
Antropologia(s).
Koichi Mori fez seus primeiros trabalhos de Cadernos de Campo: Para começar, gostaríamos
campo em comunidades e aldeias rurais no Ja- de ouvir o senhor falar um pouco sobre sua for-
pão, pautado principalmente pelos estudos de mação acadêmica no Japão. O senhor iniciou a
comunidade. A partir dos anos 1980, radicou- graduação na Ciência Política e aos poucos foi se
se no Brasil. Sob os auspícios do proferssor Hi- aproximando da Antropologia?
roshi Saito, da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo (ECA/USP), fez Koichi Mori: Formalmente, graduei-me em
o mestrado e participou de projetos de pesquisa Ciência Política, mas, na verdade, estudei So-
pioneiros aqui desenvolvidos durante os anos 80. ciologia e Antropologia. Naquela época, aliás,
Valorizando fortemente a dimensão etnográfica, o curso não se chamava Antropologia, mas,
realizou pesquisa de campo sobre comunidades Sociologia Comparativa. Líamos textos de
nikkeis no Brasil. No doutorado, pesquisou o Morgan, Frazer, Tylor, Radcliffe-Brown, Mali-
processo de xamanização das mulheres okina- nowski , Fortes, Firth, Evans-Pritchard, Kroe-
wanas a partir de uma perspectiva metodológica ber, Benedict, Murdock, Keesing, Kluckhohn,
multilocal: no Brasil e em Okinawa. Mais re- Mead, Needham, Turner, Leach etc., autores
centemente, seu interesse voltou-se para o tema já, à época, considerados clássicos, além de Lé-
do transnacionalismo. vi-Strauss, Geertz e outros trabalhos feitos por
Nessa entrevista, realizada nas dependências antropólogos e sociólogos japoneses. O meu
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu- orientador na graduação era um especialista em
manas da Universidade de São Paulo (FFLCH/ Radcliffe-Brown: líamos, então, muito sobre a
USP), em outubro de 2008, Koichi Mori narra questão da estrutura, parentesco, etc., depois do
um pouco sobre sua vida pessoal e profissional. Em que saíamos para pesquisas de campo. Naquela
prazeroso bate-papo, ele rememora aqui sua traje- época, o Japão não era tão abastado como hoje
tória acadêmica e sua experiência etnográfica, re- e, portanto, não havia recursos para fazermos

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


198 | Entrevista com Koichi Mori

pesquisas de campo fora do país e, por isso, os


nossos trabalhos eram desenvolvidos no Japão
mesmo, em especial em vilas e aldeias rurais,
onde desenvolvíamos estudo de comunidade.
Na verdade, devo dizer que, na época, no Ja-
pão, a divisão entre Antropologia e Sociologia
não era muito clara. Fazíamos pesquisas de
campo, na sua verdadeira acepção da palavra,
aplicando questionários, entrevistas, observa-
ções participantes, permanecendo no local por
dois ou três meses. Estive em várias aldeias e vi- me chamou para participar desse novo projeto,
las japonesas. Assim que ingressei no mestrado, mas faleceu repentinamente e o projeto acabou
meu orientador convidou-me para participar não vingando. Mas como eu já tinha me pre-
de um projeto sobre mudança cultural e imi- parado para vir ao Brasil, pedi para o professor
gração japonesa no Brasil, pois ele já tinha tido Saito me aceitar como bolsista da USP, com o
a experiência de fazer pesquisa de campo no que ele concordou e, então, eu vim para cá.
Brasil, na década de 50. Ele foi orientado por
Seiichi Izumi, o primeiro antropólogo japonês CC: Portanto, os seus primeiros contatos na USP
a vir para o Brasil, naquela época, para pesqui- para o doutorado iniciaram-se na ECA (Escola de
sar o processo de assimilação dos japoneses no Comunicações e Artes) na década de 1980?
Brasil: professor Izumi, que era da Universida-
de de Tóquio, organizou, entre 1954 e 1956, KM: Sim, com o professor Saito, como men-
um grupo de jovens sociólogos e antropólogos cionado. Na época, ele também fazia parte do
e veio ao Brasil para fazer pesquisa de campo Centro de Estudos Nipo-Brasileiros. O Centro
em várias comunidades nikkeis em Belém do tinha sido fundado por imigrantes japoneses
Pará, São Paulo, Paraná e Bahia. O grupo pes- intelectuais no bairro da Liberdade. Realizou
quisou temas como o processo de formação da várias pesquisas de campo sobre migrações, co-
comunidade étnica japonesa e de assimilação munidade e história da imigração japonesa no
dos japoneses. A título de curiosidade, gostaria Brasil. O professor Saito era o seu diretor de pes-
de citar que dois jovens pesquisadores nikkeis quisa. De maneira que eu fazia parte tanto da
participaram desse projeto: o professor Hiroshi ECA como do Centro e foi assim que comecei
Saito, da ECA/USP (antes, ele tinha passado as minhas pesquisas de campo sobre as comuni-
pela Escola Livre de Sociologia e Política, ain- dades nikkeis no Brasil. Na verdade, agora estou
da no casarão) e a professora Nobue Miyazaki, rememorando, não vim ao Brasil no final da dé-
especialista em índio xavante (segunda doutora cada de 1980. O ano de 1983 foi o primeiro
da Universidade de Tóquio). O projeto foi o ano da minha estada no Brasil. Naquela época, o
primeiro montado por japoneses do Japão so- professor Oracy Nogueira já se encontrava apo-
bre a questão da imigração japonesa no Brasil e sentado, mas foi muito gentil comigo e me dava
o meu orientador estava lá. Depois de 30 anos, aulas particulares em sua sala. Ele falava bastan-
por volta de 1983 e 1984, ele quis fazer uma te sobre a sua vida acadêmica e suas obras, sua
pesquisa de follow up da primeira, sobre as mu- monografia sobre comunidades rurais, etc. Ensi-
danças culturais pelas quais a população imi- nou-me todas essas coisas, quer dizer, na verdade,
grante no Brasil havia passado no período. Ele quase nada, mas ao mesmo tempo tudo, ele me

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 197-212, 2008


Entrevista com Koichi Mori | 199

ensinou tudo e nada. Mais tarde, eu cruzei com nal Cooperation Agency, órgão governamental
o professor Florestan Fernandes, que me con- japonês, tinha criado um novo sistema de bolsa
vidou para ir a casa dele, onde conversávamos para países em desenvolvimento, inclusive o
sobre a sua tese de doutorado – Função social Brasil. Soube dessa bolsa, retornei ao Japão e
da guerra na sociedade Tupinambá (1951). Ele passei pelo processo seletivo. Fui aprovado e
me presenteou com a edição original do livro. enviado como bolsista da JICA para o Brasil,
Além da ECA e do Centro de Estudos Nipo- que foi a minha terceira temporada no Brasil.
Brasileiros, eu também freqüentava as Ciências Nessa terceira estada, tive o privilégio de co-
Sociais, como ouvinte. ordenar o censo da população de nikkeis re-
sidentes no Brasil, uma experiência bastante
CC: Quem eram os professores? rica. Isso nos anos de 1988 e 1989. Durante
essa estada no Brasil, como bolsista do JICA,
KM: Meu contato era o professor Sedi Hi- tentei ingressar no curso de pós-graduação da
rano, que, naquela época, ainda era assistente Unicamp, pois queria atualizar os meus conhe-
do professor Florestan Fernandes. Ele entrara cimentos antropológicos. Consegui ingressar
como assistente do professor Florestan, no lu- como aluno regular no programa de pós-gra-
gar do professor Fernando Henrique Cardoso. duação em Antropologia Social da Unicamp.
Dos outros professores não me lembro mais... Na época, morava em Pinheiros, então, duas
ou três vezes por semana pegava ônibus para ir
CC: Com o Oracy Nogueira havia, então, um para Campinas. Tive aula, por exemplo, com
contato informal? o professor Carlos Rodrigues Brandão e as
professoras Mariza Correia e Tereza Caldeira.
KM: Isso mesmo, informal, aliás, na verda- Primeiro, estudei Antropologia Pós-Moderna
de, tudo começou porque a filha dele era casa- com a professora Teresa e também com o soci-
da com um japonês da segunda geração, nissei, ólogo Renato Ortiz. Tive, ainda, contato com
cuja família morava em Botucatu. Professor a professora Ruth Cardoso, numa palestra que
Oracy, inclusive, convidou-me para passar as ela nos concedeu sobre a sua pesquisa sobre ja-
férias na casa do genro dele lá, então, era uma poneses no Brasil. Estudei lá por dois anos e
relação totalmente informal. Deixe-me falar meio como bolsista do CNPq, mas acabei não
um pouco mais sobre os acadêmicos com quem concluindo nada, uma vergonha, não? (risos)
cruzei nessa época no Brasil. Após ter tido con-
tato com os professores Hiroshi Saito, Sedi Hi- CC: Em que medida esses contatos, quando fru-
rano, Oracy Nogueira e Florestan Fernandes, tificaram uma amizade, ajudaram na inserção
retornei ao Japão, fiquei lá por alguns meses aqui, no campo, mas mesmo das questões que
e voltei para cá como pesquisador-visitante do iam sendo tratadas aqui, na comunidade mesmo,
Museu Paulista da USP, a convite da profes- para a sua pesquisa posterior. Isso foi importante?
sora Nobue Miyasaki. Sendo que continuava Quais laços de amizade foram te introduzindo
a fazer parte do já citado Centro de Estudos aqui no meio intelectual, quem sabe também na
Nipo-Brasileiros. Passava metade do tempo no comunidade nikkei?
Museu Paulista e metade no Centro de Estu-
dos Nipo-Brasileiros, isso por um ano e meio, KM: Esses contatos foram, sem dúvida, ex-
aproximadamente. Durante essa minha segun- tremamente importantes. Se bem que, na ver-
da estada no Brasil, a JICA, Japan Internatio- dade, devo confessar que meus contatos com os

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200 | Entrevista com Koichi Mori

intelectuais brasileiros têm sido relativamente eles chegam ao Brasil, saímos juntos para to-
superficiais. Porque, até agora, vim me esfor- marmos chopp no bar, no botequim. Batemos
çando mais em manter relações mais estreitas papo, trocamos idéias, mas são idéias acadêmi-
com pesquisadores japoneses para, futuramen- cas... Não é só jogar conversa fora! As conversas
te, utilizando esses laços pessoais, enviar meus giram em torno de: “Tenho este tipo de idéia,
alunos da USP para o Japão. Mas, certamente, o que você acha?” e assim vai, o que torna as
preciso tentar desenvolver laços mais chegados discussões bem interessantes. Depois, normal-
também com os pesquisadores/intelectuais mente tentamos montar projetos em cima das
brasileiros. Digo isso porque isso seria bacana idéias surgidas durante esses bate-papos. Mas
também para muitos antropólogos japoneses, os momentos de bate-papo e troca de idéias são
que têm intenções de desenvolver suas pesqui- os mais gostosos. Projeto em si é algo meio cha-
sas aqui no Brasil. Ademais, há também muitos to (risos). Sinto falta desse tipo de coisa aqui na
estudantes japoneses que também costumam USP. Aqui na nossa casa. Todo mundo faz as
entrar em contato comigo, atrás de contatos. suas pesquisas em separado, isoladamente... É
Mas, na maioria das vezes, acho difícil fazer um dos descontentamentos meus em relação à
esse tipo de contato aqui no Brasil, com outros estrutura da Casa de Cultura...
professores, pois é difícil começar ou manter
laços de amizade com eles. Networking no Bra- CC: No doutorado, o senhor enfoca a imigração
sil não é fácil! Acabei de ser admitido na USP, okinawana no Brasil. Como surge esse interesse
há pouco, em 2003. Só se passaram cinco anos dentro do conjunto dos nikkeis?
desde então. Só agora estou conseguindo abor-
dar pesquisadores/intelectuais brasileiros. Foi KM: Estava pesquisando sobre o proces-
com essa intenção que convidei vários profes- so de xamanização de mulheres okinawanas,
sores da USP para participarem em um Sim- quando encontrei-me por acaso, na Unicamp,
pósio Nipo-Brasileiro, realizado em agosto do com um professor de Psicologia, cuja especiali-
ano passado. Professores da área de Pedagogia, dade era xamanismo okinawano, do ponto de
História Social, Antropologia, Psicologia, etc. vista da Psicologia Social: o professor Hideshi
Além disso, comprometi-me com eles de que os Ohashi, da Universidade de Tohoku, que fica
levaria para o Japão. Missão cumprida! É o co- na cidade de Sendai, no Japão. Ele me contra-
meço da minha tentativa de fazer amizade com tou como assistente da pesquisa dele. Acima de
os brasileiros... Quando eu estava na Unicamp, tudo, ensinou-me a importância de se realizar
sempre batia papo com o professor Otávio Ian- uma pesquisa sobre a comunidade okinawana
ni, que pegava o mesmo ônibus que eu. Ficá- no Brasil, na qualidade de uma minoria dentro
vamos conversando no ônibus. Eram conversas da minoria. Durante o processo dessa pesquisa
interessantes, nada acadêmicas, totalmente in- de campo para a qual ele me contratou, desco-
formais. Nessas conversas, Otávio Ianni dizia- bri a presença de mulheres okinawanas xamãs.
me: “para entender melhor as coisas, você tem E fui atrás delas. Elas tinham imigrado para o
que ler Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., etc.”. Brasil e se tornado xamãs aqui. Como, então,
Fui influenciado de várias maneiras por ele. tinham-se tornado xamãs okinawanas, “étni-
Por outro lado, acho importante andar com c�����������������������������������������
o����������������������������������������
s”? O tema, para mim, é de extremo inte-
pessoas da mesma geração, da mesma idade. resse, pois se trata da formação de uma cultura
Tenho muitos amigos norte-americanos da mi- híbrida no Brasil, ligada à questão da identida-
nha idade, que são brasilianistas. Sempre que de étnica okinawana e também de mudanças

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Entrevista com Koichi Mori | 201

culturais. Assim, comecei a fazer uma série de


entrevistas com diversas delas. O interessante é
que na época em que surgiu a primeira xamã
okinawana no Brasil, na década de 50, não
havia outras xamãs que a tivessem antecedido.
Como, então, a primeira xamã okinawana ti-
nha conseguido se transformar em uma [xamã
okinawana]? O inusitado é que ela tinha pro-
curado uma casa de umbanda, para abrir espi-
ritualmente o seu caminho. A primeira xamã
okinawana tinha problemas de saúde, tanto físi-
ca como mental, além de problemas de família, o contrário. Ela modificou algo já nacionali-
etc., mas não tinha conseguido solucioná-los zado em algo etnizado. Dei o nome de ama-
dentro da medicina moderna nem do contexto relamento de religiões tradicionais brasileiras
cultural okinawano a que pertencia e, então, de possessão ao processo por ela desenvolvido.
fez a opção de resolvê-los dentro da umbanda. O que é extremamente interessante. Mais: ela
Sua família levou-a para um terreiro e um dia resolveu introduzir ao seu processo de xamani-
ela recebeu o espírito do preto velho e de outro, zação deuses japoneses, isto é, deuses xintoístas
um antepassado okinawano. Assim ela abriu o e budistas, além de espíritos de seus antepassa-
seu caminho. Ela começou a trabalhar como dos okinawanos (que são considerados como
mãe-de-santo nessa casa de umbanda. Coinci- deuses no culto aos antepassados, que é própria
dentemente, naquela época havia sido iniciada religião na sociedade okinawana). Dessa forma,
uma reestruturação na comunidade okinawana ela modificou a cosmologia brasileira para uma
urbana de São Paulo e a notícia de que ela tinha cosmologia, digamos, nipo-okinawano-brasi-
se tornado uma xamã okinawana propagou-se leira (risos). Fez isso também com os espíritos
rápido pela comunidade. O que fez com que que desciam durante as sessões: cada espírito
muitos okinawanos a procurassem para consul- falava o seu idioma materno. Assim, por exem-
tas para a solução de seus problemas. A clien- plo, se o espírito que baixava era o do ante-
tela dela mudou: de brasileiros de ascendência passado okinawano dela, ele/ela falava o dialeto
japonesa para okinawanos. Cada vez mais ela okinawano; quando era o do caboclo, um por-
deixou de ser mãe-de-santo de uma casa de um- tuguês bem rústico. No caso do preto velho,
banda para se tornar uma xamã okinawana. O um português bem humilde. No caso de espí-
interessante de tudo é a sua dupla identidade: ritos okinawanos, as línguas que falavam eram
ela é, ao mesmo tempo, fundadora de uma casa variadas: alguns (que haviam emigrado para o
de caridade, de vocação espírita e mesa branca e Brasil) falavam um japonês misturado ao por-
também uma xamã okinawana. Essa sua dupla tuguês, enquanto outros (que nunca haviam
atividade é extremamente curiosa. Ela também deixado Okinawa), só o dialeto okinawano. De
modificou totalmente a cosmologia umban- todo modo, o que se pode dizer é que todos
dista: segundo Renato Ortiz, a umbanda nas- os espíritos antepassados okinawanos carregam
ceu de um processo de embranquecimento da consigo o código cultural okinawano e, assim,
cultura afro-brasileira e do empretecimento do as causas das doenças e enfermidades são in-
Kardecismo. Trata-se do processo de naciona- terpretadas integralmente dentro desse código.
lização de cultos afro-brasileiros. Mas ela fez Tudo isso, a existência da variação lingüística

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202 | Entrevista com Koichi Mori

e do código cultural, etc., parece mostrar com abertura para o Outro e essa incorporação de ele-
eloqüência a cosmologia social e a identidade mentos de fora?
que os fiéis possuem em comum.
KM: O xamanismo okinawano e a um-
CC: O curioso é justamente esse encontro, não banda têm códigos culturais semelhantes. Por
havendo espaço de manifestação desses elementos exemplo, em Okinawa, tornar-se xamã, se
do xamanismo okinawano, ela encontrar na um- diz, em japonês, “miti aque wo suru” [道あ
banda esse lugar para conseguir trabalhar e depois けをする, pronúncia aproximada], que sig-
ela conseguir voltar aos elementos de sua origem nifica “abrir caminho”, exatamente o mesmo
okinawana. conceito que existe na umbanda. Esse tipo de
semelhança tanto de palavras como de proces-
KM: Esse retorno às origens ocorreu na dé- so de xamanização é também uma das causas
cada de 60, isto é, época da contracultura, que da aproximação das duas culturas. Mas as pri-
se caracterizou pela busca das origens: talvez meiras xamãs okinawanas não vieram xamãs do
tudo tenha sido uma grande coincidência. Japão, mas se tornaram xamãs transétnicas aqui
no Brasil. Após a década de 1980, o que ocorria
CC: O senhor descreve três momentos nos seus em comum às mulheres que se tornaram yuta
textos. A década de 1950, depois 1960/70 e atu- foi o fato de elas viajarem constantemente en-
almente. No segundo momento, podemos perceber tre Brasil e Okinawa para serem treinadas por
esse movimento de voltar a Okinawa. No entanto, xamãs veteranas. Em outras palavras, tratava-se
os elementos Brasil e Japão continuam combina- de um processo de xamanização transnacional,
dos. Apesar das diferenças, parece uma perma- que as levava, entre outras coisas, a possuírem
nência. Nessa volta às origens, por que o Brasil espíritos protetores tanto brasileiros como oki-
permanece com Nossa Senhora, por exemplo? nawanos. Evidentemente, há na base o comum
acordo de que esses dois espíritos carregam
KM: Acho que tanto em Okinawa quanto consigo seus códigos culturais próprios, de
no Brasil ainda existe forte, na base de tudo, a modo que os problemas (doenças, falecimen-
crença em espíritos. Muitos brasileiros acredi- tos, infelicidade etc.) sobre os quais clientes
tam na presença de espíritos (crença por espíri- okinawanos consultam as yutas são classifica-
to). Em Okinawa é a mesma coisa, ainda hoje dos conforme a sua origem, se de natureza bra-
existe esse tipo de crença. Acho que é por isso sileira, originado pelo fato do consulente viver
que existe essa combinação a que você se refe- no Brasil, ou se de natureza okinawana.
re, esse encontro de duas culturas tão distintas Por outro lado, no caso da primeira xamã
entre si. Eu acho, não sei (risos). O xamanismo okinawana, que surgiu na década de 1950, ela
mesmo não é uma religião. O xamanismo é se caracterizava pelo fato de possuir dupla ati-
uma crença aberta, ele não é fechado. Ele rece- vidade: como yuta = xamã okinawana e como
be vários marcadores de fora. Vai construindo, mãe-de-santo = líder de umbanda. Nesse caso,
modificando as suas características. Esse tipo ela lançava mão de um ou outro código cul-
de caráter que o xamanismo tem ajuda no en- tural, dependendo da atividade que estivesse
contro de duas culturas xamanísticas distintas. exercendo. Embora não vá entrar em detalhes,
em resumo: se a consulta se dava no contexto
CC: O senhor reconheceria nos dois casos - na de yuta, ela usava o código cultural da umban-
umbanda e no xamanismo okinawano - essa da (manifestação mediúnica) para indicar que

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Entrevista com Koichi Mori | 203

o consulente participasse de uma sessão (isto outro okinawano. A maioria das xamãs okina-
é, conduzia-se ao universo religioso brasileiro). wanas tem como espírito protetor brasileiro
Se a consulta era no contexto de uma sessão a Nossa Senhora de Aparecida. Já os espíritos
de umbanda, ela se utilizava do código cultu- protetores de Okinawa variam bastante. O
ral okinawano para explicar as causas e as so- conhecimento xamanístico okinawano dessas
luções dos problemas de maneira okinawana xamãs do Brasil mais recentes é mais profundo
(isto é, conduzia-se ao universo do xamanismo e, portanto, cada vez mais semelhante ao das
okinawano). Em outras palavras, se o clien- xamãs de Okinawa, por causa desses desloca-
te é okinawano, acaba sendo conduzido para mentos consecutivos de e para. Mas, apesar
dois universos religiosos diferentes. Tanto no disso, as xamãs okinawanas no Brasil continu-
primeiro caso (década de 1950) como no se- am tendo uma formação de xamãs okinawanas
gundo (após a década de 1980), as ações das transétnicas. Mais recentemete, muitas das xa-
xamãs okinawanas não as caracterizam como mãs okinawano-brasileiras estrearam como xa-
criaturas tão somente brasileiras nem como mãs em Okinawa mesmo, pois estavam sendo
tão somente okinawanas de Okinawa, mas, treinadas lá: atendiam clientes locais, antes de
sim, como “okinawanas, mas do Brasil”. Isto retornarem ao Brasil. São, portanto, de fato,
é, nada menos do que a formação, de maneira xamãs transnacionais, na verdadeira acepção
mágico-religiosa, de criaturas híbridas. Nesse da palavra. Após a década de 1980, as xamãs
sentido, o fenômeno pode ser entendido como okinawanas não foram formadas somente den-
uma manifestação da etnicidade dos oriundos tro do território do Estado-Nação brasileiro.
de Okinawa. Ultrapassaram as fronteiras nacionais para se
tornarem xamãs. Até a década de 1970, as
CC: Então o senhor não trata de xamãs que vie- mulheres de origem okinawana radicadas no
ram de Okinawa para o Brasil? Brasil não tinham condições de viajar para o
Japão: formaram-se dentro dos limites do Es-
KM: Não é que eu não fale delas, mas o tado-Nação brasileiro. A partir da década de
fato é que as xamãs que se formaram em Oki- 1980, no entanto, com a globalização, as xa-
nawa nunca vieram para cá. Aquelas mulheres mãs de origem okinawana começaram a viajar.
de que havia falado, okinawanas comuns, do- Essa prática torna-se comum: a formação das
nas de casa, tornaram-se xamãs aqui no Brasil. xamãs não se dá mais só dentro do Estado-Na-
A partir da década de 1980, tendo como base a ção brasileiro. Elas acabam se formando xamãs
globalização, muitas aprendizes de xamã retor- em duas localidades, em dois Estados-Nação.
naram para Okinawa e receberam treinamento Não se trata simplesmente de etnicidade, mas
de xamã na sociedade de origem. Essas viagens, de transetnicidade, que é uma questão muito
de processo de xamanização, foram, por vezes, atual. Venho estudando o processo de forma-
repetidas cinco ou seis vezes. Sem dúvida, es- ção de xamãs okinawanas, mas, na verdade,
sas xamãs mais recentes, se comparadas às pri- antropologicamente dizendo, o meu assunto
meiras xamãs, que se formaram aqui no Brasil, de interesse é a transetnicidade. Muitas pes-
têm conhecimentos mais profundos devido ao soas se deslocam de sua terra de origem, mas,
seu contato com xamãs de Okinawa. Ainda diferentemente do que acontecia antigamente,
assim e, ao mesmo tempo, elas ainda conti- são deslocamentos com outra temporalidade,
nuam tendo formação de xamãs transétnicos: movimentos que vão e vêm entre a terra de
sempre têm um espírito protetor brasileiro e origem e o novo lugar para os quais se desloca-

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ram, repetidas vezes. E tem também os dekas- que os dekasseguis sofrem hoje no Japão? Quais os
seguis. Antigamente, ao emigrar para o Brasil, elementos envolvidos?
os emigrantes dificilmente tinham condições
de retornar ao Japão. A grande maioria tinha KM: Puxa, isso eu não sei (risos). Existem
que viver aqui até morrer. Era a experiência muitas teses mexendo com esse assunto. Mas,
da maioria dos emigrantes. Mas, hoje em dia, sem dúvida, existe discriminação em qualquer
são apenas 24 horas de avião e a passagem é sociedade.
muito barata. Várias pessoas vivem em vários
lugares, ultrapassando as barreiras do Estado- CC: Mas as motivações são as mesmas, daquele
Nação. Interessa-me analisar a formação de preconceito que aconteceu na chegada dos emi-
identidades transnacionais e a questão do grantes aqui e esse que acontece hoje com os dekas-
Estado-Nação no século XXI, a partir dessas seguis lá? Ou seriam outros motivos?
experiências. O xamanismo é apenas um tó-
pico para se discutir um tema muito maior e KM: Os motivos são diferentes. Mas, de
também extremamente atual: em suma, um qualquer maneira, ser humano é um animal
portão de entrada para os mesmos. que gosta de criar classificações, categorias.
Seja por característica física, comportamento,
CC: O interesse de pesquisa, como o senhor mes- jeito de falar, por várias coisas. Mas nem todos
mo colocou, está mais relacionado às questões de os dekasseguis foram discriminados no Japão.
transnacionalismo, transetnicidade. Mas ao mo- Depende muito das características da pessoa.
bilizar a figura do xamã, o senhor também pode A maioria de nikkeis agora é mestiça. Segun-
dialogar com uma literatura mais voltada para a do nossa pesquisa, realizada em 1988, 62%
etnologia ameríndia. Existe algum diálogo com dos descendentes da terceira geração, isto é, os
essa literatura? sanseis, são mestiços. O que significa que eles,
praticamente, não têm cara de “japonês”. Por
KM: Até o momento, não. Falta de estudo outro lado, essa cara, que não é de japonês, é
e de pesquisa da minha parte (risos). A cada dia uma forma que os diferencia de quem a tem:
surge mais trabalho na USP. Pelo contrato, vin- “Olhe! Aqueles lá são diferentes de nós! São
te horas semanais são voltadas para a pesquisa, os outros.” Outro problema é que vira e mexe
mas não há como, porque, além das aulas, há aparecem reportagens sobre crimes cometidos
também muito trabalho administrativo. Eu por brasileiros e isso contribui negativamente
gostaria de tirar umas férias para estudar mais, para a formação da imagem coletiva dos bra-
para pesquisar mais, mas a USP não libera... sileiros no Japão. A maioria dos japoneses não
Vocês, jovens, é que têm de correr atrás desse tem contato com os brasileiros, porque estes
tipo de pesquisa (risos). vivem concentrados em uma determinada área
da cidade, que normalmente não é freqüentada
CC: O senhor citou os dekasseguis. Há relatos de por japoneses. Esses japoneses, ao lerem essas
eventos discriminatórios em relação aos dekasse- reportagens, acabam sendo contaminados pela
guis no Japão, o que é comum nesses tipos de des- imagem negativa que elas veiculam. De qual-
locamento. Em que medida poderíamos comparar quer maneira, não dá para eu “chutar” aqui o
esse preconceito que os emigrantes japoneses tive- que, de fato, está rolando por lá: seria neces-
ram ao chegar aqui e como isso se assemelha, se sário que se fizesse uma boa pesquisa junto a
diferencia, de alguns preconceitos e discriminações japoneses que tiveram contato com brasileiros

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Entrevista com Koichi Mori | 205

dekasseguis. Esse tipo de pesquisa, conduzida mo: decidi pesquisar a história da emigração
de maneira séria, acadêmica, nunca foi reali- de uma família okinawana para Bolívia. Uma
zada. A maioria das teses defendidas no Brasil parte dessa família reemigrou para a Argenti-
sobre o assunto baseia-se numa imagem já pre- na, outra, para o Brasil, outra voltou para o Ja-
concebida e, portanto, não é isenta. pão, em províncias que não Okinawa e outra,
para Okinawa. O que faz com que a família
CC: Como assim? viva separado em cinco diferentes pontos ge-
ográficos. Fiz pesquisa de campo na Bolívia,
KM: As pesquisas existentes partem do se- em Santa Cruz de La Sierra, na Argentina, em
guinte princípio/preconceito: “Ah! Coitados, os Buenos Aires, aqui em São Paulo e, no Japão,
brasileiros são tão discriminados no Japão!” Essa em três diferentes localidades: Tóquio, Yoko-
tem sido a tônica. Só coletam depoimentos que hama e Okinawa. Essa família se reúne uma
endossam essa idéia pré-concebida. Muitos dos vez por ano em algum ponto do planeta. É
pesquisadores brasileiros que desenvolveram meu interesse pesquisar como essas suas expe-
algum tipo de tese a esse respeito não foram ao riências, que ultrapassam territórios, influen-
Japão para, especificamente, fazer pesquisa de ciam a criação de suas identidades, e, por isso,
campo, na verdadeira acepção da palavra. Eles eu também preciso me deslocar tanto quanto
coletaram os dados que fundamentam as suas elas se deslocaram ou se deslocam.
teses aqui no Brasil mesmo, trabalhando com
a memória dos ex-dekasseguis. Não acho que CC: Isso é muito coerente com aquilo que o senhor
seja uma metodologia correta, do ponto de vis- falava sobre a acentuação da globalização e da
ta antropológico. busca desses laços a partir da década de 80. O
senhor reconhece, então, como também um fenô-
CC: No caso do seu trabalho no doutorado, como meno mundial, quer dizer, essa recuperação dos
foi isso? O senhor também seguiu os deslocamento nikkeis, pelo mundo... de restabelecer os laços?
das xamãs em Okinawa e aqui?
KM: Um terço da população de Okina-
KM: Por sorte, ganhei bolsa de várias wa mudou-se para a ilha principal do Japão,
fundações para o meu trabalho. Pude, então, Honshu, e para o exterior. A partir de 1980,
acompanhar a formação de várias xamãs. Via- esses okinawanos, em diáspora por diversas na-
jei junto com elas para Okinawa e as observei ções, passaram a se reunir, a se organizar. Esse
no seu dia-a-dia, de perto, o que elas faziam, fenômeno de eles se organizarem é bastante
com quem e onde faziam, por dois, três anos. interessante. Por exemplo, existe a Business As-
Se o sujeito da pesquisa está em deslocamento, sociation. Essa associação, formada por descen-
do Brasil para o Japão ou vice-versa, o corre- dentes de okinawanos radicados em mais de
to é o pesquisador também se deslocar jun- trinta e poucas nações, incluindo a própria pro-
to, acompanhando-o. Permanecer num lugar víncia de Okinawa, não se resume a um mero
só não é correto. É preciso se deslocar junto grupo étnico inserido em uma nação, uma vez
com o sujeito pesquisado. É o método multi- que já transcendeu a questão da identidade na-
local. Grande parte dos cientistas sociais ainda cional. Por outro lado, reúnem-se utilizando
faz pesquisa de campo em um só lugar. Um o princípio de pertencerem à mesma origem,
exemplo de dinamismo que se deve ter foi a Okinawa, ou, em outras palavras, o princípio
pesquisa que desenvolvi depois do xamanis- de serem okinawanos. Através desse tipo de or-

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206 | Entrevista com Koichi Mori

ganização, é possível tecer considerações sobre e essa estrutura é mais ou menos semelhante
a questão do que é nação, no século XXI. De ao que acontece na própria sociedade japonesa.
que forma devemos nos organizar no século Assim, a partir de pesquisas entre japoneses de
XXI, para podermos viver melhor? É esse tipo origem okinawana e japoneses oriundos da ilha
de questão que quero abordar, ao pesquisar as principal, residentes aqui no Brasil, é possível
diferentes formas de associações/organizações tecer críticas em relação à própria sociedade ja-
okinawanas de natureza transnacional. ponesa. É possível, desta forma, criticar a nossa
terra natal, Japão. Penso que esse também é um
CC: Como foi essa inserção no campo? O senhor dos papéis do antropólogo: o de criticar a so-
falou que leu bastante dos pós-modernos na déca- ciedade. Então, retomando, até então ninguém
da de 80, momento quando ocorre esse movimento tinha feito esse tipo de abordagem em relação
de questionamento da posição do antropólogo... à comunidade nikkei. Que eu saiba, a única
pessoa que havia feito esse tipo de observação
KM: Através de leituras, James Clifford, tinha sido a professora Francisca Izabel, antro-
por exemplo, que já é um clássico. E também póloga do Museu Nacional, que desenvolveu
através das minhas já mencionadas pesquisas uma pesquisa sobre a comunidade nikkei em
de campo. Enquanto eu as desenvolvia, ocor- Marília, interior de São Paulo. Lá, em Marília,
reram na comunidade okinawana inúmeros vivem muitos japoneses okinawanos e também
acontecimentos inovadores, globalizadores, por muitos japoneses oriundos da ilha principal,
assim dizer. Procurei entender e interpretar es- e o fato é que eles convivem de maneira con-
ses fenômenos. Foi assim que me inseri, através flituosa. Creio que ela tenha sido a primeira
tanto das minhas pesquisas de campo como de a observar que dentro da comunidade nikkei
leituras sobre globalização, transnacionalismo, existiam dois tipos de japoneses, que, até então,
transculturalismo, etc. eram considerados uma coisa só. Ela compilou
vários depoimentos nesse sentido. No entanto,
CC: Houve algum tipo de atrito nessa inserção do antropólogos japoneses ainda hoje insistem em
senhor no campo? Porque existe, também, certo utilizar apenas uma categoria de nikkei, isto é,
preconceito contra os okinawanos na própria co- aquele que por aqui chamamos de “japonês”.
munidade japonesa. Como isso influiu no projeto Isso deve ser resultado também do posiciona-
de pesquisa? mento político de cada antropólogo.

KM: Até a minha pesquisa, nenhum outro CC: Como foi para o senhor, um japonês, perceber
pesquisador havia tecido a tese de que existiam aqui essas diferenças? Teria sido mais fácil olhar a
no Brasil dois tipos de nikkeis, os oriundos comunidade de nikkeis e tratá-los como japoneses,
da ilha principal (na verdade ilhas principais: como algo homogêneo, um grupo homogêneo...
Hokkaido, Honshu, Shikoku e Kyushu) e os
oriundos da ilha de Okinawa. Até então, todas KM: James Clifford discorreu com bastante
as pesquisas colocavam tanto um como ou- clareza sobre homogeneidade, em seu artigo de-
tro no mesmo saco, por assim dizer. Quanto nominado “Culturas Viajantes”. Na comunida-
à questão da discriminção, ela sempre existiu, de nikkei não existe tal homogeneidade. Cada
até por uma questão da eterna dicotomia: po- um tem experiências diferentes de viagem, de
pulação majoritária versus minoritária. Os oki- ter vivido fora por algum tempo e por aí vai.
nawanos sempre foram vistos como inferiores Não é possível discutir e analisar como sendo

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Entrevista com Koichi Mori | 207

modificações da culinária japonesa no Brasil e


como se deu a formação da cultura japonesa
abrasileirada e, terceiro, quis muito entender
por que os brasileiros começaram a comer sushi
e sashimi, que eram considerados horríveis, no-
jentos, por serem preparados com peixe cru.
Peixe cru sempre foi considerado mera maté-
ria-prima para se preparar um prato de comida,
mas não a própria comida. Considero bastante
todos de uma mesma categoria homogênea. curiosa a terceira parte da minha pesquisa. Ela
Pesquisei somente sete xamãs e observei que, tem ligações com vários fatores externos, como
embora o processo de xamanização dessas mu- a influência da cultura norte-americana, além
lheres tivesse sido basicamente o mesmo (o já de questões como a preocupação com a saúde.
citado processo de xamanização, que é peculiar Tem a ver também com as mudanças que se
à sociedade okinawana), cada uma tem a sua operaram na vida do assalariado brasileiro, na
própria característica, a sua intencionalidade, o década de 1980. Muitos deles, da classe mé-
seu gosto, a sua preferência. Coisas que, claro, dia, passaram a freqüentar academia, a comer
acabam influenciando no próprio processo de comida natural, a praticar macrobiótica, etc.
xamanização, embora o processo básico tenha Penso que tudo isso tem a ver com a aceita-
sido o mesmo para todas elas. Assim, pode-se ção da comida japonesa pelos brasileiros, que
dizer que tal processo (de xamanização) seja a consideram mais leve, mais saudável. Ainda,
algo quase que totalmente individual. Eu não a própria imagem do Japão mudou. Passou-se
gosto de usar termos que t�������������������
êm a ver com “indi- a haver, além disso, maior intimidade no re-
víduo”. Prefiro person, em inglês. Trata-se, por- lacionamento entre japoneses e brasileiros. E
tanto, de um processo pessoal de xamanização. quando digo japoneses, não são apenas os ni-
Tenho várias outras linhas de pesquisa, além do kkeis, mas também os expatriados, executivos
xamanismo. Por exemplo, a formação da cultu- enviados do Japão pelas multinacionais. Foram
ra étnica no bairro da Liberdade, uma forma- vários os canais pelos quais se deu a aceitação
ção de cultura totalmente híbrida. E também da culinária japonesa no Brasil. Isso é muito
sobre culinária japonesa (risos). interessante. Pesquisar a culinária japonesa é
hoje moda no mundo inteiro. Por exemplo,
CC: Fale, por favor, sobre essas pesquisas. um antropólogo norte-americano, da Univer-
sidade de Harvard, realizou uma pesquisa de
KM: É uma brincadeira minha, um hobby campo sobre o mercado de Tsukiji, em Tóquio.
(risos). Mas é sério. Eu ganhei uma bolsa para O mercado de Tuskiji é especializado em peixes
pesquisar a culinária da comunidade japone- e o antropólogo o pesquisou em minúcias. Esse
sa no Brasil (comunidade japonesa entre as- tipo de pesquisa, que tem a culinária como
pas) por um ano. Essa pesquisa compreendeu ponto de partida, está na moda no mundo
três atividades: primeiro, eu quis reconstruir todo, mas não muito no Brasil. Só conheço
a história da cultura japonesa através da culi- uma antropóloga em Minas que pesquisou a
nária japonesa, do processo de adaptação dos relação entre a identidade mineira e a comida
imigrantes à culinária brasileira, etc.; segun- mineira. Meu foco de pesquisa é a atualidade,
do, quis analisar o processo de mudanças e ou melhor, questões da atualidade.

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208 | Entrevista com Koichi Mori

CC: E sobre essa explosão da chamada cultura J- CC: O senhor havia comentado que era compli-
pop, por exemplo, dos mangás. Ela teria algum cado nos dias de hoje pesquisar “os japoneses”, “os
tipo de relação com o processo de aceitação que a descendentes” no Brasil, por conta de cada um car-
culinária japonesa também teve? regar experiências particulares ao longo da vida.
Mas gostaríamos de saber como o senhor percebe a
KM: Não. No caso dos mangás, o proces- existência de certo tipo de imaginário que se criou
so de aceitação foi totalmente diferente do da sobre os japoneses e seus descendentes?
culinária japonesa. Uma orientanda minha, do
curso de pós-graduação, está pesquisando a tra- KM: Claro que sei da existência do imagi-
jetória dos mangás no Brasil. Segundo ela, o nário que se criou sobre os japoneses e seus des-
mangá japonês aportou aqui via Europa e Esta- cendentes. Só que, como antropólogo, o que
dos Unidos, não direto do Japão. Quem esco- me interessa saber é como os japoneses e seus
lhe o mangá que será publicado aqui no Brasil descendentes reagiram e reagem; resistiram e
é a editora, não o público. As editoras brasi- resistem; tiraram e tiram proveito desse ima-
leiras ficam de olho no mercado, por exem- ginário, na criação de suas identidades. Quero
plo, norte-americano, para pesquisar quais os saber qual foi e qual é a tática de sobrevivência
mangás mais populares, quais os best-sellers. de um grupo minoritário inserido numa socie-
E aí escolhem esses para publicar e distribuir dade mais ampla. Por outro lado, devo admitir
por aqui também. Os leitores não têm muito que sempre existiu, principalmente por parte
o direito de escolha aqui no Brasil. Quem o de intelectuais nikkeis, a tentativa de se criar
faz é a editora, sempre de olho no mercado de uma comunidade que correspondesse a esse
fora, Europa e Estados Unidos. Os leitores são imaginário, que correspondesse à expectativa
meros receptores, são passivos. A localização de um bom japonês.
ainda não desceu até o nível dos consumido-
res/leitores. A localização só se dá no nível das CC: Mas o senhor mostra em alguns de seus
editoras. artigos esse agenciamento pelas elites nikkeis.
Quando olhamos para a comunidade okina-
CC: Mas será que não teríamos um processo ou wana dentro da comunidade nikkei tentando
uma etapa anterior, tal como foi com a culinária? superar a discriminação, é possível perceber essa
Em relação aos mangás, no que diz respeito aos negociação?
norte-americanos e europeus: será que em algum
momento esses consumidores não vão ter acesso a KM: Exatamente... negociação. Palavra da
esses mangás direto de Japão? moda, não? (risos). Até pelo menos os anos 70,
os japoneses de origem okinawana, diante da
KM: Acho que não, talvez só os consumi- discriminação que sofriam dos japoneses da
dores mais jovens, da classe média ou alta, que ilha principal, faziam uma concessão para se
têm acesso a internet. Eles, sim, poderiam en- aproximar destes últimos, deixando de lado a
trar nos sites e procurar direto mangás japone- sua própria cultura, na tentativa de se assimilar
ses. No mais, o público brasileiro só lê o que as aos japoneses oriundos da ilha principal. Mas,
editoras acham mais conveniente, comercial- após meados dos anos 70, os japoneses de ori-
mente falando, mas não escolhe o que quer ler. gem okinawana passaram a criar eles próprios
A antropologia precisaria fazer uma boa pes- uma fronteira, pela qual eles próprios discrimi-
quisa sobre este tema. navam os japoneses oriundos da ilha principal.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 197-212, 2008


Entrevista com Koichi Mori | 209

Como pano de fundo desse comportamento, dos dekasseguis, que conta com abundante ma-
pode-se citar a devolução de Okinawa ao Ja- terial em português. Acredito ser essa uma das
pão, em 1972 (que estava sob ocupação militar grandes barreiras. Além disso, pesquisa na área
norte-americana, de 1945 a 1972), a tentativa de Humanas não tem nada a ver com compen-
por parte dos okinawanos, tanto residentes no sação financeira. Os nikkeis são materialistas,
Japão como daqueles que emigraram para os dinheiristas (risos). Não querem fazer pesqui-
EUA, de valorizar e revitalizar a sua própria sas de cunho sociológico e/ou antropológico,
cultura, etc. porque elas não dão dinheiro. Estamos sempre
precisando de jovens pesquisadores, que pos-
CC: Então, o senhor está abrindo uma nova seara sam nos suceder... Ainda faço parte do Centro
de pesquisa... de Estudos Nipo-Brasileiros, sou da Diretoria,
e sempre falo nas reuniões: “Vamos criar um
KM: Sim, estou sobrecarregado (risos). sistema de bolsas”. Esse sistema de bolsas ar-
regimentaria alunos que tivessem interesse em
CC: Sobre a questão dos “estudos japoneses”, so- pesquisar a comunidade nikkei ou a identida-
bre descendentes. Como o senhor vê a expansão de nikkei, tanto faz. A gente precisa começar
desses estudos nos dias de hoje, com relação, por por aí, com uma estratégia a longo prazo. Te-
exemplo, à iniciativa do Centro de Estudos Nipo- mos que implantar algo. Temos que “vender
Brasileiros nos anos 60? O senhor percebe uma o peixe” para o pessoal mais jovem. Mas esse
expansão? projeto nunca foi aprovado nem, obviamente,
foi posto em prática. Agora temos uma nova
KM: O Centro foi fundado em 1965. preocupação, ainda mais grave: os membros do
Desde a sua criação até os dias de hoje, quase Centro já passaram dos oitenta anos e, por en-
ninguém apareceu por lá para fazer pesquisas, quanto, não há sucessores. Temos que montar
digamos, sérias. A maioria, mesmo os estu- um sistema de bolsas para formar, futuramen-
dantes universitários, só aparece lá para colher te, jovens pesquisadores brasileiros, para quem
material como parte de seus trabalhos de final possamos legar o Centro, tanto nikkeis como
de semestre. Quase ninguém quer se tornar es- não-nikkeis.
pecialista em estudos japoneses no Brasil. Não
sei por quê. Só conheço, na área de História, al- CC: Nesse cenário em que podem surgir novos pes-
guns pesquisadores interessados na experiência quisadores em “estudos japoneses”, como podemos
dos japoneses durante a época do nacionalis- pensar as relações entre antropologia brasileira e
mo brasileiro e ou no conflito entre derrotis- antropologia japonesa?
tas versus vitoristas, ocorrido no pós-guerra.
Agora, quanto a estudos japoneses, quase todas KM: Um primeiro passo foi dado no mês
as pesquisas acabam se concentrando sobre os de agosto de 2008: a realização de um Simpó-
dekasseguis. Acho que essa situação decorre sio Internacional em conjunto com a Universi-
da dificuldade em relação à língua japonesa: dade de Osaka. O inusitado nessa universidade
a maioria dos pesquisadores não domina o ja- é que as pessoas que a comandam são da área
ponês, mas a maioria do material é escrito em de Humanas, o que, no Japão, é muito raro.
japonês. Brasileiros têm dificuldade de abordar, O Simpósio foi realizado tanto na USP como
de debruçar sobre materiais escritos em japo- na Universidade de Osaka no Japão, sob o
nês. Por isso, a maioria vai em direção ao tema mesmo tema: “Imigrações: Conflitos e Iden-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 197-212, 2008


210 | Entrevista com Koichi Mori

tidades”. Quando viajamos para a Universida- japoneses tiveram formação norte-americana


de de Osaka, fez parte do grupo a professora e, portanto, a escola americana é bem forte no
Rose Satiko Gitirana Hikiji, da Antropologia Japão. A escola norte-americana, e hoje tam-
Visual. Foi o primeiro passo para fortalecer a bém a japonesa, caracteriza-se não pela teoria,
relação entre a antropologia brasileira e a ja- mas pelo empirismo. Nesse sentido, há certa
ponesa. Futuramente, teremos um convênio distância entre os antropólogos japoneses e os
com a Universidade de Osaka e montaremos uspianos. A meu ver, a antropologia na USP é
um projeto internacional, trabalhando juntos, bastante restrita e conservadora. Quero deixar
brasileiros e japoneses. Brasileiros irão para lá e claro que não tenho a menor pretensão de criti-
japoneses virão para cá. Temos como objetivo car, de tecer juízo de valores sobre este posicio-
um projeto de alcance internacional, interdis- namento ou aquele, mesmo porque considero
ciplinar e, também, com continuidade nos dois essa diferença de posicionamento teórico algo
países, que seja multilocal. Por exemplo, estu- extremamente positivo e saudável. É impor-
dar uma família transnacional. Normalmente, tante que haja discursos que tenham diferentes
os japoneses pesquisam uma parte dessa família pontos de vistas. Se todos nós tivéssemos o mes-
no Japão, mas nunca vêm para o Brasil para mo posicionamento teórico, ninguém precisa-
estudar a outra parte. No entanto, ao se tro- ria discutir nada e não haveria graça nenhuma,
carem informações, poderíamos pesquisar uma não é verdade? A meu ver, diferentes formações
mesma família, que vive separada, uma parte acadêmicas são fatores importantes na cons-
no Brasil e outra no Japão. É esse tipo de proje- trução do discurso acadêmico. Bem, voltan-
to que queremos desenvolver. Tenho a certeza do à pesquisa conjunta USP/Universidade de
de que isso será possível, uma vez que temos Osaka, mesmo estando em países tão distan-
bons contatos com antropólogos e sociólogos tes, poderíamos nos debruçar sobre os mesmos
da Universidade de Osaka. Possivelmente, no materiais e os mesmos sujeitos, mas olhando
futuro, vamos conseguir montar esse projeto. de diferentes pontos de vista. Cada um, tanto
Para ele [ o projeto], queremos chamar jovens o pesquisador japonês como o brasileiro carre-
pesquisadores, pós-graduandos, para ajudá-los ga uma cultura diferente: não dá para escapar
na sua formação. Não vejo outra estratégia para dessa realidade. Mas é perfeitamente possível
que formemos novos e jovens pesquisadores. que se tire proveito dessa situação: japoneses e
brasileiros observarem o mesmo fenômeno e,
CC: Além da barreira lingüística, em que medida no entanto, desenvolverem diferentes análises e
a antropologia feita aqui e a antropologia feita no interpretações, cada um a sua moda. Essas dife-
Japão dialogam no plano teórico-metodológico? renças é que têm de ser discutidas e analisadas,
Se vamos construir um diálogo desses e se não há isso, sim, uma verdadeira discussão antropoló-
uma base comum, precisamos construir. Pontu- gica! Por isso, seria muito bom se conseguís-
almente, como o senhor vê a antropologia que é semos montar esse tipo de projeto. Temos de
produzida aqui e a antropologia que é feita no abrir as portas para jovens pesquisadores brasi-
Japão? leiros, através do relacionamento com pesqui-
sadores de outras diversas localidades. Assim,
KM: A antropologia japonesa da atualidade futuramente, por exemplo, eles poderiam via-
é mais semelhante à antropologia desenvolvi- jar para o Japão, ficar lá um ano ou dois anos,
da na Unicamp, isto é, a antropologia cultural, fazer pós-doutorado e pesquisas de campo. No
de escola norte-americana. Os antropólogos mundo acadêmico japonês, é muito importan-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 197-212, 2008


Entrevista com Koichi Mori | 211

te manter relações pessoais com os pesquisa- Osaka, que tem intenções de criar um Centro
dores, não só institucionais. Melhor dizendo, Mundial de Estudos do Conflito. A Universidade
as relações de amizade entre os pesquisadores de Osaka, como já mencionei, é a universidade
são tão importantes quanto as relações entre as com a qual estou tentando assinar um convênio
instituições. com a USP. Para aqueles que querem estudar
história ou folclore do Japão, um lugar bacana
CC: Vamos para a França, para os Estados Uni- para se procurar é o Museu Nacional de Estudos
dos, porém pouco se vai para o Japão para fazer Históricos e Folclóricos, em Chiba. Outro meio
antropologia. O que o senhor aconselharia a um para se estudar no Japão é recorrer ao Ministério
jovem pesquisador hoje, um antropólogo como da Educação e Ciência daquele país, que possui
nós, que quer ir para o Japão? O que visitar: esco- um projeto para convidar trezentos mil jovens
las, universidades, departamentos, pesquisadores, pesquisadores como bolsistas, por intermédio de
antropólogos japoneses, centros de estudos? O que embaixadas e consulados estabelecidos em várias
a antropologia japonesa pode ajudar um pesqui- cidades do mundo, inclusive São Paulo. Aliás,
sador hoje que quer se dedicar a estes estudos? um bom número de jovens antropólogos brasi-
leiros já se encontra no Japão, agraciado por essa
KM: No Japão, não existe uma corrente an- bolsa. Pode-se dizer, desta forma, que o Japão,
tropológica predominante, como na França ou finalmente, passou a dar a devida importância à
EUA. Cada pesquisador tem a sua própria for- necessidade de internacionalização acadêmica.
mação e está preocupado com um tema pessoal. Quero voltar àquelas universidades ex-imperiais:
Alguns antropólogos japoneses se formaram nos elas possuem projetos próprios e têm convidado
EUA, outros, na França. No Japão, a antropolo- doutores recém titulados, tanto japoneses como
gia é mais empírica do que teórica. Desenvolvem- estrangeiros, para fazerem parte deles. É impor-
se muito mais pesquisas de campo, monografias, tante salientar que pesquisadores estrangeiros não
etnografias, essas coisas. Pesquisadores não-ja- necessariamente precisam dominar o japonês, já
poneses costumam criticar a falta de posiciona- que muitos orientadores japoneses falam o inglês.
mento teórico de antropólogos Por isso, gostaria de encorajar os
e/ou cientistas sociais japoneses. jovens antropólogos brasileiros
O Japão não era considerado a procurar essas bolsas, já que a
avançado na área de antropo- barreira não é tão grande como
logia. O Brasil é considerado se imagina.
mais avançado que o Japão. De
qualquer forma, um bom lugar CC: Professor, para finalizar...
para se procurar é o Museu Na-
cional de Etnologia, em Osaka. KM: Já não foi finalizado?
Além de cursos de antropologia, (risos)
oferecidos por universidades ex-
imperiais como, por exemplo, as CC: Para finalizar mesmo.
Universidades de Tóquio, Kyo- Fale-nos um pouco sobre a im-
to, Osaka, Tohoku e Kyushu. portância das comemorações do
Aqueles que querem estudar Centenário da Imigração Japo-
problemas de conflito devem se nesa.
dirigir para a Universidade de

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 197-212, 2008


212 | Entrevista com Koichi Mori

KM: Este é o tema da minha atual pes- brasileira, não só japonesa. Por outro lado,
quisa. Para mim, foi muito curioso constatar embora nada tenha a ver com a sua pergunta,
por que só o centenário da imigração japonesa gostaria de discorrer sobre o significado polí-
foi tão comemorado, em detrimento ao das tico de o porquê o centenário da imigração ja-
outras imigrações, de outras nacionalidades. ponesa ter sido tão comemorado: acredito que
Para mim, foi surpreendente ter sido procu- foi uma excelente oportunidade de mostrar o
rado por jornalistas brasileiros, dia após dia, quanto o Brasil é etnicamente democrático
para que eu falasse alguma coisa sobre o as- por ter aceitado os japoneses que outrora ti-
sunto. Isso nunca tinha acontecido nas come- nham sido considerados inassimiláveis, isto é,
morações passadas, isto é, até a comemoração existiu, por trás, de toda a festa da comemora-
dos 90 anos. Parece-me que isso se deu porque ção, uma propaganda ideológica da decantada
até agora as comemorações tinham como ob- democracia étnica brasileira.
jetivo a gratidão dos imigrantes japoneses is-
seis [primeira geração] à sociedade brasileira,
ao passo que a comemoração do centenário Nota
foi de gratidão dos descendentes nisseis, san-
seis, etc. aos imigrantes isseis, um tributo de Os autores desta entrevista fizeram pequenas
brasileiros de origem japonesa, aqui nascidos adequações no texto ora apresentado, o qual foi
aos japoneses da primeira geração. E isso, na revisado pelo entrevistado. Os entrevistadores
minha opinião, foi de grande importância. agradecem ao professor Koichi Mori, e particu-
Em outras palavras, a comemoração dos 100 larmente a Alexandre Kishimoto e Paulo Dan-
anos foi um símbolo de que a comunidade de tas pela ajuda durante a preparação, a edição e
japoneses tornou-se uma comunidade nipo- a finalização deste trabalho.

autores André-Kees de Moraes Schouten


Doutorando em Ciência Social (Antropologia Social)/USP

Camila Aya Ischida
Mestranda em Ciência Social (Antropologia Social)/USP

Enrico Spaggiari
Mestrando em Ciência Social (Antropologia Social)/USP

Giovanni Cirino
Doutorando em Ciência Social (Antropologia Social)/USP

Rodrigo Gomes Lobo
Mestrando em Ciência Social (Antropologia Social)/USP

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 197-212, 2008


traduções
Quem atrapalha o desenvolvimento?
Dominique Tilkin Gallois

O título original do artigo1, “les empêcheurs problemas apontados pelos estudos de expe-
de développer en rond”, é construído a partir da riências locais rende novas formas de abordar
expressão idiomática “empêcher de tourner em e definir projetos e intervenções. Procura-se
rond”, impedir o desenrolar normal de alguma delinear, frente ao “mau desenvolvimento”,
coisa. Provocador, esse título também se quer formas de “desenvolvimento alternativo” ou
ambíguo: quem, afinal, vem atrapalhar o de- “sustentável”2. Mais recentemente, trabalhos
senvolvimento? Os povos indígenas? Ou, ao realizados na vertente do Pós-Desenvolvimen-
contrário, é o desenvolvimento que vem estor- to reiniciam a busca de alternativas ao projeto
var a vida desses povos? da modernidade imposto pelo ocidente. Como
Uma vasta literatura clássica – produzida na sumariza o verbete disponível na Wikipedia,
primeira metade do século XX e dedicada ao essa vertente propõe “uma re-culturação dos
encontro dos povos nativos com o nosso de- indivíduos e das sociedades alternativamente
senvolvimento - tratou dessa problemática pelo ao modelo cultural transnacional que unifor-
viés das modalidades do processo de mudan- mizaria a vida, em escala planetária e em todos
ça social e cultural. Pretendia contribuir para seus aspectos; o objetivo sendo a re-inserção
a formulação de melhores práticas, capazes do econômico no social e a interrupção da ex-
de aperfeiçoar a qualidade das intervenções. pansão econômica infinita, incompatível com
Recomendava-se, especialmente, levar em con- nosso mundo finito”3. Com a difusão desses
sideração as dinâmicas culturais próprias das estudos nas mais diversas áreas das Ciências
sociedades, grupos ou comunidades “alvo” do Sociais, pesquisadores, professores e estudantes
desenvolvimento. Não se questionava “a gran- assumem que não se pode mais usar ingenua-
de saída civilizatória”, como se “desenvolver-se” mente uma noção para a qual não existem “al-
fosse, necessariamente, seguir em direção me- ternativas”. Como comenta Rist:
lhor. Até hoje, no Brasil, a maior parte dos ges-
tores de políticas públicas destinadas aos povos “A noção do desenvolvimento, que pretende
indígenas, às comunidades ditas tradicionais generalizar a felicidade universal, reduz-se, fi-
etc continua não questionando os rumos das nalmente, à transformação da natureza e das
intervenções, sejam elas de “inclusão” (ao de- relações sociais em bens (...) ou, se preferirmos,
senvolvimento) ou supostamente “diferencia- à omni-mercantilização do mundo em nome do
das”, para as populações que continuam sendo crescimento econômico. Apesar da crítica ao de-
o “alvo”. senvolvimento ter se ampliado, o uso do termo
Já a partir dos anos 1960, uma vertente gera mal-estar e muitos autores tentam precisar
crítica procura se firmar, invertendo o “alvo” o sentido que lhe atribuem. Cada um, procuran-
e dedicando-se ao estudo das múltiplas insti- do se distanciar do uso corrente, tenta afirmar:
tuições, públicas e privadas, promotoras do de- “para mim, o desenvolvimento não correspon-
senvolvimento. A convergência de formulações de ao sentido dado pelo modelo dominante”, e
antropológicas sobre a noção de cultura com produz sua própria definição, algo idealista, do

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


216 | Dominique Tilkin Gallois

que ele considera o “bom” desenvolvimento...” (IUED) de Genebra até 2006, ela é membro
(2007, p.146). do Réseau International pour des Alternatives
Culturelles au Développement (RIAD), sedia-
Não cabe detalhar os resultados alcançados do no Instituto Intercultural de Montreal. Suas
nessa espiral de experimentos analíticos, que pesquisas centram-se particularmente na epis-
menciono aqui apenas para situar a contribui- temologia das relações interculturais, que ela
ção específica da autora do artigo ora traduzido aborda no contexto da história das relações en-
na Revista Cadernos de Campo. tre o ocidente e o resto do mundo. Segundo ela,
Neste artigo, como em todos seus demais “a crítica epistemológica interroga a construção
trabalhos, Marie-Dominique Perrot se quer dos saberes que implementamos no mundo e
provocadora, buscando nos “desintoxicar” de que determinam as relações que mantemos com
certas crenças relacionadas ao desenvolvimen- “os outros” (relações de gênero, relações sociais,
to, à mundialização, ao progresso e ao cresci- relações entre gerações, relações entre membros
mento. Assim, em “La mythologie programmée: de sociedades e de culturas diferentes etc)”. Sua
l´économie des croyances dans les sociétés mo- metodologia também é interessante, na medida
dernes” (1992) e em “Mondialiser le non-sens” em que “a crítica do conhecimento exige que
(2002), a autora desvenda a retórica que acom- se efetuem idas e voltas entre nosso próprio
panha e que funda os pressupostos e o etnocen- conhecimento, o conhecimento dos outros e o
trismo das sociedades modernas, bem como as conhecimento que os outros parecem ter a nos-
crenças em matéria de desenvolvimento. Como so respeito” (Perrot, 2001, p. 01). Uma aborda-
exemplo, vale citar a definição que ela apresen- gem que se vale da antropologia, e que – como
ta em “Abécédaire du développement”: já mostrara Lévi-Strauss – assume que o etno-
centrismo é um fenômeno universal.
“Desenvolvimento: ele flutua, ele deriva, ele não O pano de fundo dessa crítica pressupõe,
convence mais. Tentou-se renová-lo, redefini-lo, portanto, que para entender o desenvolvimen-
fixá-lo no chão, amarrar a um pedestal, a um to tenhamos de entender, primeiro, sua retóri-
sentido, a uma nova teoria, com ajuda de qua- ca, sua linguagem, seu campo de comunicação.
lificativos sempre diferentes ou justapostos: en- Escreve Perrot que “as palavras mudam de sen-
dógeno, autocentrado, durável (ou sustentável), tido e o sentido muda de palavras” (idem). Sua
humano, eqüitativo, humano-durável. Mas ele análise relaciona-se aos esforços de muitos an-
entra em concorrência com a mundialização, tropólogos – entre eles Ribeiro (1991) e Pals-
perde espaço e perde financiamentos. As ações son (1996) – em contextualizar as noções de
humanitárias vêm se alimentar em seus come- desenvolvimento e seus derivados.
douros. Ele não sabe mais o que o diferencia nem Todos esses trabalhos recomendam que, se
do humanitário, nem da mundialização, nem quisermos entender o modo como os povos in-
do capitalismo (...). Ver também: decrescimen- dígenas – ou autóctones, nativos, “tradicionais”
to, dúvida, dominação, dívida, desregulação, etc – se relacionam com o desenvolvimento,
dependência, dogma, desmedida, demografia, devemos primeiro admitir que se trata prin-
democracia, negação, despesa, depredação, de- cipalmente de uma relação com instituições.
sastre, desarmamento” (Perrot, 2002, p.02). Instituições essas que monopolizam a lingua-
gem, as definições e as adequações do desen-
Cientista política, professora do Institut volvimento, sendo imprescindível, portanto,
Universitaire d´Études du Développement entender como os povos indígenas conectam-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 215-218, 2008


Quem atrapalha o desenvolvimento? | 217

se a esses discursos e práticas institucionais4. Referências bibliográficas:


Representações, estereótipos, estratégias,
negociações, mediações, inovações são as pala- ALBERT, Bruce. Anthropologie appliquée ou “an-
vras-chave de todo um conjunto de trabalhos já thropologie impliquée?: ethnographie, minorités et
développement. In: Baré (org.) Les applications de
produzidos e ainda em curso em universidades
l’anthropologie, un essai de réflexion collective depuis la
e centros de pesquisa, nos mais variados países France. Paris: Karthala, 1995, p.87-118.
do mundo, que fazem eco à crítica proposta DIEGUES, A.C. Desenvolvimento sustentado ou socie-
por Perrot. Um dos méritos desses estudos é dades sustentáveis: da crítica dos modelos aos novos
de evidenciar a complexidade do fenômeno paradigmas. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol.6
da apropriação planetária dos discursos do de- (1-2), p.22-29, 1992.
GALLOIS, Dominique Tilkin. Sociedades Indígenas e
senvolvimento. E de mostrar que ainda vale
desenvolvimento. In: Grupioni, L.D., Vidal, L. &Fis-
a pena verificar como, localmente, os mais chmann, R. Povos Indígenas e Tolerância, São Paulo:
diversos atores se apropriam desses discursos Edusp/Unesco, 2001, p.167-190.
para fins próprios e contraditórios entre si. Se MIRAGLIA, Ana Beatriz. “Desenvolvimento”, “meio am-
o desenvolvimento gera redes de comunicação biente” e “cultura”. Notas críticas sobre o debate socioam-
transnacionais e se ele certamente contribui à biental amazônico. 2007. 166f. Dissertação de Mestrado
– Faculdade d Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
transformação dos regimes culturais, ele ainda
Universidade de São Paulo, São Paulo. 2007.
não é uma noção transcultural. Há muito o que PALSSON, Gisli. Human-environmental relations: orien-
aprender ainda com a etnografia de processos e talism, paternalism and communalism - in: Descola,
concepções de “desenvolvimento”. P. & Palssón, G. (org.). Nature and Society, Anthropo-
logical Perspectives – New York, London: Routledge,
1996, p.63-81.
PERROT, Marie-Dominique, RIST, Gilbert & SABELLI,
Notas
Fabrizio. La mythologie programmée. L’Economie des
croyances dans la société moderne. Paris: Presses Univer-
1. Publicado em 1991 no volume especial da Re-
sitaires de France, 1992. 217p.
vista “Ethnies”, organizada pela ONG Survival
PERROT, Marie-Dominique. Mondialiser le non-sens.
International – França e dedicada ao tema De-
Lausanne: L’Age d’Homme, 2001.
senvolvimento e Povos Autóctones (Paris, vol.13
___________ . Abécédaire du développement.
– 1991).
L´écologiste, vol. 2, n.4, p.40-42, 2001.
2. Ver, entre outros, as propostas de Stavenhagen (1984)
RIBEIRO, Gustavo Lins. Ambientalismo e desenvolvi-
e Diegues (1992).
mento sustentado. Nova ideologia/utopia do desen-
3. Tradução livre de trecho do verbete “Après-dévelo-
volvimento. Revista de Antropologia, São Paulo, vol.34,
ppement” na enciclopedia Wikipedia livre.
p.59-101, 1991.
4. No caso de projetos voltados à comunidades indíge-
RIST, Gilbert. Le développement. Histoire d´une croyance
nas no Brasil, ver o trabalho de A.B.Miraglia (2007).
occidentale. Paris: Ed. Presses de la Fondation Natio-
Ver também exemplos citados em Albert (1995) e em
nale des Sciences Politiques. 3ª ed., 2007. 483p.
Gallois (2001).
STAVENHAGEN, Rodolfo. Etnodesenvolvimento: uma
dimensão ignorada no pensamento desenvolvimentis-
ta. Anuário Antropológico 84, Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, p.11-44, 1984.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 215-218, 2008


218 | Dominique Tilkin Gallois

autor Dominique Tilkin Gallois


Professora do Departamento de Antropologia/USP
Doutora em Ciência Social (Antropologia Social)/USP

Recebida em 20/03/2009
Aceita para publicação em 22/03/2009

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 215-218, 2008


Quem impede o desenvolvimento “circular”?

Dominique Perrot
Tradução: Lígia Romão
Revisão técnica: Ana Martha Tie Yano e Luísa Valentini

“Um lamentável mal entendido. Eu lhe digo volvimento. Quinhentos anos após Cristóvão
que os seus exigem demais de mim; você escreve Colombo gritar que a terra tinha se tornado
no seu caderno que os meus ancestrais talvez te- “pequena”, de fato constatamos que hoje ela
nham vivido com os Mamutes! Eu repito, vocês está não só menor ainda, mas também seria-
vieram destruir a nossa relação com o mundo; mente ameaçada enquanto sistema complexo
você conclui, com um soluço na voz, que sou que se auto-regula. Esse fato, único na história
um arquivo vivo! Você suspeita que eu seja pri- da humanidade e cujas conseqüências começa-
sioneiro de um delírio e me impede de ter qual- mos tardiamente a enxergar, confere à noção de
quer apreensão do real, ao mesmo tempo que autoctonia uma dimensão de geometria variável.
faz de mim a peça principal da sua imaginação! Face ao desenvolvimento insensato, porque
E enquanto você se esforça assim tão conscien- não controlado socialmente, somos todos —
ciosamente em me anular em seu passado, os em graus evidentemente diversos — “povos
seus lutam para me retirar do meu espaço.” autóctones”, ameaçados no único território
Rémi Savard, La voix des autres. ��������������
[A voz dos ou- que temos à disposição. Não saberíamos, sem
tros] deixar o campo da decência, comparar os tipos
de pressão a que são submetidos, por exemplo,
os índios da Amazônia, de um lado, com os
A volta do choque que sofre o cidadão de uma grande cidade po-
luída. Isso não impede que doravante a linha
Povos autóctones e desenvolvimento. Uma demarcatória entre as vítimas e os beneficiários
expressão clara e sem surpresas, da qual escorre do progresso se dilua em certos momentos e
um leve incômodo. Será que ainda não esgota- lugares, e é isso que preocupa aqueles que até
mos as glosas acerca das noções e das práticas agora monopolizam os privilégios da moder-
do desenvolvimento? Não deveríamos decretar nidade. O utilitarismo frenético, ligado ao
um embargo à retórica que essas idéias susci- imperativo do crescimento econômico, revela
tam? E, no entanto, o interesse dessa aborda- a cada dia mais do seu caráter irracional e des-
gem está na sua força evocativa, que apesar de truidor. Sem idealizar a relação entre as socie-
tudo ainda perdura. Pois no interior dessa frase dades tradicionais e a natureza (Ellen, 1986),
existe uma disputa de significado entre duas é significativo que a reflexão que busca hoje
perspectivas, dois planos de realidade que se em dia reintegrar as interdependências entre
defrontam e se contradizem. Povos autóctones fenômenos em escala planetária incorpore as
ou desenvolvimento... preocupações recorrentes de inúmeros povos
Por outro lado, uma situação relativamente indígenas. Deste modo, a noção de “desenvol-
nova se impõe no contexto dessa dupla relação vimento sustentável”, sustentáculo do relatório
entre os homens e a natureza que é o desen- da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


220 | Dominique Perrot

e Desenvolvimento (1988), é o reflexo, ainda da civilização e da educação, e, com as indepen-


que pálido, da exigência formulada, por exem- dências políticas das ex-colônias, nos de cons-
plo, pelos índios Iroqueses da Confederação trução e integração nacional.
das Seis Nações: “De acordo com um dos prin- Hoje a situação é, à primeira vista, mais
cípios fundamentais da nossa cultura, é preciso difícil de decifrar: como se situar num campo
pensar constantemente no bem-estar das próxi- onde discursos e realizações do progresso, de
mas sete gerações” (Vachon, 1983, p.146). um lado, e práticas de expropriação, do outro,
Não é o objetivo aqui fazer um balanço das se confundem sob uma mesma denominação:
múltiplas intervenções feitas em nome do de- o desenvolvimento? Não basta, para tentar re-
senvolvimento e da “valorização” dos recursos solver esse paradoxo, simplesmente distinguir
naturais que, espoliando os povos autóctones entre o bom e o mau desenvolvimento. Uma
de seu modo de vida, tornam sua existência descolonização conceitual se impõe, visando a
sempre mais precária. Isso já foi feito outras compreensão do alcance dos postulados histo-
vezes2. Em compensação, a questão da so- ricamente determinados que forjam a identida-
brevivência dos povos indígenas no mundo de do desenvolvimento como paradigma.
contemporâneo passa pela contestação do de- Como mostrou Gilbert Rist (1985), a noção
senvolvimento, aqui e acolá, enquanto dogma do desenvolvimento está fundada em três pila-
moderno pretensamente incontornável. res próprios ao Ocidente: Aristóteles, o judaico-
cristianismo e a ideologia do Iluminismo. Não
vou retomar aqui sua demonstração, a não ser
Desenvolvimento, um paradigma para dizer que o desenvolvimento acabou por
fetiche apontar um movimento que, por analogia com
o vivo, aparece ao mesmo tempo como natural,
A natureza do vínculo que hoje em dia for- desejável e inevitável. É assim que somos leva-
ça as populações indígenas ao desenvolvimento dos a acreditar que, a exemplo do crescimento
não é nova se comparada ao que pôde se produ- de uma planta, o desenvolvimento era um pro-
zir no passado. Com efeito, ao longo da histó- cesso linear, cumulativo, contínuo, irreversível
ria, os contatos que visavam à dominação desses e sujeito a uma finalidade. O fracasso do desen-
povos longínquos e até aquele momento des- volvimento em termos globais certamente aba-
conhecidos pelos colonizadores, comerciantes, lou a fé cega na inevitabilidade do movimento.
militares e missionários, foram marcados pelo Contudo, longe de contestar a própria crença
extermínio, pela exploração ou, no mínimo, e as realizações devastadoras que dela resultam,
pela subordinação. Toda vez, esses abusos fo- esses fracassos continuam sendo interpretados
ram cometidos em nome de valores dos quais se como erros de percurso, devidos tanto aos es-
orgulhavam as nações cristãs européias e eram pecialistas e à estrutura do sistema econômico
acompanhados de discursos que visavam ao internacional como aos obstáculos culturais ou
mesmo tempo compensar, explicar e justificar a à má gestão desse ou daquele projeto, a uma fra-
desapropriação e até mesmo o desaparecimento queza teórica ou ainda a uma catástrofe natural,
físico dos povos indígenas. De certa maneira, a ao passo que as partes mandantes da construção
compensação da conquista e da escravidão era do desenvolvimento enquanto mito fundador
de cunho religioso e missionário. Durante o do Ocidente continuam intactas3. A epopéia
empreendimento colonial propriamente dito, o industrial é uma narrativa cujos episódios con-
discurso compensatório se apoiava nos valores tinuam a ser contados através de realizações em-

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Quem impede o desenvolvimento “circular”? | 221

blemáticas, as quais constituem aqueles sinais co e cultural determinado, e, portanto, não é


que, aos olhos dos incrédulos, deveriam supos- transcultural, mesmo se ele continua passando
tamente restituir a fé no progresso. a idéia de que forma a trama do bem-estar e
do florescimento dos indivíduos e coletividades
A noção de desenvolvimento, conceito da ONU em escala mundial.
e um dos principais desse meio de século, é uma A dicotomia do “bom” e do “mau” desen-
palavra-chave na qual se encontram todas as in- volvimento não é então de nenhuma ajuda
terpretações ideológicas e políticas dos anos 50 para explicar as práticas além daquelas que
e 60.4 Mas será que houve realmente uma refle- estão ligadas ao aumento da produtividade, à
xão? Ela se impôs como noção dominante, ao lógica do lucro individual e à estratégia dita de
mesmo tempo evidente, empírica (medida pelos “satisfação das necessidades básicas”5. Pensar o
índices de crescimento da produção industrial e desenvolvimento para as populações indígenas
do aumento do nível de vida), rica (representan- como aquilo que deveria idealmente ser alimen-
do em si mesma ao mesmo tempo crescimento, ta a tentação de projetar modelos e valores que
florescimento, e progresso da sociedade e do in- supostamente valem para todos. Se quisermos
divíduo). Mas não notamos que essa noção era entender o que acontece realmente, indepen-
também obscura, incerta, mitológica, e pobre dente das intenções e desejos por mais louváveis
(Morin, 1977, p.241). que sejam, é melhor desde já considerarmos o
desenvolvimento enquanto relação inscrita em
Bem que tentamos classificar os problemas um dado jogo de forças que revela a História. A
pela adição de prefixos: sub-desenvolvimento, natureza dessa relação é caracterizada por uma
“supra-desenvolvimento”, mal-desenvolvimen- valorização geral das pessoas e recursos naturais
to, auto-desenvolvimento, endo-desenvolvi- através dos mecanismos do mercado. Ou, em ou-
mento ou até etnodesenvolvimento. Mas o tras palavras, por uma transformação sistemá-
mesmo paradigma (o desenvolvimento) se man- tica da natureza e das relações sociais em bens
tém apesar de tudo, e com ele a confusão con- e serviços para o mercado. Visto desse ângulo,
ceitual a que está ligado. o desenvolvimento aparece como o empreen-
Deste modo, mesmo que a noção de pro- dimento de destituição e expropriação em pro-
gresso seja hoje em dia submetida a sérias crí- veito de minorias dominantes mais vasto e mais
ticas, o caráter normativo do desenvolvimento abrangente que já existiu. É nesse sentido que o
como resposta positiva e quase mágica aos pro- “bom” desenvolvimento não poderia existir.
blemas que ele mesmo contribuiu para criar “A batalha titânica entre poderes homoge-
continua gravado nas consciências e no imagi- neizadores e capacidades diferenciais” (Lefe-
nário coletivo. bvre, 1970, p.49) se desenrola no campo do
Os países industrializados, e os que, a exem- desenvolvimento como relação, e constitui seu
plo daqueles, seguem a via do crescimento in- maior risco. Como observa Claude Alvarez,
finito, encarnam em suas práticas esse mito
incrivelmente persistente segundo o qual o o simples fato de manter certos padrões de
desenvolvimento demarca de certa maneira o vida no seu nível atual implica em um estado
traçado da Historia. O evolucionismo social é de guerra permanente. As sociedades avançadas
sua filosofia, tanto explicita quanto latente. estão atualmente esgotando seus recursos a um
Ora, sabemos que o desenvolvimento é ritmo vertiginoso e, por meio das multinacio-
uma noção afluente de um contexto históri- nais e instituições financeiras internacionais,

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tentam assegurar o controle de outros. (...) É por serem supostamente alternativas. Com efei-
uma guerra que ocorre em período de paz, que to, falar de auto-desenvolvimento, de etnode-
não poderíamos comparar com aquelas que a senvolvimento e de desenvolvimento endógeno
precederam, mas onde o número de vítimas será não resulta em nada a priori. O desenvolvimen-
muito mais alto, assim como o de soldados sem to não é uma caixa vazia que poderíamos encher
uniforme (Alvarez, 1988, p.59). ao gosto das identidades culturais, mas sim um
conjunto de práticas fundadas em uma visão de
O sistema econômico internacional, os mundo específica e particular ligada a uma histó-
grandes projetos de desenvolvimento e, de ma- ria das nações industrializadas, e nos seguintes
neira mais dissimulada, um grande número de princípios: o indivíduo atomizado como uni-
pequenos projetos, expropriam os povos au- dade de referência “social”; a domesticação e a
tóctones não só de suas terras ou do subsolo, exploração dos recursos naturais sem se preo-
mas, ainda, de suas relações com a natureza, cupar com sua renovação; o lucro; o mercado
o cosmos, os ancestrais e os deuses. Essa desti- mundial; a racionalidade econômica; o pensa-
tuição também diz respeito às relações sociais, mento cartesiano, uma concepção linear e ob-
ao saber indígena, aos laços específicos que dão jetiva do tempo; e uma mitificação da ciência
vida ao tempo e ao espaço. e da técnica. Levando em conta o que precede,
Apesar dos decênios pelo desenvolvimento falar do desenvolvimento auto-centrado ou de
sucessivamente anunciados pelas Nações Uni- etnodesenvolvimento é uma contradição em
das e da elaboração de um quarto decênio em termos, pois ao enfatizar a identidade étnica
vista dos anos 90, somos forçados a reconhe- não conseguimos fazer desaparecer como num
cer a falha global do empreendimento, mesmo passe de mágica os pressupostos culturais (isto
que o tenhamos julgado pela medida das in- é econômicos, sociais e políticos) incluídos na
tenções e promessas expressas. Em contrapar- noção de desenvolvimento que continua a ser,
tida, se invertermos a perspectiva e avaliarmos na ideologia dominante, a referência obrigató-
o desenvolvimento de acordo com os efeitos de ria do bem-estar, ainda que coletivo.
suas práticas, podemos concluir que ele teve Além dos termos, as práticas são teste-
sucesso, na medida em que foi eficaz em seu munhas dessa contradição. Como mostrou
papel transformador dos recursos naturais e Dominique Temple (1988), as organizações
das relações sociais em bens de mercado e em não-governamentais (ONGs) que, em princí-
capital financeiro, e que resultou efetivamente pio, e dado seu tamanho, têm acesso às comu-
na expropriação dos mais pobres em benefício nidades mais carentes e mais isoladas, portanto
dos mais ricos. aos povos autóctones, são as cabeças de chave
de uma introdução tão perigosa em termos de
valores quanto aquela apoiada pela ação de
Alternativas ao desenvolvimento ou atores econômicos mais poderosos. Os proje-
desenvolvimento alternativo? tos das ONGs surtem efeito principalmente
no nível microeconômico, atingindo com isso
Tentar imaginar uma conexão social em re- o sistema da reciprocidade comunitária. A
lação aos povos indígenas que não seja aquela autora cita um exemplo da atividade de uma
formalizada pelo desenvolvimento requer uma grande ONG Norte-Americana que trabalha
radicalização da crítica do desenvolvimento até com as comunidades dos Andes bolivianos.
em suas formas apresentadas como louváveis Nessas comunidades, por ocasião de um casa-

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Quem impede o desenvolvimento “circular”? | 223

mento, por exemplo, é escolhido um padrinho A noção mesma de “projeto”, canal auto-
que tem sua autoridade fundada nos dons ou mático e aparentemente obrigatório da ajuda,
redistribuições os quais ele preside. A ONG deve ser revista. O projeto corresponde antes
em questão, intitulada “Plan para el Padrino” de tudo a uma necessidade das ONGs: é por
(Projeto para o padrinho), pretende conservar meio deles que elas justificam sua ação e se re-
as relações de “parentesco” entre as famílias in- produzem. Como afirma Esteva,
dígenas e americanas análogas àquelas existen-
tes nas comunidades aymara ou quéchua. As não temos um “projeto”. Temos desejos, espe-
famílias doadoras fornecem os fundos que são ranças, iniciativas e modos de vida que se trans-
distribuídos na comunidade pela ONG. Ana- formam ininterruptamente para se adaptar às
lisando pelo lado dessas doações, esta última mudanças cotidianas da nossa vida.
usurpa a autoridade tradicionalmente exercida
pelo “verdadeiro” padrinho e se aproveita dessa Ora, o trabalho de desenvolvimento junto
situação de poder para propagar valores reli- aos povos autóctones consistiu acima de tudo,
giosos estranhos às comunidades indígenas. E, até recentemente, em modificar com a ajuda
no entanto, os “agentes do desenvolvimento” de projetos a economia indígena de maneira
alegam seguramente que nesse caso o projeto é com que ela esteja em contato com o merca-
testemunha da sua vontade de “levar em con- do, às vezes com a oferta de serviços de saúde
sideração a dimensão cultural do desenvolvi- e educação. Certamente existem exceções, mas
mento”, palavra de ordem do decênio para um poderão elas ser ainda designadas pelo rótulo
desenvolvimento cultural inaugurado em 1988 “projetos de desenvolvimento”? Não seriam
pela Assembléia geral das Nações Unidas. Não elas melhor compreendidas se procurarmos ne-
bastaria repetir exaustivamente que essas boas las as alternativas ao desenvolvimento? Assim
intenções não são ipso facto uma garantia de se deu o caso exemplar do contrato que uniu o
resultados satisfatórios para as “comunidades- Conselho dos Aguaruna e Huambisa no Peru
alvo”. a um organismo composto por profissionais «
O mexicano Gustavo Esteva (1989) veio brancos » (Desenvolvimento do Alto-Marañon,
também, com base em suas experiências no o DAM). A idéia era inverter, com o aval dos
campo do desenvolvimento, a temer ainda índios, as prioridades clássicas do desenvol-
mais o trabalho das ONGs do que aquele dos vimento: os projetos de agricultura, saúde e
especialistas governamentais. marketing foram considerados como simples
meios (ou pretextos) implementados para atingir
A nova onda de “desenvolvedores” provenientes uma finalidade: a constituição de uma organi-
das ONGs e que agora se lança sobre o país é zação autóctone, representativa e autônoma. O
ainda mais ameaçadora do que os especialistas DAM havia estimado um período de dez anos,
convencionais, agentes do progresso. Essa onda os quais seriam necessários para atingir esse ob-
atingiu novos horizontes e penetrou profunda- jetivo. Ao final de nove anos, o Conselho havia
mente.(...) Enquanto os discursos dos especialis- se tornado suficientemente forte e crível para
tas governamentais nunca nos pareceram muito poder dispensar os serviços do DAM nas rela-
convincentes, o compromisso pragmático e bem ções que ele mantinha com os funcionários do
intencionado dos colaboradores das ONGs en- governo, os missionários e os colonos.
fraqueceu nossa resistência e conquistou nossas Nessa mesma ordem de idéias, certas orga-
almas. (Esteva, 1989) nizações indígenas que representam suas comu-

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224 | Dominique Perrot

nidades estão produzindo um conhecimento Direito ao desenvolvimento e povos


sociológico aprofundado e complexo das mu- autóctones
danças políticas e organizacionais da ajuda.
Prova isso uma organização indígena que re- No final de 1986, as Nações Unidas pu-
dige suas demandas com termos que levam em blicaram discursos que tratavam do desen-
conta a identidade da organização doadora. Ela volvimento, uma “Declaração sobre o direito
propôs a um organismo religioso ecumênico ao desenvolvimento”. Esse texto não leva em
de apoiar o “ecumenismo indígena”. O proje- consideração os problemas do meio ambiente
to real dizia respeito na verdade à formação de criados pelo desenvolvimento, nem menciona
líderes indígenas. Nesse caso específico, e em os povos indígenas e sua posição particular no
outros, não se trata sempre de simples jogos e contexto do Estado-nação. O desenvolvimento
falcatruas, mas sim de uma aliança com alguém é aí definido como
de dentro da ONG que esteja determinado a
trabalhar para permitir a exploração pelos “par- um processo global, econômico, social, cultural
ceiros” dessa margem de manobra ainda dispo- e político, que visa melhorar continuamente o
nível graças à engenhosidade. Entenderemos bem-estar do conjunto da população e de to-
com facilidade que a informação que diz res- dos os indivíduos, com base em sua participação
peito a essa apropriação de conhecimento deve ativa, livre e significativa pelo desenvolvimento
ser mantida em segredo. Os Nandeva do Para- e na divisão eqüitativa dos benefícios que dele
guay até criaram uma expressão, “a caça à aju- advêm (ONU, 1986).
da”. O manual de campo publicado em 1988
pela OXFAM (Beauclerk; Narby, Townsend, Assim, os sujeitos do desenvolvimento são
1988) fornece as diretrizes de reflexão e ação também os objetos no interior de um processo
para as ONGs que trabalham em ambientes que evoca a metáfora de um avião sem piloto,
autóctones. Na medida em que admitimos que o qual não se sabe de onde vem nem para onde
certas ONGs têm às vezes um papel a desem- vai. Por outro lado, como se trata de uma defi-
penhar dento de certos limites bem precisos, nição idealista daquilo que o desenvolvimento
esse manual é um modelo desse gênero. deveria ser, os interesses e conflitos que estão
De qualquer forma, seria uma boa idéia se os em jogo e que sozinhos imprimem suas marcas
agentes do desenvolvimento junto aos povos in- no campo são anulados como por um passe de
dígenas considerassem a seguinte recomendação: mágica. A impressão de irrealidade que emana
dos diferentes artigos, acentuada pelo uso fre-
No que diz respeito aos projetos de desenvolvi- qüente da tautologia, nos esclarece antes sobre
mento que supostamente beneficiariam as mi- as limitações retóricas necessárias à redação de
norias, deveríamos, em geral, partir da hipótese um texto que deverá ser aprovado pelos Esta-
segundo a qual os projetos correm o risco de dos membros das Nações Unidas, que sobre a
serem implantados em detrimento das popu- maneira como um grupo, um indivíduo ou um
lações e inverter o fardo da prova: estabelecer Estado poderá exercer esse direito ao desenvol-
primeiro se o projeto tem condições de cumprir vimento. O valor performativo da Declaração
uma função protetora indispensável e avaliar se se contenta com seu caráter encantatório e de-
o desenvolvimento desejado pela minoria será clamativo.
ou não impedido por essa intervenção exterior Citando o artigo 1.2,
(Rediske; Schneider, 1987, pp.155-160).

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Quem impede o desenvolvimento “circular”? | 225

O direito humano ao desenvolvimento implica Definir os elementos do direito ao desenvolvi-


também a plena realização do direito de auto- mento apresenta ainda grandes dificuldades,
determinação dos povos que inclui, sujeito às pois, além de ter que vencer a resistência da re-
disposições relevantes de ambos os Pactos Inter- lação de forças é preciso ainda:
nacionais sobre Direitos Humanos, o exercício - especificar o conteúdo e os titulares desse di-
de seu direito inalienável de soberania plena reito;
sobre todas as suas riquezas e recursos naturais. - dizer quem o irá garantir e como;
(ONU, 1986) - regulamentar a contradição entre o direito ao
desenvolvimento e as outras regras do direito in-
Os povos autóctones e as minorias não es- ternacional (Gendreau, 1988, p.248).
tão explicitamente nomeados, e com razão: o
direito ao desenvolvimento associado ao direi- Além das dificuldades aqui mencionadas,
to à autodeterminação diz respeito somente às como evitar o etnocentrismo de uma defini-
populações nacionais consideradas em sua ho- ção normativa deixando o desenvolvimento
mogeneidade fictícia. Isso não impede que esse no singular?
artigo reúna no papel o que esses povos indíge- Para os povos autóctones, é antes de tudo
nas sempre exigiram, a saber, a autodetermina- o direito à autodeterminação que constitui o
ção, a inalienabilidade das terras e dos recursos imperativo primordial. Só depois da garantia
e a soberania sobre seu território. Ao mesmo dos direitos elementares à vida e à liberdade,
tempo, esses princípios não estão, a nosso ver, aos quais está ligada a sobrevivência do grupo
e como pretende a Declaração, incluídos no di- como tal, é que ele estará em condições de defi-
reito ao desenvolvimento. Por um lado porque nir o que espera ou rejeita da modernidade.
eles o precedem, e de longe, no tempo; e por Se a declaração sobre o direito ao desenvol-
outro lado porque a autodeterminação é um vimento não menciona a existência de povos
princípio cujas diferentes modalidades de apli- autóctones, a versão revisada da convenção 107
cação não saberíamos julgar. Estas dependerão sobre as populações tribais e indígenas, adotada
do projeto social e existencial de cada grupo, pelo BIT6, trata só deles. É aí, especificamen-
tendo em vista o seu meio ambiente e a natu- te, que as coisas se complicam: a participação
reza da relação que o coloca em conflito com a dos representantes dos povos indígenas na ela-
sociedade nacional, do Estado e das forças eco- boração do texto foi muito marginal. Cada
nômicas transnacionais. organização teve a oportunidade de fazer uma
Conseqüentemente, não saberíamos fazer breve declaração no primeiro dia da reunião
equivaler o direito à autodeterminação e o do comitê e depois um comunicado durante
direito ao desenvolvimento, visto que a pro- as diferentes etapas da discussão. O resto do
clamação recente de um direito ao desenvol- tempo os representantes indígenas foram rele-
vimento tem como conseqüência cobrir com gados à periferia do debate, reduzidos ao status
um véu as relações de força e os jogos políticos de espectadores da encenação dos seus direitos
nos quais está inscrita a luta dos povos indíge- fundamentais. Além disso, como menciona o
nas pelo direito à autodeterminação. Esse esta- relatório anual do IWGIA de 1988:
do de coisas se estende naturalmente às outras
categorias sociais dominadas, diante das quais Estava claro que muitos daqueles que parti-
agitamos a bandeira do desenvolvimento como ciparam abertamente da reunião não tinham
remédio para todo mal... experiência alguma com questões indígenas e

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tomavam decisões que afetariam 300 milhões genas) de participar da elaboração, execução e
de pessoas, inconscientes do peso da responsa- avaliação dos planos e programas de desenvol-
bilidade que recaía sobre seus ombros (IWGIA, vimento nacional e regional? Somos levados a
1988, p.169). nos perguntar se os princípios enunciados de
participação e consulta (artigo 6), mas sem que
As delegações de trabalhadores defenderam um consentimento prévio da parte dos povos au-
em princípio a causa indígena, fosse através da tóctones seja requisitado, não correm o risco de
ajuda dos contatos que eles tinham com as or- acarretar, com sua execução, a integração e a
ganizações indígenas, fosse incluindo em suas assimilação que a Convenção estava encarrega-
fileiras representantes indígenas. da de superar.
Em relação aos debates sobre o desenvolvi- A posição dos indígenas presentes não foi
mento, o que estava em jogo eram palavras. Fi- homogênea a esse respeito, pois alguns con-
nalmente, os termos “participação” e “consulta” sideravam que o conceito de participação era
marcaram o limite do reconhecimento dos di- compatível com aquele de controle. Quanto à
reitos indígenas. Eles têm conseqüências pesa- Coalizão nacional das organizações aborígines
das, pois são, no negativo, a perda do controle da Austrália, ela se retirou do processo de revi-
ou do direito de veto sobre os projetos impostos são. Em sua declaração de retirada, defendeu
de fora e que afetam as populações indígenas. O a seguinte posição sobre a questão do direto à
primeiro ponto do artigo 7 da Convenção 107 autodeterminação ligada àquela do consenti-
revisada estipula que: mento prévio:

Os povos interessados deverão ter o direito de Na nossa opinião, o respeito desse direito (à
decidir suas próprias prioridades no que diz autodeterminação) só será garantido na medida
respeito ao processo de desenvolvimento, na em que nosso consentimento está assegurado
medida em que este afete suas vidas, crenças, nas questões que nos dizem respeito. Os go-
instituições e bem estar espiritual e as terras que vernos e empregadores reconhecem muito bem
ocupam ou utilizam de alguma maneira, e de esse direito quando defendem os seus interes-
controlar, na medida do possível, seu próprio ses. Vocês acham que não temos consciência do
desenvolvimento econômico, social e cultural. verdadeiro significado de termos como consul-
Ademais, esses povos deverão participar na for- ta, participação e colaboração? Vocês ficariam
mulação, aplicação e avaliação dos planos e pro- satisfeitos com uma “consulta” como garantia
gramas de desenvolvimento nacional e regional dos seus direitos? A menos que os governos não
que podem afetá-los diretamente.. sejam obrigados a obter o nosso consentimen-
to, nós continuaremos vulneráveis às correntes
Sem querer fazer a exegese desse artigo, é legislativas e administrativas que terão como re-
preciso notar que a adjunção da expressão “tan- sultado inevitável a destituição e a desintegração
to quanto for possível” enfraquece considera- social de nossos povos. As vítimas são sempre as
velmente o direito, há pouco concedido, de primeiras a conhecer a maneira como o sistema
controle dos povos autóctones sobre seu pró- opera (IWGIA, 1988, p.185).
prio desenvolvimento. Por outro lado, quem
irá dizer como conciliar um “desenvolvimento Apesar de suas lacunas, a Convenção revisa-
próprio” e a obrigação (implicitamente apre- da é um instrumento interessante, mas falta ser
sentada como uma concessão a favor dos indí- ratificada pelos Estados. Resta ainda dizer que,

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como destaca M. Helms, relator da convenção de maneira irreversível a lógica essencialmente


107, “nenhum texto pode resgatar séculos de transitiva do desenvolvimento. Em compensa-
erros, mas tal texto pode ser uma declaração ção, rejeitar o desenvolvimento é recusar uma
de intenção”. Jacques Decornoy (1989) escre- relação assimétrica que visa converter as pes-
ve a respeito dessa nova convenção: “Seriam soas em elementos atomizados e enfraquecidos
necessárias batalhas longas, sangrentas e mul- de um vasto movimento controlador e impes-
tiformes para que essas vozes minoritárias se- soal. Recusar o desenvolvimento é assumir seu
jam enfim ouvidas” (Decornoy, 1989). Isso é próprio destino e não estagná-lo ou retardá-lo,
concluir apressadamente: nossa escuta estaria a como considera a visão mítica de uma história
tal ponto distorcida que acreditamos escutar as linear própria do Ocidente.
vozes daqueles que silenciamos no seio mesmo Segundo paradoxo: toda sociedade, por for-
da discussão de uma convenção que visava pre- ça de sua reprodução, deve saber enfrentar a
cisamente melhorar o destino dos povos indí- mudança. Esse paradoxo existencial também
genas? Na verdade esperamos que essas “vozes” é verdadeiro para as sociedades comunitárias
participem, sejam consultadas, mas que elas forçadas a entrar em contato com a sociedade
não se atribuam o direito de recusar o desen- moderna tradicional (a tradição da novidade a
volvimento ou de controlar inteiramente o que qualquer preço, a qual o Ocidente tanto susten-
acontece em suas terras. ta, não faz dele uma sociedade tradicional?).

O funcionamento dos mecanismos de reprodu-


Paradoxos do desenvolvimento ção comunitária é a condição do aparecimen-
to das práticas de produção do “novo”, que é
Quando a relação de desenvolvimento visa logicamente seu oposto. Da mesma forma, essa
os povos indígenas, ela se choca com alguns pa- produção de sentido, isto é, essa produção de
radoxos. O primeiro considera que não se pode categorias de pensamento, de organização, de
desenvolver o que já está desenvolvido. Sem instituições destinadas a fazer parte integrante
querer negar a grande diversidade de situações e de um universo social específico (a comunida-
histórias particulares, podemos adiantar que os de) que se apresenta e que é reconhecida às vezes
povos autóctones se distinguem dos outros seg- como uma ruptura em relação ao passado não
mentos da sociedade nacional pelo fato de que é, definitivamente, nada além de uma maneira
não são “desenvolvidos” no sentido comum do de ser sociologicamente necessária à reprodução
termo. Na verdade, as sociedades tradicionais (Sabelli, 1984, p.8).
não aderem à noção de lucro individual infini-
to. Tais sociedades praticam uma economia da Terceiro paradoxo, ligado pela lógica ao pri-
reciprocidade, muitas vezes mais importante meiro: quanto mais economicamente pobre é
que aquela do comércio de mercado; elas não uma sociedade, mais a ajuda, mesmo que bem
têm acesso ao avanço científico do conhecimen- intencionada, é mal absorvida e tem um efeito
to, isto é, à reflexividade sistemática e ao deslo- desestabilizador. É a própria natureza das próprias
camento cognitivo em seu axioma e produzem sociedades autóctones que as faz especificamen-
uma racionalidade holística do social, antes que te vulneráveis em seus contatos com segmentos
uma racionalidade puramente econômica, para de uma sociedade nacional caracterizada por um
evocar apenas alguns traços fundamentais que sistema econômico, político e legal centralizado e
as caracterizam. Ser desenvolvido é ter aceitado por uma divisão do trabalho complexa.

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228 | Dominique Perrot

A lógica do desenvolvimento tende a trans- Em sua análise de algumas organizações da


formar em razões para intervir os fundamentos Oceania, Alain Babadzan (1985) destaca que
de alteridade, a saber, as relações de parentes-
co, o sistema de reciprocidade, a instituição do o compromisso cultural não se expressa por
dom e do contra-dom, a propriedade coletiva meio de fragmentos dissociados reunidos em
da terra ou as relações com o mundo da natu- uma colagem precária: ele se desempenhará,
reza e dos ancestrais. Por sua vez, o discurso do pelo contrário, pela dupla negação dos princí-
desenvolvimento investe as sociedades indíge- pios fundamentais e contraditórios de cada um
nas de supostas necessidades estranhas ao seu dos dois sistemas. É somente após a recusa de
projeto social. cada um nos termos do outro que as representa-
Se o primeiro e o segundo paradoxo expõem ções em conflito poderão ser fundidas numa
a vulnerabilidade das sociedades indígenas face representação sincrética única, onde sua oposi-
à lógica específica do desenvolvimento, o ter- ção deixará de se manifestar.Ademais, cada traço
ceiro incita um maior otimismo, pelo menos a sincrético será portador desse duplo movimento
curto prazo. de ruptura e continuidade com a Tradição, de
A hipótese que resulta disso é a seguinte: afirmação e negação do arcaico, de assimilação e
quando certo espaço e tempo lhes são ofere- de rejeição da participação ocidental (Babadzan,
cidos, os povos autóctones conseguem, a des- 1985, pp.117-118).
peito dos conflitos internos e das renúncias
impostas, elaborar táticas que lhes permitem se Cada fragmento tributário de universos
reinterpretar numa nova situação ou ambiente, culturais antagônicos está “previamente inter-
e se adaptar sem se renegarem. Falar de acul- mediado”, e são esses elementos intermediados
turação nesse caso seria correr o risco de ficar que o sincretismo une. Babadzan acrescenta
devendo muito a universos teóricos predeter- que isso só se dá quando elementos importan-
minados e que não dão importância suficiente tes aparecem como radicalmente incompatí-
aos desenvolvimentos recentes no universo dos veis no interior de um dado universo cultural e
contatos interculturais. Na verdade, trata-se quando sua superação é indispensável à repro-
freqüentemente de uma coabitação de vários dução socio-cultural do grupo. Esse é o caso de
níveis tradicionais e modernos cuja articula- uma das figuras centrais do sincretismo religio-
ção requer todo um trabalho social e simbólico so da Polinésia: os Varua’ino, que vêm ao mes-
delicado, e que não saberíamos reduzir nem a mo tempo da religião tradicional e da religião
uma resistência declarada nem ao efeito de uma cristã.
sobrevivência passiva. Esse trabalho, quando O exemplo do Juluru, culto dos aborígines
obtém “sucesso”, culmina na criação das con- da Austrália ocidental e central, é também tes-
dições para uma superação possível da dupla temunha de uma elaboração cultural que visa o
restrição com a qual se choca toda a sociedade controle de uma situação nova. Resumindo ex-
em contato mais ou menos forçado com ou- tremamente a análise que Barbara Glowczewski
tra que a domina: ter que negar a si mesmo e (1983) faz desse culto de iniciação, podemos
não poder fazê-lo, ter que assimilar elementos dizer que os homens, por meio da queima de
estranhos e também não poder, isso sem falar um objeto (as “mesas”), obtêm ao término des-
na vontade, que muitas vezes falta, apesar da sa transformação o domínio sobre uma nova
força de sedução de certos aspectos materiais relação com o objeto. Existe, portanto, uma
do “modelo” exógeno. adaptação face a uma conjuntura inédita por

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 219-232, 2008


Quem impede o desenvolvimento “circular”? | 229

meio de uma inversão: o culto tradicional con- raizado nas práticas religiosas e rituais que asse-
sagrava a morte iniciática do homem (e não do guram as relações – pacíficas entre os membros
objeto), do grupo e os não-Masaï, harmoniosas entre o
meio-ambiente e o sagrado. Nesse contexto, o
o valor dos homens que transforma sua morte rebanho é uma interface entre natureza e cul-
simbólica torna-se o valor de substituição que tura, enquanto os produtos da criação forne-
os eleva ao status de sujeitos. No entanto, no cem os meios de comunicação com os vizinhos
Juluru, o valor de um objeto transformado (as agricultores.
mesas queimadas, portanto sacrificadas) torna-
se o dos homens que se atribuem dessa forma,
o domínio do que aquele objeto representa (...) A retórica do desenvolvimento
Essas mercadorias trazem consigo sua lei: a lei
dos Brancos. Os Aborígines não querem que ela O futuro dos povos autóctones se desenha
substitua a lei deles, mas poder seguir paralela- em termos de etnocídio, integração à sociedade
mente as duas (Glowczewski, 1983, pp.7-35). dominante, mestiçagem cultural, sobrevivência
ou resistência? Nesse final do século XX, ainda
Como diz a autora, a diferença fundamen- é possível encontrar casos que correspondem a
tal é que esses objetos “brancos” não são sagra- cada uma dessas imagens, não sendo essas nada
dos, não são metamorfoses das forças vitais das mais que modalidades da relação entre os po-
quais participam os homens de acordo com a vos autóctones e o desenvolvimento.
lei aborígine tradicional. Mas o Juluru, preci- Toda preocupação ou interesse com relação
samente, permite aos Aborígines administrar aos povos autóctones, como também com rela-
a mediação de uma relação diferente com a ção ao futuro do planeta, supõe antes de tudo
matéria, o que torna possível a troca simbólica a localização rigorosa dos efeitos perversos da
com os Brancos. língua e das práticas do desenvolvimento, uma
O caso dos Ilparakuyo, povo pecuário compreensão profunda da sua lógica.
pertencente à família dos Massai, no Quênia,
também demonstra a necessidade de ajustes e Se o desenvolvimento é sinônimo de cultura
respostas apropriadas face à ameaça a seu modo ocidental, ou, o que significa a mesma coisa,
de vida representada pelas invasões crescentes se é indissociável do Projeto que é a sociedade
de suas terras e fontes de água pelos campone- ocidental, então implantar “projetos de desen-
ses que sofrem com o desenvolvimento. Alguns volvimento” nos projetos não-ocidentais é o
buscaram, fora das áreas invadidas, espaços mesmo que forçar estacas quadradas em buracos
que lhes permitiriam continuar a viver como redondos, retangulares, hexagonais (Singleton,
criadores, enquanto outros acentuaram a in- 1990).
terdependência no plano econômico com os
agricultores de áreas próximas. Essas tentativas Diante desse dilema, a problemática da “di-
visam a adaptação a um capitalismo periférico mensão cultural” (Perrot, 1989) ou a promoção
sem por isso sucumbir à “estabilidade campo- do “desenvolvimento cultural”7 só complica a
nesa” que tem como efeito, no fim das contas, situação. Com efeito, a cultura autóctone não
a proletarização, a marginalização e a divisão saberia ser uma dimensão do desenvolvimento,
em classes onde anteriormente ela não existia uma vez que o desenvolvimento é ele mesmo o
(Rigby, 1985). Aqui também, o risco está en- cerne duro da cultura das sociedades ocidentais. A

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 219-232, 2008


230 | Dominique Perrot

retórica da dimensão cultural se apóia em uma possuem a mesma concepção do que deveria
metáfora inconsciente segundo a qual bastaria ser esse famoso desenvolvimento. O dialeto do
despejar o conteúdo do desenvolvimento em desenvolvimento transforma tudo o que se faz
um recipiente cultural. Ora, a dimensão cultu- em nome do desenvolvimento em realização de
ral do desenvolvimento é realmente uma con- desenvolvimento, ele tem um caráter performa-
tradição em termos, exceto no que diz respeito tivo quase mágico no plano do imaginário. E,
às sociedades nas quais o desenvolvimento é o contudo, na prática, apesar da vasta burocracia
projeto e a religião: quem ousaria atacar o de- do Indian and Inuit Affairs (IIA), encarrega-
senvolvimento sem dar a receita para outro... do de cuidar de todos os assuntos indígenas e
desenvolvimento? inuits em nível federal (1,7 milhões de dólares,
Tentar sair do paradigma dominante supõe 5800 funcionários em 1982), a situação estru-
a compreensão de como funciona a linguagem tural de fundo, isto é, a pobreza indígena face à
do desenvolvimento. Certamente existe um abundância euro-canadense “branca” continua
código técnico cujo domínio permite formular sendo a regra, apesar dos esforços e os anos de
uma proposta de financiamento de um projeto desenvolvimento. Somos forçados a constatar
nos termos que sejam congruentes à ideologia que o essencial está na verdade não no advento
e ao funcionamento burocrático da instituição do desenvolvimento, por sinal impossível de
para a qual se dirige o requerente. Trata-se de encontrar, mas sim na manutenção a todo cus-
uma simples competência que é preciso ad- to dos fluxos financeiros e da reprodução dos
quirir. Não é desse código que queremos fa- organismos de desenvolvimento.
lar aqui, mas sim de um dialeto, uma espécie A fraseologia do desenvolvimento demarca
de esperanto da modernidade. Entre os povos um campo no qual os atores indígenas e não-
autóctones, certas comunidades indígenas e indígenas podem investir juntos sem correr os
inuit do Canadá entenderam a necessidade de riscos de uma ruptura da comunicação, riscos
utilizá-lo levando em conta que é o único idio- presentes quando a confrontação se dá direta-
ma de comunicação entre as diferentes partes mente em termos de representações étnicas ne-
presentes. No caso estudado por Yngwe Ge- gativas e denegridoras.
org Lithman (1984), os diferentes atores em-
penhados nas ações de desenvolvimento (em Expressar a relação em termos de desenvolvi-
Manitoba e no Yukon no Canadá) utilizam mento se torna assim um meio de evitar falar
a linguagem do desenvolvimento, seja como daquilo que existe realmente. (...) Por meio das
instrumento de mediação indispensável para características atemporais, transitórias, difusas e
conseguir dinheiro (perspectiva dos índios), descontextualizadas do idioma do desenvolvi-
seja como meio de legitimar as ações e atrair mento, torna-se possível uma união em torno
fundos (perspectiva da burocracia das agên- da necessidade de manter fluida a circulação dos
cias de desenvolvimento). Enfim, é utilizada recursos (Lithman, 1984, pp.262-263).
também pelos especialistas em suas relações a
fim de conceder a elas uma maior legibilidade, Para os índios, o desenvolvimento seria a
bem como uma legitimidade, uma prova de supressão dos traços negativos da situação atual
que estão realmente no campo do desenvolvi- (antes de tudo a falta de possibilidades de en-
mento. Cada parceiro registra então suas pre- contrar um emprego) e a criação de uma maior
ocupações, necessidades, objetivos, realizações autonomia indígena. Mesmo sem chegar lá, e
em termos de desenvolvimento, mas todos não seria somente para manter o nível sócio-econo-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 219-232, 2008


Quem impede o desenvolvimento “circular”? | 231

mico atual, o acesso à assistência é indispensá- 4 Isso perdurou nos anos 70 e 80. Aliás, é assunto no
vel e, conseqüentemente, a inserção na retórica meio do desenvolvimento do 4º decênio do desenvol-
vimento nos anos 90.
do desenvolvimento é inevitável.
5 A estratégia reduziu as comunidades a um conjunto
A tarefa não é fácil para os povos autóctones de indivíduos biológicos e não sociais, pouco diferen-
que buscam criar uma série de novas relações ciados da fauna na apreciação de suas demandas.
com os Brancos, o dinheiro, os poderes exter- 6 Cf. Texto da convenção que concernente aos povos indí-
nos, outros deuses, relações que não colocam genas e tribais nos países independentes, entregue pelo
em perigo o cerne duro do edifício tradicional comitê de redação, BIT, Conferência internacional
do trabalho, relatório provisório, sessão 66, Genebra,
nem as atribuições da identidade. É, contudo,
1989, 25A. Esse texto foi adotado, com 328 votos a
no interior das zonas traçadas pelas condições favor e um contra, sendo este da representante dos
de possibilidade de sincretismos sutis que atu- funcionários dos Países Baixos, e 49 abstenções, entre
am as novas formas de uma sobrevivência, elas a de representantes governamentais da França.
sempre ameaçada de efemeridade pelo avanço 7 Um decênio mundial consagrado ao desenvolvimen-
acelerado da modernidade. to cultural foi publicado pelas Nações Unidas e a
UNESCO em 1988. Ver UNESCO (1986).

Quadro da última página


Referências Bibliográficas
“Desenvolvimento”? ALVAREZ, Claude. Non au développement. In: VA-
Nos discursos consagrados ao desenvolvi- CHON, R.; Takahatake, T. (Orgs.), Alternatives au
mento, a palavra desenvolvimento geralmente développement: approches interculturelles du dévelop-
aparece entre aspas, como se os autores quises- pement et de la coopération internationale. Montreal :
sem manter um certo distanciamento crítico, Centre interculturel Monchanin. 1988. p.59
BABADZAN, Alain. Tradition et Histoire: quelques
sublinhar seu ceticismo em relação à noção de
problèmes de méthode. Cahiers de l’ORSTOM, série
desenvolvimento ou às práticas que ela supos- Sciences humaines, vol. XXI, nº1, p.117-118, 1985.
tamente legitima. BEAUCLERK, John; NARBY, Jeremy; TOWNSEND,
O desenvolvimento não é destruidor pelo Janet. Indigenous Peoples, A field guide for Development.
fato de que ameaça todo povo tradicional, mas Oxford: Oxfam. 1988. 121 p.
sim porque, em geral, sua lógica prometeica BURGER, Julian, Report from the Frontier: The State of the
World’s Indigenous Peoples. London: Zed Books Ltd and
exige que a abundância material excessiva de
Cambridge, Mass.: Cultural Survival Inc., 1987. 310 p.
uns acarrete a destituição de outros. DECORNOY, Jacques. Minorités indigènes, l’identité
comme garantie de survie. Monde diplomatique, juin
1989.
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Notas sory Images of Green Primitivism. Anthropology To-
day, vol.2, nº6, p.8-12, 1986.
ESTEVA, Gustavo. Eine Absage an das Entwick-lungs-
modell dês NGO’s: die Gefahr der neuen Entwickler.
1 Politóloga, Instituto Universitário de Estudos do De-
Aktuell, nº2/89, Bern, Information Dritte Welt.
senvolvimento (Genebra).
GENDREAU, Monique Chemillier , « Le discours ju-
2 A respeito disso, ver:
ridique sur le développement et as fonction ideolo-
a) Moody (1988)
gique » in COQUERY-VODROVITCH, Catherine,
b) Burger (1987)
HEMERY, Daniel, PIEL, Jean (eds.) Pour une histoire
c) INDIGENOUS Peoples (1987)
du développement. Etats, sociétés, développement.
3 Ver a esse respeito: Riste e Sabelli (1986)
Paris : L’Harmattan, 1988. 283p.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 219-232, 2008


232 | Dominique Perrot

GLOWCZEWSKI, Bárbara. Manifestations symboliques RIST, Gilbert, Le développement dans une perspective inter-
d’une transition économique: le “Jurulu”, culte inter- culturelle. Institut universitaire d’études du développe-
tribal du “cargo”. L’Homme, avril-juin 1983, XXIII ment, Genève, 1985, 50 p
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MORIN, Edgard. Le développement de la crise du dé-
Agradecimentos
veloppement. In : MENDES, C. (Org.) Le mythe du
développement. Paris: Seuil. 1977. p.241-272. Gostaria de agradecer a professora Domi-
ONU. Déclaration sur le droit au développement : réso- nique Gallois, que me deu a oportunidade de
lution 41/128 de l’Assemblée générale du 4-12-1986. conhecer e logo de traduzir esse texto. Também
PERROT, Dominique. La dimension culturelle du déve- gostaria de agradecer a Cadernos de Campo,
loppement: un nouveau gadget. CLES, Cahiers lillois
por ter me oferecido essa oportunidade de pu-
d’économie et de sociologie, nº14, 2ème semestre 1989.
REDISKE, Michael; SCHNEIDER, Robin. Develop- blicar o meu trabalho, e o professor José Mag-
ment Aide- Minorities- Human rights: 10 assertions nani, que também acredita no meu potencial
In: IWGIA Yearbook 1986, pp.155-160, 1987. de tradutora acadêmica. Por fim, quero agra-
RIGBY, Peter. Persistent Pastoralists. Nomadic Societies in decer minha família, meus amigos e meu na-
Transition. London : Zed Press. 1985. 198 p. morado, que sempre me apoiaram nessa minha
trajetória ‘tradutorística’.

traduzido de
Perrot, Dominique. “Les empêcheurs de développer en rond”, Ethnies. Droits de
l’homme et peuples autochtones, n° 13, “La fiction et la feinte. Développement et
peuples autochtones”, Survival International France, 1991.

tradutor Lígia Romão


Graduanda em Ciências Sociais/USP

Recebido em 30/03/2008
Aceito para publicação em 18/08/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 219-232, 2008


A Etnografia da Música segundo Anthony
Seeger: clareza epistemológica e integração das
perspectivas musicológicas
Acácio Tadeu de C. Piedade

A tradução e publicação do artigo “Etno- seja para visitar e desenvolver projetos com os
grafia da Música”, de Anthony Seeger, é uma Suyá ou para ministrar conferências e partici-
ótima oportunidade para refletir sobre a cres- par de congressos. Anthony Seeger acompanha
cente ampliação de áreas e perspectivas para com atenção a produção acadêmica brasileira,
a compreensão da música. Muitas vezes estas a qual conhece com profundidade4. Recém-
entram em choque, ou há debates nos quais se eleito vice-presidente da Associação Brasileira
atacam e se defendem, ou ficam recolhidas em de Etnomusicologia (ABET), Prof. Seeger tem
suas províncias. O cenário muitas vezes pare- sido muito contributivo para o avanço da an-
ce o de uma arena de luta dos campos do sa- tropologia e da etnomusicologia brasileira, e a
ber, à la Bourdieu, sendo que a música, aquela publicação em português do presente artigo se
velha arte de todos os povos, acaba saindo do insere nesta direção.
foco principal. É bom ler este artigo de um in- Como comenta na introdução, Seeger es-
telectual que, revitalizando o pensamento in- creveu este artigo, em 1990, visando uma in-
tegrador de seu eminente avô Charles Seeger, trodução à etnografia da música. Seu estilo
mostra a dificuldade de se conhecer a música pragmático é ideal para estudantes e leitores
como totalidade e a necessidade de integração não especialistas, principalmente porque con-
de diferentes perspectivas teóricas para atingir segue traduzir em uma linguagem simples e di-
este objetivo. reta questões profundas e complexas. O autor
Anthony Seeger é um nome muito conhe- comenta que, se fosse escrever este artigo hoje,
cido na antropologia brasileira. O antropólo- teria que triplicar o volume da bibliografia de-
go norte-americano, que defendeu sua tese de vido aos avanços teóricos e produtividade na
doutoramento em 1974 sobre a sociedade indí- etnomusicologia nos últimos 15 anos, e que
gena Suyá, do Brasil Central1, trabalhou como teria que enfocar mais detidamente temáticas
pesquisador e professor na Universidade Fede- como propriedade intelectual e indústria fono-
ral do Rio de Janeiro de 1975 a 1982. Sua obra gráfica, sobre as quais ele mesmo tem publica-
“Why Suyá Sing”2, assim como os diversos do mais recentemente5.
artigos que escreveu sobre os Suyá, são ampla- Nesta breve apresentação, não pretendo re-
mente lidos no Brasil, referência fundamental alizar esta atualização de bibliografia e nem co-
na área da etnologia indígena e, particular- mentar os avanços teóricos ou novas temáticas
mente, na etnomusicologia3. Após trabalhar que surgiram: creio que o artigo de Anthony
na Smithsonian Institution, Seeger é hoje pro- Seeger vale por si mesmo da forma como está
fessor do famoso Departamento de Etnomu- e trata de questões que continuam atuais. Sua
sicologia da Universidade da Califórnia, em descrição do percurso histórico da etnomusi-
Los Angeles, e vem freqüentemente ao Brasil, cologia, por exemplo, é ampla e irretocável,

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


234 | Acácio Tadeu de C. Piedade

abrangendo, principalmente, o cenário norte- quem a produz é um sujeito que, sendo limita-
americano até a década de 1980. Pretendo des- do por sua natureza, somente pode produzir a
tacar, neste artigo, dois pontos fundamentais sua própria visão do objeto, decorrente de seu
no artigo: a clareza do problema epistemológi- recorte teórico.
co e o ensejo de uma abordagem integradora. Anthony Seeger gosta de usar, em suas con-
Logo de início se pode ver como o autor ferências, a metáfora do corte de uma banana:
vê a abrangência de uma simples performance para se descrever uma banana pode-se cortá-
musical. Pedindo que usemos a imaginação, ele la de várias formas, seja transversalmente, de
logo mostra que ela envolve os músicos e o pú- comprido, ou em fatias, mas a banana descrita
blico, sendo que a música age causando vários será sempre diferente6. Ou seja, o objeto de-
possíveis efeitos e experiências. A descrição des- pende do olhar, o resultado depende do recor-
ta performance na sua amplitude seria a base te. Por mais realista que se tente ser, as decisões
para a etnografia da música. Ao final do artigo, tomadas e aspectos subjetivos estarão sempre
na seção sub-intitulada “Faça Você Mesmo”, a agindo. Devido a esta limitação profundamen-
riqueza do pragmatismo do autor se revela cla- te humana, mesmo que o jovem etnógrafo do
ramente. Aqui também a imaginação do leitor show de reggae tenha lido o artigo de Seeger
é conclamada para observar um show de reggae e tratado de observar os diversos ângulos da
a partir da mesa de um bar. Dali se pode le- performance, ocorrerá que sua etnografia por-
vantar uma quantidade grande de observações tará uma descrição datada e marcada por sua
e questões. Se o âmbito da pesquisa sai da mesa subjetividade e também pela área de seu curso
do bar para outras mesas, o etnógrafo alcança e, não menos influente, pelo seu orientador.
uma nova e complexa teia de fatos, incluindo Toda esta parcialidade não tem que ser ocul-
as categorias nativas. E dali para a constatação tada, ao contrário, sua riqueza se encontra no
dos universos onde estas categorias funcionam fato dela ser revelada, isto eleva o valor da et-
e onde não. O valor heurístico deste exercício nografia. A limitação de cada perspectiva é o
é grande, com certeza qualquer estudante de gancho para tratar do outro ponto que desta-
etnomusicologia sairá enriquecido com esta quei: a abordagem integradora.
leitura. Se a música é um sistema de comunica-
A etnografia não pode deixar de lado os ção, como define o autor, sendo que a comu-
músicos e outros agentes que fazem parte do nicação humana atinge um espectro imenso
fato social a ser descrito. Toda esta investiga- de fenômenos, somente uma abordagem com
ção, a experiência de campo, as observações, os múltiplas perspectivas poderia dar conta de
questionamentos, as entrevistas, as categorias compreender a música. Isto o famoso mu-
nativas, tudo o que se pode perceber que está sicólogo Charles Seeger, avô de Anthony, já
envolvido na performance musical constitui apregoava em meados do século passado, e sua
a etnografia da música. Um lado da questão sinopse revela um esquema ainda hoje interes-
epistemológica está revelado: a complexidade sante. A vastidão de assuntos que concernem
do objeto (performance musical) e a amplidão a música é tal que cada orientação particular
de questões que se pode fazer a respeito dele. somente pode revelar um aspecto da totalida-
O outro lado aparece em forma de anedota, ao de, um corte da banana. As perspectivas têm
final do artigo: uma descrição de uma perfor- diferenças e divergências profundas quanto ao
mance musical, mesmo rica e detalhada, cons- método e às camadas específicas que querem
titui apenas uma perspectiva possível, já que observar, porém há um fator integrador ine-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 233-236, 2008


A Etnografia da Música segundo Anthony Seeger | 235

rente a todas estas disciplinas: a compreensão estudantes de antropologia e etnomusicologia


da música em sua totalidade. Nesse sentido, na atualidade brasileira.
todos os campos do esquema de Charles Se-
eger aparecem inseridos em uma grande área Notas:
que tem este objetivo: a musicologia. Musico-
logia não pode ser sinônimo de apenas uma 1. Seeger (1974).
perspectiva, como os musicólogos históricos 2. Seeger (1987).
3. Ver Coelho (2007).
se acostumaram a tratar no século XX. Além
4. Veja as entrevistas com Anthony Seeger: Bastos
disso, o prefixo “etno” passou a ser incômo- (2003) e Cohn et alli (2008).
do, pois qualquer olhar musicológico carrega 5. Por exemplo, ver Seeger (2004).
o ethnos do autor e do objeto. Ao invés de se 6. Ver Seeger (2003).
separarem e se entregarem às lutas dos cam-
pos de saber, disputando prestígio acadêmico,
legitimidade e recursos, ao invés de insisti- Referências Bibliográficas
rem na sua particularidade e defenderem seus
pontos de vista, as musicologias deveriam se BASTOS, Rafael. Entrevista com Anthony Seeger. Ilha,
visitar, se convidar, se incluir em um projeto Revista de Antropologia, Florianópolis, vol. 5, n. 1, p.
133-156, 2003.
musicológico maior: a compreensão global da
COELHO, Luis Fernando Hering. A nova edição de Why
música. Cada orientação é uma orientação e Suyá Sing, de Anthony Seeger, e alguns estudos recentes
produz um resultado particular, cada banana sobre música indígena nas terras baixas da América do
depende do olhar que lhe corta. Os resultados Sul. Mana, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, pp. 237-249,
são legítimos ao seu modo, e somente uma 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/mana/
ampliação do escopo destes olhares, somente v13n1/a09v13n1.pdf.>. Acesso em: 04 Fev. 2009.
COHN, Clarice et alli. Entrevista: Por que canta An-
um trabalho conjunto pode revelar o objeto
thony Seeger? Revista de Antropologia,  São Paulo,  v.
em suas várias faces. A perspectiva dos Seeger, 50,  n. 1, jun. 2007.   Disponível em: <http://www.
tanto de Charles quanto de Anthony, é inte- scielo.br.>. Acesso em: 16  nov.  2008.
gradora neste sentido. SEEGER, Anthony. Nature and Culture and Their Trans-
Pode-se dizer que, apesar da idade, o ar- formations in the Cosmology and Social Organization of
tigo tem seu valor preservado. A necessidade the Suyá, a Ge-Speaking Tribe of Central Brazil. Chica-
go: University of Chicago, 1974. 420 p.
de atualização é uma realidade em quaisquer
_______. Why Suyá Sing: A Musical Anthropology of an
artigos que, como este, procuram fazer um Amazonian People. Cambridge University Press, 1987.
apanhado de questões teóricas e metodológi- 147 p.
cas, uma síntese sobre temas tão importantes _______. A Tropical Meditation on Comparison in Eth-
para algumas áreas da academia. A crescente nomusicology: A Metaphoric Knife, a Real Banana,
produtividade em pesquisas e publicações só and an Edible Demonstration. Yearbook for Traditio-
nal Music, Chicago, v. 34, p. 187-192, 2003.
mostra que o tempo transcorrido tem cada
_______. Traditional Music Ownership in a Commodi-
vez mais fome de novidade, e que as solu- fied World. In: FRITH, Simon; MARSHALL, Lee
ções para os dilemas e questões fundamentais (Orgs.) Music and Copyright, Second Edition. Edin-
da antropologia e da musicologia ainda não burgh: Edinburgh University Press, 2004, p. 157-
apareceram: os velhos pontos fundamentais 171.
permanecem indevassados. Por isso, a leitura TRAVASSOS, Elizabeth. A Antropologia Musical de An-
thony Seeger. Debates: Cadernos de Programa de Pós-
deste artigo vale muito a pena e será com cer-
Graduação em Música, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p.
teza importante para os leitores interessados e 67-77, 1997.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 233-236, 2008


236 | Acácio Tadeu de C. Piedade

autor Acácio Tadeu de C. Piedade


Professor do Departamento de Música / UDESC

Recebida em 01/12/2008
Aceita para publicação em 15/12/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 233-236, 2008


Etnografia da música

Anthony Seeger
Tradução: Giovanni Cirino
Revisão técnica: André-Kees de Moraes Schouten e José Glebson Vieira

Nova Introdução1 menta organizada para minha apresentação.


No final, frustrado pelos constrangimentos de
Escrevi este capítulo como um favor a He- tempo e pelos requisitos específicos do projeto,
len Myers, a editora de Ethnomusicology :an eu mandei o manuscrito para a editora, com
Introduction. Trata-se de um capítulo híbrido, um suspiro de alívio em algum momento de
uma combinação de algumas idéias que eu es- 1990.
tava trabalhando na época com as exigências Eu estava muito impressionado com Ethno-
de um capítulo do livro. Helen Myers, que foi musicology: an Introduction, que incluía muitos
a editora responsável pela entrada da etnomu- capítulos excelentes, mas infelizmente o livro
sicologia no New Grove Dictionary of Music de foi lançado razoavelmente depressa. A despeito
1981, insistiu que eu tratasse de certos tópi- disso, atualmente minha contribuição continua
cos, me deu uma lista de autores cujas idéias eu sendo utilizada em muitos cursos de graduação
deveria discutir e uma lista de teorias a serem em etnomusicologia.
apresentadas. Ela me deu total liberdade sobre Quando revisei a tradução para o portu-
o quadro que eu poderia usar para realizar a guês, fiquei impressionado ao ver como certas
tarefa, mas me pediu para escrever um capítulo partes são datadas. Os últimos 15 anos viram
adequado para leitores em geral e não-especia- um crescimento enorme no número de livros
listas. sobre tradições musicais específicas, uma ex-
Demorei seis meses lendo e pensando sobre plosão no número de periódicos dedicados à
o tema. Finalmente eu decidi focar o capítulo música, a emergência de estudos sobre música
nas formas de olhar para a música de uma pers- popular como um grande objeto de pesquisa
pectiva mais ampla que apenas os seus sons. interdisciplinar, e o desenvolvimento de pro-
Recomendei o uso de questões jornalísticas bá- gramas de etnomusicologia em muitos países.
sicas (quem, o que, onde, quando, porque etc.) O repentino crescimento da Associação Brasi-
como uma abordagem que poderia guiar as leira de Etnomusicologia (ABET) é paralelo ao
pessoas ao que considerei ser uma abordagem crescimento de organizações de outros países.
etnográfica dos eventos musicais. Entre a se- Se eu estivesse escrevendo isso hoje, minha
ção de abertura e a conclusão “Etnografia Faça bibliografia seria no mínimo três vezes mais
Você Mesmo”, eu situei a discussão de alguns longa e eu teria incluído muitos autores cujas
dos mais importantes escritores na história da obras admiro bastante. Por outro lado, sobre
etnomusicologia como requisitado (alguns de- esta releitura eu penso que a abordagem geral
les eu nem ao menos havia lido antes desta de- ainda funciona, e deixo isso para os leitores de-
signação!). Achei conveniente utilizar a sinopse cidirem se eles podem colocar seus novos auto-
do meu avô Charles Seeger sobre os recursos res favoritos no mapa viário de Charles Seeger,
dos processos musicológicos como uma ferra- ou se um novo mapa é necessário.

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A seção do capítulo a qual os estudantes o suficiente para justificar a eles e à audiência o


dizem que mais gostam é da “Etnografia Faça tempo, o dinheiro, a comida ou a energia uti-
Você Mesmo” até o final. Colocando o leitor lizada no evento. Os músicos têm certas expec-
sentado e calado numa mesa de um pequeno tativas da situação em que estarão envolvidos,
clube observando uma banda, conversando do seu papel e das ações do público. Este por
com as pessoas em uma sala e depois investi- sua vez também possui certas expectativas so-
gando o amplo quadro socioeconômico do bre o que irá acontecer, tendo como base ex-
qual o evento é uma parte, parece ter sido uma periências passadas, conceitos sobre o evento e,
maneira facilmente compreensível para atrair talvez, o conhecimento dos músicos em parti-
as pessoas a pensar sobre o quanto sons espe- cular. A hora do dia e o local da performance
cíficos são partes de processos sociais. Meus podem ser significativos, assim como o gênero,
anos posteriores na Smithsonian Institution me idade e status dos executantes e da audiência.
fizeram conhecer mais sobre mercado, pro- Ambos podem se preparar para a performan-
moção, propriedade intelectual e a indústria ce por meio de dieta, roupas ou atividades.
fonográfica, que eu certamente teria incluído Quando os performers iniciam, movem seus
neste capítulo se eu soubesse o que aprenderia corpos de certa forma, produzem certos sons
posteriormente. e impressões, eles se comunicam entre si por
Espero que os leitores brasileiros achem este meio de sinais para coordenar a performan-
trabalho útil e me desculpem pelas partes data- ce. Sua performance tem certos efeitos físicos
das, e aproveitem o que achem útil para criar e psicológicos sobre a audiência, fazendo sur-
suas próprias abordagens ao estudo da perfor- gir um tipo de interação. Na medida em que
mance musical. a performance avança, o envolvimento entre
os performers e sua audiência continua, surge
University of Califórnia, Los Angeles, a comunicação, que geralmente resulta em vá-
14 de maio de 2004. rios níveis de satisfação, prazer e até êxtase. O
que quer que isso signifique, quando o evento
termina os performers e sua audiência têm uma
Etnografia da Música nova experiência, através da qual eles avaliam
suas concepções anteriores sobre o que aconte-
Imagine uma performance musical. Qual- ceria e sobre o que acontecerá na próxima vez.
quer performance – um concerto de rock em Isso pode ser formalizado em publicações, me-
uma cidade americana, uma ópera em uma ca- morandos internos ou conversas. O fato de que
pital européia, música clássica na Índia, música sempre existirá uma próxima vez, aponta para
popular em uma boate na África Ocidental, o que podemos chamar de tradição. O fato de
um ritual de uma noite inteira na Amazônia. que a próxima vez não será nunca igual à vez
Todas elas envolvem músicos, um contexto no anterior produz o que podemos chamar de mu-
qual eles executam sua música e um audiência. dança. As descrições desses eventos formam a
Apesar de suas diferenças, todas as situações base da etnografia da música.
compartilham certas características. A transcrição musical é a representação (es-
Antes dos músicos iniciarem sua perfor- crita) dos sons. Etnografia é a escrita sobre o
mance eles devem ter passado por um longo povo (do grego ethnos: gente, povo, e graphien:
treinamento em alguma tradição musical; a escrita) (Hultkrantz, 1960). A etnografia deve
música que eles executam deve ser significante ser distinguida da antropologia, uma disciplina

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acadêmica com perspectivas teóricas sobre so- Uma definição geral da música deve incluir
ciedades humanas. A etnografia da música não tanto sons quanto seres humanos. Música é
deve corresponder a uma antropologia da músi- um sistema de comunicação que envolve sons
ca, já que a etnografia não é definida por linhas estruturados produzidos por membros de uma
disciplinares ou perspectivas teóricas, mas por comunidade que se comunicam com outros
meio de uma abordagem descritiva da música, membros. John Blacking chamou a música
que vai além do registro escrito de sons, apon- de “sons humanamente organizados” (1973).2
tando para o registro escrito de como os sons são Alan Merriam, que deu considerável atenção às
concebidos, criados, apreciados e como influen- definições (1964; 1977), argumentou que mú-
ciam outros processos musicais e sociais, indiví- sica envolve conceitualização humana, compor-
duos e grupos. A etnografia da música é a escrita tamento, sons e a avaliação dos sons. Música
sobre as maneiras que as pessoas fazem música. é uma forma de comunicação, junto com a
Ela deve estar ligada à transcrição analítica dos linguagem, a dança e outros meios. Porém a
eventos, mais do que simplesmente à transcri- música não opera como esses meios. Diferentes
ção dos sons. Geralmente inclui tanto descrições comunidades terão diferentes idéias de como
detalhadas quanto declarações gerais sobre a distinguir entre diversas formas de sons huma-
música, baseada em uma experiência pessoal ou namente organizados – fala de canção, música
em um trabalho de campo. As etnografias são, de ruído e assim por diante. Como muitos de
às vezes, somente descritivas e não interpretam nós sabemos por nossas próprias experiências
nem comparam, porém nem todas são assim. pessoais, a música de uma pessoa pode ser o
Mas o que é música? É som? Rádios e apa- ruído de outra.
relhos de som aparentemente emitem sons sem A definição de música como um sistema de
a ação humana, mas isso é uma ilusão auditiva comunicação enfatiza suas origens e destina-
do meio e não uma característica da música. Se ções humanas e sugere que a etnografia (escrita
nós, no século XX, confundimos música com sobre música) não somente é possível, mas é
som, em parte é porque nossos meios de grava- uma abordagem privilegiada no estudo da mú-
ção captam ou reproduzem apenas os sons da sica. A ilusão de que a música pode existir inde-
música. Discos, fitas e rádios não fazem músi- pendente de seus performers e de sua audiência
ca, as pessoas é que a fazem, e outras pessoas a tem conduzido à confusão, longos debates e a
escutam. É um subproduto da natureza? Platão uma tendência a tratar etnomusicologia como
e as teologias européias da Baixa Idade Média um campo dividido, no qual escritores anali-
escreveram que a perfeição da criação produziu sam sons ou analisam características culturais
a “música das esferas” (Rowell, 1983, p. 43-45), e sociais do fazer musical (Merriam, 1964, p.
porém isso foi apenas uma ilusão filosófica – as vii). Mesmo que Alan Merriam e Bruno Nettl
sondas espaciais não a registraram. A música (1983, p. 5) sustentem que ambos os grupos
é uma linguagem que abrange todas as espé- de escritores concordam que uma fusão defi-
cies? A música tem sido chamada de “lingua- nitiva entre o antropológico e o musicológico
gem universal”, mas isso é provavelmente uma seria ideal, as várias idéias sobre o que é música
ilusão romântica – a música está tão enraizada têm gerado resultados muito diversos. Estudos
em culturas de sociedades específicas quanto a dos produtos musicais – sons – freqüentemen-
comida, a roupa e até a linguagem. Confusos te não têm investigado seriamente a interação
pelo que a música provavelmente não é, então entre os sons com os performers e sua audiência.
o que ela pode ser? Estudos sobre performers, audiências e ações

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têm, algumas vezes, ignorado completamente Essas amplas questões são suficientemente
os sons produzidos e apreciados. gerais para tratar da maioria dos tipos de mú-
Para qualquer um alheio ao campo, os sica na maioria dos lugares. Elas também são
argumentos sobre o que realmente é a etno- fundamentais: são questões que tratam do que
musicologia devem parecer obscuros e pouco acontece quando as pessoas fazem música. Nem
sugestivos. Os protagonistas, às vezes, parecem toda sociedade ou todo pesquisador estará inte-
reivindicar e defender um território conceitual ressado em todas elas, e algumas serão expressas
mais que avançar na compreensão. Os argu- de maneira mais específica para a investigação.
mentos são geralmente construídos em termos Steven Feld, por exemplo, propôs uma lista
de tradições distantes e exemplos inauditos mais longa e específica de questões agrupadas
(apenas transcritos), e as pessoas parecem estar em seis rubricas, muitas das quais podem ser
falando sobre o passado. incluídas na lista acima (1984, p. 386-388).
Para corrigir esse aparente divisionismo e Quais questões são focalizadas e como tenta-
os argumentos misteriosos, outra abordagem à mos respondê-las depende da combinação de
música pode ser útil – uma que enfoque mais interesses pessoais e profissionais ou da orien-
questões comuns e experiências compartilha- tação cultural.
das com a música, do que respostas e estudos Dentro da tradição acadêmica americana,
específicos. aqueles interessados em fisiologia poderão estu-
dar as mudanças fisiológicas nos performers e na
audiência; aqueles interessados no desenvolvi-
Destinações e “mapas viários” mento das crianças poderão estudar a socializa-
ção delas através da música; aqueles interessados
Em vez de perseguir a definição do que a em economia poderão estudar a economia da
etnomusicologia deveria ser, vamos observar as performance; aqueles interessados em religião
questões gerais sobre música que foram com- poderão estudar a relação do evento com idéias
partilhadas por europeus e outros povos ao re- sobre o cosmos e a experiência do transcenden-
dor do mundo. te. Finalmente, aqueles interessados nos sons
O que acontece quando as pessoas fazem mú- poderão estudá-los e fazer algumas perguntas
sica? Quais são os princípios que organizam as a respeito – de sua estrutura e seu timbre, sua
combinações de sons e seu arranjo no tempo? relação com performances anteriores, o projeto
Por que um indivíduo particular ou gru- do instrumento e muitas outras. Membros de
po social executa ou ouve os sons no lugar, no grupos étnicos podem ver o caráter e a defesa
tempo e no contexto que eles(as) o fazem? da identidade de seu grupo em uma forma mu-
Qual a relação da música com outros pro- sical, enquanto “construtores de nações”3 po-
cessos nas sociedades ou grupos? dem ver emergindo um caráter pan-étnico nas
Quais efeitos as performances musicais tem mesmas formas musicais. Em vez de considerar
sobre os performers, a audiência e outros grupos esses grupos como facções inimigas, devemos
envolvidos? vê-los como diferentes perspectivas da mesma
De onde vem a critividade musical? Qual o coisa. Todos eles estão parcialmente corretos.
papel do indivíduo na tradição, e o da tradição Cada abordagem pode contribuir para nossa
na formação do indivíduo? compreensão dos eventos musicais, e cada uma
Qual a relação da música com outras for- pode contribuir com outra disciplina (psico-
mas de arte? logia, sociologia, economia, antropologia, fol-

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clore, musicologia, ciência política) através do tanto tempo que se esqueça de voltar e seguir outro
estudo da atividade musical. caminho, porque é o traçado dos dois juntos que é
De todos os escritores, Charles Seeger, ar- essencial para a leitura da tabela (1977, p. 125,
gumenta mais claramente pela multiplicidade grifos meus).
de abordagens da música e da musicologia.
Merriam dividiu o campo em duas abordagens; Seeger compara sua sinopse a um mapa
Seeger demonstrou que podem ser muito mais. viá­rio, uma representação estática de vários ca-
Em uma série de artigos, ele descreve diferentes minhos possíveis ou linhas de investigação. A
porções do que ele chama “sinopse dos recur- sinopse é mais um mapa do campo enquanto
sos do processo musicológico”, parte do qual é uma totalidade, do que a visão de algum pes-
reproduzido na fig. 1. A sinopse é um diagra- quisador particular. “É um tipo de mapa do
ma complexo que indica as várias influências campo. Como se comportar nele é outra ques-
na música conforme ele pôde imaginar, desde tão, não estrutural, mas funcional” (Seeger,
os aspectos físicos dos sons até as influências 1977, p. 126). O mapa apresenta amplas áreas
históricas da tradição e dos valores e concei- para investigação, e certamente existem alguns
tos finais que expressam e influenciam (Seeger, continentes a serem descobertos (onde, por
1977, p. 125). Ele lista 20 campos envolvidos exemplo, estão poder e hegemonia?). A sinopse
na análise de eventos musicais, da matemática de Seeger revela a vastidão do nosso assunto e
e lógica ao mito, misticismo e extática. A fig. 1 a variedade de abordagens que têm sido utili-
mostra como Seeger dividiu a musicologia em zadas no passado, ou que cada um de nós pode
uma orientação sistemática e histórica, cada empreender.
uma das quais está por sua vez subdividida. O Obviamente os caminhos em tais mapas são
lado sistemático inclui os aspectos físicos da criados pelas pessoas que neles têm ocupado
música e os aspectos semânticos do falar sobre espaços. Poderíamos colocar muito da história
música; a orientação histórica inclui tanto a da etnomusicologia na fig. 1, com Hermann
música e a fala como atividades humanas quan- Helmholtz ([1863] 1954) e Mieczyslaw Ko-
to as necessidades gerais das sociedades huma- linsky (1973), entre outros, localizados na área
nas por abrigo, alimentação e cultura. da densidade estética; Merriam (1964), Ruth
Frustrado pelas inflexibilidades da lingua- Stone (1982), e muito da etnografia da músi-
gem acadêmica e pela operação mecânica da ca no campo musical chamado “densidade se-
dialética hegeliana, Seeger recorre a diagramas mântica”. Richard Wallaschek ([1893] 2007)
para apresentar o campo. Sobre a sua sinopse ocupa o meio da região biocultural da música,
ele escreve: enquanto Steven Feld ([1982] 1990) está fun-
damentado no estudo do lado esquerdo desse
Por sua natureza, tal esquema é estático e faz continuum. Alguns de meus escritos estão fun-
com que o campo que representa – uma coisa damentados na estruturação da cultura do lado
dinâmica e funcional – pareça estática… Ao me direito (A. Seeger, 1979, 1980, 1987). Estudos
limitar às duas dimensões da sinopse, o melhor de determinantes extrínsecos incluem Willard
que posso fazer é pedir ao leitor que comece pelo Rhodes (1958) e Merriam (1967), enquanto
topo e enquanto lê lembrar que está traçando George Herzog ([1928] 1930), Helen Roberts
seu próprio progresso sobre o terreno. Quando ([1936] 1970), Mervyn McLean (1979) e Nettl
chegar em uma bifurcação você deve decidir qual (1954) têm discutido relações geográficas entre
caminho seguir primeiro, mas não ficar nele por as tradições musicais.

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Os diagramas de Seeger surgiram da apre- tantes para escrever sobre música, em relação
ciação de pesquisas realizadas, assim como de às questões gerais sobre o que é e o que faz a
possíveis empregos com êxito. Contudo, o música nas sociedades humanas.
foco estava sempre na necessária diversidade de
questões que temos para entender a música e
criar uma etnomusicologia adequada, ou uma O evento audiocomunicatório: a
musicologia. Ele tem argumentado freqüente- partir de mil circunstâncias
mente que o termo etnomusicologia foi infeliz,
desde que a verdadeira musicologia deveria ser Discussões de escritos históricos sobre mú-
etnomusicológica – no sentido de que incluiria sica devem distinguir as breves descrições de
toda a música e a abordaria de várias maneiras canto e dança comuns nos relatos dos explo-
diferentes (1977, p. 51-52). radores, mercadores, viajantes e missionários,
Durante os últimos 100 anos, as pergun- das descrições longas, intensivas e compara-
tas formuladas por musicólogos sobre a música tivas. Os relatos de viajantes podem ser úteis
têm surgido e desaparecido somente para rea- para pesquisadores posteriores, no entanto ha-
parecer novamente em formas diferentes. Po- bitualmente não são tentativas de estabelecer
de-se dizer que algumas partes do mapa foram generalizações sobre a música. Mais freqüente-
mais bem exploradas que outras. As razões para mente são curtas observações do tipo “quando
o desenvolvimento de um tipo de questão e a eu cheguei perto da casa do chefe eu ouvi fortes
diminuição de outro envolve a história intelec- ruídos de canções”. Apesar de que, às vezes, os
tual e social além da etnografia da música, mas autores são simpáticos aos sons – Jean de Léry,
enquanto as abordagens de algumas questões que publicou as primeiras transcrições de can-
mudaram ao longo das décadas, algumas das ções indígenas brasileiras (feitas em 1557-8),
questões permaneceram as mesmas. A figura escreveu que eles dançaram de uma maneira
de Seeger pode servir como um princípio or- tão harmoniosa “que ninguém poderia dizer
ganizador para a discussão, mesmo que outros que eles não conhecem música” (citado em Ca-
esquemas o fizessem tão bem quanto. mêu, 1977, p. 27). Os exploradores tenderam
a descrever as danças e os instrumentos com
muito mais cuidado do que empregavam para
Abordagens para a Etnografia da descrever o estilo musical.
Música Foi Jean-Jacques Rousseau que estabeleceu
algumas das características básicas da etnogra-
É impossível entender porque a etnografia fia da música. Em seu Dicionário Completo da
da música se desenvolveu da maneira como o Música ([1771] 1975), Rousseau reuniu em um
fez, sem examinar aqui algumas de suas raízes, lugar informações clássicas e contemporâneas,
ao menos brevemente. Outros capítulos deste organizadas em ordem alfabética. No intuito
volume apresentam um tratamento mais com- de fazer generalizações sobre a música como
pleto e algumas excelentes histórias livrescas de uma totalidade, a entrada na música é sempre
etnomusicologia já têm aparecido (entre elas citada enquanto um uso sistemático anterior
Kunst: 1959; Nettl: 1964, 1983), assim como da música não-ocidental. A definição inicial
alguns artigos sintéticos (por exemplo, Krader: de Rousseau sobre a música foi performativa:
1980). Esta seção apresenta uma discussão sele- é “a arte de combinar notas de uma maneira
tiva de algumas das fontes e abordagens impor- prazeirosa aos ouvidos”. Em seguida, porém,

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“para colocar o leitor de maneira a julgar os di- Em outras palavras, para entender os efei-
ferentes acentos musicais de diferentes povos”, tos da música sobre uma audiência é necessário
ele apresenta transcrições de uma ária chinesa, entender de que maneira as performances afe-
uma ária persa, uma canção dos selvagens do tam tanto os performers quanto a audiência. De
Canadá e a ranz des vaches suíça. fato música é mais que física. Essa citação pode
Rousseau chegou a duas conclusões a partir ser considerada uma das primeiras justificativas
das transcrições. A primeira diz respeito à pos- para o estudo etnográfico da música na cultu-
sível universalidade das regras musicais, das leis ra. Se quisermos entender os “efeitos dos sons
físicas da música: no coração humano” devemos estar preparados
para retraçar com os ouvintes os “costumes,
“encontraremos nessas peças uma conformidade reflexões e miríades de circunstâncias” que do-
de modulações com a nossa música, que deve tam a música de seus efeitos.
nos fazer admirar a excelência e a universalidade
de nossas regras” ([1771] 1975, p. 266).
Evento biocultural: a organização da
A segunda conclusão diz respeito ao fato de diversidade
que os efeitos exercidos pelas canções sobre as
pessoas não estão limitados aos efeitos físicos Os séculos de expansão mercantil colocaram
dos sons. Para explicar este ponto ele descreveu os europeus em contato com uma ampla diver-
como certa canção foi proibida para as tropas sidade musical e cultural. Na medida em que
suíças devido a seu efeito nos que a escutavam. relatos da vida musical se multiplicavam em
todas as partes do mundo, cientistas sentiram
A célebre ária acima, chamada Ranz des Vaches, necessidade de organizá-los. Para fazê-lo, eles
era tão amplamente amada pelos suíços que foi enfatizaram duas questões básicas da ciência do
proibida de ser tocada entre as tropas de seu século XIX. A primeira foi uma investigação da
exército, sob a pena de morte, devido ao fato origem e desenvolvimento da música (“Estrati-
de fazer chorar, desertar ou morrer a quem ou- grafia” de C. Seeger), e a outra foi a classificação
visse; tão grande era o desejo que neles surgia dos diferentes estilos em grupos (as “Famílias
de retornar à sua pátria. Procuraremos em vão Geográficas” de C. Seeger). As respostas a am-
encontrar nesta ária qualquer acento energético bas as questões foram tentativas de organizar a
capaz de produzir efeitos tão surpreendentes. Tais diversidade de tradições musicais em padrões
efeitos, que são nulos aos olhos estrangeiros, vêm – tanto históricos quanto espaciais.
unicamente do costume, reflexões e outras mil cir-
cunstâncias, as quais retomadas por aqueles que Períodos estratigráficos: origem e
a escutam e relembrando a idéia de sua terra, desenvolvimento
seus antigos prazeres, sua juventude e todas as
alegrias da vida, excita neles os amargos pesa- Alguns dos melhores estudos da música do
res da perda. Nesse caso a música não age como século XIX continuaram investigando, na tra-
música mas como um sinal de recordação … Tanto dição de Rousseau, os efeitos da música sobre
é verdade que não devemos procurar pelos gran- os seres humanos. A organização do conhe-
des efeitos dos sons em sua ação física, mas no cimento, no entanto, estava freqüentemente
coração humano ([1771] 1975, p. 266-267). inserida em um quadro de referência evolu-
cionista. Às sociedades não-ocidentais foram

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atribuídas afinidades “primitivas” à emoção, Ele descreve a música enquanto um poder or-
e posteriormente à música e à dança, que se ganizador para as massas, permitindo à tribo
acreditava ter sido perdida com a aquisição da atuar como uma unidade. Ele escreveu que isso
“civilização” (isso nos faz pensar no que esses dá aos grupos musicais uma vantagem na “luta
autores teriam feito com a música popular do pela vida” em relação aos menos musicais, e
século XX). Porém, os autores tinham muitas “então a lei da seleção natural se aplica na expli-
coisas a dizer que não podem ser facilmente re- cação da origem e desenvolvimento da música”
jeitadas e ainda requerem discussão. (p. 294-295). Grupos não-musicais simples-
Um exemplo de tratamento livresco à mú- mente não poderiam sobreviver. Podemos ver
sica de várias partes do mundo é o trabalho de tanto a influência darwiniana e a convergência
Richard Wallaschek, Primitive Music: an Inqui- com os argumentos em favor do “jazzercise”
ry into the Origin and Development of Music, (uma forma americana de exercícios musicais
Songs, Instruments, Dances, and Pantomimes of dos anos 80). Wallaschek antecipou grande
the Savage Races (Música Primitiva: uma Inves- parte do trabalho publicado 21 anos mais tarde
tigação sobre Origem e Desenvolvimento da (1915) e inspirado por ele As Formas Elementa-
Música, Cantos, Instrumentos, Danças e Pan- res da Vida Religiosa do sociólogo francês Émile
tomimas das Raças Selvagens) ([1893] 2007). Durkheim.
Wallaschek apresenta uma vasta quantidade de A despeito de algumas de suas ênfases pro-
descrições de performances musicais coletadas féticas, o trabalho de Wallaschek é marcado –
em diferentes fontes, um Ramo de Ouro do como grande parte da antropologia daqueles
conhecimento sobre música. No entanto, con- dias – por uma tendência a considerar o final
tém uma perspectiva teórica geral. Wallaschek do século XIX como o ápice do desenvolvi-
argumenta que a música surgiu de um desejo mento. Assim, Wallaschek colocou a escala de
humano geral pelo exercício rítmico e se desen- doze tons como o topo do desenvolvimento
volveu através dos tempos até o presente. musical:
Apesar de seu trabalho ser rotulado como
de interesse eminentemente histórico (Nettl, os intervalos cromáticos de nosso temperamento
1964, p. 28), Wallaschek estabeleceu vários igualado são de fato os menores intervalos pos-
pontos que continuam caracterizando os es- síveis, não para o ouvido ou a voz, ou as leis dos
critos etnomusicológicos de hoje. Um desses sons, mas para um instrumento prático (p. 158).
pontos é a constatação de que o estudo da
música não-européia pode ser útil porque so- Ele pode ter sido um tecladista; mas se ti-
mos capazes de perceber na música de outras vesse familiaridade com a música indiana pro-
comunidades aspectos da música menos óbvios vavelmente não teria enunciado tal argumento.
a nós mesmos, na música de nossas próprias Ele também considerou a harmonia como o
tradições ([1893] 1970: 163). maior desenvolvimento evolucionário e escre-
Wallaschek também antecipou muitos tra- veu sobre a música de diferentes sociedades
balhos subseqüentes quando notou que música tirando-as de seu contexto e comparando as
(“primitiva”) não é uma arte abstrata, mas uma formas de acordo com um ou outro aspecto.
arte profundamente arraigada na vida. Ele ar- Nada disso teria sido feito nos estudos compa-
gumenta que dançar e fazer música aumenta rativos contemporâneos de música.
a solidariedade do grupo, organiza atividades Apesar das convincentes críticas de Franz
coletivas e facilita a associação na ação (p. 294). Boas às metodologias evolucionistas (1896), a

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coleção de músicas do mundo, no intuito de que estilos de canções variam de acordo com
apresentar uma história natural do desenvolvi- diferenças na escala produtiva, nível político,
mento das estruturas e formas musicais, conti- nível de estratificação das classes, severidade
nuou por mais meio século. Apareceu na obra dos costumes sexuais, equilíbrio de domina-
de Carl Stumpf, Die Anfange der Musik ([1911] ção entre homens e mulheres e nível da coesão
2006), e continuou com várias formas modi- social (1968, p. 6). Na sua formulação mais
ficadas em livros de Curt Sachs sobre música, simples, os estilos de cantos podem ser divi-
instrumentos musicais e dança. Para Sachs, na didos em dois grupos, modelo A e modelo B
música “primitiva” (1968, p. 16):

imitação e a expressão involuntária das emoções Modelo A Modelo B


precedem todas as formações sonoras conscien-
Integrado, orientado
tes… êxtase, na acepção mais ampla da palavra Individualizado
para o grupo
domina a garganta tanto quanto membros
Coral multinivelado
([1933] 1963, p. 175). Solo
coeso

Mas a massiva acumulação de música de to- Metricamente Metricamente


complexo simples
das as partes do mundo fez Sachs alertar:
Melodicamente Melodicamente
complexo simples
os primórdios da história da música não podem
mais ser considerados, como o foram tão fre- Ornamentado Sem ornamentação
qüentemente, como um desenvolvimento dire- Geralmente Geralmente
to do primitivo para o maduro, do simples para voz ruidosa voz clara
o complexo e elaborado. De qualquer maneira, Enunciação precisa Enunciação imprecisa
esta interpretação está fora de moda a partir do
momento em que substitui a “plausibilidade”
Ele escreveu sobre esses dois grupos:
no método científico, o desafortunado hábito
de julgarmos pessoalmente mentalidades com-
O modelo A é o estilo de dominância exclusiva
pletamente diferentes várias épocas distantes de
de solo e é encontrado ao longo de todas as es-
nós. “Primitivo” e “simples”, estes são de fato
tradas da civilização desde o Oriente Distante,
conceitos que utilizamos muito casualmente (
todo o caminho para o ocidente até a Europa,
[1933] 1963, p. 200).
ou qualquer lugar onde a autoridade política é
altamente centralizada. O modelo B é o estilo
Nos anos 60, Alan Lomax propôs uma
integrado e tem seu centro entre as bandas acé-
correlação muito mais sofisticada e comple-
falas e fortemente integradas dos Pigmeus afri-
xa entre tipos de sociedades e tipos de canto
canos e dos Bosquímanos, mas aparece de uma
(1968). Ele acumulou amostras de cantos de
forma ou outra entre os povos muito simples em
233 sociedades, assim como informações et-
muitas partes do mundo. Na realidade, todos
nográficas do “Arquivo” da Área de Relações
os estilos de canto da humanidade podem ser
Humanas. Desenvolveu uma planilha de códi-
descritos em termos de suas posições na grade
gos com 37 variáveis diferentes, desde o tipo de
definida por estes casos extremos de individuali-
grupo vocal até a articulação das consonantes.
zação e integração (p. 16).
A análise estatística subseqüente demonstrou

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Etnografia da música | 247

Enquanto a abordagem era altamente am- Alfred Kroeber (1947), e, em etnomusicologia,


biciosa e comparativa, o Projeto Cantométrico Roberts ([1936] 1970), Herzog ([1928] 1930),
(medida do canto) foi fortemente criticado em o aluno de Boas, e Nettl (1954), o aluno de
vários campos. A crítica mais séria foi em rela- Herzog. Nettl nos proporciona uma discussão
ção à amostragem, já que somente dez canções muito boa sobre o assunto (1983, p. 216-233)
foram tomadas de cada um dos 233 grupos da perspectiva de uma pessoa que tem realizado
culturais. Enquanto em alguns grupos o estilo tal trabalho.
do canto pode ser homogêneo, outros grupos O objetivo de estabelecer áreas musicais é
podem praticar uma ampla variedade de esti- possibilitar generalizações sobre uma área ge-
los, o que torna a classificação em Modelo A e ográfica ou cultural maior do que a “tribo” ou
Modelo B realmente difícil. Feld, em um exame comunidade individualmente descrita. As cen-
dos seus dados, à luz dos critérios de Lomax, tenas de comunidades nativas nas Américas po-
concluiu que os Kaluli poderiam pertencer a deriam ser reduzidas a um número de grupos
vários tipos diferentes, dependendo de qual das variável utilizando vários critérios diferentes –
suas canções fossem tomadas para caracterizá- linguagem, cultura material, zona ecológica ou
los (Feld, 1984, p. 391-392). Apesar do pouco estilos musicais. Freqüentemente, definir uma
trabalho feito para continuar as pesquisas de área envolvia estabelecer o grau de ocorrência
Lomax, seu projeto foi a mais séria tentativa de certos traços amplamente distribuídos em
de alcançar uma análise comparativa global de uma região. Isso tem levado a problemas de
estilos musicais. Ele conseguiu disponibilizar, amostragem. As tentativas recentes tenderam
para estudos futuros, suas gravações cantomé- a produzir áreas de acordo com critérios di-
tricas e seus materiais originais de pesquisa. ferentes. A análise preliminar de M. McLean
Se a história da música não poderia ser facil- sobre as áreas musicais na Oceania, de acordo
mente discernida usando um modelo evolucio- com a estrutura da música e dos instrumentos,
nário, houve duas propostas alternativas para produziu um mapa que, em geral, identificou
organizar a diversidade musical do planeta. áreas geográficas contíguas como sendo áreas
Ambas enfocam a história. Uma foi o estudo musicalmente relacionadas. Ele não estava in-
da difusão de traços musicais no espaço, que teressado em argumentos causais (como esta-
organizou a diversidade em padrões históricos; va Lomax, 1968) ou em verificar a existência
a outra foi a definição de áreas culturais, que de áreas culturais (Merriam, 1967), mas em
organizou a diversidade em áreas geográficas “identificar padrões de área coerentes através
maiores que as comunidades individuais. da correlação e covariação de uma variedade de
traços”. (McLean, 1979, p. 718). No entanto,
as conclusões de McLean soam muito como
Famílias geográficas: as das décadas anteriores. Estilos musicais for-
o estabelecimento de áreas culturais temente relacionados, de grupos contíguos,
foram atribuídos a empréstimos intergrupos;
Apesar de a definição de estilos musicais, similaridades entre grupos distantes foram atri-
como um meio de definir áreas musicais maio- buídas não a empréstimos, mas a origens pa-
res, ter sido utilizada tanto na Europa quan- ralelas.
to nos Estados Unidos, pode ser identificada Existem vantagens e desvantagens nos es-
particularmente em alguns alunos de Boas, tudos de distribuição de área. Uma das van-
principalmente Clark Wissler ([1917] 1922), tagens é que permite ao pesquisador falar de

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estilos musicais de forma mais geral do que Dado que a compreensão de um sistema
seria possível somente pela pesquisa de cam- musical requer um conhecimento intensivo do
po solitária, e fornecem um meio de discutir mesmo, a etnografia da música requer o conhe-
relações históricas entre grupos e estilos. As cimento em primeira mão e em profundidade
desvantagens incluem problemas de dados da tradição musical e da sociedade da qual tal
(freqüentemente coletados por viajantes), de tradição é uma parte. Embora isso seja uma
vocabulário (McLean mostra que nem os via- característica da pesquisa de campo contem-
jantes, nem os etnomusicólogos utilizam de porânea, certamente ocorreu antes do famoso
forma consistente palavras como “recitativo”), capítulo de Argonauts of the Western Pacific de
de desconsiderar diferenças em favor das simi- Bronislaw Malinowski, no qual exorta os antro-
laridades, de amostragem (que tipo de seleção pólogos a viver em barracas nas aldeias nativas
proporcionaria uma amostra adequada) e de ([1922] 2002). Um livro que resulta de uma
diferentes níveis de análise das fontes. Os ana- profunda imersão em outra sociedade é The
listas definem diferentes áreas de acordo com Music of Hindostan ([1914] 1966) de A. H. Fox
atributos que eles escolhem enfatizar e com a Strangways, que surpreende pela clareza do seu
elegância de suas análises. Assim, Erich M. von foco, sua admiração pela música indiana e sua
Hornbostel pensou que distinguia um estilo constante comparação entre a música ocidental
dos índios americanos, o que Herzog refutou (inclusive dos compositores contemporâneos)
em seu influente artigo comparando os estilos e a música indiana. Fox Strangways argumen-
musicais dos Pueblo e dos Pima (1936), e Nettl ta que a música indiana merece ser estudada
dividiu os nativos da América do Norte em seis porque carece da influência dos conceitos eu-
estilos (1954). O mundo tem sido diferente- ropeus de harmonia e, portanto, é similar às
mente dividido em três (Nettl), cinco (Lomax), canções da Europa Medieval e da Grécia Anti-
ou muitas áreas de estilo dependendo dos obje- ga. Então, um estudo da música indiana deve
tivos do pesquisador. Em um nível mais geral, permitir uma melhor compreensão da história
certas características musicais são amplamente musical da Europa. Ele argumenta que é ne-
compartilhadas tanto intra quanto interáreas cessária uma compreensão da tradição musical
geográficas. Na medida em que as descrições para sua apreciação estética, mas essa compre-
se tornam mais precisas, cada vez menos tal ca- ensão pode ser difícil de alcançar porque nós
racterística será encontrada fora de um peque- não sabemos o que fazer com o que ouvimos
no grupo geográfico ou cultural. De maneira ([1914] 1966, p. 2). Em descrições de músicas
geral, nem a pesquisa em áreas musicais tem ele escreve que “nós não sabemos o que fazer da
conduzido a qualquer nova compreensão do música que é lenta sem ser sentimental e que
significado da música para as sociedades. expressa paixão sem veemência” (p. 2) e pensa-
Outra abordagem da música enfatiza a di- mos em notas graciosas como adicionadas.
versidade e a compreensão em música, em vez ‘Graça’ indiana é de uma espécie diferente.
das similaridades e das relações históricas. Cada Não há nunca a menor sugestão de que alguma
tradição musical é tomada como uma unidade coisa tenha sido “adicionada” às notas graciosas
e as concepções sobre música, assim como os (p. 182).
atributos das performances, são tratadas como Strangways empreendeu sua análise com
uma totalidade integral. Esta abordagem pro- cuidadosa atenção às categorias da musicologia
voca questionamentos que provam ser mais re- indiana, as quais ele explicou em detalhe. Ele
levantes à etnografia da música. abre seu livro com um capítulo sobre a filosofia

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indiana. Sua abordagem é ao mesmo tempo es- própria música. A sociologia da música foi de-
pecífica para uma única tradição e comparativa finida como um campo que
com outras.
O foco central do livro de Strangways é a toma como base para sua investigação as cir-
estrutura e a forma musical – aspectos bastante cunstâncias materiais da produção e recepção da
complexos da música indiana. Não pretende música e, portanto, começa por determinar as
nem uma reinterpretação da cultura indiana condições sociais gerais sob as quais a música é
nem uma interpretação do significado da músi- produzida (Boehmer, 1980, p. 432).
ca Hindustan. Porém, ele fornece algo do con-
texto social da música. Em obras posteriores, Porém as próprias forças materiais são cria-
isso seria desenvolvido com uma profundidade das por mentes influenciadas por processos
bem maior. mentais anteriores, e a música pode ser parte
do ethos ou dos padrões gerais de pensamen-
to da uma sociedade. Estes fornecem parte das
Contexto: a relação da música com a motivações da atividade econômica e de certa
vida social forma “conduzem” o sistema, como Max We-
ber sugeriu em seu estudo do protestantismo
Qual o efeito que a música exerce na vida (Weber, [1930] 2003).
social? Essa questão tem uma longa história Antropólogos ingleses e americanos não
e pode ser relacionada a várias teorias sobre a estavam interessados nesses debates. Mais in-
própria sociedade e sobre a música. Karl Marx fluenciados por Durkheim do que por Weber
sustentava que a música era parte da superes- ou Marx, eles tendiam a expressar suas ques-
trutura de uma sociedade e, portanto, um esti- tões em termos de funções musicais. Partindo
lo musical seria determinado pela organização da inter-relação entre a música e o resto da vida
dos meios de produção. social, os pesquisadores tentaram descobrir
como a música funcionava para dar suporte ou
A sociologia marxista da música de cunho segue para desestabilizar o resto do sistema social e
os princípios estabelecidos em Uma Contribui- cultural.
ção à Crítica da Economia Política, de acordo Merriam foi um expoente nessa abordagem,
com a qual todo movimento e mudança na su- e distinguiu entre usos e funções:
perestrutura social (os domínios político, legal,
religioso, filosófico e artístico) é determinado Quando falamos dos usos da música, estamos
por mudanças na base material (econômica) da nos referindo às maneiras nas quais a música
sociedade. (Boehmer, 1980, p. 436). é usada na sociedade humana, como a prática
habitual ou exercícios costumeiros de música
Essa posição geral continua sendo uma tanto como uma coisa em si ou em conjunção
importante força no estudo da música, es- com outras atividades... Música é usada em cer-
pecialmente em sociedades complexas e in- tas atividades, e se torna parte delas, mas pode
dustrializadas. Pode ser proposto um grau de ou não ter uma função profunda (1964, p. 210,
independência da música em relação aos pro- grifos meus).
cessos econômicos, mas tais processos rece-
bem tratamento considerável – especialmente Se a música é usada para efeito de cura, por
os processos econômicos relacionados com a exemplo, sua função mais “profunda” pode

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ser uma função inconsciente, passível de ser Portanto, da perspectiva dessa abordagem,
descoberta por observadores do “alívio emo- a música tem usos – aparentes tanto para o na-
cional”. Merriam listou um número de prová- tivo quanto para o observador – e funções.
veis funções, incluindo expressão emocional, Ninguém pode negar que as pessoas usam a
prazer estético, entretenimento, comunicação, música conscientemente. Basta observar como
representação simbólica, respostas físicas, con- está extendida a censura da música no mundo e
formidade às normas sociais, validação de ins- o uso extensivo da música na propaganda para
tituições sociais e contribuição à continuidade ver dois possíveis usos muito contraditórios,
e estabilidade da cultura (1964, p. 221-225). aos quais podem ser-lhe atribuídos. Porém, a
O capítulo de Merriam sugere que somente o procura de funções não tem se dirigido às par-
investigador tem a clareza de visão para deter- ticularidades da música em si. Se a função da
minar funções, enquanto os usuários parecem música é controlar as relações de um grupo
ser capazes apenas de usar a música, cujas fun- com o sobrenatural, precisamos saber por que
ções lhes são inconscientes. Porém, na medida os membros de um grupo usam a música para
em que a investigação avançou, tornou-se claro exercer tal controle e por que um gênero parti-
que muitos povos ao redor do mundo têm teo- cular de música, enquanto distinto de todos os
rias de música e sociedade que, mesmo expres- outros, pode ser empregado para outros fins. As
sas diferentemente, são tão sofisticadas quanto afirmações mais gerais sobre as funções têm sido
as nossas. Assim que antropólogos começaram muito amplas e têm ignorado quase completa-
a apreciar a irrefutabilidade das teorias nativas mente a estrutura e a performance dos sons. A
das sociedades que estudavam, a distinção en- cisão entre linhas de pesquisas antropológicas e
tre uso e função não se sustentava. musicológicas pode ser atribuída parcialmente
Nettl enfrentou o problema das funções e à separação entre a busca por funções, que re-
usos 17 anos mais tarde, em outra introdução quer muito pouca atenção à música, e a busca
à etnomusicologia (1983, p. 159). Sugeriu que pelas estruturas sonoras. Colocá-las no mesmo
tanto nativos quanto antropólogos poderiam plano requer atenção aos significados dos sons
discutir usos e funções que podem ser dispos- em si e suas várias combinações.
tos em uma pirâmide, cuja base contém os usos As diferentes abordagens da sociologia da
“evidentes” da música, o meio os “usos abstra- música compartilham um objetivo comum:
tos” ou generalizações sobre música, e final- descobrir a maneira em que a música é usada
mente o nível analítico mais abstrato, que para e os significados que lhe são dados pelos in-
ele é uma função: tegrantes da comunidade que os executa. Isso
extrapola os interesses de Fox Strangways e
A função da música na sociedade humana, o aparece em várias descrições etnográficas con-
que a música faz em último caso, é controlar temporâneas de sociedades particulares.
o relacionamento da humanidade com o sobre-
natural, intermediando pessoas e outros seres, e
dando suporte à integridade dos grupos sociais Música enquanto valor: recentes
individuais. Isso é feito expressando os valores etnografias da música
centrais relevantes da cultura em formas abstra-
tas... Em cada cultura a música funcionará para As abordagens da etnografia da música rea-
expressar, de uma forma particular, uma série de lizadas durante os últimos 20 anos têm envol-
valores particulares (1983, p. 159). vido tentativas de dedicar-se a questões mais

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Etnografia da música | 251

específicas do que seria possível através das Todos os autores reconhecem que as defi-
discussões de uso ou função. Autores têm abor- nições daquilo que chamamos “música” são
dado a música a partir do ponto de vista dos amplamente diversificadas. Isso significa que se
nativos, usando as categorias nativas de expres- nos restringirmos a perguntar somente sobre o
são. Apesar de Merriam ter afirmado que que nós chamamos de música, poderemos estar
fazendo uma investigação parcial sobre o que as
deve haver um corpo teórico conectado a todo outras pessoas pensam que estão fazendo. Exis-
sistema musical – não necessariamente uma teo- tem várias maneiras de superar esse problema.
ria da estrutura do som musical, mesmo que esta Uma delas é definir cuidadosamente um objeto
também esteja presente, mas uma teoria sobre o de estudo recortado, tal qual o evento da per-
que é música, o que ela faz e como é coordena- formance e enfocar tudo o que acontece nesse
da com o ambiente total, tanto natural quanto evento, seja musical ou não. A outra é abarcar
cultural nos quais transita, ele foi incapaz de lo- conjuntos de conceitos e ações com respeito à
calizar isso claramente entre os índios Flathead música que parecem estar relacionados e inves-
(Merriam, 1967). Outros pesquisadores encon- tigar sua inter-relação. Stone e Feld escolheram,
traram dificuldades em localizá-la, embora não cada qual, uma dessas duas opções.
seja impossível (Marshall, 1982). Stone descreve sistematicamente a interação
entre os performers e a audiência nos eventos
Mais recentemente, investigadores têm se de música Kpelle. Ela afirma que estes eventos
empenhado na busca por idéias nativas sobre são esferas limitadas de interação, distinguíveis
a música, que possam ser expressas diferente- pela análise detalhada. Ela estudou a interação
mente da terminologia européia. Virtualmen- dos indivíduos que produzem música e aqueles
te todos os autores contemporâneos enfocam que a escutam. Outros autores que enfocaram
conjuntos de termos nativos e tentam analisar a ocasião ou evento musical – freqüentemente
a música de dentro do campo semântico utili- inspirados no trabalho pioneiro de R. Bauman
zado pelos membros da sociedade em questão. e J. Sherzer (1974) – incluem M. Herndon e
Alguns dos trabalhos recentes incluem Glossary R. Brunyate (1976), N. McLeod e Herndon
of Hausa Music and its Social Contexts (1971), (1980) e G. Béhague (1984). Feld, por outro
de David Ames e Anthony King, e Musique lado, abarcou uma maior gama de atitudes e
Dan (1971), de Hugo Zemp. O Tiv Song, de crenças sobre todas as formas de comunicação
Charles Keil, começa com uma discussão dos sonora, incluindo gritos e o choro dos pássaros,
domínios semânticos e investiga pormenori- para mostrar como as análises dos códigos da
zadamente os verbos associados com a músi- comunicação sonora podem conduzir à com-
ca (1979, p. 30). Em Let the Inside be Sweet preensão do ethos e da qualidade de vida na so-
(1982), Stone se aplica à estética Kpelle através ciedade Kaluli.
da elucidação da frase: “let the inside be sweet”, Feld descreve a expressão sonora dos Kaluli
e Sound and Sentiment ([1982] 1990), de S. como “incorporações de sentimentos profun-
Feld, investiga a estética Kaluli através de suas damente sentidos” ([1982] 1990, p. 3) e suas
metáforas e emoções. Esses livros estão entre performances como esforços para despertar tais
as mais importantes etnografias etnomusicoló- sentimentos tanto na audiência como nos pró-
gicas dos anos 1970 e 1980, e cada uma for- prios performers. Outros autores analisaram a
mula interessantes propostas para a etnografia música como um meio dentro de um conjunto
da música. de formas. Um deles é Richard Moyle em sua

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análise dos cantos Pintupi, na qual ele começa aponta para muitos dos tópicos tratados nos
distinguindo o canto Pintupi de outras cate- outros livros. Poeticamente escrito, ilustrado
gorias de sons humanos, incluindo recitações, com transcrições e registros suplementares de
ensaios de leituras de textos, a fala, o choro e gravações folclóricas e trazendo instruções para
os chamados para dança (1979). Outra análi- a construção de uma karimba Shona, The Soul
se é o meu trabalho sobre o canto Suyá, que of Mbira é um excelente exemplo do sucesso
estabelece um conjunto de inter-relações entre com o qual uma abordagem entusiasta de outra
as categorias Suyá das formas verbais e depois tradição pode ser transmitida ao leitor. Outros
enfoca um grupo dessas formas que define a livros cujo envolvimento dos autores com a
música Suyá (1987). O trabalho de Stone é im- performance musical tem um papel importan-
portante pelo detalhe com o qual aborda o que te é a descrição de M. Hood do aprendizado
ela define como o evento musical; o trabalho musical na Indonésia ([1971] 1982) e a descri-
de Feld é importante pela sua abordagem da ção dos tocadores de tambor da África Ociden-
música como um entre os vários modos inter- tal (1979), de J. M. Chernoff. Hood defendeu
relacionados de comunicação que tem profun- a abordagem conhecida como bi-musicalidade
dos efeitos sobre a emoção. Se o livro de Stone para a etnomusicologia, na qual o estudan-
enfoca uma abordagem para estudar a música, te tanto aprende a executar um instrumento
Feld encaminha as questões centrais sobre o como uma abordagem para o entendimento
porquê das pessoas fazerem música. da música, tal como ele aprende uma língua
Outro grupo de autores iniciou suas pesqui- pra falar com as pessoas. Com certeza muito da
sas com estusiasmo por um instrumento par- sensibilidade de etnomusicólogos aos detalhes
ticular ou um tipo de música. Podemos dizer de outras tradições é em parte o resultado da
que eles começaram com um interesse numa pesquisa como um encontro entre músicos.
tradição enquanto densidade estética (ver fig. Regula Qureshi propôs uma abordagem
1), porém se deslocaram para o estudo da den- sintética para a música dirigida tanto às carac-
sidade semântica. Freqüentemente, tais autores terísticas contextuais quanto especificamente às
eram performers também, e as etnografias eram características acústicas das performances mu-
tanto descrições engajadas de encontros com sicais (1987). Os dois tipos de análises que ela
músicos em outras sociedades, quanto descri- propõe combinar são (i) o sistema de regras do
ções da vida musical a partir da perspectiva de sistema de sons musicais, que pode ser obtido
um aprendiz e performer. Um dos trabalhos de especialmente com os músicos, e (ii) a análise
maior sucesso nessa linha é The Soul of Mbira do contexto, em termos de conceitos e com-
(1978), de Paul Berliner, que faz uma descri- portamento, estrutura e processo, utilizando a
ção de sua busca pela compreensão musical e teoria antropológica, os métodos de observação
intelectual do mbira (também conhecido como e dedução. Qureshi sugere que a análise deve-
sanza e “piano de polegar” africano). Berliner ria proceder em três passos. Primeiro, o idioma
descreve como ele aprendeu a tocar e entender musical deve ser analisado como uma estrutura
os conceitos estéticos dos tocadores de mbira de unidades e regras musicais para sua combi-
Shona do Zimbawe: “O objetivo deste livro é nação, no sentido de uma gramática formal.
dar atenção ao mbira” (1978, p. xiii) – um ob- Isso pode ser obtido com os performers. No gê-
jetivo bem diferente de Feld e Stone. Berliner nero musical do Paquistão, que ela estudou, ha-
apresenta os conceitos e os sons executados no via conceitos musicológicos “literalmente para
instrumento – um modo de investigação que pergunta”, algo que não se encontra em todo

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lugar. O segundo é um exame do contexto da do trabalho de campo e da escrita etnográfi-


performance como uma estrutura que consiste ca (por exemplo, Boon, 1982; Fabian, 1983).
em unidades e regras de comportamento. Na medida em que é importante refinar nossa
Isto deve incluir também uma consideração compreensão da etnografia, também é impor-
da estrutura social e cultural mais ampla que se tante iniciá-la o mais cedo possível, descobrir
encontra por trás da ocasião de uma performan- suas vantagens e limitações ao empreendê-la, e
ce específica e que dá sentido a ela (p. 65). refletir sobre ela.
Terceiro é a análise do processo da perfor-
mance atual.
Em seu artigo, ela consegue isso através da Uma Etnografia da Performance “faça
análise de fitas de vídeo e discussões com os você mesmo”
performers. Esta etapa inclui a perspectiva do
performer, as ações da audiência e a interação Performances podem ser analisadas pelo
visível entre ambos. Qureshi insiste que o foco exame sistemático dos participantes, sua inte-
deve ser mantido no músico, dado que o foco ração, o som resultante e fazendo perguntas so-
está na música, que é mais bem conhecida pelo bre o evento. No início, as questões são aquelas
sujeito que faz música, “que sozinho sabe o feitas por qualquer jornalista: quem está envol-
meio da performance” (p. 71). De qualquer vido, onde e quando acontece, o que, como e por
maneira, onde o foco deve estar depende mais que está sendo executado e quais os seus efeitos
das questões que estão sendo formuladas do sobre os performers e a audiência? Mesmo que
que de qualquer outro conhecimento presumi- essas perguntas possam ser aplicadas em qual-
do de uma parte do grupo social. Se desejarmos quer lugar do mundo, as respostas terão que
enfocar o efeito da música na mobilização de utilizar categorias culturais significantes. Essas
audiências, então o foco deve estar apropriada- perguntas cobrem parte da gama da sinopse
mente na audiência. de Charles Seeger. As respostas a o que e como
A sofisticação da análise de Qureshi aparece podem descrever os sons (densidade estética),
nas conclusões, onde ela argumenta que a mú- assim como as categorias utilizadas para falar
sica é capaz de carregar, e carrega, significados sobre eles (densidade semântica). As respostas
que podem ser combinados ou separados de a onde e quando são partes importantes do con-
muitas maneiras para transmitir uma extensão texto. As respostas ao por que se referem tanto às
de intensidades. Nos eventos musicais “tanto o orientações históricas quanto às sistemáticas, já
músico quanto seu ouvinte podem escolher en- que tais respostas dependem tanto do contexto
tre, ou combinar, diversos significados, cada um imediato quanto histórico do evento. Diferen-
dos quais é em si bastante específico” (p. 80). tes pesquisadores podem escolher se concentrar
Se o modelo de Qureshi é explícito sobre mais em um que no outro por razões de seu
o contexto da performance e, portanto, com próprio desenvolvimento histórico e teórico.
um foco central na música, não é, a única ma- Com o passar dos anos tive estudantes reali-
neira de abordar a etnografia da performance. zando uma série de trabalhos etnográficos rela-
Esse modelo sugere áreas de ênfase mais que tivos à performance musical em uma pequena
etapas seqüenciais de investigação. Na próxima cidade universitária no meio-oeste americano.
seção, faço uma sugestão a respeito do compro- Imagine que você está assistindo um concerto
metimento com tal etnografia. Faço isso apesar de reggae no (onde) único clube noturno impor-
da considerável literatura sobre as dificuldades tante da cidade. Sentado em uma mesa e obser-

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254 | Anthony Seeger

vando o público pode-se ver que (quem) seus do. Essas categorias locais de pessoa, lugar e
membros estão em grupos de ambos os sexos, tempo não fazem muito sentido em si mesmas,
na maioria em idade universitária, caucasianos, mas formam sistemas com outras categorias de
vestidos com uma aparente informalidade que pessoa, lugar e tempo. Tomados como uma to-
em alguns casos disfarçam considerável des- talidade e relacionados entre si, os sistemas for-
pesa e cuidado, sentados às mesas, bebendo e necerão pistas importantes para o significado
falando. Uma banda local (o que) “esquenta o do evento que está acontecendo.
público” proporcionando música para passar o A análise estrutural argumenta que as coi-
tempo, criar suspense sobre o evento principal sas derivam seu sentido de suas relações com
e apresentar seus próprios talentos ante uma outras coisas (Lévi-Strauss, 1963), e as cate-
audiência que de outra maneira não poderia gorias nativas não são exceções. Investigações
ouvi-los. Quando os músicos do conjunto de suplementares (novamente conversando com
reggae (mais quem) chegam, vemos que são pessoas da comunidade) podem revelar um
afro-americanos, com dreadlocks e executam conjunto de categorias locais de pessoas (ti-
uma música (mais o que) que se desenvolveu na pos de quem): “multidão universitária” pode
Jamaica, um som diferente, que é recebido en- contrastar com “jovens locais”, “yuppies” e
tusiasticamente pela audiência. Uma relação é “veteranos”. Podemos descobrir que diferen-
estabelecida entre os músicos e a audiência, que tes espaços de performance na cidade (tipos de
possibilita a criação de uma atmosfera emocio- onde) são largamente reservados, em sua maio-
nal e resulta em dança e aplausos entusiasma- ria, para diferentes tipos de música – a “casa de
dos. Depois de certo período a apresentação ópera” não contrata bandas de reggae, nem a
termina, os músicos conversam com algumas biblioteca pública, as igrejas ou as organizações
pessoas da audiência, a maioria das quais sai e fraternais. Em vez disso, cada um desses esta-
volta para suas casas ou dormitórios. belecimentos possui categorias de músicas que
Isso é o que se pode ver apenas sentando são regularmente contratadas e uma clientela
tranqüilamente numa mesa (recebendo alguns que freqüenta regularmente os eventos. Outros
olhares dúbios por estar tão calado). No en- tipos de música podem ser tocadas em outros
tanto, podemos falar com pessoas em outras locais, em diferentes noites da semana (tipos
mesas e fazer perguntas sobre os performers, a de quando). Os músicos podem se sobrepor to-
audiência e o estabelecimento. Podemos apren- cando diferentes tipos de música em diferentes
der que os performers são “os melhores que já bandas. As audiências podem se sobrepor da
vieram para esta cidade”, que a audiência é for- mesma maneira, já que uma pessoa pode apre-
mada “principalmente por tipos universitários ciar mais de um tipo de música. No entanto, as
e alguns freqüentadores habituais”, assim como audiências geralmente são bastante diferentes.
por “amigos próximos da banda”, e que tem um Poucos universitários vão assistir eventos nas
policial à paisana no clube, que “este lugar tem organizações fraternais como o Rotary Club;
uma acústica péssima, mas é o único lugar que muitas crianças assistem eventos na biblioteca
contrata apresentações de fora”, e que “a noite (dirigidos à crianças); nos bares de fora da cida-
de quinta-feira é terrível para atrair uma boa de que tocam música country deve haver menos
platéia, deveriam ter programado para sábado”. estudantes quanto mais nos afastamos do cam-
Essa parte da investigação fornece “categorias pus universitário; e eventos musicais em igrejas
nativas” e/ou as palavras e frases que as pessoas são geralmente freqüentados de acordo com a
usam para definir e se inserirem em seu mun- denominação.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 237-260, 2008


Etnografia da música | 255

A performance, a audiência e os horários de ter classificações do tempo, espaço e dos tipos


performance podem ser usados para construir de audiência que são um tanto diferentes – mas
um conjunto de expectativas sobre a música complementares – aos da audiência.
na comunidade. Alguns tipos de música, no Nem os músicos, nem a audiência são as
entanto, serão apropriados a diversos locais, únicas pessoas envolvidas na performance.
tempos e audiências. Pode ser que o jazz seja Existem os administradores dos negócios, os
executado em uma sala de concerto na univer- administradores do transporte, os donos dos
sidade, em um clube noturno, em organizações clubes noturnos, os engenheiros de som, bom-
fraternais e em distantes bares para audiências beiros, policiais, recepcionistas e seguranças.
formadas por uma mistura de idades e sexos. Todos eles possuem uma perspectiva do evento
Se o pesquisador persistir, ele ou ela descobrirá que pode ser muito instrutiva. Um evento mu-
que o jazz se iniciou em um tipo de estabele- sical local é também parte de um amplo pro-
cimento e se deslocou progressivamente para cesso econômico, político e social, que pode
outros lugares ao longo do tempo. Outros ti- contestá-lo mesmo quando o reproduz. Esses
pos de música, contudo, estarão rigidamente processos podem ser significativos, especial-
diferenciados em termos da audiência, local e mente para questões relacionadas à sociologia
estilo musical. O analista geralmente descobre da música. Muitas vezes, a música é também
que existem sistemas de categorias de pessoa, parte dos processos políticos, de censura e pro-
local e tipos musicais que estão relacionados moção do Estado ou as avaliações políticas de
uns aos outros, mesmo que não mutuamente performance que são freqüentemente impor-
exclusivos e completamente consistentes. Isso tantes para se conhecer e estudar.
pode ser utilizado para iniciar a etnografia da Entrevistas podem nos levar a um longo ca-
performance de uma comunidade. minho para uma análise, porém algumas ques-
Porém, para construir uma etnografia da tões muito importantes devem ser respondidas
música é preciso fazer mais que simplesmente através da interpretação das respostas. Essas são
sentar e conversar com um vizinho na audiên- as respostas ao por que as pessoas participam de
cia. Também os músicos possuem percepções eventos musicais, quais suas motivações e qual
do que acontece na performance, mesmo que o significado do evento para elas. Essas questões
nem sempre lhes agrade falar sobre ela. A ci- são mais difíceis de responder do que aquelas
dade universitária pode ser apenas uma para- que podemos descobrir através da observa-
da em uma turnê, e os músicos podem estar ção direta, porque o significado geralmente é
mais interessados no concerto de uma cidade o produto de experiências passadas e do rela-
grande no dia seguinte do que no concerto da- cionamento dos eventos musicais com outros
quela noite. Todavia, como profissionais, eles processos e eventos na comunidade. Apesar da
rapidamente descobrem o nível da audiência e sua dificuldade, tais questões são as mais inte-
tocam para ela. Eles podem, por exemplo, des- ressantes para os antropólogos. O significado
cobrir que as canções de Robert Marley rece- pode ser abordado através do relacionamento
bem uma resposta mais entusiasmada e então entre a origem, a estrutura e os sons da música
introduzem mais composições dele na segunda com outros aspectos da sociedade.
parte da apresentação, enquanto colocam em Feld é um dos poucos autores que investi-
segundo plano suas próprias composições. Eles gou o significado da canção nesse sentido. Em
podem apreciar a calorosa recepção e compará- Sound and Sentiment ele traça o significado de
la a outros lugares onde já tocaram. Eles podem um gênero de canções demonstrando o relacio-

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256 | Anthony Seeger

namento da canção humana com a canção dos fala de um grupo de homens cegos que foram
pássaros e pela análise do relacionamento das levados a visitar um elefante. Por fim, depois
canções cantadas que relembram áreas da flores- de ouvirem muitas coisas a respeito, os cegos
ta e eventos do passado que evocam sentimentos foram levados para dentro da jaula e rodea-
intensamente sentidos por parte dos ouvintes. ram um dos enormes animais. Um dos cegos
Ele analisa os mitos Kaluli, suas idéias sobre a apalpou a tromba e concluiu que um elefante
natureza e exemplos específicos de performance era longo e flexível como uma grande cobra.
musical. Feld demonstra que o relacionamen- Outro tocou a pata e concluiu que era circular
to de humanos e o canto dos pássaros é uma e firme como o tronco de uma árvore. Aque-
expressão específica de um paralelo mais geral le que sentiu o rabo decidiu que ele era mui-
entre humanos e pássaros, traçado pelos Kaluli. to pequeno, enquanto aquele que ficou em pé
As canções gisalo são designadas para levar os embaixo do ventre do animal sentiu seu peso
ouvintes às lágrimas, e a audiência expressa o opressivo e concluiu que era firme e pesado.
êxito do cantor em produzir uma tristeza deses- Quando eles saíram da jaula do elefante, come-
peradora, queimando-o com uma tocha. çaram a comparar suas impressões do animal e
iniciaram uma discórdia sobre a natureza dos
Estes sons e cantos de pássaros reorganizam a elefantes. Por sua experiência pessoal, cada um
experiência em um plano emocional ressonan- deles acreditava que estava certo.
do com os sentimentos profundamente sentidos Em muitos sentidos, a música é como o ele-
dos Kaluli. Quando texto, música e caracterís- fante e nós somos os homens cegos. Privados de
ticas performativas se aglutinam, alguém será uma visão de todas as partes, diferentes discipli-
levado às lágrimas ([1982] 1990, p. 216). nas e estudiosos têm se fixado em certos aspectos
e declarado: “é disto que a música trata”. A força
Através da investigação tanto cognitiva e o rancor das diferenças de opiniões está evi-
quanto emotiva dos aspectos da canção, Feld dente nas revistas e livros. No entanto, em vez
fornece um dos estudos mais cuidadosos sobre de defendermos nossos pontos de vista talvez
o significado de canções até o presente. devêssemos transitar mais, abordar a música de
A performance musical possui aspectos fisioló- diferentes lados e ouvir aqueles que a descrevem
gicos, emocionais, estéticos e cosmológicos. Tudo de maneiras diferentes. Em vez de limitarmos os
isso está envolvido no por que pessoas fazem e tipos de questões que consideramos aceitáveis,
apreciam certas tradições musicais. Uma etno- eu acredito que devêssemos definir nossa pesqui-
grafia da música deve estar preparada para tratar sa em termos de questões amplas, e reconhecer
desses aspectos – mesmo que poucos autores o a força da diversidade de pesquisas e publicações
tenham feito. Algumas análises se concentram na feitas nos anos 1990. Nenhuma pessoa ou dis-
influência fisiológica, outras na tensão emocio- ciplina possui o monopólio das questões que
nal liberada através da música, outras tratam da podemos fazer sobre música. Se nossas respostas
correlação social e outras dos efeitos das crenças diferem é porque as perspectivas dos eventos são
cósmicas no interior da tradição. Provavelmente diferentes. Se trabalharmos separados, como os
todos estão envolvidos seja qual for a tradição. cegos da fábula, nunca descobriremos o que é
Uma combinação de pesquisa de campo, investi- um elefante. Se trabalharmos juntos, poderemos
gação das categorias nativas e uma descrição cui- começar a ver a totalidade invisível e compreen-
dadosa são as marcas da etnografia da música. der o fenômeno que por nós mesmos só pode-
Uma anedota, provavelmente da Índia, mos perceber parcialmente.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 237-260, 2008


Etnografia da música | 257

Notas Boon, James A. Other Tribes and Other Scribes. Cam-


bridge: University of Cambridge Press, 1982. 317 p.
1. N. T.: Esta tradução foi realizada em 2004 por oca- Cameu, Elza. Introdução ao Estudo da Música Indígena
sião da publicação do número de abertura do cader- Brasileira. Conselho Federal de Cultura e Departa-
no “Sinais Diacríticos: música, sons e significados”, mento de Assuntos Culturais. Rio de Janeiro, 1977.
editado pelo Grupo de Pesquisa de Som e Música em 295 p.
Antropologia da USP. Naquele momento, o autor Chernoff, John Miller. African Rhythm and African
não só realizou a revisão técnica como inseriu esta Sensibility: Aesthetics and Social Action in African Mu-
“Nova Introdução”. sical Idioms. Chicago: University of Chicago Press,
2. N. R.: Como ressalta Elizabeth Travassos em sua 1979. 261 p.
apresentação ao ensaio de John Blacking – Música, Durkheim, Émile. The Elementary Forms of the Re-
cultura e experiência –, publicado em número ante- ligious Life: a Study in Religious Sociology. London:
rior desta revista (Cadernos de Campo, vol. 16, 2007), Oxford University Press, 1915. 416 p.
a palavra inglesa sound tanto se refere ao som, ao so- Fabian, Johannes. Time and the Other: How Anthropo-
noro, mas também àquilo que é saudável. Daí o título logy Makes its Object. New York: Columbia University
da apresentação de Travassos: “John Blacking ou uma Press, 1983. 205 p.
humanidade sonora e saudavelmente organizada”. Falck, Robert and Rice, Timothy. (Eds). Cross-Cultu-
Tanto o ensaio de John Blacking quanto o artigo de ral Perspectives in Music. Toronto: University of Toron-
Anthony Seeger ora publicado são considerados se- to Press, 1982. 189 p.
minais na constituição de uma etnografia e antropo- Feld, Steven. “Sound Structure as Social Structure”,
logia da música. Ethnomusicology, vol. 28, No 3 1984. p. 383 – 409.
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cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 237-260, 2008


Etnografia da música | 259

Zemp, H. Musique Dan: La Musique dans la pensée et la Agradecimentos


sociale d’une société africaine. Paris: Éditions de l’École
des hautes études en sciences sociales, 1971. 320 p.
Agradeço a Anthony Seeger por revisar e
autorizar a publicação desta versão em portu-
guês. Agradeço também as revisões de Tiago de
Oliveira Pinto e Ecila Cianni bem como aos
editores da Cadernos de Campo responsáveis
pela revisão técnica e pelas sugestões ao texto.

traduzido de
MYERS, Helen. Ethnomusicoly. an Introduction. New York/ London: W.W.
Norton & Company, 1992. p. 88-109.

tradutor Giovanni Cirino


Doutorando em Ciência Social (Antropologia Social)/USP
Pesquisador do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA/USP)
e do Grupo de Estudos sobre Novas Tecnologias e Trabalho (GENTT/UEL)

revisor André-Kees de Moraes Schouten


Doutorando em Ciência Social (Antropologia Social)/USP
Pesquisador do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA/USP)

revisor José Glebson Vieira


Professor do Departamento de Ciências Sociais/UERN
Doutorando em Ciência Social (Antropologia Social)/USP
Pesquisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII/USP)

Recebido em 30/03/2008
Aceito para publicação em 10/10/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 237-260, 2008


especial
Lévi-Strauss
A imaginação sociológica inaudita de C. Lévi-Strauss
Marcos Lanna

resumo O artigo oferece uma leitura de As Es- de que a enorme influência deste livro foi em
truturas Elementares do Parentesco, de C.Lévi-Strauss, boa medida exercida em seus próprios críticos.
baseado em críticas selecionadas de alguns de seus Isto é, mais do que pensá-lo como um rochedo
muitos comentadores (especialmente G. Homans indestrutível que resiste à maré, prefiro a idéia
e D. Schneider, L. Dumont e R. Needham). Para de serem as EEP uma forte maré que exerce em
além das descontinuidades, já demonstradas por muitos irresistível atração, geralmente para na-
comentadores recentes, entre estudos do parentesco dar contra. Este é um ensaio inicial que abarca
e estudos do mito de Lévi-Strauss, mostrarei haver número reduzido de leituras, com a pretensão
também continuidades entre eles. Será relevada a de ser brevemente expandido.
proposta de uma antropologia estrutural como uma Poucos, assim, além da já citada de Beau-
ciência englobante, uma semiologia, que não deixa voir, se posicionaram desde cedo a favor das
de atentar para questões, como a da hierarquia, cuja EEP; alguns inicialmente nadaram a favor (por
presença na obra lévi-straussiana e sua relação com exemplo, Dumont, [1957] 1983 e Needham,
temas básicos, como o da simetria, não tem sido até 1962) e posteriormente decidiram nadar con-
aqui devidamente qualificada. tra, ainda que diagonalmente, como veremos,
palavras-chave Lévi-strauss. Sociologia. Pa- a seguir, no caso destes últimos (e talvez de
rentesco. Louis Dumont. Beauvoir pudesse ser incluída aqui). Foi ainda
em menor número quem houvesse desde cedo
avaliado crítica e judiciosamente seus riscos e
As Estruturas Elementares do Parentesco possibilidades (dentre eles, cabe citar Homans;
(EEP) de C.Lévi-Strauss suscitaram muito mais Schneider, 1955 e E. Leach, 1961). Em parte
“incompreensão e hostilidade” (cf. Dumont, por seu trabalho sobre parentesco ser identi-
1971, p. 90) do que elogios (como os feitos ficado a Lévi-Strauss, no mundo anglo saxão,
por de Beauvoir, [1949] 2007) e resenhas (faz Dumont também recebeu sua quota de duras
parte da mitologia da antropologia, tão citada críticas. Tivemos de esperar algumas décadas
quanto desconhecida, aquela em que R. Lowie para o comentário de L. Dumont (1971) às
ambiguamente reconhece a grandiosidade da EEP repercutir na antropologia contemporâ-
obra). Deve-se reconhecer que dos inúmeros nea1.
comentários que recebeu, a maioria foi de teor Eduardo Viveiros de Castro (1990, 1993)
crítico. Talvez o mesmo pudesse ser dito da retoma em profundidade o comentário de
recepção inicial que teve cada um dos quatro Dumont e o faz frutificar de modo original, a
volumes das Mitológicas. Mas se esta série vem partir de uma interpretação da teoria da alian-
ultimamente recebendo seu devido reconheci- ça para explicar não tanto, ou não apenas, o
mento, o mesmo, a meu ver, não poderia ser parentesco amazônico em si mesmo, mas seu
dito das EEP. Tentarei aqui valorizá-las em re- lugar, englobado, em uma cosmologia mais
lação a algumas de suas leituras, não necessaria- ampla. A primeira versão da tese (Viveiros de
mente as mais críticas. Ficará implícita a idéia Castro, 1993), já consagrada e hoje reformula-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


264 | Marcos Lanna

da e ampliada pelo seu próprio autor (cf. Vivei- pela chefia, da qual depende toda a vida, toda a
ros de Castro, 2001, 2008), poderia ser assim produção (cf. Guerreiro Jr., 2008).
resumida: na Amazônia indígena, Mas o que dizia o comentário de Dumont
a)em um nível local e parental, a consangüi- sobre as EEP? Por um lado, Dumont repete as
nidade engloba a afinidade; aqui nos críticas dos “adversários da teoria” que “não se
cansam de nela reprovar” a visão, “um pouco
afastamos um pouco da letra d’As Estruturas... como em Rivers antes dele”, do casamento
dizendo que a proibição do incesto testemunha “como um deus ex machina do parentesco e
uma incompatibilidade, logo uma complemen- causa eficiente de todos os outros fenômenos”;
taridade entre consangüinidade e afinidade, Lévi-Strauss chegaria a “estabelecer a distinção
sempre presente em algum grau, e que as socie- primogênito/caçula, tão difundida, como um
dades que praticam o casamento entre primos caso particular do casamento” dos Wikmunkan
cruzados apresentam esta oposição em sua for- australianos (Dumont, 1971, p. 118). Aqui o
ma mais lógica e completa (Dumont, 1971, p. contraste entre Lévi-Strauss e F. Héritier é no-
93), tável: se o primeiro reduziria a distinção primo-
gênito/caçula à troca, a segunda reduz a troca
mas que não se pode “concluir do casamento à mesma distinção, aliada à valência diferen-
entre primos cruzados a existência de uma fór- cial entre os sexos3. Por outro lado, Dumont
mula holista” (Dumont, 1971, p.100) do tipo também fez sua própria crítica original às EEP,
exemplificado por algumas seções australianas, sendo dos primeiros a fazê-lo a partir de uma
“fórmulas globais da sociedade inteira” (ib.)2; perspectiva estruturalista, se não exatamente
b) Viveiros de Castro (1993) demonstra a lévistraussiana, que frutifica em Viveiros de
inexistência de “uma primazia sociológica ou Castro e será comentada em detalhes a partir
política” da afinidade em relação à cosmologia; de agora, pois o contraste entre Dumont e Lé-
porém, tal como o leio, uma transformação da vi-Strauss, a meu ver, merece ser aprofundado.
afinidade ressurge em um nível mais geral ou Para Dumont, as EEP seriam um livro “pré-
global, na categoria de afins potenciais, “que estruturalista” (Dumont, 1971, p. 132) por pro-
recolhe em si os valores” de uma troca não con- por uma teoria “meio-empírica da troca” (id.,
tratual e não substancialista, que não é nem p. 134). “Lévi-Strauss viu no inter-casamento
pode ser de mulheres; com os afins potenciais uma forma privilegiada de relação”, mas
se troca tudo menos mulheres. A afinidade
amazônica se liga ao “problema da mortali- generaliza ao extremo a noção de ‘troca’ e a apóia
dade”, à organização de uma “economia sim- naquela de reciprocidade ‘concebida como a for-
bólica da morte”, da “elaborada maquinária ma mais imediata sobre a qual possa ser integra-
ritual”, da “ideologia paleolítica” da predação, da a oposição entre o eu e o outro’ e dada como
da caça, da guerra. Mas a meu ver, também se uma das ‘estruturas fundamentais do espírito’
liga à chefia e a uma vida sem guerra nem do- (Dumont, 1971, p. 131; entre aspas simples (‘ ’)
enças; por exemplo, os chefes alto-xinguanos estão citações das EEP; itálico original).
se classificam como primos cruzados. Esta afi-
nidade xinguana não seria apenas potencial; Dumont (ib.) chega a propor haver “mais
ao mesmo tempo em que pode ser vista como mutualidade do que reciprocidade” nos mo-
movimento da “preensão relacional”, ela opera delos nativos em que
não pela guerra mas por uma troca centralizada

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 263-274, 2008


A imaginação sociológica inaudita de C. Lévi-Strauss | 265

várias unidades dão filhas e recebem esposas, manifesta em várias esferas onde não há questão
isto é, o mesmo tipo de coisas, enquanto na de transferência ou troca. É assim a noção de
reciprocidade duas unidades trocam coisas que oposição que requer agora nossa atenção (citado
podem ser diferentes (Littré, s.vv.) (ib., itálicos por Dumont, 1971, p. 132).
originais, minhas ênfases).
Ora, esta é uma tese bastante discutível.
Ora, se tal é o caso, pode-se afirmar, em de- Não tenho espaço para aprofundar esta
fesa de Lévi-Strauss, a possibilidade de a reci- questão polêmica (para uma defesa da noção de
procidade englobar a mutualidade e dever ser reciprocidade que de certo modo relativizaria,
mantida como noção geral. quase descartaria a de troca, cf. Lanna, 2005)4.
Curiosamente, Dumont faz um raciocínio O que importa aqui é que indiquei as bases
que é formalmente deste tipo, mas contra Lévi- em que Dumont propõe um estudo estrutu-
Strauss, apoiando-se em Needham, para quem ralista do parentesco que pretende prolongar e
a noção de oposição englobaria a de recipro- expandir criticamente a teoria – que ele supõe
cidade: “pré-estruturalista” – das EEP, transforman-
do-a em um estudo do “universo conceptual
neste ponto a proibição do incesto aparece como do parentesco”, e ser complementado “ao nível
uma exigência de integração social quando se da terminologia em particular, e do ponto de
pode tomá-la também como a marca indelével vista do método ao nível da oposição distin-
de uma oposição distintiva entre consangüini- tiva” (Dumont, 1971, p. 133). Ou melhor, o
dade e casamento ou afinidade. Como Needham estruturalismo de Dumont seria um estudo
notou, passa-se sem transição, nas Estruturas, da das oposições distintivas, como aquela entre
relação no sentido conceptual – oposição distin- consangüinidade e afinidade, já mencionada,
tiva, etc. – à relação no empírico – a reciproci- e exploraria domínios pouco explorados por
dade (ib., minhas ênfases). Lévi-Strauss, como o das terminologias. O sur-
preendente é que Dumont acaba defendendo
A proposta é a de que a noção de oposição um certo estrutural-funcionalismo conceptual
englobaria a de reciprocidade; mais importan- como antídoto a um estrutural-funcionalismo
te, se explicita que elas estariam em níveis di- sociológico que para ele caracterizaria as EEP.
ferentes com o argumento de que a noção de Para Dumont importaria “o nível de integração
oposição estaria no modelo e a reciprocidade, das idéias no espírito” mais do que aquele “dos
supostamente, na empiria e derivada de uma grupos na sociedade”, chegando a falar em “in-
“exigência de integração social”. Logo, advogar tegração mental” (seja lá o que isto signifique) e
a presença de reciprocidade seria uma postura não na “integração social”, que mostrei caracte-
funcionalista (o que nos traz ecos da primeira rizar o paradigma funcionalista, tanto em suas
crítica vigorosa às EEP, de Homans; Schneider, análises do parentesco em si como em relação a
1955, a de nelas haver uma razão finalista). A outras esferas sociais (cf. Lanna, 1995, 2007).
crítica de Dumont às EEP seria então, antes de Eu não teria nada contra a proposta de um
mais nada, um endosso à crítica de Needham, estudo do “universo conceptual do parentesco”
para quem que privilegiasse lacunas das EEP, como o fato
de “a terminologia não ser jamais considerada
a reciprocidade ela mesma, se não me engano, nela mesma” (Dumont, 1971, p. 117); aliás,
é uma modalidade de oposição; e a oposição se independentemente da crítica de Dumont

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e antes dela, nos anos 1960, esta proposta já Oleira ciumenta, Lévi-Strauss não tinha ainda
vinha sendo desenvolvida pela maioria dos acesso a uma etnografia que só posteriormen-
estudiosos do parentesco. Também endosso a te veio oferecer mais detalhes sobre a constru-
proposta adicional de se privilegiar a “comple- ção da paternidade em ambientes amazônicos
mentaridade dos opostos” (ib.), isto é, o uso como o jívaro, em que, diferentemente da nos-
da noção de hierarquia, aliás, simultaneamen- sa, ela não é dada de antemão (cf., entre ou-
te presente e ausente na obra de Lévi-Strauss, tros, Viveiros de Castro, 2008). Ou por outra,
como tratarei no parágrafo seguinte. Foi graças não é por ser englobada que a consangüinidade
à noção de hierarquia que Viveiros de Castro deixaria de se fazer estruturalmente relevante
pôde falar em englobamento da afinidade pela no pensamento mítico jívaro. Esta aparente
consangüinidade ao nível local em certos sis- tergiversação tem como objetivo apontar para
temas amazônicos e no englobamento inverso continuidades entre as EEP e as Mitológicas,
em um nível exterior, no qual o valor é inverti- dado o modismo atual que insiste em salientar
do e a afinidade engloba o parentesco. as descontinuidades entre estas etapas da obra
Graças à noção de hierarquia ainda pôde de Lévi-Strauss.
Dumont, tratando de outra realidade empírica, Em resumo, parece-me simplesmente er-
apontar para um englobamento que seria logi- rônea a conclusão de Dumont de que em
camente do mesmo tipo (apesar de substancial- Lévi-Strauss a reciprocidade não é estrutural-
mente tão diferente): ora, no sistema cognático conceptual e sim, realidade empírica institu-
europeu contemporâneo, a “afinidade é qual- cional. Esta seria uma leitura equivocada de
quer coisa de efêmera” (Dumont, 1971, p. Lévi-Strauss, que retoma o esclarecimento des-
134), algo fundamental em nossa civilização. te ponto em vários momentos posteriores (cf.,
Do mesmo modo e complementarmente, a por ex., Lévi-Strauss 1998). Quanto à hierar-
consangüinidade assume papel oposto; a fra- quia, parece-me que, ainda que haja momentos
ternidade e a relação com o pai são entre nós em que não esteja explicitamente presente, não
verdadeiro mito fundador, como demonstra deixa de ser tema fundamental da obra de Lévi-
Lévi-Strauss em seus comentários sobre Freud. Strauss. Ora, há em Lévi-Strauss “o primado
Faço notar que estes comentários perpassam da diferença sobre a identidade” (Maniglier,
sua obra, entre outros momentos, da crítica ao 2002, p. 37) e isto fundamentalmente de duas
Totem e tabu nas EEP às reflexões de Tristes tró- maneiras. Em primeiro lugar, a diferença não é
picos e mais recentemente na Oleira ciumenta. uma aparência, por trás da qual haveria alguma
Não é acidental o contraste de obras da psica- essência humana comum. Citando a Antro-
nálise com o pensamento jívaro neste último pologia Estrutural, Maniglier indica que, para
livro de 1985, em que Lévi-Strauss aponta para seu autor, cabe à antropologia desvendar “as
semelhanças substantivas sobre o lugar da con- maneiras constantes segundo as quais os ho-
sangüinidade neste pensamento ameríndio e mens diferem-se uns dos outros”. Em segundo
no nosso. Ao apontar para o fato de os jívaro lugar, Lévi-Strauss adota a definição do signo
já terem o seu “totem e tabu”, a tese de Lévi- de Saussure não como uma “coisa positiva” e
Strauss não necessariamente difere da demons- sim pelos seus traços distintivos, que são “os
tração de Viveiros de Castro do englobamento afastamentos diferenciais por meio dos quais as
da consangüinidade amazônica. Inclusive por sociedades se opõem” (id., p. 38)5. Disto de-
retomar materiais analisados desde o início dos corre que
anos 1960 finalmente publicados em 1985, na

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A imaginação sociológica inaudita de C. Lévi-Strauss | 267

a oposição não se define pelos termos opostos, ção binária que inicialmente nos é dada, assim
mas como princípio original de distinção, afas- como conhecer melhor os vários eixos que a
tamento, distância: assim, não adianta dizer que organizam em correlações; são estes eixos que
o amargo é um termo e o doce outro e que deste a vão tornar (minimamente) significativa. Isto
simples fato resultaria uma diferença entre eles, deixa claro que não se pode, como tantos fize-
mas sim que se pode introduzir na experiência ram, reduzir a obra de Lévi-Strauss a um mero
sensível uma polaridade que permite hierarqui- “jogo” de oposições binárias, especialmente
zar em graus diferentes nesta linha nuances di- quando tomadas como termos substantivos. A
versas. A noção de oposição é assim em certo ambição de Lévi-Strauss seria entender a assi-
sentido mais próxima da noção de intensidade metria profunda das complexas gramáticas (e
do que da de contradição, mais estética do que não mero “jogo”) de diferenças;
lógica, mais sensível do que intelectual. As opo-
sições são traços distintivos, critérios de diferen- é por que os homens se distinguem uns dos ou-
ciação: a partição masculino/feminino precede tros que eles “significam”, isto é, utilizam rea-
e determina as representações do homem e da lidades que valem por aquilo que elas excluem
mulher. As diferenças são dadas antes que elas (Maniglier, 2002, p. 44).
diferenciem. É por isto que Lévi-Strauss não
cessa de repetir que ‘a apreensão da relação, ato Sua conclusão é a de que o signo é aquilo
lógico, antecipa o conhecimento individual dos através do qual os grupos se opõem e se com-
objetos’ (Le regard eloigné, p.164) (ib., itálicos preendem. Tudo isto aponta para o fato de que
originais, minhas ênfases). a experiência da 2a Grande Guerra, que segun-
do o próprio Lévi-Strauss (Simonnot, 1987; cf.
Isto é, os traços distintivos não se identifi- tb. Lanna, 2005, p. 444, nota 2) o levou a se
cam às diferenças empíricas afastar do tema da política, levou-o também a
um maior rigor; ao tratar de tema tão próximo,
mas a natureza mesma de uma oposição depen- ele buscou o maior afastamento diferencial,
de do sistema de oposições dentro do qual ela um distanciamento do olhar, para voltar a ele
se acha: uma diferença não é nunca única, mas mais explicitamente apenas no final da década
sempre em correlação com outras diferenças no de 1970, quando então retoma seus estudos
seio de um sistema. ‘O número, a natureza e a de parentesco a partir da sua noção seminal de
qualidade destes eixos lógicos não são os mes- “sociedades a casas”.
mos segundos as culturas’ (La pensée sauvage, Aqui chegamos ao problema da simetria
p.82) (ib., itálico original). em Lévi-Strauss. Este deixou a alguns a ima-
gem de uma ingenuidade em relação à hierar-
Minha conclusão é a de que o que parece quia – e quiçá possamos incluir aqui o próprio
uma falta de hierarquização em Lévi-Strauss é Dumont, que tanto se dedicou à questão. Mas
muito mais uma cautela para não congelar o isto está longe de ser verdadeiro; afinal, para
sentido de uma diferença em seus termos, em Lévi-Strauss,
sua substância. Por exemplo, quando nos de-
frontamos com duas metades de um grupo do ‘aos seres que une, sempre ao opô-los, a simetria
Brasil central que se classificam mutuamente não oferece o meio mais elegante e mais simples
como “os fortes” e “os fracos”, há que se conhe- de se aparecerem semelhantes e diferentes...?’
cer melhor as relações por trás desta classifica- (Anthropologie structurale 2, p. 300). É por isto

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que Lévi-Strauss definiu o pensamento simbó- do parentesco” se as colocarmos em relação a


lico pelo fato de instaurar sistemas de simetria outros eixos; ou por outra, a noção de EEP fica
entre grupos (Maniglier, 2002, p. 44-45). cada vez mais rica se colocada em relação com
o maior número de eixos possíveis; mas, exata-
Ainda mais importante, é neste sentido que mente como nas Mitológicas, tudo depende da
ele vê na “reciprocidade de perspectivas [...] o etnografia. Esses eixos não devem se restringir
caráter próprio do pensamento mítico” (Lévi- àqueles da esfera do parentesco (como o da fi-
Strauss, 1985, p. 268). Ora, por trás das sime- liação, por exemplo, que deve ser necessaria-
trias que o pensamento mítico estabelece estaria mente incluído); daí o interesse de eixos como
a assimetria da reciprocidade de perspectivas. o da residência, salientado no estudo das socie-
Em resumo, a simetria aparece em Lévi-Strauss dades a casas.
como uma ideologia, no sentido marxista do Isto nos deixa a ambição de estudos futu-
termo, e não como um signo; sou tentado a ros conjugando as análises de mito e parentes-
dizer que, ao contrário da assimetria e da hie- co, estudos que o mestre não teve tempo para
rarquia, para ele a simetria é super-estrutural. fazer. A contribuição de Dumont ao estudo
Estamos aqui em condições de começar estrutural do parentesco que relevei aqui foi
a vislumbrar continuidades na obra de Lévi- a de incluir ao menos um eixo que não havia
Strauss do parentesco ao mito (e de volta ao sido concebido por Lévi-Strauss, ao qual nos
parentesco, pelo estudo das “sociedades a ca- conduzem as séries de englobamentos da con-
sas”). Voltemos ao fato de a natureza de uma sangüinidade pela afinidade e/ou vice-versa. A
oposição depender do sistema de oposições contribuição de Viveiros de Castro que escolhi
dentro do qual ela se acha, da correlação entre relevar amplia a de Dumont, ao mostrar que
diferenças segundo “eixos lógicos”. No estudo estes englobamentos transcendem a esfera do
dos mitos, estes eixos podem ser geográficos, parentesco. Viveiros de Castro o faz justamente
ecológicos, astrológicos, cosmológicos, zoo- através da noção de aliança; se a aliança matri-
lógicos, sexuais, relativos à posição social, à monial é englobada no parentesco amazônico,
incontinência ou retenção oral e anal, à tecno- é ainda uma aliança mais ampla que permite a
logia, etc... Já no estudo do parentesco, eles são passagem à cosmologia (a análise do processo
relativos à residência, filiação (daí a relevância do parentesco, de seu englobamento em uma
dos conceitos das EEP de harmonia – de uma cosmologia, ou uma passagem da cosmologia ao
sociedade patrilocal e patrilinear ou matrilo- parentesco é ressaltada em Viveiros de Castro,
cal e matrilinear – e desarmonia – patrilocal/ 2002). É ainda a noção de aliança que permite
matrilinear ou matrilocal/patrilinear), laterali- a Lévi-Strauss passar das estruturas elementares
dade da preferência matrimonial, etc... Nesse à noção de casa, entendida como estrutura, que
sentido, a noção de “estruturas elementares veio a substituir a noção de semi-complexida-
do parentesco”, tal como a usei até aqui para de; em artigo próximo sobre várias “leituras
me referir às sociedades com casamentos com das estruturas” mostrarei como esta passagem
primos cruzados matri, patri ou bilineares (e é uma expansão do estudo do parentesco de
mesmo avunculares – cf. Dal Poz, 2004) é de Lévi-Strauss que se dá através do seu estudo do
certo modo vazia se tomada em si mesma, pois mito (mas também das máscaras).
nos remete a apenas um dos muitos eixos pos- Seja como for, como Lévi-Strauss, Dumont
síveis, a lateralidade da preferência. Assim, só também busca conhecer o nível mais profun-
faria sentido falar em “estruturas elementares do, estrutural, dos arranjos empíricos e para

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A imaginação sociológica inaudita de C. Lévi-Strauss | 269

tanto realiza um movimento do sociológico ao identificar consangüinidade e parentesco, im-


conceptual. Entretanto, surge aqui uma dife- pondo a noção, implícita em nossos próprios
rença entre estes autores: a ambição das EEP é sistemas de parentesco, segundo a qual a afini-
justo a de entender a dimensão sociológica (ou dade é exterior ao parentesco propriamente dito
código sociológico, como diz em seus estudos (Dumont, 1971, p. 93)6.
sobre mitos) como uma dimensão conceptual
(e nas obras posteriores à EEP, uma entre ou- O mérito desta proposta foi reconhecido
tras dimensões) a partir da troca; já Dumont por Viveiros de Castro, sem adotar o “ponto de
aproxima a troca (ou a reciprocidade) à morfo- vista conceptual” dumontiano que eu mesmo
logia durkheimiana, opondo-a ao que imagina critiquei acima por ser um cognitivismo funcio-
ser a dimensão conceptual da “aliança de casa- nalista. Há mais: Viveiros de Castro entendeu
mento”. Avança que o que Dumont chama de “implicações estrutu-
rais infinitamente maiores do que a do arranjo
as regras de casamento têm implicações estrutu- dos grupos” sem supor que estas estariam nas
rais infinitamente maiores do que as do arranjo “regras de casamento” ameríndias em si mes-
dos grupos. Por oposição às expressões fundadas mas. Se há algo de universal na afinidade, está
na troca, etc., a expressão de aliança de casamen- ainda mais além do que imaginava Dumont;
to pode cobrir ao mesmo tempo o aspecto geral no caso ameríndio, este universal se revela além
das implicações mentais e o aspecto particular tanto das “alianças de casamento” como da
das implicações de morfologia social (Dumont, esfera do parentesco. A afinidade ameríndia,
1971, p. 134). mesmo se entendida nos termos de Dumont,
não conduz necessariamente a uma “integração
Restaria discutir até que ponto haveria esta mental”; já o caráter sintético do dom ou a no-
“oposição” entre troca e aliança (e não só a de ção de reciprocidade lévistraussiana permanece,
casamento), o que tentei fazer em outros tra- a meu ver, como tentei mostrar em outros tra-
balhos (por exemplo, Lanna, 2005). O que balhos, estrutural e conceitualmente relevante
interessa aqui é salientar qual a crítica de Du- em qualquer contexto etnográfico, entendidos
mont ao chamado aspecto sociológico das EEP, como algum tipo de “integração mental” (para
à suposta ênfase deste livro na morfologia, na usar a não tão boa expressão de Dumont, criti-
formação dos grupos sociais. Não é que Du- cada acima) entre eu e o outro.
mont descarte a importância das “implicações Tive aqui a intenção de relativizar e especi-
sociológicas”, dado inclusive que saúda a “ima- ficar a crítica de Dumont às EEP como algum
ginação sociológica pródiga ao longo de toda tipo de sociologia pré-estruturalista7. Vimos
obra [as EEP]” (Dumont, 1971, p. 118); mas que esta crítica não estaria exatamente em li-
para ele estas implicações deveriam se ligar a nha com um vaticínio que começamos a ouvir
um “ponto de vista conceptual” diferente do repetidamente de serem as EEP um livro neo-
de Lévi-Strauss. durkheimiano (cf. Keck, 2008, entre outros).
Para Dumont, o desenvolvimento do estru- Afinal, Dumont saúda tanto a “imaginação
turalismo passaria, como indiquei, por análises sociológica inaudita de Lévi-Strauss” como o
das diferentes institucionalizações da relação estudo da formação dos grupos, da morfolo-
hierárquica entre consangüinidade e afinidade, gia. E o que dizem as EEP, afinal? Será que elas
algo difícil para os anglo-saxões, dado que “a “renovam Durkheim pela cibernética” (Keck,
língua inglesa conspira” ao 2006, p. 20)? Ou será que elas também, como

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o Pensamento Selvagem, não mostram que pre- seriam circuitos de reciprocidade (e não exata-
cisamos nos “situar ao nível do espírito huma- mente de trocas) que dariam origem aos gru-
no se desejamos comparar as sociedades entre pos – sejam, A, B, C, n. Estas três estruturas
elas” (ib.)? Será que a concepção de espírito seriam
humano mobilizada por Lévi-Strauss nas EEP
está mesmo “depassée” por alguma “antropo- 1) a troca restrita do casamento bilateral, na
logia cognitiva” (ib.)? Afinal, para o bem e/ou qual a reciprocidade é mais imediata:
para o mal, Dumont não preconizava também na Geração 0: A → B
a sua versão de alguma antropologia essencial- na mesma “G 0”: A ← B
mente cognitiva? Não estaríamos nós, como
Dumont, aliás, perdendo um pouco do rigor, 2) a troca generalizada do casamento patri-
tentando criar limites rígidos entre escolas fun- lateral, na qual a reciprocidade surge na gera-
cionalistas e estruturalistas, sem perceber que ção seguinte à de ego (meu filho casa-se como
elementos de ambas estão um pouco por toda meu avô; a mulher que foi para meu pai será
a parte8? Para muitos, como os já citados Ho- retribuída por mim e a que foi para mim será
mans e Schneider (1955), tal é tipicamente o retribuída pelo meu filho):
caso das EEP, que teriam herdado do funcio- em “G 0”: A → B → C
nalismo uma “teoria da causa eficiente”, uma em “G 1”: A ← B ← C
posição “finalista”. em “G 2”: A → B → C
Ora, a meu ver a demonstração principal
das EEP é a de que o parentesco pode vir a se 3) a troca generalizada do casamento matri-
“estruturar como linguagem”; isto é, trata-se lateral, mais radicalmente assimétrica:
de uma contribuição à semiologia saussureana em “G 0, 1, 2, n”: A → B → C
(para uma rigorosa compreensão desta, cf. Ma-
niglier, 2006, entre outros). Justo o parentesco, Não me parece assim que as EEP pressupo-
antes pensado como da ordem da “morfologia”, nham a priori grupos ou regras de filiação ou
na expressão de Durkheim, ou da infra-estru- descendência, pois elas “funcionam” ou (me-
tura, na expressão marxista, se estrutura como lhor, muito melhor) existem não independen-
linguagem! Isto, aliás, também não é mais novi- temente delas, mas arranjadas simultaneamente
dade; foi o que levou Roman Jakobson (1970) a a regras de descendência patri ou matrilineares
advogar a antropologia lévistraussiana como “a” e práticas de residência patri ou matrilineares
grande semiologia, da qual a lingüística estru- (daí as noções de harmonia e desarmonia, etc.).
tural seria apenas um ramo. A meu ver, não há A idéia seria explicar por estas três (ou se seguir-
que se desvincular esta demonstração das EEP mos Dal Poz, quatro) diferentes institucionali-
daquela, posterior, do mesmo autor, de que zações da reciprocidade a existência dos grupos
(sejam eles patri ou matrilineares, patri ou ma-
as infra-estruturas são constituídas não apenas trilocais, hipo ou hipergâmicos, em combina-
por homens produtivos mas também por plan- ções entre estas variáveis ou funções, que não
tas, animais e entidades híbridas em relação de seriam aleatórias) e não seu funcionamento a
interação (Keck, 2006, p. 20). partir de uma existência anterior e teleologica-
mente suposta, dada pela regra de filiação ou
Lévi-Strauss mostra que existem três “estru- descendência. Desenvolverei este ponto no já
turas elementares do parentesco”9; elas mesmas mencionado artigo que preparo sobre leituras

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das estruturas. A pretensão das EEP é dupla: uma semiologia (Lévi-Strauss). Ambas não são
por um lado, mostrar que o casamento, tido distantes das propostas de Mauss, ou tomam o
até então como fato infra-estrutural, se organi- caminho, ou melhor, o desvio que Mauss to-
za como linguagem matrimonial e ao mesmo mou em relação a Durkheim. Mais: está cla-
tempo mostrar como a troca está por trás da ro que as EEP seriam anti-durkheimianas por
formação e inter-relação entre grupos. estarem em linha com as críticas a Durkheim
Neste sentido, os grupos deixam de ser gru- explicitadas no final de Totemismo hoje, críticas
pos e passam a ser “linguagem”, entre outros dirigidas à resposta oferecida por Durkheim
motivos por obedecer a alguma sintaxe. Ao à questão “o que é sociedade”. Lévi-Strauss
mesmo tempo em que, já nas EEP, então, se (1962) mostra que a resposta de Durkheim é
consegue uma importante superação da socio- em última análise uma teoria ritualística e psi-
logia na direção de um estudo da semiologia, cológica.
esta superação não exclui a pergunta funda- A meu ver, esta superação de Durkheim que
mental que Durkheim, entre outros, chama- Lévi-Strauss vem propondo desde pelo menos
riam de morfológica: “como se formam e o que 1949 ainda é atual na medida em que o mun-
são os grupos sociais?”. As EEP trazem ainda do anglo-saxônico se influenciou muito mais
sua resposta à pergunta tipicamente maussiana pelo primeiro do que por Mauss ou mesmo
(cf. Lefort, 1979) “o que é a sociedade?”. Esta por Lévi-Strauss; credito isto em parte à ênfa-
resposta já apresenta, por sua vez, alguma mo- se de Durkheim no rito em relação ao mito.
dificação em relação ao pensamento durkhei- As críticas do Totemismo hoje à teoria da socia-
miano na direção de uma teoria “simbólica” bilidade de Durkheim se justificam por esta,
(ou do signo) muito mais sofisticada: a socie- muito mais do que a de Mauss, buscar uma
dade é comunicação de signos e estes signos são origem social do simbólico e não a origem sim-
bens, palavras e mulheres, do ponto de vista bólica do social (para usar a boutade consagrada
dos homens (ou os homens do ponto de vista do texto de 1950 em que Lévi-Strauss critica
das mulheres). É neste sentido que as EEP são, Mauss). Isto pelo fato de a teoria de Durkheim:
na feliz expressão de E.Viveiros de Castro, “al- a) cair uma petição de princípio e b) fundar-se
goritmos da aliança”. Fica implícito nas EEP no rito e na psicologia (o que é paradoxal para
que dependeríamos de mais estudos etnográfi- um dos grandes fundadores da sociologia). Se
cos, como vêm sendo feitos desde então, para não, vejamos.
responder qual linguagem e/ou algoritmo. A Lévi-Strauss (1962, p. 136-7) elogia Berg-
meu ver, respostas para este tipo de questão se- son por
riam dadas caso a caso. A espera de Lévi-Strauss
por estes estudos etnográficos em boa medida encontrar a solução do problema totêmico no
foi correspondida. terreno das oposições e das noções; por uma
As críticas de Dumont às EEP não podem conduta inversa, Durkheim, tão disposto a
ser tomadas como radicais se lembrarmos que chegar sempre às categorias e mesmo às an-
ambas propõem a necessidade de se estudar a tinomias, procurou esta solução no plano da
formação dos grupos sociais. Há ainda em am- indistinção...O clã [pressuposto a priori, o que
bas a convicção de que o estudo do parentesco notei não ser o caso das EEP] se dá desde o iní-
é inescapável justamente para superarmos a so- cio, ‘instintivamente’, um emblema
ciologia durkheimiana, seja no sentido de uma
antropologia simbólica (Dumont), seja no de e

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esta figuração é sacralizada, por confusão senti- se de considerações metafísicas [...] estranhas ao
mental entre clã e emblema. seu temperamento, Radcliffe-Brown seguia a
mesma via, quando re-estabelecia o totemismo
Para Lévi-Strauss (1962, p. 138), o caráter como uma forma particular de uma tentativa
sagrado é contagioso e origina as classificações universal para conciliar oposição e integração (id.,
primitivas10; o “melhor Durkheim” admite que p. 141, itálicos originais).

toda vida social, mesmo elementar, pressupõe Parentesco e mito se aproximam, então,
uma atividade intelectual cujas propriedades como modos de pensamento associativo.
formais não podem ser um reflexo da organiza-
ção concreta da sociedade.
Lévi-Strauss’s sociological imagination
Mas a “perspectiva inversa” é
abstract This article offers a reading of C.Lévi-
muito freqüentemente adotada por Durkheim Strauss´ The elementary structures of kinship, based
quando afirma o primado do social sobre o in- on some criticism made by some of many com-
telecto. É justamente quando Bergson se quer o mentators (especially G. Homans e D. Schneider,
oposto de um sociólogo, no sentido durkheimia- L. Dumont e R. Needham). Beyond the disconti-
no do termo, que ele pode fazer das categorias nuities already indicated by recent commentators
de gênero e da noção de oposição dados ime- between Lévi-Strauss´s study of kinship and that of
diatos do entendimento, utilizados pela ordem myth, I will show that there are also continuities
social para se constituir. E é quando Durkheim between them. It will be highlighted the proposal
pretende derivar da ordem social as categorias of a structural anthropology as an encompassing
e as idéias abstratas que, para dar conta desta science, a semiology, which focuses on matters such
ordem, ele não acha mais à sua disposição nada as hierarchy. The presence of such matter, as well as
além de sentimentos, valores afetivos ou idéias its relation to basic themes, such as symmetry, in
vagas como as de contágio e contaminação. Lévi-Strauss´s work, has not up to now been ade-
quately qualified.
Apesar do psicologismo de Durkheim e de keywords Lévi-Strauss. Sociology. Kinship.
Bergson, este estaria “em melhor posição para Louis Dumont.
estabelecer os fundamentos de uma verdadei-
ra lógica sociológica” (id., p. 139). A seguir,
Lévi-Strauss formula algo pouco reconhecido: Notas
não é que o parentesco seja ele mesmo sempre
e em toda parte, aprioristicamente, “fórmula 1. Algumas destas críticas foram justo em relação a algo
global” ou “algoritmo social”, mas sim que, que, mais recentemente, Viveiros de Castro (1993)
como o mito e outras formas de pensamento percebeu ser uma das virtudes do trabalho de Du-
mont, sua capacidade para colocar o material indiano
selvagem,
em termos que poderiam servir a posteriores com-
parações. Escrevendo depois das EEP, a perspectiva
resulta de um desejo de apreensão global des- comparativa já estava enfronhada em Dumont, mas
tes dois aspectos do real que o filósofo designa ao mesmo tempo havia nele ambição a rigor etnográ-
como contínuo e descontínuo; e de uma mesma fico ainda maior do que o daquele livro. Meyer Fortes
recusa de escolher entre ambos...Resguardando- (1962, p. 1-2), entretanto, de modo (aparentemente)

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A imaginação sociológica inaudita de C. Lévi-Strauss | 273

surpreendente para um representante de uma escola 5. Lembro, entretanto, que há, na própria Antropologia
que conscientemente advoga a perspectiva mais etno- estrutural (cf. Lévi-Strauss, 1958, p.101-110), “reser-
gráfica, depois de saudar a autoridade de Malinowski, vas” ao “princípio saussureano da arbitrariedade do
Lowie e Radcliffe-Brown como os grandes mestres signo” (Lévi-Strauss, 1985, p. 197).
da “sociologia comparada do casamento” e reco- 6. Vimos que J.Goody (1969 [1959], p. 47) “ao lidar com
nhecer as EEP como “massive investigations”, a elas estas sociedades” – a saber, dravidianas indianas, me-
associa Dumont e endossa a crítica feita por Goody lanésias e australianas -, não viu “necessidade [‘need’]
([1959]1969) da análise dumontiana do dravidianato em tomar os conceitos de afinidade e parentesco como
do sul da Índia que mostrava que em determinadas necessariamente exclusivos”; isto é, se a afinidade é ex-
províncias “a relação de afinidade gera o casamento”. terior na civilização européia, segundo a interpretação
Invertendo o que imaginam ser uma proposta de uma e vivência britânicas, para Goody, naquelas outras pro-
teoria geral (teoria esta que, posteriormente, Dumont víncias ela se interiorizaria no sistema de parentesco,
deixa claro não imaginar ser possível (cf., por ex., sempre entendido a partir da consangüinidade.
Dumont, 1971, p. 8), Goody e Fortes postulam que,
7. É interessante ver que esta crítica é simétrica ao elogio
universalmente, “é o casamento que gera a relação de
de Dumont, em seu prefácio à edição francesa de Os
afinidade” (Fortes, 1962, p. 2). Goody (1969[1959],
Nuer, a este livro como obra estruturalista.
p. 47) já afirmara, com Radcliffe-Brown, que se “sis-
temas dravidianos, como os australianos e alguns me- 8. Para uma sugestão de como tantas obras contempo-
lanésios, não têm termos distintos para afins” é por râneas –, como as de Foucault, que tomam o poder
que “a afinidade é construída dentro do sistema de como fundamento da vida social –, estão prenhes de
parentesco”. Voltaremos a isto. funcionalismo, cf. Sahlins, 2004.

2. Uma outra maneira de se colocar esta crítica é supor 9. Indiquei acima que Dal Poz (2004) explicita ser o ca-
que Lévi-Strauss confundiria os pontos de vistas local samento avuncular uma quarta estrutura elementar.
e global, p. ex., “não há sujeito circulante” e não se 10. Aqui Lévi-Strauss associa indevidamente, a meu ver,
pode “sacar uma fórmula holista de uma regra local” Mauss e Durkheim: embora ambos assinem o clássico
(Dumont, 1971, p. 124). De minha parte, prefiro artigo sobre as classificações primitivas de 1903, para
não colocar a crítica deste modo, pois a meu ver nem Mauss delas decorrem o social, o oposto se dando
sempre Lévi-Strauss faz esta confusão entre perspec- para Durkheim, ambas as teses, porém, indiscrimina-
tivas local e global, nem sempre inexiste “sujeito cir- damente ali presentes.
culante”; além disso, existiriam situações, mesmo fora
do parentesco, em que a etnografia nos permitiria
sacar certas (outras) fórmulas holistas de (algumas)
regras locais. Referências Bibliográficas
3. Aliás, nos textos desta autora, ambas as distinções, en-
Dal POZ, João. Dádivas e dívidas na Amazônia; parentes-
tre sexos e idade, nos remetem a lógicas de substância
co, economia e ritual nos Cinta-Larga. 2004. 358f. Tese
(como aquela presente no que ela denomina “incesto
(Doutorado), - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
de segundo tipo” dos sistemas não elementares – por
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.
ex., um homem não pode ter relações sexuais com a
DE BEAUVOIR, Simone. As Estruturas elementares do
irmã de sua esposa por não poder misturar, por meio
parentesco de Claude Lévi-Strauss. Campos, Curitiba,
dela, suas substâncias com as de seu irmão), estas sim
v. 8, n. 1, p. 183-190, [1949] 2007.
sendo decisivas e englobantes, como já mostrara Vi-
DUMONT, Louis. Introduction à deux theories d´anthropologie
veiros de Castro (1990).
sociale. Paris/La Haye:Mouton, 1971. 140p.
4. Talvez seja suficiente dizer que se Dumont descarta
_____. Hierarchy and marriage alliance in South Indian
“reciprocidade” e recupera “oposição”, descarto “tro-
Kinship. In: _____. Affinity as a value. Chicago: The
ca” e recupero “reciprocidade”. Do mesmo modo
Univ. of Chicago Press, [1957] 1983. p. 36-104.
como uso noções que estão no fulcro da obra de
FORTES, Meyer. Introduction. In: _____. (ed.). Marria-
Dumont, como a de englobamento, naquele artigo
ge in tribal societies - Cambridge Papers in Social An-
(Lanna, 2005) como neste, oponho-me a Dumont
thropology no.3. Cambridge: Cambridge University
sem deixar de nele me apoiar.
Press, 1962. p. 1-13.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 263-274, 2008


274 | Marcos Lanna

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520 p. reiro Jr. a uma versão inicial deste trabalho.

autor Marcos Lanna


Professor do Departamento de Ciências Sociais / UFSCAR
Doutor em Antropologia/Pós-Doutorado

Recebido em 28/09/2008
Aceito para publicação em 28/09/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 263-274, 2008


A bicicleta de Lévi-Strauss1

Patrice Maniglier
Tradução: Daniel Calazans Pierri, Luísa Valentini e Ronaldo Manzi Filho
Revisão técnica: Renato Sztutman

resumo1 Apontou-se freqüentemente na an- de uma forma de união civil para os casais de
tropologia simbólica a sua negação da política e a mesmo sexo poderia ser contrária à ordem sim-
sua maneira de reduzir as violências sociais e históri- bólica, isto é, suscetível de tornar os homens e
cas a restrições gramaticais. Este artigo mostra que, as mulheres do país que a permitisse simples-
pelo contrário, é pela mesma razão que o homem mente incapazes de dar sentido à própria exis-
é um animal simbólico e é um animal político. Se, tência, reduzindo-os seja à animalidade, seja
com efeito, a noção de sistema simbólico implica à vizinhança da loucura. Antropólogos de re-
um espaço finito de possibilidades determinadas nome como Françoise Héritier ou Marc Augé,
umas em relação às outras, podemos mostrar que numerosos psicanalistas quase anônimos, juris-
o tipo de sistematicidade que as caracteriza impli- tas heterodoxos como Pierre Legendre, e enfim
ca sempre uma possibilidade supranumerária, que toda uma corte de espíritos da fina flor das ci-
só pode ser atualizada por um “ato”. Que o sujeito ências humanas que se queriam esclarecidos e
não seja o mestre dos seus signos não significa que a informados, nutridos de Lacan e de estrutura-
liberdade seja apenas uma ilusão, mas sim que ela é lismo, puseram-se a opor o conceito de “função
real, inerente a essas realidades muito singulares que simbólica” às reivindicações por mais igualda-
são os signos e às operações que os fazem advir. Li- de e liberdade. Viu-se mesmo certos deputados
berdade objetiva que consiste antes em fazer advir as brandirem como as duas referências maiores
possibilidades do mundo que em realizar nele seus contra tais excessos da modernidade a Bíblia de
ideais, mas finita, pois é sempre a do deslocamen- um lado, e As Estruturas Elementares do Paren-
to de uma limitação de possibilidades a uma outra. tesco de Claude Lévi-Strauss, do outro.
Assim a antropologia se mostra como aquilo que Esses usos recentes da noção de “ordem
jamais deixou de ser: uma ciência moral. simbólica” pareceram retrospectivamente dar
palavras-chave Semiologia. Violência. Lévi- razão àqueles que, desde os anos 50, denun-
Strauss. Estruturalismo. Filosofia. ciavam na antropologia simbólica de Claude
Lévi-Strauss uma perigosa obliteração do polí-
tico2. A acusação é conhecida: Lévi-Strauss teria
Um fenômeno curioso se produziu na Fran- prolongado a denegação do caráter conflituoso
ça nos últimos anos. Um conceito profunda- da vida social, própria a toda tradição socioló-
mente especulativo, bastante obscuro, inclusive gica durkheimiana, ao apresentar, na linha de
aos especialistas, e ligado a um projeto ainda Mauss, a vida social como um jogo de reciproci-
incerto de redefinição das ciências humanas, dade, explicitamente fundado na solidariedade
ganhou destaque na cena política e midiática e não na luta. Mas ele teria ido ainda mais lon-
como uma resposta a questões cotidianas com ge na denegação do político ao considerar essa
as quais todos nos deparamos a respeito das reciprocidade como uma troca simbólica, e por-
formas legais do amor, do casal, da filiação e tanto, as regras sociais como quaisquer outros
da reprodução. Disse-se, assim, que a criação jogos de comunicação. O simples uso do mo-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


276 | Patrice Maniglier

delo lingüístico recalcaria naturalmente toda a finito de possibilidades, sua delimitação não se
dimensão de coerção ou de violência própria faz menos equívoca, habitada por um tremor
à vida social por trás da máscara inofensiva da no qual o impossível se redefine. Além dis-
gramática. Se o parentesco é uma linguagem, a so, por esse duplo movimento não ser jamais
proibição do incesto, assim como todas as “re- automático, ele não pode ser efetuado senão
gras” do parentesco, freqüentemente tão bru- por um ato. Que o sujeito não seja o mestre
tais, não são apenas interdições ou obrigações: dos seus signos mas, ao contrário, que as res-
são antes de tudo, como regras lógicas, mate- trições da simbolização determinem o espaço
máticas ou lingüísticas, meios de se entender. A de suas possibilidades e mesmo o lugar de sua
proibição do incesto, posta como condição da irrupção, isso não significa que a liberdade seja
cultura, faria de um interdito particular a con- apenas uma ilusão. Muito pelo contrário, ela
dição de todo pensamento. Assim, tendo dene- é real, ou seja, inerente a essas realidades mui-
gado o caráter político dos “jogos simbólicos” to singulares que são os signos e às operações
que  estudava,  a antropologia lévi-straussiana que os fazem advir. Uma liberdade objetiva que
deveria necessariamente passar desse desconhe- consiste antes em fazer advir as possibilidades
cimento da coerção efetiva a uma justificação do mundo que em realizar nele seus ideais. Mas
desses dispositivos coercitivos, precisamente uma liberdade finita, que é sempre a do des-
em nome de sua função simbólica. Pobre con- locamento de uma limitação de possibilidades
dição humana, dizia Balzac, nenhuma de suas a uma outra. Liberdade arriscada, enfim, que,
alegrias deixa de lhe vir da ignorância. Eis en- por estar acompanhada de representações dos
tão que, de tanto desconhecer a dimensão po- seus próprios limites, se vê tentada a confun-
lítica de seu objeto, a antropologia simbólica dir o impossível sempre em deslocamento que
demonstraria ao contrário, pelo seu próprio a condiciona com o interdito que lhe permite
exemplo, o caráter imperioso daquela, já que representar, no seio de um sistema de signos,
o saber antropológico mostrava-se ele próprio suas próprias fronteiras – culminando nisso
como nada mais que um simples meio político, que reconhecemos como a violência. Assim, a
de eficácia aliás bastante frágil. Lévi-Strauss, no antropologia simbólica aparecerá talvez como
entanto, tomou distância com relação a alguns isso que ela é: não apenas um formidável ins-
de seus discípulos, muito apressados em dar trumento para conhecer melhor as operações
uma lição a seus contemporâneos. E a história constitutivas dessas entidades incertas que são
é edificante: como se diz, bem feito pra eles... os signos, mas também uma ética exigente do
Ora, eu gostaria de mostrar aqui que, longe saber, dotada de uma consciência aguda dos
de estar destinada  a desconhecer – e portanto riscos inerentes a toda empresa de representar
a servir – à violência, a antropologia simbóli- esses espaços de liberdade instáveis que são os
ca nos permite compreender como a violência diversos sistemas simbólicos.
está  profundamente ligada à própria possibili-
dade de apreender essas idealidades estranhas
que são os signos. É talvez pela mesma razão 1. A finitude dos signos
que o homem é um animal simbólico e é um
animal político. Com efeito, uma das maiores Acusa-se em suma o projeto “semiológico”
contribuições da antropologia lévi-straussiana de reduzir todo interdito a um impossível, de
à semiologia geral consiste em pôr em evidên- pretender que se, por exemplo, pais e filhos não
cia que, se um sistema de signos é um espaço podem se casar, não é porque seja interdito, mas

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 275-292, 2008


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porque isso seria tão impossível quanto escre- de um diferencial de correção num espaço de
ver “2+3=29” acreditando realizar uma opera- possibilidades:
ção aritmética, ou dizer em francês uma frase
reduzida a um artigo definido. A tradição que A diferença entre espécie permitida e espécie
vem de Wittgenstein distingue as “regras cons- proibida se explica [...] pela preocupação de in-
titutivas”, que definem um jogo, e sem as quais troduzir uma distinção entre espécie ‘marcada’
o próprio jogo simplesmente não seria possível, (no sentido dado pelos lingüistas a esse termo)
das “regras prescritivas”, que interditam certos e espécie ‘não-marcada’. Proibir determinadas
atos. Assim dizia Wittgenstein: “Não se faz um espécies não é mais que um meio entre outros
gol no tênis”. Não porque seria fisicamente irre- de afirmá-las como significativas, e a regra prá-
alizável ou moralmente proibido, mas porque é tica aparece assim como um operador a serviço
absurdo. Seria pela mesma razão que não se faz do sentido, dentro de uma lógica que, sendo
um gol no tênis que, por exemplo, um casal do qualitativa, pode trabalhar com o auxílio tanto
mesmo sexo não pode fazer filhos. Questão de de comportamentos quanto de imagens (Lévi-
gramática, gramática do sexo ou do parentes- Strauss, [1962] 2005, p. 119).
co, mas, de todo modo, gramática... Ora, Jean-
Claude Milner, na sua Introdução à Ciência da Entretanto, não é assim tão simples. Certa-
Linguagem mostra que o estruturalismo redefi- mente, a própria definição de um sistema sim-
niu o que os lingüistas chamam de “gramatica- bólico segundo Lévi-Strauss é a de constituir
lidade” ou “agramaticalidade”, não mais como um espaço de possibilidades em número finito.
uma aplicação de regras, mas como a repartição Não, contudo, porque ele interdiria os outros,
da distinção do possível e do impossível sobre mas unicamente porque, limitando seu espaço,
as performances verbais dos indivíduos: “P é e definindo as possibilidades de ação umas rela-
possível, *P’ não é possível” (Milner, 1989, tivamente às outras, ele faz de toda efetuação de
p.55, 83)... O gramático, ao pôr em evidência uma dessas possibilidades um signo, definível
as regularidades na distribuição desse “diferen- em relação aos outros. Tomemos dois exemplos
cial de correção”, atesta que existe o impossível muito esquemáticos: quando  um casal deter-
na língua, ou seja, alguma coisa que em si mes- minado se casa, é porque eu conheço aqueles
ma escapa ao sujeito, ou ainda ao real. Milner que poderiam ter se casado em seu lugar que
sustenta que não existe real senão na língua, em esse evento que é o casamento tem um sentido
outras palavras, que todas as outras “ciências ou é “informativo”:
humanas” não são ciências:
A ‘informação’ de um sistema de casamento é
As ciências humanas têm de se haver tipicamen- função do número de alternativas de que dispõe
te com realidades cujo cerceamento é paródia o observador para definir o status matrimonial
do impossível – enquanto a linguística aborda (quer dizer o de cônjuge possível, proibido ou
um real e não é por metáfora ou por bricolagem determinado) de um indivíduo qualquer, com
que ela pode dizer formalizá-lo (Milner, 1978, relação a um pretendente determinado (Lévi-
p. 44-45)3. Strauss, [1958] 1975, p. 339).

Já Lévi-Strauss parece estender a tentativa Da mesma forma, quando alguém  relata


de reduzir a dimensão normativa da cultura à diante de mim um mito, eu não compreende-
distribuição daquilo que J.-C. Milner chama rei absolutamente nada do que ele me diz, a

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seqüência das palavras sensatas que ele utiliza não digo no real) a possibilidade que substitui.
não terá mais sentido para mim do que um dis- Ele virtualiza  a natureza, replicando-a sobre si
curso em língua estrangeira, se eu não dispuser mesma, fazendo de seus diversos aspectos ecos
do “sistema mitológico virtual” que me permi- uns dos outros: o conhecimento que o pensa-
te saber sobre quais diferenças particulares o mento simbólico toma do mundo
narrador joga, e de que maneira ele altera, sem
necessariamente estar consciente disso, uma se assemelha ao que oferecem num quarto espe-
versão anterior do mito, ou mesmo um outro lhos fixos em paredes opostas e que se refletem
motivo etc. De fato, esse relato particular que um ao outro (assim como aos objetos colocados
este indivíduo está, aqui e agora, elaborando no espaço que os separa) mas sem serem rigo-
diante de mim, não é identificável, a não ser a rosamente paralelos. Forma-se simultaneamente
partir da exclusão dos outros, dos relatos que uma multidão de imagens, nenhuma das quais
ele poderia ter feito: “contar não é mais que re- é exatamente parecida com as outras; por con-
dizer um conto, o que se escreve também como seguinte, cada uma delas traz apenas um conhe-
contradizer” (Lévi-Strauss, 1971, p. 576)4. cimento parcial da decoração e do mobiliário,
Toda a fineza estratégica dos jogos simbólicos mas seu agrupamento se caracteriza por proprie-
decorre disso. dades invariantes que exprimem uma verdade
Em sua aula inaugural no Collège de Fran- (Lévi-Strauss, [1962] 2005, p. 291).
ce, sabemos que Lévi-Strauss retoma a defini-
ção de Peirce: um signo é “aquilo que substitui Esse sistema virtual é, no entanto, finito,
alguma coisa para alguém”. Mas o exemplo que pois os elementos devem estar definidos uns
ele deu não deixava de ser desconcertante: um relativamente aos outros, e não têm outra de-
machado de pedra pode ser um signo na me- finição a não ser uma definição relativa. Um
dida em que sistema onde “tudo é possível” seria portanto
efetivamente um sistema onde nada tem sen-
num determinado contexto, ele ocupa o lugar, tido. As linguagens, como teria dito Foucault,
para o observador capaz de compreender-lhe o são por natureza mortais.
uso, da ferramenta diferente que uma outra so-
ciedade empregaria para os mesmos fins (Lévi-
Strauss, [1973] 1976, p. 19). 2. O impossível impossível 

Tal é o princípio mesmo do método posto Mas isso não significa de modo algum que
em operação nas Mitológicas, nas quais, a partir se possa definir absolutamente aquilo que é
de um mito dado, Lévi-Strauss percorre todo possível e aquilo que é impossível, enunciar as
o espaço geográfico dos mitos ameríndios. O restrições a priori para todo sistema simbólico
sistema simbólico é, portanto, ao mesmo tem- possível, e ainda menos que se possa identificar
po o que relaciona umas às outras as diversas uma configuração simbólica determinada com
“mensagens” possíveis no seio de uma mesma as condições mesmas da vida simbólica (como
“língua” e o que relacionam entre si as línguas. se tentou muitas vezes e abusivamente com o
Uma mensagem é por natureza traduzível, disse parentesco e a diferença dos sexos). Isso por
Lévi-Strauss na mesma lição. O sistema sim- uma razão que se deve àquilo que Lévi-Strauss,
bólico permite compreendermo-nos na medi- sem dúvida, tem de mais profundo a nos en-
da em que permite apreender no atual (e eu sinar quanto ao funcionamento simbólico: o

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 275-292, 2008


A bicicleta de Lévi-Strauss | 279

fato de os sistemas simbólicos serem finitos não Entretanto não se trata, para Lévi-Strauss, de
significa que eles são fechados. Aliás, eles são mostrar que a teoria matemática dos grupos nos
tanto mais finitos quanto mais buscam tapar permite descrever as “operações” realizadas desde
a própria abertura que eles tornam possível. O sempre pelo pensamento simbólico. Pelo con-
impossível é sempre singular, porque implica trário, trata-se de buscar, na confrontação entre
sempre ao menos dois sistemas simbólicos e, esses dois exercícios simbólicos que são a forma-
assim, a determinação de ao menos um outro lização matemática e o discurso mítico, um meio
impossível. Lévi-Strauss dizia muito firmemen- para colocar em evidência seu fundo comum: o
te numa de suas últimas obras: pensamento selvagem. Pois o “reencadeamento”7
em andamento nos mitos faz intervir uma opera-
quanto mais se restringe o campo, mais diferen- ção especial, uma “torção supranumerária”, que
ças se encontram e é às relações entre essas di- consiste em que não se pode
ferenças que se ligam significações. Um estudo
comparativo dos mitos indo-europeus, america- fechar um ciclo de transformações senão por
nos, africanos, etc. é válido; uma mitologia de meio de um estágio que não é dado nos mitos
pretensão universal, não (Lévi-Strauss, [1991] que ilustram os outros estágios (Lévi-Strauss,
1993, p. 173). [1985] 1987, p. 76).

Antropologia comparada, sim; antropolo- Os exemplos dados por Lévi-Strauss são


gia universal, não. Não se trata aí de um argu- inumeráveis8. Mas era já a originalidade desse
mento de autoridade, mas de uma exigência de “reencadeamento” (quer dizer, desse modo de
coerência com uma certa metodologia e com “fazer sistema” ou de “fazer grupo”) que, desde
as premissas que a sustentam na sua própria 1955, Lévi-Strauss tentou apreender na céle-
prática5. bre “fórmula canônica” do mito, enunciada no
Todo sistema de signos é, com efeito, um artigo “A estrutura dos mitos” (reimpresso em
sistema de transformação ou de permutação, Lévi-Strauss, [1958] 1975), a fim de contribuir
uma vez que o que define um signo é preci- para aquilo que ele denominou durante muito
samente aquilo que ele substitui. Lévi-Strauss tempo como seu “materialismo dialético”. Dito
pesquisa, portanto, grupos de transformação. de outro modo, o que é próprio de tudo que
Um grupo de transformações se define na ma- faz sentido é estabelecer ciclos ou circuitos de
temática por quatro permutações, que permi- elementos que só se fecham por uma espécie
tem retornar ao primeiro termo com a ajuda de passe de mágica, de torção, de forçagem.
de duas operações cruzadas. Da mesma forma, Isso vale também para as organizações sociais.
várias versões de um mesmo mito (ou várias Num artigo de 1956 intitulado “As organiza-
fórmulas de parentesco) podem ser integradas ções dualistas existem?”, Lévi-Strauss também
num grupo se pudermos ordená-las colocou em evidência aquilo que poderia ha-
ver de rebuscado e, por assim dizer, de torcido
em uma série, formando uma espécie de grupo nos procedimentos lógicos utilizados por uma
de permutações, onde as variantes situadas em sociedade para se mostrar como uma totalida-
ambas as extremidades da série oferecem, uma de complementar e fechada, enquanto ela era,
em relação à outra, uma estrutura simétrica e na verdade, instável e hierárquica. Lévi-Strauss
inversa (Lévi-Strauss, [1958] 1975, p. 258)6. falava então em “subterfúgios lógicos” (Lévi-
Strauss [1958] 1975, p. 179).

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280 | Patrice Maniglier

Tal forçagem repousa sobre a introdução, ciclo de quatro: como por efeito de uma derra-
na constituição de uma estrutura, de uma ou- pagem, ou melhor, de uma ação análoga àquela
tra estrutura. É por essa razão que todo mito de um câmbio de bicicleta, a cadeia lógica sal-
é a transformação de outro mito, e que toda ta e se engrena sobre o termo inicial do grupo
cultura abre-se para as outras: encaixado de ordem imediatamente inferior, e
assim sucessivamente até o último (Lévi-Strauss,
Longe de estar isolada das outras, cada uma das 1971, p. 581)9.
estruturas contém um desequilíbrio que só pode
ser compensado utilizando um termo tomado à Lévi-Strauss está consciente de que se tra-
estrutura adjacente (Lévi-Strauss, [1968] 2006, ta aí de sua própria contribuição à semiologia:
p. 322). “Transformações desse tipo constituem o fun-
damento de toda semiologia” [idem]10. Só elas
Assim, a tentativa de estabelecer o sistema permitem dar conta do fenômeno do sentido.
de variantes de um mito, por exemplo, deve Com efeito, ao contrário de uma estrutura
necessariamente recorrer a um outro mito, no sentido propriamente matemático (desen-
cujo sistema de variantes é preciso reconstruir, volvida particularmente na teoria “semântica”
o que permite definir o sistema desses sistemas, das teorias11), uma estrutura simbólica não po-
mas se deparando com a mesma restrição etc... deria se separar de suas interpretações: ela não
Certamente reconhecemos aí o programa das é senão o que permite estabelecer entre essas
Mitológicas. Enquanto n’As Estruturas Elemen- interpretações relações de transformação, de
tares do Parentesco Lévi-Strauss recorria à teoria simetria e de inversão, a preço de um desequi-
dos grupos para formalizar as estruturas em líbrio que consiste no fato de que uma de suas
operação no pensamento simbólico, parece que interpretações pertence ao grupo apenas em
nas Mitológicas trata-se, em conformidade com virtude de uma outra estrutura. Algo que te-
o programa d’O Pensamento Selvagem, de bus- nha sentido é, portanto, algo que não se “basta
car uma formalização que permita dar conta do a si mesmo como um ser de pleno direito”, mas
pensamento matemático como uma transfor- que implica, para existir (quer dizer, para ser
mação singular do pensamento simbólico. O identificável), um outro ser. É dessa maneira
que é próprio de uma estrutura é ser sempre que se deve interpretar a definição de Peirce.
“multi-estruturada”, como havia notado mui- O sentido não é nada mais que esse próprio
to precisamente Gilles Deleuze [1972]. O fi- deslocamento. Também se compreende que
nal d’O Homem Nu precisava isso claramente: esse sentido não seja “nunca o bom” (Lévi-
tendo lembrado o uso feito, ao longo de todas Strauss, [1962] 2005, p. 282), e que as super-
as Mitológicas, da noção de “grupo de Klein”, estruturas sejam “atos falhos que socialmente
Lévi-Strauss acrescentava: ‘tiveram êxito’”. Eu não sou o depositário do
próprio sentido daquilo que faço. Lévi-Strauss
Mas sublinhávamos também que esses grupos retoma assim a tese central de Saussure, aquela
não eram independentes uns dos outros, que que Hjelmslev tinha chamado biplaneidade, e
cada um não se bastava a si mesmo como um ser da qual ele havia feito a propriedade definidora
de pleno direito, como ele apareceria se pudésse- dos sistemas semióticos (Hjelmslev, 1971, p.
mos vê-lo sob um ângulo puramente formal. De 140-142): não podemos construir uma estru-
fato, a série ordenada das variantes não retorna tura sobre o plano do significante sem cons-
ao termo inicial após ter percorrido o primeiro truir ao mesmo tempo uma outra estrutura,

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A bicicleta de Lévi-Strauss | 281

que não é sobreponível, no plano do signifi- da qual ela precisa para se fechar, mas de que
cado, e vice-versa. Lévi-Strauss dá entretanto não pode se dar conta. Em toda exploração de
um passo a mais, mostrando que essa relação um problema, existe uma “solução” que se deve
se aplica por extensão aos diferentes sistemas integrar para poder considerar as diferentes so-
simbólicos, culturas ou línguas, que em conse- luções como alternativas umas das outras (para
qüência se interpretam uns aos outros ou são, constituir isso que chamaríamos em psicologia
uns para os outros, ora plano de expressão, ora cognitiva “o espaço do problema”), mas que na
plano de conteúdo12. A condição de todo pen- verdade não é nada além de uma outra maneira
samento é, portanto, precisamente a de impli- de tratar o problema ou, antes, a eventualidade
car a constituição simultânea de ao menos dois de um outro problema. É ao mesmo tempo,
sistemas de pensamento. por assim dizer, que um problema se resolve e
Podemos dizer as coisas de outro modo. que ele se abre para ser criticado. Compreende-
Todo sistema de possibilidades não pode por- se em conseqüência que duas populações po-
tanto se fechar senão introduzindo uma pos- dem ter um modo de “comunicação” que não
sibilidade da qual ela não pode se dar conta, se reduz nem ao simples diálogo nem ao puro
ou que a ultrapassa. Em um artigo intitulado mal-entendido. Elas são antes como as tantas
(precisamente) “Da possibilidade mítica à maneiras de se problematizar umas às outras...
existência social”, Lévi-Strauss expunha essa
tese de uma maneira bastante expressiva. Re-
tomando uma idéia já antiga, ele nos sugeria 3. A Entropologia
ver, nesse campo de virtualidades que é um sis-
tema simbólico, uma maneira de colocar um Assim, o impossível que se faz marcar em
problema considerando diferentes soluções, as um sistema de signos é ao mesmo tempo local e
“mensagens” possíveis se reportando umas às aberto. O que não quer dizer, novamente, que
outras como tantas soluções consideráveis para tudo seja possível ou que a história seja o in-
um problema quantas caberia ao antropólogo finito reservatório de possibilidades humanas,
reconstruir. Mas ele acrescenta: pois o que se chama uma possibilidade humana
é apenas uma maneira de passar de uma de-
No entanto, gostaria de chamar aqui a atenção terminação singular do impossível a uma ou-
para um caso intermediário, em que uma popu- tra, de uma “casa vazia”, para retomar o termo
lação consagra diversas versões de um dos seus de Lévi-Strauss, a uma outra, ou ainda, de um
mitos ao exame de diversas eventualidades, salvo “indecidível” a um outro:
uma, que estará em contradição com os dados
do problema que a defronta. Deixa então uma O que é próprio a todo mito é impedir que se
lacuna no quadro dos possíveis, permitindo a pare nele: vem sempre um momento, no curso
uma população vizinha, a quem não se põe o da análise, em que um problema se coloca e que,
mesmo problema, apropriar-se do mito e preen- para resolvê-lo, ele obriga a sair do círculo que
cher o espaço em branco (Lévi-Strauss, [1983] a análise havia traçado. O mesmo jogo de trans-
1986, p. 232). formações que permite levar uma à outra as se-
qüências de um mito dado se estende de forma
Dito de outro modo, em todo sistema de sig- quase automática à seqüência indecidível, mas
nos existe uma possibilidade que está incluída, mesmo assim redutível fora do mito a outras se-
mas unicamente sob o modo de sua exclusão, qüências indecidíveis, vindas de mitos para cujo

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282 | Patrice Maniglier

assunto o mesmo problema se colocava (Lévi- que antes se caracterizava por uma defasagem
Strauss, 1971, p. 538)13. de informação, portanto, por uma organização
maior. Mais do que antropologia, teria que se
Essas observações fornecem um primeiro es- escrever ‘entropologia’, nome de uma disciplina
clarecimento sobre o “pessimismo” confessado dedicada a estudar em suas mais elevadas ma-
de Lévi-Strauss14, sua célebre crítica da noção nifestações esse processo de desintegração.(Lévi-
linear de progresso (Lévi-Strauss, 1987; Lévi- Strauss [1955] 1996, p. 391).
Strauss, 1955a; Lévi-Strauss, [1983] 1986),
sua desconfiança face à “política” como reali- Com efeito, a experiência etnográfica, exer-
zação do “sentido da história”, forma moderna cício de compreensão ampliada dos outros,
do mito (Lévi-Strauss, [1962] 2005, p.260). leva o sujeito a experimentar que “a verdade
É verdade que esse “pessimismo” parece antes está numa dilatação progressiva do sentido”
de tudo repousar sobre a demonstração de que (Lévi-Strauss, [1955] 1996, p. 390). É essa,
o caráter cumulativo dos conhecimentos e das aliás, a razão pela qual os Trópicos são tristes:
técnicas depende de coalizões de culturas, mas compreender melhor os outros, longe de enri-
não pode senão minar suas próprias condições, quecer a experiência do etnólogo, na realidade a
a saber, a diversidade cultural ela própria (cf. o empobrece, pois se ele participa de um número
modelo de coalizão de culturas em Lévi-Strauss, maior de experiências humanas, ele participa
1987). Dito de outra forma, ele não parece se menos intensamente de cada uma:
apoiar sobre uma tese que concerne ao próprio
processo simbólico: pelo contrário, há progres- Por um paradoxo singular, minha vida aven-
so quando as realizações humanas são extraídas tureira mais me devolvia o antigo universo do
dos universos simbólicos nos quais elas apa- que me abria um novo, ao passo que este que eu
recem, para serem colocadas em uma série na pretendera dissolvia-se entre meus dedos (Lévi-
qual elas não valem mais como elementos de Strauss, [1955] 1996, p. 356).
um sistema, mas etapas de um processo trans-
cultural. Outros textos são testemunho de que O fragmento da experiência anterior que
esse pessimismo se enraíza já em uma terceira retorna não é, no entanto, aquilo a que o etnó-
tese semiológica fundamental de Lévi-Strauss, grafo aderia mais fortemente, mas “a expressão
a saber, que todos os processos simbólicos “se mais convencional de uma civilização contra a
esgotam”, que, por assim dizer, as margens de qual, precisava de fato me convencer, eu ha-
manobra simbólicas não são apenas finitas, mas via optado” (idem) – no caso, uma melodia de
também sempre mais frágeis. Em suma, que a Chopin. Assim, a recompensa da viagem é a
“dessimbolização” está na própria natureza do experiência de um deslocamento interno à sua
fenômeno simbólico... Assim, concluía ele nas própria experiência que é também uma esque-
últimas páginas de Tristes Trópicos – flamejante matização de si [cf. Debaene, 2002]. É que,
crepúsculo dos homens onde as civilizações gi- longe de lhe permitir aderir a mais universos
ram numa meditação ébria que evoca as mais humanos, a viagem o desprende um pouco
belas páginas de Malcolm Lowry – dizendo: mais de toda adesão fervente a uma experiência
humana particular: não há outro efeito sensa-
Cada palavra trocada, cada linha impressa es- to a não ser relativizar todo sentido. Em sua
tabelecem uma comunicação entre os dois in- resposta a R. Caillois, Lévi-Strauss usou estas
terlocutores, tornando estacionário um nível palavras célebres:

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[O etnógrafo] não circula entre o país dos sel- próprio desaparecimento. Mas se é verdade
vagens e o dos civilizados: em qualquer sentido que toda experiência vivida não é nada além da
que vá, ele retorna dos mortos. Submetendo à transformação de uma outra, ou seja, é alguma
prova experiências sociais irredutíveis à sua, suas coisa que se distingue de outra, se de fato as
tradições e suas crenças, autopsiando sua socie- significações são puramente diferenciais (Lévi-
dade, ele está verdadeiramente morto para seu Strauss, [1968] 2006, p. 269], então está claro
mundo; e se ele consegue retornar, após ter re- que reconstruir o sistema de transformações no
organizado os membros desconjuntados de sua qual nossa experiência se insere e se define só
tradição cultural, ele continuará ainda assim um pode implicar uma perda de sentido. “Todo
ressuscitado (Lévi-Strauss, 1955a, p. 1217)15. sentido”, dizia Lévi-Strauss a Sartre, “é jurisdi-
cionado de um sentido menor que lhe fornece
Mas esse fracasso fundamental do enrique- seu sentido mais alto” (Lévi-Strauss, [1962]
cimento de si pela viagem que conta Tristes 2005, p. 283). O que se ganha em extensão,
Trópicos é precisamente a condição de abertura se perde em compreensão. No fim das contas
ao programa da antropologia simbólica. De de- parece que a única coisa que é universalmen-
cepção em decepção, à medida que o sentido se te compreensível para todo ser humano numa
“dilata” e fica mais pobre, o antropólogo com- outra experiência humana, não será outra coi-
preende que, quanto mais compreendemos sa senão a forma da compreensão, quer dizer,
os outros, mais compreendemos que não há da transformação dos conteúdos estruturados
nada mais a compreender senão o fato de que uns nos outros, o “espírito humano” enquanto
nos compreendemos mais ou menos. “Não há conjunto de mecanismos puramente formais
sentido por trás do sentido”, dizia Lévi-Strauss ou “vazios” que sustentam a diferenciação cul-
a Ricoeur (Lévi-Strauss, 1963): não há outra tural em geral e, conseqüentemente, a produ-
tarefa para o antropólogo senão mostrar por ção do sentido. No belo artigo que Lévi-Strauss
que – ou, mais exatamente, como os homens consagrou a Rousseau, ele o homenageou por
fazem para se compreender uns aos outros e ter mostrado que a objetivação da subjetivida-
compreender o mundo. O próprio método de que buscam as ciências humanas acaba por
antropológico consiste em primeiro lugar em redefinir cada experiência subjetiva como uma
fazer variar os coeficientes determinantes de possibilidade objetiva, na medida em que cada
sua própria experiência a fim de se pôr no lu- uma descobre só ser definida em relação às ou-
gar dos outros e compreender aquilo que eles tras. Eu me experimento como um outro entre os
compreendem e, em seguida, em reconstruir outros. Minha própria experiência – tanto aqui-
o sistema das transformações graças ao qual lo a que estou ligado como aquilo que rejeito,
esses dois sistemas se tornaram “mutuamente ou seja, o que tem sentido para mim – parece
convertíveis” (Lévi-Strauss, [1964] 2004, p. então só poder ser definido como uma simples
30). A significação não é nada além do “ope- emergência sobre o fundo de um pensamento
rador da reoganização do conjunto”, quer di- impessoal, evento ou acidente que chega não a
zer, o operador da própria transformação. Ela um “eu”, mas a um “ele”, esse “ele que se pen-
não pertence a um sistema: ela está sempre en- sa em mim, e que me faz primeiro duvidar de
tre dois. Melhor, ela é a passagem, ou seja, o que sou eu quem pensa” (Lévi-Strauss, [1973]
evento da dessistematização-ressistematização 1976, p. 45). Assim, quanto mais uma experi-
em que consiste o processo semiótico. Ela se ência humana encontra em si mesma os recur-
confunde, portanto, necessariamente com seu sos de sua abertura a outrem, mais ela se esvazia

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de determinação, para se tornar a experiência suas labutas, suas penas, seus gozos, suas espe-
da condição de toda experiência, quer dizer, da ranças e suas obras tornar-se-ão como se eles
construção de sistemas simbólicos que articu- jamais tivessem existido, não havendo mais aí
lam ao menos duas subjetividades. Portanto, a nenhuma consciência para preservar nem que
viagem é verdadeiramente aquilo que os filóso- fosse a lembrança desses movimentos efêmeros,
fos chamariam de experiência transcendental. exceto, por alguns traços rapidamente apagados
Essa experiência não é só a do antropólogo: de um mundo de face doravante impassível, a
as Mitológicas mostram que à medida que o espa- constatação ab-rogada de que eles teriam existi-
ço de interpretação dos mitos se amplia, que se do, o que quer dizer, nada (Lévi-Strauss, 1971,
introduz neles não só mitos de duas populações p. 621)16.
vizinhas, mas também enormes grupos de mitos
de dois continentes americanos, a estrutura se Porque a antropologia simbólica permite
torna mais pobre, mais geral, mais vazia. O jogo fazer aparecer o sentido não como a finalidade
dos mitos uns contra os outros faz aparecer pro- dos sistemas simbólicos, mas como o efeito de
cedimentos cada vez menos determinados pelos suas transformações, ela reintegra o homem na
próprios conteúdos míticos, e cada vez mais cla- natureza, ou seja, sobretudo no silêncio onde
ramente formuláveis em termos puramente for- as coisas advêm e não são nada além do que
mais. O que é o “homem nu” senão o homem elas são, limitadas ao tempo de sua existência.
que, se abrindo aos outros, se empobreceu, mas É portanto do interior mesmo do sentido, e da
também se simplificou e se objetivou? Ele não sa- tentativa de compreender os efeitos de sentido
beria mais, dali em diante, tomar-se por império nos quais vivemos, que se desprende essa ex-
num império, mas se conhece e se experimenta periência seca do real, essa nova sabedoria que
como uma coisa entre as coisas – um simples Lévi-Strauss compartilha com toda uma épo-
fato. O sentido advém do fato de essa restrição ca, e à qual, num texto célebre, Foucault havia
própria ao pensamento simbólico não poder se dado o nome de “Pensamento do Exterior”:
fechar sem deslizar para um outro plano: não “O ser da linguagem só aparece para si mesmo
há outra necessidade senão aquela que resume, com o desaparecimento do sujeito” (Foucault,
como Lévi-Strauss concede a Sartre, aquela “lei 2006, p. 222). É na redução do sentido e da
contingente da qual se pode dizer apenas: é as- subjetividade à formula de sua “dispersão” que
sim, e não de outro modo” (Lévi-Strauss, [1962] toda época fará a experiência do real. É naquilo
2005, p. 283). O que resta das paixões huma- que os místicos chamariam uma “kénose”17, um
nas, de sua fé, de seus valores, todo esse barulho esvaziamento progressivo da experiência, que
e todo esse furor, se congela, por assim dizer, sob o sujeito, descobrindo suas próprias condições
o olhar antropológico na simples constatação assubjetivas, experimenta a eventualidade do
de seu advento, e se dispõe num vasto quadro ser por si mesma, a extensão branca e indife-
combinatório onde cada um coexiste com todos rente disso que é exatamente coextensivo a seu
os outros segundo uma fórmula determinada de ser, quer dizer, a seu próprio desaparecimento.
repartição. Não há nada mais a dizer, senão que
elas existiram. As Mitológicas se fecham com o
reconhecimento dessa contingência: 4. A coragem

com seu desaparecimento inelutável da superfí- “Ah! Eis aí”, pensar-se-á, “Lévi-Strauss con-
cie de um planeta também destinado à morte, fessa então que seu projeto teórico não pode

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chegar a um término, pelo próprio fato de seus A descoberta do não-sentido não desquali-
métodos e de seus pressupostos filosóficos; que, fica assim o engajamento, pois ela deve neces-
para decepção de Billancourt18, fazendo passar sariamente passar por ele, um pouco como o
toda ação, toda finalidade, toda implicação espírito deve passar na natureza, segundo He-
humana num combate, como um modo de gel, para se encontrar a si mesmo, com a di-
ilusão passageira que, do alto de sua sabedo- ferença de que ele não descobre aqui, no fim
ria, a antropologia não pode senão constatar e de seu curso, senão sua solidão, quer dizer, sua
jamais julgar”. Enganar-se-ão. Essa certeza de própria finitude.
sua própria finitude, dizia também o fim de O Há para essa situação uma explicação mais
Homem Nu, não impede de modo algum que profunda. Se é preciso, sobretudo, coragem, é
“cabe ao homem viver e lutar, pensar e crer, que o movimento que permite passar de um
preservar sobretudo a coragem” (Lévi-Strauss, sistema simbólico a outro – movimento sem  o
1971, p. 621)19… Em primeiro lugar, porque qual não apareceria jamais a “lei contingente”
é somente do interior do sentido propriamen- do sentido – não é automático. Ele repousa,
te dito que ele pode aceder à verdade de sua como vimos, sobre uma possibilidade “inde-
própria contingência: a “dilatação” do sentido cidível”, e por isso ele exige necessariamente
só pode ser progressiva, isto é, ir de um senti- um ato, uma decisão sobre o indecidível. Lévi-
do mais rico a um outro sempre mais pobre. Strauss dizia isso claramente:
A etnografia não saberia fazer a economia des-
sa passagem, e deve tomar parte em todos os estados do pensamento que estão encadeados
modos pelos quais os homens se implicam no entre si não se sucederam espontaneamente e
mundo. Tudo do homem pode se tornar es- devido ao efeito de uma causalidade inelutável
trangeiro para ele, sob a condição de que nada (Lévi-Strauss, [1966] 2004, p. 445).
lhe tenha restado. O budismo que Lévi-Strauss
professa no fim de Tristes Trópicos é uma espé- É que, com efeito, a estrutura determina
cie de hegelianismo invertido, como destacou do interior de um sistema sua própria aber-
Pouillon (Lévi-Strauss, 1987, p. 121), no qual tura, sua própria instabilidade, o ponto onde
cada nova adesão ao mundo é uma etapa para ele joga, que é também aquele no qual ele é
dele se “desprender”, cada nova maneira de dar suscetível de reencontrar outros sistemas; mas
sentido ao mundo, um momento da marcha ela não lhe permite criar seu próprio fora. Re-
do espírito em direção à descoberta do não- construir uma estrutura não é reabsorver toda
sentido como verdade do sentido. a contingência, mas mostrar o ponto em que
a contingência se exerce, definir um campo de
De que serve agir, se o pensamento que guia a eventualidades que torna certas circunstâncias
ação conduz à descoberta da ausência de senti- pertinentes, do mesmo modo, acrescenta Lévi-
do? Mas essa descoberta não é imediatamente Strauss, que a expressão das potencialidades da
acessível: tenho que pensá-la, e não posso pensá- semente
la de uma só feita. Que as etapas sejam doze,
como na Bodhi, que sejam mais numerosas ou não deriva de sua estrutura, mas de um conjun-
menos, elas existem todas juntas e, para chegar to infinitamente complexo de condições que
até o fim, sou perpetuamente chamado a viver dizem respeito à história individual de cada se-
situações que, todas, exigem algo de mim (Lévi- mente e todos os tipos de influências externas
Strauss, [1955] 1996, p. 390). (idem).

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É nesse sentido que se pode compreender liberdade não é um direito abstrato outorgado
que a análise estrutural dos mitos não nega a “li- por princípio pelo Estado a todos os indivíduos
berdade de invenção” mas, pelo contrário, aqui indeterminados da espécie humana e somente a
como em qualquer outra parte, “demonstra a ne- eles, pelo único fato de eles pertencerem a ela.
cessidade dessa liberdade” (Lévi-Srauss, [1968] Só há liberdades, “concretas e históricas” (Lévi-
2006, p. 116). Essa liberdade, entretanto, não Strauss, [1983] 1986, p. 388), que  aparecem
é um a priori, mas um resultado; ela tampouco como privilégios na medida em que são exerci-
é subjetiva – liberdade de um sujeito de realizar dos de modo particular e exprimem a diferença
aquilo que ele representa para si como seu desejo de determinados seres em relação a outros:
–, mas objetiva – possibilidade nova realmente
aberta; enfim, ela não é universal, mas local e nessas desigualdades talvez irrisórias que, sem
mesmo intrinsecamente limitada. infringirem a igualdade geral, permitem aos
Tal é, inclusive, o tema das “Reflexões so- indivíduos encontrar pontos de ancoragem. A
bre a liberdade”, texto ambicioso que não busca liberdade real é a dos longos hábitos, das pre-
nada menos que o fundamento de todo valor, ferências, numa palavra, dos costumes (Lévi-
dito de outro modo, a fonte da moral. O valor, Strauss, [1983] 1986, p. 396).
diz em resumo Lévi-Strauss, não está na con-
formidade de uma coisa a um ideal – assim o Liberdades que, pelo fato de sua própria
valor do homem não se deve à sua qualidade diversidade, são “contra-forças” não somente
moral –, mas, precisamente, no fato de que ela umas em relação às outras, mas, sobretudo, em
é real, quer dizer, também singular e efêmera, relação a um poder que pretenderia englobá-las
preciosa por essa razão. É na medida em que todas, atá-las e mesmo criá-las (Lévi-Strauss,
uma coisa é insubstituível que ela é respeitável, [1983] 1986, p. 396). Assim, a consciência da
infinitamente preciosa pela sua própria finitu- finitude, longe então de ser desencorajante é,
de. Assim,
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se as espécies vivas têm direitos en- ao contrário, suscetível de estar no princípio de
quanto tais, é  “pela muito simples razão de que uma renovação dos fundamentos da moral e da
a desaparição de uma espécie qualquer cria um política, que deve reconciliar a moral com a es-
vazio, irreparável à nossa escala, no sistema de tética, o homem com a natureza, o ideal com
criação” (Lévi-Strauss, [1983] 1986, p. 390). o real, e encontrar na beleza desse mundo que
Do mesmo modo, se podemos pensar que os desdobra “os recursos de sua combinatória an-
indivíduos animais são, de certos pontos de vis- tes de involuir na evidência de sua caducidade”
ta, substituíveis (ainda que isso seja, na verdade, (Lévi-Strauss, 1971, p. 621)20, e não nas idéias
bastante contestável), cada indivíduo humano que fazemos dele, a única fonte de todo apelo
é, em compensação, constituído, pelo simples à responsabilidade de um sujeito – o respeito
fato de que a vida social é um jogo simbólico que se deve aos seres humanos não seria, por
fundado na diferenciação, como uma “síntese esse fato, senão um caso particular daquele que
única” (Lévi-Strauss, [1983] 1986, p. 392). Pro- se deve a tudo que é mortal.
fundo espinosismo de Lévi-Strauss, aqui como
freqüentemente, que afirma que o valor não está
na sua conformidade a um ideal, mas nas coisas 5. A violência 
mesmas, na sua capacidade de desenvolver sua   
irredutível singularidade, o que Espinosa tinha Mas podemos ir mais longe. Pois essa ar-
chamado sua “potência”. Do mesmo modo, a ticulação das figuras do impossível umas com

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A bicicleta de Lévi-Strauss | 287

as outras, não somente, do fato de seu caráter bre máxima, sobre a qual se conclui o Tractatus,
indecidível, convoca um sujeito que está na pode-se ouvir redobrar o impossível em inter-
responsabilidade de um ato a realizar, mas, por dito. Tudo se passa, com efeito, como se o fato
acréscimo, ela implica um estranho redobra- mesmo de existir o indizível ou o impossível
mento do qual é preciso falar agora e que nos sempre se redobrasse imediatamente no fato de
permitirá chegar à questão da violência. Com existir o interdito – pelo menos uma vez que se
efeito, o impossível se faz não somente marcar, busca nomear, definir ou delimitar, do interior
mas também ressaltar. Depois de ter afirmado de nossa própria prática, o ponto mesmo de
em O Pensamento Selvagem que a diferença en- impossibilidade. Como disse o último Freud,
tre o permitido e o interdito era um “operador aquele de O Mal-estar da civilização, a violência
a serviço da significação”, Lévi-Strauss acres- não é o ressurgimento, na cultura, de pulsões
centava: selvagens, mas, ao contrário, o deslocamento
das próprias pulsões, da energia libidinal, sobre
Proibições e prescrições alimentares aparecem, a repressão.
portanto, como meios teoricamente equiva- Mas se é verdade que a tarefa desses que se
lentes para ‘significar a significação’, dentro de dedicam a produzir um saber a respeito do que
um sistema lógico cujas espécies consumíveis somos nós (e o que mais seria a antropologia,
constituem, no todo ou em parte, os elementos. a sociologia, a psicologia, o direito, em suma,
(Lévi-Strauss, [1962] 2005, p. 120). tudo o que ainda chamamos, sem dúvida por
falta de imaginação, de “ciências humanas”?) é
Dito de outro modo, o fenômeno da inter- a de dizer esse real que é o nosso, compreende-
dição resulta do fato de que esse espaço finito mos que esses “saberes de nós mesmos” sejam
de distribuição de possíveis que é um sistema confrontados a um problema epistemológico
simbólico se representa, no interior dele mes- e ético perigoso: esses saberes não redobram
mo. A delimitação dos limites de uma prá- necessariamente aqueles dos quais querem dar
tica ou de um discurso ou de uma vida não conta? A própria violência do significante cons-
se contenta em separar o “dentro” do “fora”, trange sempre aqueles que falam desses saberes
aquilo que faz parte do jogo e aquilo que não sob o risco de não fazer nada além de produzir
faz parte; o limite se redobra no interior, in- os significantes da violência. É, assim, toda a
cluindo certas possibilidades precisamente para questão de uma ética dos saberes do sujeito que
as excluir, não mais entretanto sob a forma do está em questão. O problema não é que o sa-
impossível ou do impensável, mas sob a forma ber esteja nas mãos dos poderosos, mas apenas
do interdito. Assim, não mais que o fato de ser que ele seja imanente à relação de forças para
expulso no futebol, o fato de que duas pessoas a qual ele queria dar a solução. Mais profun-
do mesmo sexo se casarem não é “impensável”, damente, se a violência for essa zona instável,
ao contrário, é mesmo de tal modo pensável entre o impossível e o interdito, compreende-
que se pode não parar de falar disso para se remos que todo discurso sobre a violência, na
excluir essa possibilidade, quer dizer, precisa- medida em que tende naturalmente a desenhar
mente, para interditá-la. É bem difícil resistir uma figura clara da repartição do possível e
à tentação de retomar os termos de Wittgens- do impossível, corre o risco não de descrever
tein: não há somente aquilo que não se pode di- o limite que se impõe aos sujeitos, mas de, ao
zer, porque isso não tem sentido (sinnloss), mas contrário, produzi-lo. Não se trata de dizer que
também aquilo que é preciso calar. Nessa céle- tudo é possível – que basta querer para poder,

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288 | Patrice Maniglier

que tudo o que se apresenta aqui e agora sob o Deve-se escapar à alternativa do fora e do den-
modo de necessidade é apenas o resultado con- tro; é preciso situar-se nas fronteiras. A crítica
tingente da brutalidade humana, e que o que é certamente a análise dos limites e a reflexão
foi feito por César pode ser desfeito por Antô- sobre eles. Mas, se a questão kantiana era saber
nio, ou vice-versa – mas de se dar os meios para a que limites o conhecimento deve renunciar a
escapar precisamente da cilada da violência que transpor, parece-me que, atualmente, a questão
ameaça todo discurso que trata do que há de crítica deve ser revertida em uma questão posi-
real na experiência. Esse perigo não é outro tiva: no que nos é apresentado como universal,
senão o de fazer face à própria violência, com necessário, obrigatório, qual é a parte do que é
o redobramento do impossível e do interdito. singular, contingente e fruto de imposições arbi-
Conhecemos exemplos nos quais o saber do trárias. Trata-se, em suma, de transformar a crí-
etnólogo é solicitado pelos “indígenas” para va- tica exercida sob a forma de limitação necessária
lidar as pretensões de uns contra os outros em em uma crítica prática sob a forma de ultrapas-
nome de uma tradição calcificada. O dilema é sagem possível (Foucault, 2008, p. 347).
profundo: o antropólogo certamente não pode
abandonar a ambição de descrever os sistemas Produzir um saber sobre o que somos não é
simbólicos particulares para se dedicar unica- falar de uma coisa, é falar de uma ação se fa-
mente à teoria da função simbólica, abandonar zendo, é falar de uma liberdade. Isso já foi re-
os conteúdos em proveito da forma, já que ele petido muitas vezes, mas em geral para excluir
não pode elaborar esta última senão empirica- a possibilidade de uma ciência do homem. É
mente, apoiando-se sobre a reconstrução de precisamente dessa alternativa que devemos
sistemas simbólicos singulares. nos livrar: existe um saber possível sobre o que
Mas talvez baste, para sair desse dilema, re- somos, mas se trata sempre de um diagnóstico
nunciar à interpretação que Lévi-Strauss dá de que se refere à forma finita tomada por uma
seu próprio trabalho. Michel Foucault, num liberdade que jamais se exerce sem seu próprio
belo texto de 1984, inscrevia seu procedimen- risco... Não dizia Lévi-Strauss, justamente, que
to numa redefinição da crítica que nos parece a antropologia não permitiria ao sujeito fazer a
muito próxima de uma problemática antropo- economia da ascese à qual ele teria sido coagido
lógica. O texto de Kant “O que são as Luzes?” a se submeter para realizar o “processo ilimi-
é lido ali como o lugar histórico de articulação tado de objetivação do sujeito” (Lévi-Strauss,
do procedimento crítico e do procedimento [1950] 2003, p. 27) se as outras sociedades não
histórico. Lá onde Kant buscava “deduzir da lhe oferecessem de saída a imagem daquilo que
forma do que somos o que para nós é impos- ele poderia ter sido, e portanto o meio de re-
sível fazer ou conhecer”, o procedimento que cuperar aquilo que ele é suscetível de se tornar,
Foucault chama “genealógico” “deduzirá da por assim dizer as linhas de fragmentação em
contingência que nos faz ser o que somos a que consiste a sua própria subjetividade?
possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o No momento em que o projeto mesmo das
que somos, fazemos ou pensamos” (Foucault, ciências da cultura parece mais do que nunca
2008, p. 348). A tarefa de saber tudo sobre ameaçado pelo retorno de problemáticas estri-
o que somos suporá portanto um diagnóstico tamente ideológicas, uns confundindo a des-
sobre a maneira pela qual o que nós podemos crição das normas com a de seus preconceitos,
determina também os limites de nosso próprio outros a “crítica” com a denúncia dos “usos so-
poder, sempre singularmente: ciais” dos saberes, não será talvez inútil lembrar

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A bicicleta de Lévi-Strauss | 289

que um saber rigoroso, ainda que talvez apa- Notas


rentemente um pouco árido, nos oferece uma
chance – talvez a última – de descobrir que 1. [N. T.:] Este artigo é uma versão de “La condition
nossa liberdade não se assemelha a nós, e que será symbolique”, publicado em Philosophie, n°98 (“Clau-
de Lévi-Strauss: Langage, Signes, Symbolisme, Na-
tanto mais intensa quanto mais formos capazes
ture”, dir. Marcel Hénaff, juin 2008, Editions de
de renunciar a reencontrar incansavelmente no Minuit). Algumas modificações foram feitas pelo
saber a imagem familiar que fazemos de nossos autor especialmente para o público brasileiro.
interesses face àqueles de nossos semelhantes, 2. Para a repetição desse mesmo tema com fins diversos,
para descobrir as possibilidades do mundo que com estratégias bem diferentes, e por meios incompa-
se buscam através de nós, tão frágeis como ravelmente desiguais, ver por exemplo Lefort, 1978;
Lefebvre, 1975; Bourdieu, 1980; e Clastres, 1980.
as outras, mas talvez mais perigosas para elas
3. [N. T.:] No original: “les sciences humaines ont ty-
mesmas assim como para o mundo, pois não piquement affaire à des réalités dont la contrainte
podem se realizar sem ser acompanhadas de est parodie de l’impossible – tandis que la linguis-
sua própria representação, e portanto natural- tique aborde un réel, et ce n’est pas par métaphore
mente esquecidas daquilo que as fundamenta: ni bricolage, qu’elle peut dire le formaliser”.
a esgotável diversidade do real. 4. [N. T.:] No original: “conter n’est jamais que con-
te redire, qui s’écrit aussi contredire”. .
5. Desenvolvi essa análise mais longamente em Mani-
Lévi-Strauss’ bycicle
glier (2000).
6. No que concerne ao parentesco, nos referiremos
abstract Symbolical anthropology has often ao Pensamento Selvagem, capítulo 3, sobre os
been accused of denying politics and reducing social “sistemas de transformação”.
and historical violence to grammatical constraints. 7. [N. T.:] Embora nas traduções disponíveis os
This article demonstrates the opposite, that is, it is termos boucler e bouclage venham sendo tradu-
zidos por “fechar”e “fechamento”, o texto de
for the same reason that man is a symbolical animal
Maniglier, cuja argumentação gira em torno de
and a political animal. If in fact the notion of sym- uma diferença entre fermer e boucler, nos levou a
bolical system implicates a finite space of possibili- optar por traduzir fermer por “fechar”, e boucler
ties determined one by another, we can show that por “reencadear”.
the type of systematicity that characterizes them 8. Encontrar-se-á uma exposição particularmente
implicates always an outnumbered possibility, whi- detalhada disso em A oleira ciumenta (1985).
9. [N. T.:] No original: “Mais on remarquait aussi
ch can only be actualised by an “act”. That the sub-
que ces groupes n’étaient pas indépendants les uns
ject is not the master of its signs does not mean that des autres, que chacun ne se suffisait pas à lui-
freedom is but an illusion, but, quite on the contra- même comme un être de plein droit, ainsi qu’il
ry, that it is real and inherent to the very singular apparaîtrait si l’on pouvait l’envisager sous un
realities that are the signs and to the operations that angle purement formel. En fait, la série ordon-
cause them to supervene. An objective freedom, née des variantes ne revient pas au terme initial
après avoir parcouru le premier cycle de quatre
which consists rather in causing the world’s possibi-
: comme par l’effet d’un dérapage ou, mieux,
lities to supervene than to carrying out one’s ideals d’une action analogue à celle d’un dérailleur de
in it. A finite freedom, though, which results always bicyclette, la chaîne logique saute et s’engrène sur
from the deplacement of a limitation of possibles to le terme initial du groupe emboîté de rang im-
another. Thus anthropology appears as what it has médiatement inférieur, et ainsi de suite jusqu’au
always been: a moral science. dernier”.
10. [N. T.:] No original: “Des transformations de ce
keywords Semiology. Violence. Lévi-Strauss.
type constituent le fondement de toute sémiolo-
Structuralism. Philosophy. gie”.

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290 | Patrice Maniglier

11. Cf. Van Fraassen, 1994, p. 335-354. 19. [N. T.:] No original: “il incombe à l’homme de
12. Além disso, encontra-se aí a essência da bricolagem: vivre et lutter, penser et croire, garder surtout cou-
assim como o bricoleur recupera objetos manufatura- rage”.
dos para fazer deles partes de objetos manufaturados 20. [N. T.:] No original: “les ressources de sa combi-
novos, assim também, para o pensamento selvagem, natoire avant de s’involuer dans l’évidence de leur
“os significados se transformam em significantes e caducité”.
vice-versa”.
13. [N. T.:] No original: “ le propre de tout mythe est
d’interdire qu’on s’y enferme : un moment vient
toujours, au cours de l’analyse, où un problème se
Referências Bibliográficas
pose et qui, pour le résoudre, oblige à sortir du cercle
que l’analyse s’était tracé. Le même jeu de transfor- BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique, Paris: Minuit,
mations qui permet de ramener l’une à l’autre les 1980. 475p.
séquences d’un mythe donné s’étend de façon quasi CLASTRES, Pierre. Archéologie de la violence. In:
automatique à la séquence indécidable, mais tout _____.Recherches d’anthropologie politique. Paris: Seuil,
de même réductible en dehors du mythe à d’autres 1980. p. 197-250.
séquences indécidables, provenant de mythes au su- DEBAENE, Vincent. L’adieu au voyage. A propos de
jet desquels le même problème se posait”. Tristes Tropiques. Gradhiva, n° 32, p. 12-26, 2° semes-
14. “Minha concepção é pessimista”, “ Diogène couché”, tre 2002.
p. 1200. Ver também o fim do discurso de recepção DELEUZE, Gilles��������������������������������������
. A quoi reconnaît-on le structuralis-
na Academia Francesa. me?. In : Histoire de la philosophie, t. VIII : le XX° siècle,
15. [N. T.:] No original: “[L’ethnographe] ne circule Hachette, 1972. p. 299-335.
pas entre le pays des sauvages et celui des civilisés: _____. L’île déserte et autres textes, 1953-1974, Paris: Mi-
dans quelque sens qu’il aille il revient d’entre les nuit, 2002. 416p.
morts. En soumettant à l’épreuve d’expériences so- FOUCAULT, Michel. Ditos & escritos I. Problematiza-
ciales irréductibles à la sienne ses traditions et ses ção do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise.
croyances, en autopsiant sa société, il est véritable- Organização e seleção de textos de Manoel Barros da
ment mort à son monde; et s’il parvient à revenir, Motta. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de
après avoir réorganisé les membres disjoints de sa Janeiro: Forense Universitária, 2002. 354p.
tradition culturelle, il restera tout de même un res- _____. O Pensamento do Exterior. In: _____. Ditos &
suscité”. Escritos III. Estética: literatura e pintura, música e
16. [N. T.:] No original: “avec sa disparition inéluc- cinema. Organização e seleção de textos de Manoel
table de la surface d’une planète elle aussi vouée à Barros da Motta. Tradução de Inês Autran Dourado
la mort, ses labeurs, ses peines, ses joies, ses espoirs et Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
ses œuvres deviendront comme s’ils n’avaient jamais p. 219-242.
existé, nulle conscience n’étant plus là pour préser- _____. O que São as Luzes? In: _____. Ditos & Escritos
ver fût-ce le souvenir de ces mouvements éphémères II. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de
sauf, par quelques traits vite effacés d’un monde pensamento. Manoel Barros da Motta. Tradução de
au visage désormais impassible, la constat abrogé Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
qu’ils eurent lieu, c’est-à-dire rien”. 2008. p. 335-351.
17. [N. T.:] Kénose é um termo derivado do verbo HJELMSLEV, Louis. Prolégomènes à une théorie du lan-
grego kénoô, que pode ser traduzido como “es- gage, Paris: Minuit, 1971. 231p.
vaziar”, “se esvaziar”. A história deste termo se LEFEBVRE, Henri. L’idéologie structuraliste, Paris: Seuil,
origina nas escrituras bíblicas e tem uma longa 1975. “ Points”. 251p.
tradição na teologia (ver verbete de Emilio Bri- LEFORT, Claude. Les formes de l’histoire, Essais d’anthro-
to in Dictionnaire Critique de Théologie. Publié pologie politique, Paris: Gallimard, 1978. Rééd. “ Fo-
sous la direction de Jean-Yves Lacoste. Paris: lio-Essais”. 329p.
PUF, 1998. p. 630-633). LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel
18. [N. T.:] “Billancourt” refere-se ao subúrbio ope- Mauss. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropolo-
rário de Bologne-Billancourt, cujo nome foi as- gia. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify,
sociado à causa dos militantes de maio de 68. [1950] 2003. p. 11-46.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 275-292, 2008


A bicicleta de Lévi-Strauss | 291

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Paulo: Companhia das Letras, [1955] 1996. 400p. Claude Lévi-Strauss. Les temps modernes, 609, p. 216-
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[1958] 1975. 456p. 1978. Coll. “Champ Freudien”. 132p.
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Naify, [1966] 2004. 500p. teriam sido possíveis caso o Laboratório de Es-
_____. . Mitológicas***, A Origem dos Modos à Mesa. tudos em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise
Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac & da USP e a Professora Débora Mourato, da
Naify, [1968] 2006. 524p.
UFSCAR, não houvessem convidado o Profes-
____. Mythologiques ****,L’homme nu, Paris: Plon, 1971.
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_____. Antropologia estrutural dois. Trad. Maria do o tema deste artigo na Faculdade de Filosofia,
Carmo Pandolfo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, Letras e Ciências Humanas da USP, em julho
[1973] 1976. 366p. de 2008. Agradecemos ao Professor Maniglier
_____. O Olhar Distanciado. Trad. Carmen de Carvalho. pela autorização para a publicação da tradução,
Lisboa: Edições 70, [1983] 1986. 416p.
e pela disponibilidade ao longo do trabalho.
_____. A Oleira Ciumenta. Trad. Beatriz Perrone-Moisés.
São Paulo: Brasiliense, [1985] 1987. 215p. Contamos nesta tradução com a valiosa contri-
_____. Race et histoire, suivi de L’œuvre de Claude Lévi- buição do Professor Marcio Silva com relação
Strauss, par Jean Pouillon, Folio-Essais, 1987. 127p. a alguns termos da teoria estruturalista e com a
_____. . História de Lince. Trad. Beatriz Perrone-Moi- revisão cuidadosa de Renato Sztutman, a quem
sés. São Paulo: Companhia das Letras, [1991] 1993. agradecemos.
249p.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 275-292, 2008


292 | Patrice Maniglier

autor Patrice Maniglier


Professor do Departamento de Filosofia/Universidade de Essex
Doutor em Filosofia/ Paris X Nanterre University

tradutor Daniel Calazans Pierri


Graduado em Ciências Sociais/USP

tradutora Luísa Valentini


Mestranda em Ciência Social (Antropologia Social)/ USP

tradutor Ronaldo Manzi Filho


Doutorando em Filosofia/USP

revisor Renato Sztutman


Professor do Departamento de Antropologia/USP
Doutor em Ciência Social (Antropologia Social)/USP

Recebido em 09/07/2008
Aceito para publicação em 14/07/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 275-292, 2008


Música, alimentos e outras composições do drama
mítico: reflexões sobre A origem dos modos à mesa1
Luis Fernando Pereira

1
A leitura do terceiro volume da tetralogia sível, inconsciente, que só após um incipiente
Mitológicas de Claude Lévi-Strauss traz um exercício estruturalista foi possível rascunhar e
certo ar de familiaridade que não se deve, tão apresentar nesse ensaio.
somente, ao retorno a temas aparentemente já Apesar de ser o terceiro volume da série
tratados ao longo dos dois volumes anteriores, Mitológicas, o que pressuporia a necessidade da
O cru e o cozido e Do mel às cinzas. Música e leitura prévia dos dois anteriores, A origem dos
mitos acionam, naqueles que as escutam, es- modos à mesa pode servir perfeitamente como
truturas mentais comuns, já anunciava, por introdutória à extensa análise dos mitos de
isso, o esforço presente em tratar as relações in- Lévi-Strauss, como o próprio chama a atenção
ternas e intra-mitos como partes de uma obra (Lévi-Strauss, 2006, p. 9). Aliás, esse terceiro
musical, mais especificamente, a tetralogia O volume se configura como o mais didático,
anel do Nibelungo, de Richard Wagner (Lévi- com longos trechos nos quais o autor se propõe
Strauss, 2004, p. 47). Talvez, por isso, tal como a apresentar e discutir métodos e argumentos.
o compositor alemão, mas numa escala infini- Assim como qualquer uma das partes de O
tamente menor, pode-se apreender intuitiva- anel do Nibelungo pode ser ouvida por um neó-
mente um esquema comum às obras de ambos fito, sem grandes problemas. Mas, certamente,
(Lévi-Strauss, 1983, p. 321). Assim, como ne- a leitura (ou a audição) será diferente se seguir
ófito tanto na discussão aprofundada sobre o uma ordem ou outra, uma vez que os temas
estruturalismo lévi-straussiano quanto sobre a não simplesmente se repetem, mas vão se tor-
música, a partir de reações intuitivas às obras, é nando cada vez mais complexos. O desenvolvi-
que arrisco este ensaio. mento de temas, na análise estruturalista ou na
Além da admiração reconhecida (Lévi- música, pode ser entendido como
Strauss, 2004, p. 35) e das alusões mais óbvias,
referentes à divisão das principais obras de am- rodear um motivo simples de motivos mais am-
bos em quatro partes e dos conteúdos míticos, plos e mais complexos ou inscrever no interior
há, ainda, conexões quanto à forma pela qual do motivo inicial motivos mais miúdos e deta-
temas, utilizando o vocabulário emprestado da lhados; ou ainda modular em tonalidades dife-
produção musical ao longo da obra, são traba- rentes (Lévi-Strauss, 1983, p. 247).
lhados, sofrem variações e transmitem novas
sensações quando executados em palcos e con- Tanto Sigfried quanto A origem dos modos
textos diferentes. Lévi-Strauss já chama a aten- à mesa, as terceiras partes das tetralogias de
ção para que músicos como Wagner codificam Wagner e de Lévi-Strauss, apresentam o que
suas mensagens a partir da ordem dada nos re- poderíamos chamar de adensamento de re-
latos míticos (Lévi-Strauss, 2004, p. 50). A ori- lações a partir do desenvolvimento de temas.
gem dos modos à mesa fornece mais pistas sobre Após apresentados os principais motivos e te-
tais conexões, apreendidas no âmbito do sen- mas nas respectivas aberturas (O ouro do Reno

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


294 | Luis Fernando Pereira

e O cru e o cozido) e seqüências (A valquíria e em que aparecem também outros mitos, cujas
Do mel às cinzas), às quais podemos retornar propriedades a análise acima não esgota (Lévi-
ou iniciar de forma mais ou menos aleatória Strauss, 2006, p. 93).
(Lévi-Strauss, 2006, p. 10), nos defrontamos
com outras possibilidades, ou outras varia- Apresentar a culinária como o grande tema
ções do mesmo tema. Lévi-Strauss afirma que foi uma possibilidade de foco, a partir da cons-
nada impede o início da leitura pelo terceiro tatação de que se trata de uma linguagem na
volume, de longe, e anunciado, o mais didá- qual se articulam questões sobre a passagem da
tico dos quatro. O próprio autor ressalta isso natureza à cultura, já que responde às exigên-
na introdução: o livro forma um todo, passível cias do corpo, e revela experiências profundas
de ser lido isoladamente. No máximo, seria ne- no que tange à comida, às formas de comer, os
cessário reler o mito amazônico M354, em Do temperos e a memória, por isso é determinada
mel às cinzas, que serve como referência para pela forma como cada homem se insere no uni-
os trabalhos desenvolvidos no livro; ele seria o verso, percebido de modo integral (Lévi-Strauss,
M1 de A origem.... A idéia de destacar essa li- 2006, p. 443). A comida se revela como uma
berdade na leitura parece ter ligação direta com possibilidade privilegiada para pensar relações.
a composição mitológica e a própria música: Os mitos sobre culinária nunca tratam apenas
estes livros, músicas, e mitos são organizados da culinária e nem a culinária fala apenas de si.
de forma homóloga: ao público ouvinte ou ao As relações que se estabelecem pelos mitos li-
leitor é permitido começar de onde melhor lhe gados à culinária podem, além das articulações
aprouver. mais explícitas, outras que indiquem a mais di-
Isso é interessante ressaltar: o fato do mito versa gama de relações.
bororo do desaninhador de pássaros ser desig- Em Sigfried, o protagonista homônimo é
nado como M1 ou o mito tukuna ser o M354 um adensamento. Constitui-se de relações in-
não revela uma hierarquia de importâncias ou cestuosas que se tecem em todas e quaisquer
mesmo, problemática abordada em A origem..., relações e que adensam outras várias relações
de empobrecimento. Qualquer mito é passível num quadro cuja complexidade só pode ser en-
de ser o mito de referência, a escolha dependerá tendida pela condução dos temas. Outros per-
do trajeto (Lévi-Strauss, 2006, p. 10) ou mes- sonagens adensam relações entre pólos, como
mo do foco usados, o que também determina o pai dos deuses Wotan, entre céu e terra. Esse
a chave pela qual se compreende as mensagens caráter repetitivo, porém, ao contrário de levar
dos mitos. Lévi-Strauss ressalta que é tal qual à monotonia apontada muitas vezes na obra de
ocorre com o microscópio ótico, dependendo Wagner, apresenta novas possibilidades de en-
unicamente da escolha entre várias ampliações tendimento dos mitos, essencialmente porque
(Lévi-Strauss, 2004); cada ampliação do mito ao comparar relações não o faz apenas entre
propondo um novo problema a partir de uma termos de mitos sul-americanos, mas fala das
perspectiva diferente, o que abre possibilidades próprias relações entre os mitos, sul-americanos
quase infinitas, mesmo quando os mitos per- e norte-americanos; são relações entre relações,
tencem a alguns grupos de oposições aparente- utilizando novas oposições e propondo novos
mente fechados e restritos: problemas (Lévi-Strauss, 2006, p. 422).
A repetição de temas e motivos ao longo da
[...] encarados sob outras perspectivas, eles obra musical e dos mitos, longe de apenas re-
permanecem desdobrados num hiper-espaço forçar mensagens, convida a atingir níveis mais

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 293-299, 2008


Música, alimentos e outras composições do drama mítico | 295

profundos de significação (Lévi-Strauss, 1983, dia e noite, ou do sol e da lua, aqueles com
p. 334). Tais variações nascem pela introdu- difusão mais vasta nas Américas (Lévi-Strauss,
ção de códigos diversos (Lévi-Strauss, 2006, p. 2006, p. 81), discorrem sobre espaço e tam-
151), como os sociológicos, anatômicos, geo- bém tempo. Os mitos sobre a viagem de canoa,
gráficos, astronômicos e éticos. A temática da introduzidos pelo mito tukuna M405, “A ca-
oposição cru/cozido permanece neste volume, noa do sol”, por exemplo, colocam a canoa e
mas aprofundada e avançada em espiral, com- a viagem como árbitros, um espacial e outro
pondo uma tripla teoria da digestão: o primei- temporal, entre próximo e distante, oposição
ro Mitológicas trata da ausência e da presença da esta que pode surgir pelos temas propostos das
culinária; o segundo, parte da culinária para in- oposições (entre) incesto/casamento impossí-
vestigar os entornos da culinária, tratando o mel vel, temperamento caseiro/gosto pela aventura
como aquém da cozinha e o tabaco como além. e dia e noite contínuos/absolutos.
Já o terceiro volume se ocupa dos contornos da A canoa, a mulher-rã, as esposas dos astros
culinária, das relações entre natural (digestão) e ou qualquer outro personagem, objeto ou ins-
cultural (modos à mesa) (Lévi-Strauss, 2006, p. trumento colocado no mito, por si, não con-
423, grifos no original). tam; a condição da canoa, da mulher-rã ou
As variações também podem se dar pelo da própria viagem são matérias de reflexão, e
aprofundamento da análise dos mitos, que além não mera representação ou vestígio de uma re-
dos termos, neste volume também opõe dife- mota informação histórica, abordagem à qual
rentes maneiras pelas quais esses termos podem Lévi-Strauss dedica críticas mais contundentes,
se opor entre si (Lévi-Strauss, 2006, p. 171). reforçando a errônea imagem de ser um inimi-
Como em Siegfried, em que as relações entre go da história. Os mitos não têm significados
personagens não representam necessariamente fixos e cristalizados. O próprio M405, sobre
as relações entre os termos, mas entre outras a viagem da canoa, remete às versões tukuna,
relações, a preocupação de A origem dos modos à tsimshian, cree e menomini de M354, sobre as
mesa é ampliada no campo de comparações para esposas animais e a mulher-rã, e ao mito mun-
América do Norte e América Central, uma vez durucu M255, sobre a origem do sol de verão
que essa comparação inclui a dimensão tempo- e do sol de inverno. O motivo do rio aparece
ral à perspectiva sincrônica. Apesar da armação como condutor das tentativas de estabelecer
dos mitos, a forma pela qual oposições básicas o bom equilíbrio, correspondendo à busca de
possibilitam cruzamentos possíveis, permane- mediação entre duração do dia e da noite do
cer a mesma entre os dois hemisférios, os mitos mito cashinaua M410, à distância convenien-
sul-americanos, trabalhados nos dois primeiros te entre Sol e Lua e aos casamentos próximo e
volumes, dão ênfase às oposições espaciais, en- afastado de M354, M392, M393 e M394.
quanto os norte-americanos, às oposições tem- Em O anel do Nibelungo, Wagner tende a
porais. fundir personagens e condensar e simplificar
A categoria tempo surge, então, como um as narrativas originais que o inspiraram. Para
meio necessário para tornar manifestas as re- Lévi-Strauss, Wagner substitui um motivo
lações entre outras relações, outrora dadas no por outro de forma não-aleatória, a partir de
espaço. Mitos sobre a origem da culinária, elementos que possam cumprir a mesma fun-
abordados em O cru e o cozido, discorrem e ção (Lévi-Strauss, 1983, p. 328). Ao invés de
concebem essencialmente sobre espaços, en- pensarmos em empobrecimento ou perdas,
quanto os mitos sobre a origem da alternância tal processo é enriquecedor e homólogo ao

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 293-299, 2008


296 | Luis Fernando Pereira

movimento que ocorre nos mitos. N’A origem 2006, p. 29) que pode ser comparado a outros
dos modos..., personagens e objetos compõem sobre os donos da pesca e a viagem de canoa
termos que nunca são fixados anteriormente (M405 e M255) e sobre as coincidências entre
à relação, mas ganham sentido na relação. O ocorrências celestes e zoológicas (M131, M136
postulado, trabalhado exaustivamente ao lon- e M354).
go dos dois primeiros volumes das Mitológicas, A crítica de Lévi-Strauss ao “método histó-
ganha um outro tom: uma relação adquire sen- rico” está na obsessão pela busca de fatos histó-
tido em comparação a outras relações. ricos puros por meio do cálculo da freqüência
Se há caracteres comuns reproduzidos em de motivos nos mitos, isolados, comparados e
mitos de várias partes do mundo, isso não quer localizados no espaço de forma a serem encon-
dizer que os sentidos são os mesmos. O senti- trados centros de difusão (Lévi-Strauss, 2006,
do dos mitos tem a ver não com os elementos p. 204). O equívoco, segundo Lévi-Strauss,
isolados que o compõem, mas com as formas estaria em considerar apenas a ausência, a pre-
como eles se relacionam. Daí a importância do sença ou a distribuição geográfica dos mitos,
estudo não simplesmente das unidades, maio- desprovidos de significação, esquecendo-se que
res ou menores, do mito, mas de feixes de re- os mitos, assim como as regras de parentesco,
lações, tais como são organizadas as partituras não se limitam a ser algo, mas servem para algo
musicais, em várias gradações, da concomitân- (Lévi-Strauss, 2006, p. 205). Entretanto, como
cia do que é conduzido em diferentes claves até demonstra ao longo de toda A origem dos modos
a afinada consonância entre diferentes vozes e à mesa, realizando levantamento minucioso de
instrumentos de uma orquestra (Lévi-Strauss, informações zoológicas, topográficas, cosmoló-
1970, p. 243). gicas, sociológicas e históricas, é indispensável
As relações, portanto, evidenciam que os o entendimento do contexto de produção de
termos colocados nos mitos não são verdades cada mito para a elaboração da análise estru-
históricas, e é por meio da análise estruturalista tural. Assim, como já colocado no primeiro
que se torna possível comparar esses mitos, per- volume das Mitológicas (Lévi-Strauss, 2004, p.
mitindo vislumbrar as variações e, neste proces- 65), Lévi-Strauss demonstra como as diferentes
so, entender o que antes parecia inexplicável. formas pelas quais os mitos se apresentam são
Se é evidente o caráter sociológico de M354, frutos de transformações e traduções, que de-
por exemplo, que abre A origem dos modos à pendem dos lugares, das diferenças de habitat e
mesa, sobre o caçador tukuna Monmaneki que da influência de outras culturas.
passa por casamentos com fêmeas animais e, E para quê serviriam os mitos, para resolver
finalmente, com uma mulher do mesmo povo, problemas e buscar o equilíbrio? Não necessa-
só é possível atingir níveis mais profundos, ou riamente. Os mitos mandan sobre a disputa
melhor, desenvolver de outras formas o tema, dos astros M460 e M461: o protagonista deste
quando o comparamos a outros mitos. Uma último se casa com duas moças, uma associa-
das mulheres de M354, que se dividia em duas da ao milho, outra ao bisão. O que se busca
partes, é explicada pelo mito kalina M130 não são termos médios entre caça e agricultura,
(abordado em Do mel às cinzas), sobre a ori- guerra e paz. O que os mitos se esforçam em fa-
gem da constelação da Cabeleira de Berenice, zer é provar a impossibilidade de qualquer tipo
que, por sua vez, se remete a M28 (abordado de conciliação entre formas extremas, assumin-
em O cru e o cozido) sobre desmembramentos e do as contradições. Um modo de vida pura-
a origem de tríades astronômicas (Lévi-Strauss, mente agrícola e pacífico manteria a população

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 293-299, 2008


Música, alimentos e outras composições do drama mítico | 297

somente na aldeia, trazendo os riscos da endo- transformações (Lévi-Strauss, 2006, p. 179).


gamia; o abandono da aldeia para a caça ou a Entre América do Sul e América do Norte, no
guerra, levando aos perigos da exogamia (Lévi- entanto, há variações e inversões. Se M326A
Strauss, 2006, p. 285 e 286). Ao contrário do sobre a viagem de canoa trata de uma espécie
motivo da canoa, iniciado em M405, que cria de mediação diacrônica entre pólos, M104, so-
distanciamentos entre pólos, os mitos mandan bre perseguição a nado, trata de uma mediação
pregam como os antagonismos entre os termos sincrônica. Ambos falam sobre como se deve
nunca são vencidos. evitar ficar perto ou longe demais, em eixos
Lévi-Strauss não descarta a relação entre o temporais e em eixos espaciais.
mito e o real. Na verdade, ela é essencial, po- Mas, como o autor demonstra ao longo de
rém, dialética. O que aparece no mito pode ser A origem..., os mitos se transformam, passam
o inverso da realidade. Os mitos não podem de um povo para outro, ganham novas versões;
ser usados como fontes de descrições passadas a eles se acrescentam ou se diminuem detalhes
de vida ou de organização social, pois podem e experiências vividas. Elementos de outros
propor inversões e posições extremas imagina- mitos se misturam e o que era início em uma
das para demonstrar inviabilidades. A oposição versão se torna o final de outra; não há como
entre sol e lua é, como não poderia deixar de determinar um material original do mito que
constar em um texto sobre o autor, boa para sirva como referência. Não é essa a função de
pensar relações, mas existem outros tipos de M1 no primeiro volume das Mitológicas, não é
modelos para pensar outras relações, em asso- essa a função de quaisquer outros mitos.
ciações que nunca são diretas, mas constituem E aí residem os principais argumentos contra
passagens lógicas (Lévi-Strauss, 2006, p. 114), a idéia de que Lévi-Strauss trata de universalis-
dentro de determinados campos de possibili- mos. A universalidade estaria no que ele chama
dades. de “espírito humano” ou “natureza humana”,
Na análise de Lévi-Strauss, mitos aparente- não estruturas prontas, mas sim matrizes de ge-
mente heterogêneos se reduzem a uma única ração comuns a todos os seres humanos, igual-
mensagem, como o caso do homem de pênis mente capazes, portanto de lidar com as coisas.
longo de M354, que pode atingir amantes à Mas essa universalidade representa o ponto de
distância, e a mulher-grampo, que só sabe agir partida, o pressuposto a partir do qual A origem
como esposa grudando, literalmente, no mari- dos modos... é dedicada a entender possibilida-
do. Ambos os motivos têm valores simétricos, des distintas de lidar com os mesmos problemas
colocando as impossibilidades dos extremos ou as mesmas formas de lidar com problemas
(extremamente longe/corpo além do normal: diversos, sob o signo de temas históricos, geo-
extremamente perto/corpo aquém do normal). gráficos, zoológicos e ambientais, entre outros.
Não só os mitos citados acima, mas todos os Ou seja, a principal preocupação na obra é en-
analisados ao longo de A origem..., tratam, por tender as transformações do mito. Por que, por
meio de diferentes códigos, dessa mensagem, exemplo, há mitos nos hemisférios norte e sul
referente à boa distância, entre homens e mu- das Américas que tratam do motivo da cabeça
lheres, água e terra, animais e homens, próxi- que rola, como M364A e B, mas, a partir de
mos e distantes, inverno e verão, sol e lua. A tal certos limites geográficos, tal motivo se separa
ponto que, após avançada boa parte da obra, de outros como o da origem da lua e o do in-
o autor adverte que apenas um mito (M354) cesto/celibato observados na Amazônia? O in-
havia sido discutido; todos os outros seriam teresse não é analisar semelhanças; aliás, tarefa

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 293-299, 2008


298 | Luis Fernando Pereira

principal é a de provar que mitos que não se mas nos mitos. De forma equivalente aos mi-
assemelham ou cujas semelhanças aparentam tos mandan, ao longo das quatro óperas, entre
ser acidentais surgem dos mesmos princípios assassinatos, intrigas, incestos, temperamentos
e compartilham analogias secretas, apresentam impetuosos, ganância e volúpia, qualquer ten-
estrutura idêntica, ligando um grupo de trans- tativa de conciliar o que é irreconciliável está
formação a outro (Lévi-Strauss, 2006, p. 180). fadada ao fracasso, à impotência, à insensatez
Daí a impossibilidade da procura de um mito ou à vida breve, tema em comum nos mitos
original e primeiro, já que todo mito é uma ameríndios dedicados a essa impossível arbitra-
transformação de um outro anterior. gem entre próximo e distante. No horizonte do
Se a obra de Wagner criou uma nova forma pensamento ameríndio, onde a multiplicação
musical conhecida como “drama musical” po- de diferenças é o “motivo condutor”, surge en-
deríamos dizer que Claude Lévi-Strauss criou, tão o perigo da estabilização infértil, o fim do
ou melhor, ordenou o “drama mítico” na sua sexo, o fim do conflito, o fim da alteridade. Ou
obra Mitológicas. O drama musical wagneriano o perigo de confundir significante e significa-
dispensava duetos, árias ou qualquer outro tipo do, palavras e coisas, no palco do pensamento
de interrupção da seqüência de ações, marcadas mítico. Diferentemente do pensamento cien-
por diálogos contínuos e integrados musical- tífico, que trabalha com conceitos, este tem
mente. Assim me parece constituir-se também como operador de sua reorganização o signi-
a obra de Lévi-Strauss, colocando em diálogo ficado. A impossibilidade da confusão entre
ininterrupto e incansável partes da obra que, sentidos próprio e figurado, as coisas e como
desta forma, dão e ampliam as possibilidades estas são denominadas, é expressa em M388
de significação, com a introdução de pequenas (Lévi-Strauss, 2006, p. 69-70): o destino do
e novas variações. A origem dos modos à mesa homem que interpreta erroneamente o sentido
coloca questões que parecem também compor do canto das rãs é a morte.
os motivos de O anel do Nibelungo, referentes
à boa distância, ambas organizadas a partir do
uso de “motivos condutores”, pequenos temas Notas:
que representam uma situação, uma ação, um
sentimento, um local ou uma personagem, 1. N. dos E.: Esta resenha foi produzida por nosso cole-
que podem ser transformados, superpostos e ga Luis Fernando Pereira, falecido em novembro de
2008, sob o estímulo do Projeto Resenhas. A decisão
somados, constantemente repetidos ao longo
de publicar a resenha na seção de homenagem a Lévi-
da execução da obra. Seja através das relações Strauss foi tomada pouco antes de seu falecimento,
conjugais ideais, seja pela distância entre dia e e foi acompanhada da solicitação de uma pequena
noite, terra e astros, seco e molhado, o que os ampliação para o desenvolvimento da comparação
mitos estudados parecem colocar como pólos entre Wagner e Lévi-Strauss, a qual Luis infelizmente
opostos de relações não são, por si, tão impor- não teve tempo de fazer. Publicamos a versão recebida
com o mínimo de interferências.
tantes quanto o que transcorre entre eles, re-
cuperando outra relação estudada, rio acima e
rio abaixo.
Tanto A origem dos modos à mesa quanto
Referências bibliográficas
Siegfried tratam, através de esquemas homólo-
Lévi-Strauss, Claude. A estrutura dos mitos. In:
gos, dos mesmos temas: as impossibilidades e _____. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo
inviabilidades apresentadas em posições extre- Brasileiro, 1970. p. 237-265.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 293-299, 2008


Música, alimentos e outras composições do drama mítico | 299

____. De Chrétien de Troyes a Richard Wagner e nota


sobre a tetralogia. In: _____. O olhar distanciado. Lis-
boa: Edições 70, 1983. p. 313-337.
____. O cru e o cozido (Mitológicas v. 1). São Paulo: Cosac
Naify, 2004. 442p.
____. A origem dos modos à mesa (Mitológicas v. 3). São
Paulo: Cosac Naify, 2006. 524p.

autor Luis Fernando Pereira


Mestrando em Ciência Social (Antropologia Social)/USP

Recebida em 31/08/2008
Aceita para publicação em 11/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 293-299, 2008


resenhas
BEHAR, Ruth. Translated Woman: Crossing the Border with
Esperanza’s Story. Boston: Beacon Press, [1993] 2003. 406 p.
Ivana Mihal

La constatación de que finalmente llegará en libro como otros de su autoría están inmersos
el transcurso del 20081 la publicación en caste- en cierta situación paradojal consistente en
llano de Translated Woman: Crossing the Border presentar no sólo la historia de vida que explo-
with Esperanza’s Store, realizado por Ruth Behar ró, de ese “otro” con el cual se relaciona, sino
(profesora e investigadora de la Universidad de también ofrecer situaciones e interpretaciones
Michigan), ha sido el motivo para iniciar la re- concernientes a su propia historia, lo cual des-
seña de este libro, el cual ha recibido en el año de la antropología tradicional resulta una espe-
de su primera edición en inglés la mención de cie de “tabú”. Frente a esta mirada unilateral de
“Notable Book” por el New York Times y la la antropología, la autora se revela.
mención “Victor Turner Prize for Etnographic Precisamente, en este libro Behar nos intro-
Writing” por la Society for Human Anthropo- duce en la historia de vida de una vendedora
logy un año después. ambulante mexicana, Esperanza, la cual vive
Ruth Behar ha desarrollado un extenso tra- en el pueblo de Mexquitic, cerca de San Luis
bajo en el campo de los estudios etnográficos, de de Potosí en México, muy próximo a la fron-
la escritura creativa y literaria. Su formación ini- tera con EEUU. El concepto de frontera que
cial estuvo enmarcada en el campo de la antro- Behar retoma de la escritora Gloria Anzaldúa
pología, sin embargo, luego de la investigación será clave en su texto. En este sentido, comien-
que se presenta en este libro, es mejor conocida za por entender que la relación entre quien
por su papel en la construcción de una etnogra- cuenta una historia y quien la escucha implica
fía feminista que se sitúa tomando elementos de siempre una posición que estará signada por si-
distintas fuentes, recuperando a través de la es- tuaciones completamente diferentes. Esperan-
critura personalizada referentes teóricos que se za, como muchas otras mujeres que viven en el
encuadran en las historias de vida y sus críticas, México rural pertenece a una de las posiciones
en las escrituras feministas acerca de autobio- más bajas de su sociedad. La frontera que las
grafía de mujeres e historias orales, en los es- separa, que traspasa la etnógrafa para oír y gra-
critos de los chicanos que critican los discursos bar las historias de Esperanza, se vincula con
válidos para la antropología. De modo tal, que las desigualdades estructurales que distancian y
la autora toma distancia respecto, por un lado, atraviesan la vida de ambas puesto que, como
a la antropología feminista centrada en cuestio- indica el título del libro, la historia de Esperan-
nes de género y, por el otro, a posturas como za traspasa la frontera mexicana hacia EEUU.
la desarrollada en Writing Culture (1984) por Behar avanzando sobre el sentido en que se
James Clifford y George Marcus según la cual construye dicha frontera, subraya el lugar asig-
las mujeres no tuvieron un papel importante en nado a cada una, mostrando como se encuen-
el desarrollo de la etnografía. tra a tal punto confinada Esperanza a uno de
En la “Nota a la edición del décimo aniver- los lados de esa frontera, pero más allá de él
sario en inglés”, Behar plantea que tanto este existe otro, EEUU, donde sólo puede arribar

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


304 | Ivana Mihal

su historia, y no ella misma, a diferencia de la frente a la autoría informante, informante que


autora del libro, quién vive y ejerce la docen- demandaba favores, en lugar de ser accesible
cia en el mencionado país. De modo tal que se como se supone en antropología que sean los
trata de dos mujeres atravesadas por fronteras, informantes. Una vez convertidas en comadres
“del encuentro de dos mujeres traducidas” (p. establecieron una relación de confianza que
33), como señala en la “Nota a la edición del permitió trascender sus posiciones de gringa y
décimo aniversario en inglés”. de mexicana. Ese rol la convirtió a Behar en
A lo largo del libro el lector se dará cuenta una pariente ficticia –al igual que como sucede
que, aunque Behar retome puntos de su auto- con otras etnógrafas que establecen relaciones
biografía, éstos lejos de opacar la historia de vida con sus informantes generalmente ocupando el
de Esperanza se sitúan en un proceso de auto- rol de hijas. Escuchar su historia implicaba “la
rreflexión etnográfica que caracteriza la propia inversión de posiciones sociales y de jerarquía”
producción del conocimiento antropológico. (p. 46).
En el prólogo titulado “Víbora que habla” La estructura del libro sigue el hilo con-
Behar nos introduce en la escena inicial de lle- ductor de la historia de Esperanza como ella la
gada o de encuentro con su informante. Así fue narrando, es decir, la cronología del libro
detalla que, antes de conocerla personalmen- se basa en la cronología de vida de Esperanza.
te, había escuchado rumores de otras mujeres No obstante, la autora mezcla estilos: novelís-
de Mexquitic que decían que Esperanza era tico y dialógico, para poner en el centro la voz
una bruja que había hechizado a su esposo, de Esperanza y su propia voz para entenderla
causándole ceguera, por haberla maltratado y (poemas, cartas, frases, citas). Entonces este
haberla dejado por otra mujer (situación que libro forma parte de una “co-producción del
se relacionaba con lo que Behar había estado conocimiento”.
investigando en los archivos coloniales de la Específicamente, la obra se organiza en tres
Inquisición en México donde figuraban los partes: la primera de ellas se centra en la idea
cargos de hechicería a las mujeres que denun- de coraje, el coraje como estado de impotencia,
ciaban maltratos). Luego de un año, la conoció capaz de convertirse en síntomas físicos. Éste
personalmente el Día de los Muertos (1983), es el coraje que siente Esperanza ante situacio-
cuando intentaba capturar una imagen suya en nes de maltrato y de injusticia que se presen-
una fotografía (para captar en cierto sentido tan reiteradamente a lo largo de su relato. Se
la feminidad mexicana de ese “otro” exótico), narran así sucesos de su vida que se remiten a
pero Esperanza la interpela, no mostrándose una infancia plagada de sufrimientos, hambre,
intimidada como otras mujeres de su misma trabajo infantil, violencia familiar, la muerte de
escala social. Pasó otro año hasta que en la Fies- sus hijos, problemas que surgieron en el trans-
ta de la Virgen de Guadalupe ambas hablaron, curso de los años con otros hijos, entre otras
luego de ello, Esperanza se apareció en su casa cuestiones. La segunda parte, ofrece una visión
para solicitar que tanto Behar como su mari- acerca del mundo simbólico de Esperanza bajo
do fuesen padrinos de su hija (evoca la práctica la idea de redención. Esperanza siente la nece-
del compadrazgo en la población campesina de sidad de ser redimida, si no puede serlo por las
México), a partir de lo cual se entabla la rela- otras personas de su pueblo que la marginan,
ción entre ambas. tal vez sí por quienes leerán su historia del otro
En el relato de estos primeros acercamien- lado de la frontera. Así a lo largo de los capí-
tos, Behar refiere como se sintió en desventaja tulos Esperanza le va contando a Behar relatos

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 303-306, 2008


Translated Woman | 305

folclóricos, su visión religiosa del mundo, sus México, para la cual no habla náhuatl ni traba-
creencias en las curaciones y en el culto de Pan- ja con artesanías, por lo tanto queda excluida
cho Villa. La última parte, denominada mojada de los programas del Instituto Nacional Indi-
literaria versa sobre contradicciones que se pre- genista (INI), convirtiéndose en “visiblemente
sentan en el proceso de elaboración del libro, indígena e invisiblemente india”2). El éxito en
la negociación acerca de su uso público, puesto el sistema universitario la había convertido en
que Esperanza no quería que su historia fuese una mujer incapaz de traducirse a sí misma: “se
conocida por la gente de su pueblo, aunque sí estuvo escondiendo tras la historia de vida de
por sus hijos, quiénes estuvieron presentes en otra mujer” (p. 380), que además le posibilita-
las conversaciones mantenidas con Behar. Asi- ba reencontrarse con cuestiones de su pasado
mismo, la autora enfatiza cómo la frontera y la y presente.
situación del cruce de frontera, también la lle- Lo más relevante de esta biografía es que la
vó a replantearse la noción de trabajo de campo autora cuestiona como en las discusiones sobre
antropológico tradicional de la antropología escritura etnográfica se dice poco o se excluye
moderna, en la cual el antropólogo “asumía un lo concerniente a como asumimos “la autori-
papel heroico” (p. 334), distanciándose de los dad para opinar y crear textos” (p. 383). Ni
“otros”. Ironizando sobre este rol tradicional, Geertz ni Clifford3 señalan que la autoridad
Behar descubre que la frontera le devuelve a la etnográfica no es algo dado al nacer sino que se
etnógrafa una imagen de sí misma en una posi- consigue, se alcanza con un “proceso de auto-
ción privilegiada (por clase, nacionalidad) con negación y traición” (idem), negando orígenes
respecto a su informante. Finalmente, el últi- de nacionalidad, clase social, etc., para man-
mo capítulo da cuenta de la autobiografía de la tener la identidad social de la que se goza en
autora, titulada “la biografía en la sombra”. Re- el sistema universitario. Asimismo afirma que
sulta importante destacar este capítulo, ya que ninguno de estos autores al hablar de autoría
a través de su propia biografía Behar halla un etnográfica se cuestiona acerca de como esta
modo de acercarse a la historia de Esperanza, a autoridad etnográfica depende de cuestiones
la manera de escribir sus textos y a encontrar tales como el género, la ascendencia sociohistó-
también su propia identidad personal como rica, los orígenes sociales, entre otros, “o en los
mestiza y a pensar como estuvo cruzando fron- últimos tiempos, las diásporas sociales de los
teras sin saberlo, antes de conocer a Esperanza, antropólogos que escriben los libros” (idem).
fronteras para alcanzar su posición. Behar se afirma como parte de una mino-
La biografía de su sombra hace referencia ría social (mestiza, gringa postiza) que reclama
a su propia práctica lectora (que fue incenti- el derecho de apoderarse de esa marginalidad:
vada por su madre), el enojo de su padre por tomar el lugar entre los etnógrafos que no se
irse a la universidad; su inseguridad por la in- sienten cómodos ante esa supuesta tradicional
clusión en la universidad en calidad de “his- autoría y que son ubicados en la situación de un
pánica” (como minoría social) y su angustia al “otro”, que se deslizan y se sitúan “en la inter-
confirmar esa verdad. Su identidad de mujer sección de sistemas que tratan de la diferencia”
judío-cubana emigrada a Estados Unidos sir- (p. 385). De este modo, plantea que aquello
vió tanto para excluirla como para incluirla en concerniente a la propia identidad personal
el ámbito académico (en cierto modo, muy que se reprime o se oculta o no se sabe en la
similar a la inclusión y exclusión que vive Es- formación académica, conlleva a una “ignoran-
peranza desde la perspectiva hegemónica de cia sancionada”, frente a la cual la autora desde

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306 | Ivana Mihal

la marginalidad de ser latina/no latina defiende merso en dilemas intrínsecos a la reflexividad


su propia autoridad etnográfica. antropológica.
Recapitulando puede decirse que la mirada
que prevalece, cuya originalidad radica en el Notas
modo en que fue pensada, construida y redac-
tada esta etnografía, nos sitúa en el mundo de 1. Editado por Fondo de Cultura Económica según
dos mujeres traducidas y traductoras también, consta en la página web de la autora. Disponible
en http://www.ruthbehar.com/Anthropology.htm.
desde distintas posiciones y atravesadas por el
Consultada el 18 de marzo de 2008.
cruce de la frontera. El libro motiva a su lectura 2. Esto se puede ahondar en el Prólogo del libro.
y discusión puesto que no versa exclusivamen- 3. Estas discusiones se pueden ahondar en Behar &
te en una historia de vida sino también en los Gordon (1995), como también en otros escritos de la
avatares, desconciertos y contradicciones que autora.
surgen en el proceso de producción de conoci-
miento. Las contribuciones que propone la lec- Referências bibliográficas
tura de este libro conciernen a discusiones en
torno a la etnografía feminista y la autoridad BEHAR, Ruth & GORDON, Deborah (eds). Women
Writing Culture. Berkeley: University of California
antropológica como a las relaciones de las etno-
Press, 1995. 470 p.
grafías con otros géneros, entre ellos el literario CLIFFORD, James & MARCUS, George .E. (eds). Wri-
y las autobiografías. A través de las páginas, la ting Culture. The Poetics and Politics of Ethnography.
autora cautiva al lector quien se encontrará in- University of California: Press. [1984] 1986. 305 p.

autor Ivana Mihal


Doutoranda em Antropologia/Facultad de Filosofía y Letras - UBA
Bolsista CONICET/Facultad de Filosofía y Letras - UBA

Recebida em 31/03/2008
Aceita para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 303-306, 2008


PORTO, Liliana. A Ameaça do Outro: magia e religiosidade no
Vale do Jequitinhonha(MG). São Paulo: Attar editorial, 2007.
262 p.

Marcos Silva da Silveira

Versão modificada de tese de doutoramen- e espíritas. Todavia, a presença de curandeiros


to que integra a série Movimentos religiosos no e pais de santo é notória, principalmente na
mundo contemporâneo, editada com recursos zona rural, com sua clientela característica. O
do PRONEX/CNPQ. Aborda o tema da re- senso comum local reconhece que “os negros
ligiosidade popular numa região de população possuem uma magia ancestral”, cujas crenças
majoritariamente negra, no alto vale do Jequiti- são muito próximas das relatadas por pesquisa-
nhonha, na qual os estereótipos brasileiros que dores que trabalharam no interior da África.
associam negritude, pobreza e magia, podem Outro discurso, porém, é o discurso “pri-
ser confrontados a partir de uma experiência vado” dos moradores de Terras Altas, a respei-
etnográfica contemporânea. to dos atos mágicos dos quais são ou podem
Seu ponto de partida é a problematização ser vítimas. Não se trata de uma teoria nativa
do fato de que a religiosidade popular, quando a respeito da eficácia de práticas simbólicas de
abordada por uma disciplina acadêmica, difi- origens africanas, mas, ao contrário, um in-
cilmente escapa de ser percebida previamente ventário de relações sociais muito próximas da
como um tipo de “superstição”, a partir de um vítima, a respeito de seus prováveis agressores
embate entre a visão cientifica da realidade que e daqueles especialistas que devem ter sido pro-
necessariamente irá desvalorizar certo tipo de curados para lhe prejudicar. Trata-se de relatos
crença, entendida como “mágica”, “antiquada” a respeito de valores e intenções entre pessoas
e “falsa”. Nesse sentido, seu próprio trabalho de redes sociais bem definidas que expressam
de campo é problemático. Não se trata de uma suas tensões numa linguagem fundada em
relação de pesquisador-pesquisado delineada crenças e práticas mágicas. Esta dimensão da
de modo evidente a partir de um tema “objeti- vida social local não pode ser abordada por um
vamente” construído. Ao contrário, a vivencia pesquisador do tema da magia africana e sua
cotidiana junto a moradores de uma pequena presença no Brasil contemporâneo, pois diante
cidade serrana no nordeste mineiro, permitiu desta interpelação, os seus habitantes apenas
estabelecer uma série de relações de confian- reconhecem a existência dos mistérios da ma-
ça e interesses pessoais, que viabilizariam uma triz cultural africana.
produção de conhecimento a respeito daquela Diante do sistema de acusações que consti-
religiosidade singularmente marcada pelo con- tui a vivencia da magia africana por essas pes-
traponto da magia. soas, foi necessário conviver com os mesmos
Segundo os censos oficiais, a região per- numa experiência etnográfica marcada pela
manece praticamente católica e os relatos e re- construção de uma intimidade cotidiana que
gistros públicos a respeito da cultura religiosa a aproximasse da reflexão nativa a respeito do
local não consideram a presença de evangélicos tema. O lugar tem fama de ser uma “terra de

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


308 | Marcos Silva da Silveira

feiticeiros negros”, mas uma aproximação a giosas eclesiásticas, o catolicismo seria praticado
este assunto só foi possível residindo na casa de em irmandades religiosas, uma para a elite bran-
pessoas da comunidade e dando aulas na escola ca e outra para negros e mestiços, a Irmanda-
local. Para resguardar o nível de intimidade que de da Nossa Senhora do Rosário dos Homens
tal tipo de relacionamento etnográfico consti- Pretos de Santa Cruz da Chapada. Dada a au-
tuiu, a autora optou por nomes fictícios para a tonomia que caracterizava a vida religiosa das
cidade e seus habitantes. Irmandades, as irmandades negras puderam se
Na primeira parte, O Contexto, é abordada constituir como um singular espaço alternati-
a história da região. O Vale do Rio Jequitinho- vo para a humanização da condição escrava. A
nha é representado como uma região “pobre” e ambigüidade da religiosidade negra, todavia, é
“atrasada” dentro do discurso oficial do Estado construída a partir desse modelo de catolicismo.
de Minas Gerais, progressista e politicamente O catolicismo eclesiástico de Roma é a Religião
dominante no cenário nacional. Esta descrição, por excelência, promovida e praticada pela Ir-
como “O Vale da miséria”, com secas e fomes, mandade do Santíssimo Sacramento, da elite
teve início a partir do desenvolvimentismo da branca, enquanto a religiosidade negra, mesmo
década de cinqüenta, pois, historicamente, as sendo católica, é também mágica e africana, mis-
diversas regiões do Vale eram produtoras de turada com crenças e práticas de curandeirismo,
alimentos e artigos artesanais para as regiões que, certamente se encaixam na visão corrente
vizinhas, com uma cultura agrícola próspera. da Cultura Mineira, mas a partir de uma posição
Esta visão governamental da região contrasta subalterna. Do ponto de vista desta população,
com o romântico olhar cultural dos estudio- em especial, não existe uma distinção necessária
sos da “orgulhosa cultura sertaneja” do interior entre religião e magia, que a cultura dominante,
das Minas, que valorizam o estilo de vida rural seja a partir de uma perspectiva eclesiástica ou
dessas pequenas cidades. Esta dupla leitura da científica, procura enfatizar.
região encontra na idéia da “terra dos feiticeiros O estilo de vida deste campesinato negro e
negros” um ponto de convergência. mestiço começou a ser comprometido ao lon-
A região foi muito rica no século XVIII e go das décadas de 50 a 70 do século XX, uma
a mineração fixou um grande número de po- vez que a abertura de novas rodovias ao longo
pulação negra escrava dentro do processo de do Vale do Jequitinhonha trouxe produtos com
colonização bandeirante característico das Mi- preços mais atraentes para a região, desvalori-
nas. Paralelamente, criadores de gado do sertão zando a produção local e exigindo a geração de
baiano foram ocupando terras agricultáveis, em uma renda monetária extra, conseguida através
pequenas fazendas de população rarefeita, nas de um regime de trabalho temporário em ou-
quais o trabalho escravo encontrava dimensões tras regiões de Minas e em São Paulo. Foi esta
mais modestas e nas quais se plantava algodão. retração do estilo de vida camponês que levaria
Ao longo do século XIX, com o declínio da mi- à percepção oficial da região como um “bolsão
neração, esta cultura camponesa irá se tornar a de pobreza”, na qual 85% população é negra
referencia dominante do tipo sertanejo local, ou parda.
centrada numa produção agropecuária de sub- Ao trabalhar a especificidade da memó-
sistência que abastecia a região. ria local e de suas histórias orais a respeito do
O catolicismo local é devidamente contex- passado e do presente, a autora explora o tema
tualizado em suas especificidades constitutivas. das representações da escravidão e do trabalho
Numa região fechada à presença das ordens reli- para os membros desta comunidade majorita-

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riamente negra. A escravidão é vista como a tereótipos que constroem o local como a “terra
degradação máxima já sofrida por um ser hu- dos feiticeiros negros”. O catolicismo das Mi-
mano, e o Trabalho, consequentemente, é des- nas sempre teve nas festas aos santos padroeiros
valorizado, uma vez que os frutos do trabalho das Irmandades o ponto alto de suas práticas.
manual tendem a ser apropriados pelos patrões. A esta vida religiosa festiva somam-se diversas
O trabalho não dignifica nem permite a reali- crenças no sobrenatural, de inspiração bíbli-
zação de um ideal liberal de sucesso individual. ca e teológica, que dialogam com as crenças e
O Trabalho desgasta e deve-se trabalhar apenas práticas mágicas, não apenas as de origem afri-
o necessário para a manutenção de um estilo de cana. Esse catolicismo místico se expressa em
vida acessível a todos. Por outro lado, boas rela- diversas categorias de ameaças místicas, como
ções com os poderes políticos, monopolizados o “mau-olhado”, o “quebranto”, “encostos”,
pela pequena elite branca e o uso dos recursos “feitiços e despachos”, cujos efeitos maléficos
simbólicos da feitiçaria, de origem africana, podem ser neutralizados por “benzeções e ora-
permitem aos habitantes locais negociarem ções”, “simpatias”, “ritos de cura e trabalhos”,
suas posições sociais, num ambiente no qual as que terminam por consolidar a idéia de uma
ameaças e tensões não são formuladas explici- cultura fortemente marcada pela presença da
tamente, mas negociadas através de fofocas e feitiçaria no seio de suas relações sociais cons-
acusações veladas. A autora enfatiza que, em titutivas.
Terras Altas, polemizar publicamente a respei- Feitiçaria é praticar o mal, com ajuda do
to de conflitos e tensões pessoais é entendido Diabo e o Diabo é negro, eis a questão. Parale-
como uma forma de agressão, um comporta- lamente, se os raizeiros e pais de santo podem
mento condenável. As acusações, veladas, de ser maléficos, também são um tipo de agente
sofrer ataques de feitiçaria, permitiriam falar de cura localmente necessário e indispensável.
desses conflitos numa linguagem aceitável. Esta ambigüidade é característica dos agentes
Neste quadro social, “ser negro” é uma iden- mágicos em muitos lugares, mas a autora parte
tidade estigmatizada, mas esta estigmatização é para um caminho distinto em sua análise con-
construída de formas também muito veladas, clusiva, ao propor não um retorno às consa-
que negam a existência de relações racistas. As gradas abordagens da magia como um sistema
classificações raciais são complexas, sendo con- de pensamento centrado em concepções equi-
sideradas as aparências físicas de fato, com as vocadas de causa e efeito, mas uma ênfase nas
suas “marcas”, os hábitos corporais e higiêni- relações sociais presentes. Sua tese central é de
cos, para os quais as referencias da elite bran- que a feitiçaria sintetiza uma visão de mundo e
ca urbana são consideráveis, e a religiosidade das relações sociais na qual o “Outro” pode ser
com sua maior ou menor proximidade com o uma ameaça potencial por excelência.
curandeirismo e a feitiçaria. “Fazer feitiçaria” Existe um discurso que fala que os feiticei-
é “ser negro” assumindo o que esta identidade ros podem punir, magicamente, pessoas estra-
pode ter de pior, por um lado. Por outro lado, nhas que procurem prejudicar as comunidades
a idéia de uma “tradição e cultura negra” e a da região. O feitiço seria uma reparação a atos
crença na eficácia de suas práticas de cura tam- anti-sociais, e, em algumas histórias coletadas
bém é forte, relativizando o peso etnocêntrico pela autora, são atos promovidos por pessoas
destas classificações. negras e pobres que foram humilhadas por pes-
Na segunda parte do livro, Terra de Feiticei- soas brancas e ricas. Com relação à presença
ros, a autora dedica-se inteiramente a estes es- da feitiçaria no cotidiano local, as histórias são

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bem diferentes. Um elemento relevante é uma ponês. Comparando seu estudo de caso com
possível ingenuidade da vítima com relação a outros estudos, como o de Taussig para a Co-
uma má intenção presumível por parte de al- lômbia e de Mary Douglas para a África, con-
guém, numa disputa amorosa, no jogo políti- corda com a idéia defendida por estes autores,
co, que permite que um feitiço seja realizado de que o avanço de relações de trabalho capi-
e seja eficaz. Tais relatos sugerem um tipo de talistas numa região como Terra Altas termina
comentário a respeito da sinceridade e dos in- por reforçar as crenças na feitiçaria, já que re-
teresses implícitos e explícitos nas relações so- forçam o quadro social que as legitima. A racio-
ciais cotidianas. Inveja e ambição predominam nalização associada ao capitalismo não elimina
neste contexto social, marcado pelas incertezas as crenças de ordem mágica e mística, uma vez
geradas pela inserção de uma população com que não são benefícios o que o desenvolvimen-
pouco acesso aos recursos urbanos de educação, to econômico tem a oferecer a estas popula-
saúde e empregos públicos, frente às demandas ções, mas diversos problemas de sobrevivência
do capitalismo por mão de obra barata e tem- social e cultural. Ameaçadas por um mal que
porária. Corte de cana, carvoaria, garimpo de não tem condições de formular, encontram na
pedras semipreciosas, venda de artesanato em crença na feitiçaria e na prática dos contra fei-
praias, empregam seus habitantes em ocupa- tiços, especializados em formular o informulá-
ções sazonais em outras regiões do País. Para vel, uma contextualização possível para os seus
esta população flutuante, viver em Terras Altas problemas atuais, cujas raízes, como a autora
torna-se problemático e este estilo de vida en- explora bem ao longo dos capítulos, encontra-
contra na feitiçaria um idioma adequado para a se no processo de escravidão das Minas que en-
expressão de suas ambigüidades constitutivas. gendrou esta formação social.
A acusação de feitiçaria nas relações cotidia- Infelizmente, a autora não buscou explorar
nas enfatiza o possível agressor, deslocando seu mais o estudo comparativo com outras regi-
foco do personagem do “feiticeiro negro”, para ões e culturas marcadas pela magia, como fez,
qualquer opositor potencial ou de fato, como muito brevemente, com os estudos de Michael
no caso de ciúmes em relacionamentos amoro- Taussig na Colômbia. O estudo de Wade Da-
sos. Num ambiente marcado pela desconfian- vis (1986) a respeito do Haiti, por exemplo,
ça, a crença na feitiçaria permite interpretar os apresenta uma discussão muito próxima. Este
infortúnios que acometem a alguém a partir de autor também conclui, estudando o vodu e o
possíveis interesses contrários não explicitados culto shampwell – uma espécie de “quimbanda”
por pessoas do seu convívio social. Um “outro” – que a racionalidade cientifica, mesmo relati-
que, embora próximo, termina por se revelar vizada pela experiência etnográfica, pouco tem
uma alteridade perigosa e nefasta. a dizer a respeito das lealdades e desconfianças
Faz sentido também que, diante da presença locais da população rural do Haiti, majoritaria-
de valores camponeses que enfatizam um tipo mente de origem africana. Sua lógica é outra
de horizontalidade social, surge a tendência de e esta lógica opera num nível muito específico
se suspeitar do sucesso material individual, em no qual se entrecruzam relações de parentesco,
termos de que se alguém está ganhando, outros residência e lealdades políticas. A autora optou
estarão perdendo. A ênfase na feitiçaria permi- por interpretar as tensões locais da população de
te situar este problema para os seus habitantes, Terras Altas nos termos desenvolvidos por Gre-
pois processos de diferenciação individual do gory Bateson, classificando o comportamento
tipo liberal comprometem aquele ethos cam- social de seus habitantes como “esquizofrênico”

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e “paranóico”, mesmo negando que quisesse mação social rural, baseado em relações de pa-
dar um conteúdo patológico a este modelo. A rentesco muito pouco exploradas pela autora?
questão colocada de forma conclusiva é delica- Um reexame mais detalhado do lugar estrutural
da, pois, afinal das contas, de que maneira tal destas acusações de feitiçaria e de suas conseqü-
tipo de modelo pode realmente dar conta de ências – separação de casais, morte de cônjuges
uma organização social definida inicialmente – certamente esclareceria melhor muitos pon-
como fluida, na qual o pertencimento à terra é tos sugeridos ao longo do trabalho, que tem o
dado pela vinculação a algumas parentelas, sen- inegável mérito de etnografar uma comunidade
do que o modelo jurídico legal de propriedade negra rural brasileira e pensar os dilemas pre-
pouco define dentro desta cultura camponesa sentes na encruzilhada formada pelas tradições
nitidamente afroamericana? culturais desta formação social, muito diferente
As excelentes narrativas nativas a respeito de das populações negras urbanas.
casos de feitiçaria e embruxamento enfatizam o
tema da busca da felicidade nas relações matri-
moniais, continuamente ameaçadas por pessoas Referência bibliográfica
que deveriam ser amigas e aliadas, mas revelam-
se invejosas e traiçoeiras. Não é esta a tensão DAVIS, Wade. A serpente e o arco-íris: zumbis,vodu, magia
constitutiva, por excelência, desse tipo de for- negra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. 279 p.

autor Marcos Silva da Silveira


Professor do Departamento de Antropologia/UFPR
Doutor em Antropologia /UnB

Recebida em 30/08/2008
Aceita para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 307-311, 2008


SILVA, Orlando Sampaio. Eduardo Galvão: índios e caboclos.
São Paulo: Annablume, 2007, 418p.

Andrea Ciacchi

Distante no tempo e no espaço, a atuação tica e a opção teórica mais relevante de Eduar-
e a obra de Eduardo Galvão repercutem mui- do Galvão.
to pouco no panorama atual da Antropologia Por outro lado, porém, pouco se lê de sua
brasileira. obra; portanto, acaba sendo pouquíssimo co-
Por um lado, o seu lugar pareceria assegu- nhecida. Afinal, a última edição de Santos e vi-
rado. De fato, por exemplo, nos quadros do sagens remonta a 1976; a monografia sobre os
conhecido “mapeamento tipológico”, de Ro- Tenetehara não é reeditada desde 1961; e já se
berto Cardoso de Oliveira (1986), ele perten- vão 30 anos desde a última publicação da sua
ce, do ponto de vista cronológico, ao período única coletânea de ensaios esparsos: Encontro de
“carismático” da disciplina – ao lado de nomes sociedades – Índios e brancos no Brasil (1979). É
como os de Darcy Ribeiro, Florestan Fernan- de se supor que a disponibilidade on-line da sua
des, Charles Wagley, Egon Schaden e Giocon- tese, em inglês, não deve ter muita repercussão
da Mussolini, entre outros. No que diz respeito entre nós, pois é disponível apenas para mem-
à colocação temática obtida, no esquema de bros da comunidade da Columbia University.
Cardoso de Oliveira, a partir do cruzamento Por isso é bem oportuno o lançamento des-
das tradições e dos conceitos, Galvão figura se livro de Orlando Sampaio Silva, professor
em dois dos quadrantes possíveis: na “Etno- titular aposentado de Antropologia da Uni-
logia indígena culturalista” (com a sua mono- versidade Federal do Pará. Com ele, docentes
grafia sobre os Tenetehara, em co-autoria com e alunos de Antropologia no Brasil esperam,
Wagley, em 1949, com os seus ensaios sobre além de poder contar com uma grande massa
Cultura e sistema de parentesco das tribos do Alto de informações relativas à obra de Galvão, po-
Xingu e Aculturação indígena no Rio Negro – de der se sentir estimulados a voltar às páginas dos
1953 e 1959, respectivamente), na companhia seus livros. Páginas amareladas, sem dúvida,
de Nimuendaju, Baldus, Darcy e Schaden; e, mas que não podem ser descartadas, sobretudo
também, no espaço criado pela interseção da por quem busca compreender menos super-
tradição de estudos sobre a sociedade nacional ficialmente a história e os caminhos da nossa
e o paradigma culturalista, Galvão entra com a disciplina.
sua tese de doutorado (The Religion of an Ama- O livro em tela, nessa perspectiva, permite
zon Community: A Study in Culture Change.), um mergulho na bibliografia de Galvão, inclu-
defendida na Columbia University em 1952 e sive com o recurso de numerosos quadros si-
publicada em português, em 1955, como San- nóticos que permitem a contínua retomada do
tos e visagens: Um estudo da vida religiosa de Itá; contexto de produção de cada artigo, ensaio ou
Amazonas). livro. Sampaio Silva propõe, no primeiro capí-
A síntese certeira (pelo menos nesse caso) tulo, uma periodização tripartida da obra do
de Roberto Cardoso de Oliveira, aliás, permite autor, baseada, principalmente, em uma espé-
apreender em uma só visada a colocação temá- cie de processo de autonomização da sua atua-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


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ção. No começo (1939-1949), o jovem Galvão de Filosofia do Pará (1957) e na Universidade


circula entre o Museu Nacional e a Columbia de Brasília (1963-1964), Galvão não relacio-
University: a sua figura de referência, nesse nar-se-á de forma significativa com instituições
período, é, evidentemente, Wagley, seu “trei- acadêmicas, o que acaba, porém, constituindo
nador” no campo, antes (seguindo o esquema uma exceção para a sua geração de antropó-
de Heloísa Alberto Torres que, na Quinta da logos, quase todos ligados, sobretudo em São
Boa Vista, acoplava antropólogos estrangeiros Paulo, a alguma universidade.
mais experientes a jovens brasileiros aspiran- O segundo, o terceiro e o quarto capítulo
tes a pesquisadores (Corrêa, 1997)), e orien- do livro de Sampaio Silva são ocupados por
tador acadêmico, depois. O segundo período uma longa paráfrase do conjunto da sua obra,
(1950-1964) é caracterizado pela permanência por sua vez subdividida em três grandes blocos
no Serviço de Proteção ao Índio (entre 1952 e temáticos: o primeiro sendo caracterizado por
1954), como chefe da seção de Orientação e estudos de vários grupos indígenas e por tex-
Assistência do Museu do Índio, acompanhado tos teóricos e metodológicos; o segundo, pela
de Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oli- proposta de estabelecimento de “áreas culturais
veira, e pela transferência, definitiva, para o indígenas”; e o terceiro, pelos estudos sobre
Museu Paraense Emilio Goeldi, onde assume “caboclos” sob a marca principal da sua tese de
a chefia da Divisão de Antropologia em 1955. doutorado.
Finalmente, o terceiro período (1965-1976) é o Dessa forma, o volume acaba manifestando
mais “solitário”, no sentido de que, em Belém, uma certa harmonia simétrica, acertadamente
torna-se ele próprio uma figura de referência baseada no próprio conteúdo substantivo dos
para vários jovens pesquisadores que ele con- seus interesses de pesquisa. Entretanto, essa
tribui na formação, promovendo uma mescla estrutura acaba enfatizando, talvez excessiva-
entre as iniciativas de dona Heloísa, no Museu mente, a parcela mais obsoleta do seu traba-
Nacional, de Darcy, no Museu do Índio, e do lho, constituída pelo seu ensaio de 1960, Áreas
próprio Cardoso de Oliveira, no Museu Nacio- culturais indígenas do Brasil: 1900-1959. Mais
nal. Orlando Sampaio Silva vincula a esses três obsoleta pelo que ele deve ao “gênero da épo-
períodos outras fases na produção bibliográfica ca” (um gênero, aliás, em processo de rápido
de Galvão: freqüentes co-autorias com Wagley, esgotamento): os estudos de aculturação e de
na primeira; trabalhos individuais, na segunda; mudança cultural, de cuja orientação, preva-
e colaborações com pesquisadores iniciantes do lentemente norte-americana, Galvão é devedor
Goeldi, na última. e seguidor. É verdade que a mesma orientação
Essa periodização possui alguns aspec- atravessa Santos e visagens, mas, nesse livro pre-
tos discutíveis, mas tem a vantagem de fazer cioso etnograficamente e deliciosamente fresco
ressaltar, entre outros elementos, a relevância no seu estilo de “estudo de comunidade” com
na trajetória de Galvão, do seu vínculo com recorte temático preciso e rigoroso, não se en-
os museus, característico, aliás, de uma longa contra a rigidez caduca do texto de 1960. É
fase da Antropologia brasileira. Com a exceção necessário reconhecer, porém, como mostra
do doutoramento na Columbia, do curso de muito oportunamente Sampaio Silva, que Gal-
bacharelado (em Geografia e História) na Fa- vão, partindo de uma metodologia e de um es-
culdade Lafayette do Rio de Janeiro, concluído quema interpretativo fortemente influenciado
na véspera do embarque para Nova York, e de pelos trabalhos de Julian Steward, não se pren-
curtíssimos períodos de docência na Faculdade de a eles e, pelo contrário,

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 313-316, 2008


Eduardo Galvão: índios e caboclos | 315

lançou-se ao desafio da formulação de uma pro- interessante sobre um período tão fértil, mas
posta constitutiva de áreas culturais indígenas, tão esquecido, dos estudos realizados, ao longo
que se fundasse em sua própria experiência e nas de quase três décadas, sobre pequenas comuni-
de outros pesquisadores (p. 284). dades brasileiras.
O processo de “caboclização” de várias po-
O quarto e último capítulo do livro é, as- pulações indígenas do Brasil, entretanto, é tema
sim, dedicado aos estudos de Galvão sobre o que atravessa praticamente toda a produção
“caboclo”, ou seja, aquele conjunto de quatro científica de Galvão, inclusive na mais ampla e
trabalhos (aqui colocados em contínuo diálogo inicial monografia sobre os Tenetehara, co-assi-
por Sampaio Silva) que, tendo Santos e visa- nada com Wagley. Pesando-se o preço que ele
gens (ou seja, a sua tese de doutorado de 1952) pagou, aqui, à supervalorização dos conceitos de
como sua peça mais relevante, abrange o menor aculturação e mudança social e cultural, não se
alcance cronológico (1951-1953) e constitui o pode desconhecer (e é essa a qualidade maior do
item menos numeroso. Entretanto, acredito ser livro de Sampaio Silva) a grande contribuição
este o melhor e mais duradouro legado de Edu- etnográfica oferecida pelo antropólogo carioca.
ardo Galvão à Antropologia brasileira. Situado Na década de 1960, porém, Galvão passa lon-
bem no meio do período áureo de desenvolvi- ge da inovação teórica introduzida por Roberto
mento dos estudos de comunidade no Brasil, Cardoso de Oliveira pelo projeto Áreas de fricção
Santos e visagens oferece uma alternativa rara: o interétnica no Brasil. Na fase de sua produção
estudo é dedicado apenas a um aspecto da vida bibliográfica (como é possível observar a partir
social e cultural da região escolhida (nesse caso, do cuidadoso levantamento de Sampaio Silva),
a esfera das crenças e das práticas religiosas, ele se dedica a estudos de bem menor alcance
entre catolicismo e pajelança). Isso permite, como, por exemplo, sobre “horticultura e sub-
por exemplo – ainda na minha opinião –, que sistência indígena” (1963), “o cavalo na América
Galvão conduza com mais segurança do que o indígena” (1964), “a cerâmica dos índios Juru-
próprio Charles Wagley, que em Amazon town na” (1969) ou “artesanato indígena na Amazô-
estudou na mesma cidade (Gurupá, apresenta- nia brasileira” (1970). A proposta de Cardoso de
da com o nome fictício de Gurupá) uma etno- Oliveira, de fato, apesar da grande proximidade
grafia “concentrada” e que deixa menos espaço deste com Galvão, constitui um acerto de contas
para a discussão que atravessava os estudos de e uma superação impiedosa do conceito de acul-
comunidade da época (e que seria severamente turação, que, como vimos e como Sampaio Silva
criticada por Gioconda Mussolini, em 1954, mostra com grande competência, orienta toda a
no trabalho apresentado ao xxxi Congresso de produção de Galvão. Nessa perspectiva, então, a
Americanistas, em São Paulo): o isolamento obra de Galvão é relevante justamente pelo que
como causa da manutenção de traços cultu- oferece de contraponto ao rumo que esse setor
rais. A essa armadilha, Galvão escapa graças à de estudos tomará, no Brasil, graças à atuação de
redução do foco etnográfico e por meio da sua Roberto Cardoso de Oliveira.
sólida formação historiográfica, amplamente Finalmente, o livro em tela é, com certeza,
ressaltada, nesse capítulo, por Sampaio Silva. leitura obrigatória. Não posso, entretanto, dei-
Santos e visagens é um livro que, além de me- xar de lamentar algo que o prejudica, para além
recer uma releitura contemporânea (mas, para das intenções e das possibilidades do autor. De
tanto, seria necessária uma reedição urgente), fato, o volume corresponde ao texto da tese de
pelas suas próprias qualidades, lança uma luz doutorado do autor, defendida na PUC-SP em

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 313-316, 2008


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1996. Sua publicação, mais de dez anos de- falhas de revisão editorial) seria mais que opor-
pois da sua redação, não pode apagar o fato de tuna.
que, nesse período, os estudos de reconstrução
histórica da e sobre a Antropologia praticada
no Brasil avançaram muito significativamen- Referências bibliográficas
te, alcançando resultados que o trabalho de
Sampaio Silva não pôde incluir. Refiro-me, OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. A sociologia do Brasil
em particular, às pesquisas preciosas de Mari- indígena. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; São Paulo:
Editora da USP, 1972. 152p.
za Corrêa (1988; 1995; 1997), no âmbito do
______. O que é isso que chamamos de Antropologia
projeto “História da Antropologia brasileira”, Brasileira? Anuário Antropológico 85, Rio de Janeiro:
desenvolvido na Unicamp desde 1984, e que, Tempo Brasileiro, p. 227-246, 1986.
por exemplo, consentiu que se tivesse acesso à CORRÊA, Mariza. Traficantes do excêntrico. Os antro-
correspondência de Eduardo Galvão, cedida pólogos no Brasil dos anos 30 aos anos 60. Revista
pela viúva do antropólogo, Clara, e ao acervo Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 3, n. 6, p.
79-98, 1988.
da própria Heloísa Alberto Torres, organiza-
______. História da antropologia no Brasil: projeto da
do e conservado na Casa de Cultura Heloísa Unicamp. História Ciência Saúde-Manguinhos, v. 2, n.
Alberto Torres. Estou convencido de que um 2, p. 115-118, 1995.
acréscimo documental, em uma perspectiva de ______. Dona Heloísa e a pesquisa de campo. Revista de
história social do campo da antropologia no Antropologia, v. 40, n. 1, p. 11-54, 1997.
Brasil, enriqueceria sobremaneira o estudo de MUSSOLINI, Gioconda. Persistência e mudança em so-
ciedades de folk no Brasil. In: Anais do XXXI Congresso
Sampaio Silva.
Internacional de Americanistas. São Paulo, Anhembi,
Assim, uma segunda edição desse livro (que 1955, v. I. p. 333-353.
também corrigiria as numerosas e inexplicáveis

autor Andrea Ciacchi


Professor do Departamento de Ciências Sociais/UFPB
Pós-doutorando no Departamento de Antropologia / UNICAMP

Recebida em 30/08/2008
Aceita para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 313-316, 2008


NEVES, Walter Alves; PILÓ, Luís Beethoven. O Povo de Luzia
– em busca dos primeiros americanos. São Paulo, Editora
Globo, 2008. 334 p.

Maria Cecília Manzoli Turatti

Hugo Chávez adoraria ler O povo de Luzia sença humana no continente data de 11,4 mil
– em busca dos primeiros americanos, de Walter anos e os primeiros americanos – representan-
Alves Neves e Luís Beethoven Piló. A luta da tes de um único estoque biológico, conhecido
ciência sul-americana para validar descobertas popularmente como mongolóide (biotipo asiá-
pouco simpáticas ao todo-poderoso mainstre- tico dominante) – teriam chegado pelo estreito
am científico norte-americano certamente in- de Bering à região norte do continente. Para se
flamaria o já mais que candente sentimento espalhar pela América, esses pioneiros teriam
antiimperialista do comandante venezuelano. usado um ice-free corridor a leste das Monta-
nhas Rochosas. Sendo assim, a presença hu-
Não se demole um dogma científico com pouco mana nas partes baixas da América só poderia
dinheiro, pouca competência e falta de vocação ser mais recente que a data inicial do padrão
para a briga. Se o dogma tiver sido construído Clovis.
por uma comunidade acadêmica financeira- No entanto, uma série de evidências vem
mente poderosa e arrogante, como a norte-ame- desafiando esse paradigma clovista. A mais
ricana, essa máxima pode chegar a requintes de notória é certamente o crânio de Luzia, en-
crueldade (p.72). contrado em 1975 por Laming-Emperaire a
11 metros de profundidade em um dos sítios
Para nos informar das evidências cientí- arqueológicos da região de Lagoa Santa e cuja
ficas que motivaram essa peleja, os autores datação aproximada está entre 11,5 e 11 mil
apresentam o carste de Lagoa Santa, Minas anos. Ora, será então que enquanto os pionei-
Gerais, explorado desde 1834 pelo naturalista ros da cultura Clovis ainda penavam para acer-
dinamarquês Peter Wilhelm Lund. No relevo tar a fabricação de suas famosas pontas, Luzia e
calcáreo de Lagoa Santa, Lund (em meados do seu povo já perambulavam pelas Minas Gerais?
século XIX) e a arqueóloga francesa Annete Ademais, a feição de Luzia, reconstruída por
Laming-Emperaire (nos anos 1970) encontra- Richard Neave, renomado antropólogo forense
ram vestígios fósseis capazes de abalar o para- britânico, assemelha-se à de aborígenes austra-
digma científico dominante no que concerne lianos, melanésios e africanos atuais. Houve
às origens da presença humana no continente então outra migração para a América de um
americano. grupo humano não-mongolóide?
O Clovis-first/Clovis-like – nome derivado Peter Lund, nos idos de 1840, já atentara
das pontas Clovis, principal produto da in- para o fato de que os crânios por ele desco-
dústria lítica dos pretensos primeiros coloniza- bertos em Lagoa Santa apresentavam estreita-
dores da América – é o modelo de ocupação mento e faces projetadas para frente, diferenças
estabelecido pela comunidade arqueológica marcantes em relação ao biotipo mongolóide.
norte-americana. Segundo os clovistas, a pre- Nas duas últimas décadas do século XIX e pri-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


318 | Maria Cecília Manzoli Turatti

meiras três décadas do século XX, o debate so- Tal deslocamento teria ocorrido antes do apare-
bre a origem da população americana esteve em cimento da morfologia mongolóide no Nordes-
voga, estando os antropólogos Paul Rivet e José te asiático, que mais tarde também chegaria ao
Imbeloni – respectivamente francês e argen- Novo Mundo, pela mesma via (p. 158-159).
tino – como figuras de destaque no lado que
pregava a heterogeneidade das populações pio- Para justificar essa hipótese, analisaram crâ-
neiras; no corner oposto, a comunidade cien- nios encontrados na China – cuja estimativa de
tífica norte-americana – o antropólogo físico idade variava entre 11 e 27 mil anos – que tam-
Ales Hrdlicka à frente – na defesa renhida de bém apresentavam traços não-mongolóides em
uma colonização exclusivamente mongolóide. sua morfologia.
À época, Rivet e Imbeloni foram nocauteados As análises comparativas efetuadas sobre o
graças à explicação um tanto estapafúrdia que crânio de Luzia foram formalmente apresenta-
advogavam para justificar como teriam che- das à comunidade científica em 1998. Na mes-
gado esses povos não-mongolóides à América ma época, o arqueólogo norte-americano Tom
– uma absolutamente improvável migração Dillehay escrevia sobre seus achados pré-Clovis
transpacífica. em Monte Verde, no Chile, demonstrando sem
margem para dúvidas que o homem já estava
presente nesta região havia pelo menos 12,3
Efeito Luzia mil anos. Jim Chatters, também arqueólo-
go norte-americano, anunciava por sua vez o
Entre o final da década de 1980 e o início achado de um esqueleto humano em Washing-
da década de 1990, Walter Neves, da Universi- ton, datado de quase 9 mil anos e que também
dade de São Paulo, e Hector Puciarelli, da Uni- não se enquadrava no padrão mongolóide.
versidade Nacional de La Plata (Argentina), Para se ter idéia do impacto desses eventos não
compararam uma amostra dos crânios de La- só no embate acadêmico-científico em que se
goa Santa com outras populações de Homo sa- inserem, mas também em questões políticas
piens, valendo-se de estatísticas multivariadas. tangenciais aos direitos étnicos, é preciso res-
De posse dos resultados, que apontavam gran- saltar que o Homem de Kennewick, como foi
de afinidade morfológica entre a amostra bra- denominado o achado de Chatters, foi alvo de
sileira e grupos australianos e africanos atuais, uma intensa disputa jurídica entre cientistas e
resolveram enfrentar novamente os norte-ame- tribos indígenas norte-americanas. A legislação
ricanos, apresentando à comunidade científica norte-americana denominada Native American
o “Modelo dos dois componentes biológicos Graves Protection and Repatriation Act determi-
principais”, segundo o qual deveria se agregar na que qualquer remanescente ósseo de origem
uma anterior migração não-mongolóide às já arqueológica seja devolvido aos nativos que o
reconhecidas migrações de caráter mongolóide reclamem como ancestral. No caso do Homem
para descrever as primeiras ocupações na Amé- de Kennewick, a Suprema Corte norte-ameri-
rica. Tomaram o cuidado de se livrar do parado- cana decidiu em favor dos cientistas levando
xo de Rivet e seus contemporâneos, propondo em conta que
que esses pioneiros não-mongolóides também
saíram da Ásia e atingiram as terras do Novo a América pode ter sido colonizada por pelo
Mundo pelo mesmo estreito de Bering. menos duas levas biológicas distintas e que as
etnias indígenas atuais não são necessariamen-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 317-319, 2008


O Povo de Luzia | 319

te descendentes da mais antiga. Pesou muito que enfraquece a teoria da ocupação pré-Clovis
também o fato de o homem de Kennewick não no local. Encontrar outros restos esqueletais
demonstrar um formato craniano similar ao dos com a mesma datação de Luzia seria decisivo
ameríndios de hoje (p. 169). para golpear de morte a rigidez clovista. Já no
quesito biologia dos primeiros americanos,
É o que os autores chamam de “Efeito Luzia”. Luzia não está tão sozinha: foram identifica-
dos fósseis de grupos humanos com a mesma
morfologia australo-melanésica na Flórida, no
A luta continua México, na Colômbia, no extremo sul do Chile
e em quatro outros estados brasileiros (Piauí,
Para dar continuidade às pesquisas e reforçar Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul). Mas
as evidências dessa hipótese dissonante para a desses achados surge uma pergunta ainda não
ocupação do continente americano, foi criado em satisfatoriamente respondida: o que aconteceu
2000 o projeto Origens e microevolução dos homens com esses grupos americanos não-mongolói-
na américa: uma abordagem paleoantropológica, des? Até quando sobreviveram?
capitaneado por Walter Neves e financiado pela Com o objetivo explícito de desenvolver
FAPESP. De volta à Lagoa Santa, a equipe do pesquisa de ponta com competitividade inter-
projeto – formada por bioantropólogos, arque- nacional, Neves e Piló e os demais membros
ólogos, arqueobotânicos, geoarqueólogos, zoo- do projeto Origens persistem na busca incan-
arqueólogos, geólogos, paleontólogos, geógrafos, sável de respostas para essas e outras questões
biólogos e palinólogos – vem realizando novas relativas aos paleoíndios tardios de Lagoa Santa
prospecções, datações, avaliações dos sítios arque- – o povo de Luzia. Revelam para além da per-
ológicos antigos e detecção de novos sítios. tinácia e ousadia o caráter austero e corajoso
Luzia é o único vestígio de ocupação huma- de suas atividades científicas. Hasta la victoria,
na em Lagoa Santa acima dos 10 mil anos, o compañeros!

autor Maria Cecília Manzoli Turatti


Doutora em Ciência Social (Antropologia Social)/USP

Recebida em 31/08/2008
Aceita para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 317-319, 2008


FLEISCHER, Soraya; SCHUCH, Patrice; FONSECA, Cláudia.
Antropólogos em ação: experimentos de pesquisa em Direitos
Humanos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. 233p.

Fernanda Telles Márques

O livro Antropólogos em ação: experimentos interessante Antropologia em campo, no campo


de pesquisa em Direitos Humanos, organizado ou acampada?
por Soraya Fleischer, Patrice Schuch e Cláu- Enquanto a pesquisadora, disposta a de-
dia Fonseca, reúne quatorze promissores pes- monstrar que no Brasil sempre existiram re-
quisadores, selecionados ainda na graduação lações entre a(s) Antropologia(s) e as políticas
em Ciências Sociais da UFRGS, em torno da públicas, encaminha-nos com peculiar ironia
discussão de temas e dilemas que bem caracte- pelos dilemas do campo e devido ao campo,
rizam a inserção da Antropologia na socieda- Luis Felipe Murillo, autor de Esboço de uma
de brasileira atual, tais como a elaboração de reflexão acerca da posição e do lugar do antro-
laudos periciais, a atuação em órgãos governa- pólogo, entremeia teoria e prática para discutir
mentais e em instituições não governamentais a condição de antropólogo frente às demandas
e a mediação de diferenças face ao desafio dos políticas e jurídicas contemporâneas. No seu
Direitos Humanos. texto, em que Foucault, Bourdieu, Laclau entre
Cuidadosamente orientados e elaborados outros vêm dialogar com o trabalho etnográ-
em primeira pessoa, tal como se espera da tra- fico de Diego Soares sobre o MST, fica clara
dição antropológica, os relatos de pesquisa de a interdependência das dimensões discursiva e
campo constitutivos do trabalho foram agru- social no fazer antropológico – qualquer que
pados em três grandes blocos, alinhavados pela ele seja.
noção de experimentação e pela questão da É fato que as angústias do político e os
construção da cidadania do “outro”, daquele diálogos entre teoria e prática são elementos
que figura como tradicional objeto da inves- recorrentes nos quatorze relatos, também aí re-
tigação antropológica e que também aparece sidindo um importante aspecto da identidade
em outros discursos acadêmicos, seja como mi- da coletânea: a franqueza de um olhar crítico
noria (a ser) incluída (Habermas, 2002), seja que não se furta em voltar-se à própria Antro-
como “novo sujeito coletivo de juridicidade” pologia ou ao processo de formação antropo-
(Wolkmer, 2001). lógica.
Na primeira parte da coletânea, Antropólo- Nesse sentido, as contribuições de Werner
gos para quê?, nos são apresentados cinco textos Hertzog, Nativos e laudos: o trabalho do antro-
que colaboram para uma discussão introdutória pólogo, ontem e hoje, e de Márcio Pereira, Quem
do papel do antropólogo na sociedade brasilei- traduz o antropólogo? Considerações sobre o uso
ra atual, convidando-nos a (re)conhecer nossa da antropologia enquanto técnica, são exempla-
disciplina a partir da reflexão de algumas es- res. Nelas, os autores recorrem a clássicos do
pecificidades dos pensares e dos (a)fazeres que pensamento antropológico para problematizar
nos tornam representantes de um ofício hoje questões fundamentais à identificação da disci-
polifônico, como bem ressalta Laura Zacher no plina e de seus nem sempre disciplinados repre-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


322 | Fernanda Telles Márques

sentantes. Os dilemas, as exigências éticas, as das universalidades e distintas particularida-


limitações técnicas, a iconoclastia, os desafios des, presentes na chamada questão indígena,
e as angústias que se manifestam em campo e Paulo Capra e Samuel Jaenisch, em Regra
depois dele – e que por todos nós já foram, de e moral no clube de trocas zona norte e Vozes
alguma forma, vividos e sentidos – emergem de uma gente invisível: o jornal Boca de Rua
com simplicidade pertinente à proposta e, ao como um espaço de mediação, respectivamente,
mesmo tempo, com a segurança acadêmica es- trazem-nos uma Antropologia da vida urba-
perada da experiente batuta de Fonseca. na. Ou melhor, uma Antropologia das formas
Essa primeira parte é encerrada com o tra- de sociabilidade contemporâneas e da reação
balho de Juliana Macedo, Direitos sexuais e coletiva às violências (econômicas, culturais,
reprodutivos sob a ótica da Antropologia, que sociais, morais) que, na cidade, poderiam se
reflete sobre a questão da intervenção na rea- tornar rapidamente banais não fossem os ho-
lidade social, demonstrando que Direito e An- mens capazes de articulação política e do re-
tropologia têm, ao final das contas, muito mais conhecimento da alteridade.
em comum do que se pode imaginar. O mesmo acuro com a capacidade de reação
Nesse momento, cabe ponderar que, não e de identificação dos sujeitos coletivos apare-
obstante a qualidade do trabalho técnico, dos ce no relato de Eduardo Leal, Intervir para so-
diálogos estabelecidos entre os alunos das me- cializar: relações sociais em uma instituição para
ritosas professoras, a coletânea pode revelar-se meninos(as) em situação de rua em Porto Alegre,
a ser, um instrumento ainda mais oportuno que tanto nos faz lembrar as bem escritas etno-
ao estudante ou profissional do Direito do que grafias feitas da infância em condição rueira,
ao antropólogo em formação, como sugerem nos anos 90, por Milito e Silva (1995), Lecz-
os relatos aglutinados sob os temas À escuta das neiski (1995), entre outros.
pessoas, mediando diferenças, e Direitos dentro Na última parte, Direitos dentro do Direi-
do Direito, respectivamente partes II e III do to, as organizadoras brindam-nos com cinco
livro. textos que favorecem a compreensão do viver
Em Por um tranqüilo segundo consenso: democrático como construção e que enaltecem
Direitos Humanos no atendimento à saúde de a democracia como território privilegiado da
um grupo mbyá-guarani, em Porto Alegre, Gui- manifestação da diversidade. Essa pluralida-
lherme Heurich discute as políticas sociais de, manifestada nos sujeitos e normatizada na
embasadas na diferença, mostrando, a partir lei, também apresenta-se frente aos órgãos do
do estudo dos descompassos manifestados Estado como um problema, posto que, inde-
durante a execução da política de saúde indi- pendente dos apontamentos pluralistas encon-
genista, que o direito à diferença, garantido trados já no texto constitucional, permanece
constitucionalmente, não é ressignificado só também um conjunto de práticas político-ju-
pela “exótica” visão de mundo indígena, mas rídicas de caráter monista, nas quais o outro
também pela racionalidade biomédica e pelas não é reconhecido como diferença desejável,
resistências do entorno, o que faz da mediação sendo, quando muito, tolerado por prudência
um exercício cada vez mais necessário ao viver ou cálculo.
democrático. Contribuindo para a compreensão dos
Enquanto Heurich faz uso da noção de processos de construção da cidadania e da de-
“sensibilidade jurídica” (Geertz, 1997) para mocracia brasileiras pela perspectiva étnica e,
alargar a discussão das tensões entre pretendi- evidentemente, cultural, os relatos De “moreno”

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 321-324, 2008


Antropólogos em ação | 323

a “quilombola”: o antropólogo nas comunidades de uma investigação antropológica, é possível


de remanescentes de quilombo, de Luísa Andrade entender senão como e por que o antropó-
de Sousa, e Dilemas e desafios do fazer antropoló- logo tenderá a manifestar certa dificuldade
gico: considerações sobre uma experiência particu- de compreensão do processo de simplifica-
lar, de Jaqueline Russczyk, são antes exercícios ção largamente empregado pelo Direito para
de alteridade, em que as autoras denunciam a adaptar os fatos às leis, ao menos que essa
“folclorização da cultura negra” (Leite, 1999) incompreensão tenha raízes, também, em de-
enquanto discutem, mais uma vez, o lugar do terminadas condições da formação e da práti-
antropólogo face à permanente necessidade de ca antropológicas.
mediação e de intervenção em uma realidade Os 14 relatos, que constituem um campo
social multicultural. que se poderia chamar de “etnografia de si-
Também nesse sentido, da definição jurídica tuações jurídicas”, são exemplares, ainda que
da nossa nação como pluriétnica e multicultu- sucintos. São um exemplo de como ensino e
ral, é conduzida a pesquisa e elaborado o relato pesquisa não podem ser destrelados; de como
de Damiana Bregalda, A luta kaigang pela terra é possível formar com qualidade mesmo em
em Porto Alegre no debate dos Direitos Humanos, tempos de desvalorização das ciências huma-
no qual a pesquisadora discute as tramas que nas e sociais; de como os estudantes podem
constituem a luta pela demarcação de terras e desenvolver bons trabalhos se houver inves-
pela manutenção da resistente cultura kaigang timento nas boas idéias de mestres envolvi-
em Porto Alegre. dos.
Em Um estudo sobre a “eficácia” das media- E aqui cabe, então, uma última considera-
ções promovidas nos juizados especiais criminais, ção sobre a coletânea: Antropólogos em ação é
Roberta Reis Grudzinski aborda o tratamento um livro simples, despretensioso, mas muito
dado pelo poder judiciário à questão da vio- longe de ser banal. Os relatos das pesquisas
lência doméstica, concluindo que, se a Lei conduzidas pelos graduandos foram tratados
9.099/95 (que dispõem também sobre os com tal seriedade acadêmica pelo conjunto
juizados criminais) permitiu que significativa dos envolvidos que, mais que uma obra sobre
parcela da sociedade tivesse acesso a mecanis- Antropologia e Direitos Humanos, temos aqui
mos estatais de resolução de conflitos mais uma narrativa educativa de como três educa-
céleres e desburocratizados, não impediu, por doras de fôlego conseguem ensinar, com a boa
outro lado, que “outras informalidades” aca- e velha prática antropológica, um saber que,
bassem se manifestando, tais como a “pressão como bem diz a contracapa, “é processual, pro-
do defensor”, a conciliação “forçada por parte visório e aberto à contestação”.
da autoridade” e a resolução baseada no ser-
mão de cunho moralizante e, arriscamos nós,
pessoal. Referências bibliográficas
No relato que fecha a coletânea, Débora
Allebrandt medeia com destreza o diálogo da GEERTZ, Clifford. O saber local: fatos e leis em uma
Antropologia com o Direito de Família (e, de perspectiva comparativa. In: O saber local: fatos e leis
em uma perspectiva interpretativa. Petrópolis: Vozes,
certa forma, traduz o monólogo deste último
1997. p. 249-356
em relação a outros saberes). Em seu texto, HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de te-
Entre trâmites: audiências, processos de inves- oria e política. Tradução de George Sperber e Paulo
tigação e negação de paternidade sob a ótica Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002. 387p.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 321-324, 2008


324 | Fernanda Telles Márques

LECZNEISKI, Lisiane. Corpo, virilidade e gosto pelo WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico –
desafio: marcas de masculinidade entre os guris de Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed.
rua. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 1, n. 1, São Paulo:Alfa-Omega, 2001. 399p.
p.95-109, 1995.
MILITO, Cláudia; SILVA, Hélio Ricardo. Vozes do meio-
fio: etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1995. 192p.

autor Fernanda Telles Márques


Professora da Universidade de Uberaba/UNIUBE
Doutora em Sociologia/UNESP

Recebida em 15/10/2008
Aceita para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 321-324, 2008


LEIRIS, MICHEL. A África fantasma. São Paulo: Cosac Naify,
2008. 684 p.

Fernando Giobellina Brumana

Aparece la edición brasileña de esta obra, la nombre en la dedicatoria. Como consecuencia,


primera traducción de la que es objeto, setenta se produjo la ruptura de una amistad que tenía
y cuatro años después del original francés; una seis años. Se habían conocido en la redacción
apuesta editorial tal se sustenta en el mayor y de una publicación cultural de vanguardia en
mayor interés que gira en circuitos más y más la que ambos trabajaban, Documents, poco
amplios sobre Michel Leiris, figura hecha en después de que Griaule llegase de una estancia
buena medida de este libro. Nadie hubiera di- en Etiopía tras una investigación lingüística.
cho en 1934 que tendría tanta vida pues sus Comenzó entre los dos jóvenes –Griaule tenía
primeros pasos no fueron nada buenos. La pri- treinta y un años, Leiris, veintiocho– una rela-
mera edición tuvo mil ejemplares de los que, ción que desembocó en la propuesta que aquél
a pesar de haber salido en la prestigiosa Ga- le hizo a éste de formar parte de la misión que
llimard, se vendieron poco más de seiscientos estaba preparando.
hasta que, en 1942, el gobierno colaboracionis- Esta Misión, la Dakar-Yibutí, significaba la
ta de Vichy prohibiese su distribución y orde- inauguración por todo lo alto de la etnografía
nase la destrucción de los ejemplares sobrantes, francesa, raquítica en la época por comparación
aunque este último extremo es algo confuso. con la de su entorno europeo. El proyecto era
Si el éxito ante el gran público fue nulo, su extraordinario, al igual que su realización: una
recepción por los mandarines de la etnología expedición que atravesó el continente africano
francesa fue mala: Mauss le reprochó su falta de en algo más de un par de años recogiendo des-
seriedad, su carácter tan literario, y la posibili- de objetos de todo tipo y animales vivos hasta
dad de que pusiese en peligro el desarrollo de la muy amplios registros de antropología física,
etnografía francesa. Rivet –el entonces director etnográficos, lingüísticos…, con un equipo de
del Museo del Hombre– también manifestó su una docena de miembros y un ejército de ser-
disgusto. Rivière, sub-director del museo, nada vidores nativos que en algunos momentos fue
manifestó en público, pero en su correspon- superior a los doscientos hombres (ayudas de
dencia se declaró ‘acongojado’. Griaule, direc- cámara, muleros, camelleros, cocineros, carga-
tamente afectado por L’ Afrique…, entre más dores, etc.). Aventura colonial, sin duda, que
cosas, se sintió traicionado por la publicación; encendió la imaginación colectiva mediante
su rechazo se continúa hasta la actualidad en un hábil y masivo empleo de la prensa –nunca
las campañas de su hija Geneviève. repetido en la historia de la disciplina– y así
En gran medida, Griaule tenía sus razones logró el apoyo del parlamento y, con ello, la
para sentir lo que sentía y Leiris sabía de ante- concesión de ayudas institucionales y priva-
mano que tendría grandes resistencias a la pu- das de la suficiente magnitud como para que
blicación del libro, por eso se lo ocultó hasta al pudiera realizarse. En su acción recaudatoria,
final, aunque en la primera edición pusiera su Griaule & Co. llegaron a organizar un match

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


326 | Fernando Giobellina Brumana

de box en el Cirque d’Hiver, en el que la figura documentación guardada en los archivos: dece-
de destaque era el campeón mundial de peso nas de albaranes con envíos de los millares de
pluma, un dandy negro y panameño llamado piezas que se embarcaban periódicamente para
Al. Brown, al que asistieron muchos notables el Museo y otras instituciones, cartas en las que
(duques, condesas, políticos…) y gente promi- pregunta cómo salvar de las termitas los objetos
nente del mundo de la cultura, el ambiente con de madera, propaganda institucional…. Pero
el que el propio Griaule, Leiris y Rivière tenían también estaba su meticuloso y exhaustivo tra-
profundas relaciones. La partida de los expedi- bajo como etnógrafo hecho a sí mismo, del que
cionarios no cortó los pedidos de dineros; de derivó un cuerpo gigantesco de fichas de cam-
ello se encargó Rivière, en continua comunica- po, entre las que constan las quizás más valiosas,
ción postal con Griaule y Leiris. las que llevan el número 236, alrededor de mil,
Ninguno de los componentes del equipo, con traducciones de entrevistas, canciones, adi-
gran paradoja, tenía experiencia alguna en tra- vinanzas y demás material oral, anotaciones he-
bajo de campo, salvo su jefe por la experiencia chas por Leiris pero dictadas por Abba Jerôme,
etíope. Leiris era un indocumentado etnográfi- el intelectual etíope que le hizo de intérprete.
co; tenía en su haber sólo la asistencia a algún La cosecha etnográfica de Leiris fue en parte
curso de Mauss y unas pocas lecturas. Su inte- empleada por Griaule en Masques dogon pero
rés por este campo de estudios se había mostra- también dio lugar a una producción bibliográ-
do en varios artículos en Documents, pero no fica propia, desde pequeños artículos escritos
pasaba de la postura de un aficionado. El largo poco después de la vuelta a París hasta las obras
viaje entre el Atlántico y el Índico fue para él de posteriores y mayores: La langue secrète des Do-
iniciación, sin ninguna evocación mística, aun- gons de Sanga –tan poco conocido, de tan alta
que sí haya pasado por un rito de pasaje, una calidad– y La possession et ses aspects théatraux
‘muerte’, la de la adscripción al surrealismo, y chez les éthiopiens de Gondar.
su nacimiento como hombre de etnografía, dos Leris se había planteado A África Fantasma
formas de conocimiento, alguien lo ha dicho, como un experimento (anti) literario, la redac-
incompatibles. ción de un diario que después fuese publica-
Parte de la labor primera que Griaule había do sin modificaciones; de alguna manera, una
dado a Leiris –la de secretario-archivista, la de demostración práctica (de práctica de escritura
memorialista– está condensada en las agendas estamos hablando y, al mismo tiempo, de es-
que ahora se conservan en la biblioteca Éric de critura surgida de la práctica) del tedio que le
Dampièrre en Nanterre, para los años 1931 y provocaba la sociedad francesa, del rechazo que
1932, además de unas páginas sueltas corres- por ella sentía, de la hartura de la literatura,
pondientes a 1933. Este material, sin duda útil de su necesidad de acción. Eso fue lo planeado
e interesante, es muy poco. En ese sentido, el y eso fue lo hecho. En esos centenares y cen-
reproche de Griaule y sus allegados de que Lei- tenares de entradas casi diarias hay remansos,
ris no había cumplido con su compromiso no momentos para el aburrimiento, las pequeñas
carece de validez. Pero por otro lado, el registro rabietas contra los servidores, las disquisiciones
diario que llevó a cabo durante la misión, lo fútiles, la irritación por descubrir que los terri-
que es A África…, quizás a largo plazo consti- torios por los que la misión pasaba también era
tuya lo que hoy más conserve su memoria. parte de Europa; hay, la mayoría de las veces,
Además, Leiris hizo un gran trabajo admi- la visión del desarrollo de la misión que, por su
nistrativo del cual sólo tenemos noticia por la descarnada objetividad, entraba en contradic-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 325-329, 2008


A África fantasma | 327

ción con las pretensión que Griaule tenía de Pacificação, assistência médica, têm um só ob-
darle una imagen sublime; hay por, último, los jetivo: amansar as pessoas para que paguem os
grandes momentos de extrañamiento de sí y impostos. e não interfiram. Corretivos às vezes
de triste reencuentro: la estancia en país dogon sangrentos, com um objetivo: recolher impos-
–actual Mali– y, en una medida mucho más tos. Estudos etnográficos com um objetivo: ser
fuerte, en Gondar, Etiopía. capaz de conduzir uma política mais hábil, que
La llegada a Sanga, la aldea dogon que a será melhor exatamente para recolher impostos
partir de entonces se convertiría en la Meca et- (26.I.32).
nográfica para Griaule y sus seguidores, aleja a
Leiris del estado de ánimo que le había hecho El otro gran momento, el más duradero
escribir un día antes: “coisa sinistra, ser euro- también, fue la estancia improvisada en Gon-
peio”; Sanga, el mundo dogon, enciende el es- dar, una ciudadela con castillos medievales en
píritu con una experiencia radicalmente nueva: las altas planicies de una Etiopía desgarrada por
guerras internas y al borde de la invasión de
Estamos bem longe do servilismo da maioria Mussolini, frente a cuya frontera Leiris escribe:
dos homens que encontramos até o momen-
to. Todos os que conhecemos, sejam negros ou Eis, enfim, a ÁFRICA, a terra dos 50º à sombra,
brancos, ganham ares de malandros, grosseirões, de comboios de escra­vos, de banquetes canibais,
engraçadinhos lúgubres perto dessa gente. de mortos vivos, de tudo o que é carcomido, cor-
Religiosidade formidável. Todos os lugares na- roído, perdido. A silhueta alta do famélico maldi-
dam em sagrado. Tudo parece sábio e solene. to que sempre me assombrou1 se levanta entre o
Imagem clássica da Ásia (29.IX.31). sol e eu. Ando à sua sombra, sombra mais dura,
porém mais revigorante que o mais cintilante dos
Semanas más tarde, escribe a su mujer: raios do sol.

Aquí la religión tiene un sentido, ya que se le pide En Gondar se desarrollaba un culto de po-
algo preciso. El amor tiene un sentido porque sesión, el de los espíritus zar, a cuyo estudio se
está oculto. La belleza lo tiene porque es involun- dedica Leiris.
taria. La estupidez no existe ya que no se habla de
inteligencia. Nada se hace mal, nada falta, porque Preferiria ser possuído que estu­dar os possuídos,
no se habla de eficacia. No hay decrepitud, ni na- conhecer carnalmente uma ‘zarina’ que conhe-
cimiento, ya que todo está articulado en un ciclo cer cientificamente todas suas circunstâncias. O
continuo (carta a Zette del 23.X.31). conhecimento abstrato, para mim, nunca deixa-
rá de ser a pior das hipóteses (23.VII.3­2).
Pero este enamoramiento fulgurante no le
haría olvidar, ya fuera del círculo mágico de Pero el autor se engañaba. La posibilidad –o
Sanga, las condiciones generales en las que se lo que él suponía posibilidad– de tal comercio
daba esa experiencia, una práctica científica carnal lo paralizaría poco después de esta ano-
que tenía como objetivo perfeccionar las herra- tación, al relacionarse con un grupo de culto
mientas de dominación colonial: dirigido por una mujer, cuya hija, Emawayish,
le hace perder la cabeza. Comienza un prolon-
Cada vez menos, suporto a idéia da colonização. gado galanteo; una primera referencia.
Recolher impostos, esta é a grande preocupação.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 325-329, 2008


328 | Fernando Giobellina Brumana

Emawayish, a bela – embora um pouco murcha Lo que no es fantasma, a pesar de todo, es


– princesa de cera. [...] essa mulher de aspecto la escritura; lo que no es fantasma, a pesar de
taõ calmo, tão reservada – apesar dos arrotos todo, es la ciencia. Lo que no es fantasma es A
poderosos que solta quando come injéra. [...] África Fantasma.
Chego até achar essa mulher muito mais bela Los lectores en lengua portuguesa deben
do que murcha (17.VIII.32). agradecer a la editorial Cosac Naify que agre-
gue este texto a su pequeña pero valiosa serie de
De esta imagen, con el tiempo, se llega a publicaciones antropológicas, sin embargo la
esta otra, tan enraizada en la imaginería sexual deuda sería mucho mayor si el responsable de
de Leiris (por algo años más tarde, lo dice en el la edición no hubiera cometido el incompren-
Journal, todavía pensaba en ella cuando hacía sible error de no servirse de la edición Jamin,
el amor con su mujer): sino de la anterior. Con esta opción, el libro
pierde muchas cosas, demasiadas. Por un lado,
Lembro de Emawayish esfregar a boca depois da unas sesenta cartas –la mayoría de Leiris a su
xícara de sangue (em um sacrificio animal. FGB), mujer Zette– que en muchos casos ofrecen una
sem a menor preocupação de mascarar o nojo, versión más densa y precisa que lo registrado
como algumas felatrizes profissionais quando en el diario, que tratan de cuestiones diferen-
lavam os dentes... (23.IX.32) tes a las de éste o sobre el propio proyecto de
escritura; algún ejemplo he dado en las líneas
Entre un momento y otro, idas y vueltas, anteriores.
ataques de celos, pequeñas indiscreciones (“La Además, las 353 notas de la edición france-
mano en el culo de Emawayish, la 3ª vez que sa no sólo triplican las de la brasileña, sino que
la vi”), deseos que se desatan en la cabeza pero provienen de quien tal vez sea el máximo co-
no el cuerpo. Lo que prima: Leiris es un fran- nocedor de Leiris, su amigo, albacea literario,
cés culto y burgués que pronto volverá a la vida editor de otros trabajos suyos, co-fundador de
que había abandonado con su mujer, con su Gradhiva… Por más utilidad que tengan mu-
cuñado-suegro marchand de Picasso, con sus chas de las notas del traductor, la comparación
amigos poetas, con sus Sartres y sus Simones. entre un cuerpo y otro resulta hasta injusta;
La Néréide de la Mer Rouge, como la llamará como también injusto es que el lector brasile-
en un poema años más tarde, quedará atrás, en ño deba conformarse con las que trae esta edi-
otra dimensión, fantasma, como el África que ción.
pronto abandonará. Así se lo dice en una carta Las ilustraciones también muestran una
a Zette: gran disparidad; mientras que la edición fran-
cesa trae cerca de 150, la brasileña tiene ape-
Te juro que no tienes que estar celosa, ni siquie- nas 34. Otra carencia particularmente gravosa
ra retrospectivamente. No se trata más que de para los estudiosos es la de los varios índices
fantasmas que me han turbado (no voy a negar- que ofrece la versión Jamin, lo que vuelve muy
lo) pero nunca han sido otra cosa más que fan- dificultoso el uso de este libro con cerca de 700
tasmas. [...] todo lo que le puede pasar a alguien páginas.
en un país así se sitúa en un plano tan diferente Por último, las introducciones. La edición
de nuestro plan común que todo lo que allí pue- comentada cuenta con la persona que en Bra-
da ocurrir ocurre en un mundo aparte (carta a sil está más capacitada para tratar la figura de
Zette del 31.XII.32). Leiris, Fernanda Peixoto, quien, con buen cri-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 325-329, 2008


A África fantasma | 329

terio, delimita su enfoque al lugar que A Áfri- En fin, un gran libro, cada vez más impor-
ca Fantasma ocupa en la obra de Leiris, y nos tante en la formación de los nuevos antropó-
brinda así una herramienta de la que la edición logos, cada vez más presente en las reflexiones
francesa carecía. La introducción de traductor que hacemos o deberíamos hacer sobre nuestro
–y responsable de las notas, recordemos–, por oficio, una bella pieza literaria, un gran do-
otro lado, revela el papel algo ambiguo que ha cumento humano, un texto-universo del que
querido jugar; tras un par de páginas en las que cuesta desprenderse, que hubiese exigido ma-
justifica algunas opciones que, como tales, son yor fineza editorial.
obviamente discutibles (¿por qué no mantuvo
‘boy’ y se olvidó de ‘moleque’, por más prosa-
pia literaria de la que este término goce en la Nota:
literatura brasileña?), trata de cumplir una ta-
rea que Peixoto dejó de lado, proveer al libro de 1. Rimbaud, supongo (FGB).
un contexto histórico, político, epistémico…
en tres páginas. La incongruencia y desmesura
de tal pretensión vuelve aún más candente la Referência Bibliográfica
ausencia de las magníficas introducciones de
Jamin a su edición. LEIRIS, Michel. Miroir de l’Afrique. (ed. J. Jamin). Paris:
Gallimard, 1996. 1500p.

autor Fernando Giobellina Brumana


Professor Titular de Antropologia da Faculdade de Filosofia e Letras/
Universidad de Cádiz.

Recebida em 30/09/2008
Aceita para publicação em 30/09/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 325-329, 2008


informe
NAPEDRA – Núcleo de Antropologia, Performance
e Drama

O Núcleo de Antropologia, Performance ferentes campos do saber e expressão artística


e Drama (Napedra) reúne antropólogos em – desde o teatro e as artes performativas, à an-
busca de saberes associados às artes performa- tropologia, sociologia, psicanálise, lingüística,
tivas, e pesquisadores das artes interessados em pesquisas sobre folclore, e estudos de gênero –
antropologia. Trata-se de um dos grupos de formula-se o conceito de performance5.
pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Na antropologia da performance, duas abor-
Antropologia Social da Universidade de São dagens freqüentemente ganham forma e se des-
Paulo (PPGAS/USP). Merece destaque a par- tacam, uma mais próxima à lingüística (John
ticipação, como membros do Napedra, de pro- Austin, Dell Hymes, Richard Bauman, ...), e
fessores, alunos e artistas do Instituto de Artes outra ao teatro (Victor Turner, Richard Schech-
da Universidade Estadual de Campinas (IA/ ner, ...). No percurso da maioria dos membros
Unicamp), e de outras pessoas ligadas ao teatro do Napedra, observa-se a força gravitacional
e artes de performance1. exercida por um conjunto de leituras associa-
Tal como outros grupos, o Napedra não das, particularmente, à segunda abordagem, nas
deixa de ter uma história originária. Em 1999, interfaces de antropologia e artes cênicas.
como um dos desdobramentos de sua tese de As afinidades eletivas entre o pensamento te-
livre-docência2, o Prof. John Cowart Dawsey, atral e o fazer antropológico merecem atenção.
coordenador do núcleo, propôs como optativa O modo como Roland Barthes define o teatro
no PPGAS uma nova disciplina, Paradigmas é propício. Trata-se, diz ele, de uma atividade
do Teatro na Antropologia, que vem sendo ofe- “que calcula o lugar olhado das coisas”. Essa
recida regularmente desde então3. Em 2001, a definição também é boa para se pensar a antro-
partir da iniciativa do professor e de um grupo pologia. Ao produzirem conhecimento a antro-
de alunos interessados em explorar uma série pologia e o teatro provocam um deslocamento
de questões além do âmbito disciplinar, surgiu do lugar olhado das coisas. Suscitam estranha-
o Napedra. Decidimos aprofundar nossos es- mento. Conduzem o ator, também pesquisa-
tudos nas interfaces de antropologia e perfor- dor, a uma experiência de alteridade. Brincam
mance, alternando estudos de textos relevantes com o perigo. A etimologia da palavra teoria é
à antropologia da performance com experiên- a mesma do teatro, “ato de ver”. O modo como
cia em campo de eventos performáticos. a antropologia elabora suas teorias muito tem a
Em campos acadêmicos e artísticos, o con- ver com os saberes desenvolvidos nas artes cê-
ceito de performance adquire formas variadas, nicas. A fórmula que Lévi-Strauss descobre em
cambiantes e híbridas. Há algo de não resolvi- Rousseau – “eu é um outro” – que serve como
do neste conceito que resiste às tentativas de princípio para a antropologia, tem afinidades
definições conclusivas ou delimitações discipli- marcantes com a experiência do ator.
nares. Aquém ou além de uma disciplina, ou, Antropólogos muito têm a aprender com as
até mesmo, de um campo interdisciplinar, os artes cênicas. Com elas descobrimos algo so-
estudos de performance se configuram como bre papéis sociais. E, principalmente, sobre a
uma espécie de anti disciplina4. A partir de di- interrupção de papéis. Iluminam-se processos

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


334 | NAPEDRA

associados à construção da personagem e da do Instituto de Artes da Universidade Estadual


pessoa, ou persona – uma palavra que evoca a de Campinas (IA/Unicamp). Nessa interface,
idéia de máscara. Aprendemos sobre as relações onde encontram-se pesquisadores do IA/Uni-
entre máscara e corpo. Nos deparamos com a camp, que aprofundam o seu diálogo com a an-
primazia do corpo. O corpo tem razões que a tropologia, e os do PPGAS/USP, que buscam
própria cultura desconhece. Partindo da idéia conhecimentos em estudos de performance,
de que os sentidos do mundo se formam atra- configura-se uma proposta de projeto temático.
vés dos sentidos do corpo, a antropologia não O processo interdisciplinar de elaboração deste
deixa de ser uma atividade que calcula o lugar projeto temático evoca o próprio surgimento
“sentido” das coisas. da antropologia da performance, nos anos de
Com as artes cênicas exploramos dimensões 1960 e 1970, quando Richard Schechner, um
dramáticas da vida social. E os modos como diretor de teatro virando antropólogo, faz a sua
dramas sociais se relacionam com dramas ritu- aprendizagem antropológica com Victor Tur-
ais e estéticos. A arte imita a vida tanto quanto ner, um antropólogo que, na sua relação com
a vida imita a arte. Acima de tudo, nos depa- Schechner, torna-se aprendiz do teatro. De
ramos com o humano capaz de surpreender-se início, observa-se uma afinidade entre o grupo
a si mesmo. Chama atenção suas contradições. do IA e os membros originários do Napedra:
Sua estranheza. O humano causa espanto. Se- a elaboração de uma constelação bibliográfica
riam as culturas algumas das histórias mais in- em torno dos estudos de performance de Vic-
sólitas que a natureza conta para si sobre ela tor Turner e Richard Schechner. Trata-se de
mesma? um dos pontos luminosos de um universo de
O Napedra tem sido pioneiro em estudos de pesquisa descentrado e em expansão. Os proje-
performance na antropologia brasileira. Através tos individuais apresentados no projeto temá-
de teses, dissertações, artigos e livros, estamos tico podem ser vistos como desdobramentos,
contribuindo para a formação de um campo ou ecos criativos, do diálogo entre Schechner
de pesquisa. Organizamos os primeiros fóruns e Turner. Apresentam-se como tranças - uma
de pesquisa e grupos de trabalho em estudos de das noções sugestivas de Schechner - reunindo
performance nos encontros nacionais da Asso- e, até mesmo, tensionando linhas de estudo a
ciação Brasileira de Antropologia (ABA) e da respeito de drama, estética e ritual. São estas as
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pes- três linhas mestras a partir das quais o proje-
quisa em Ciências Sociais (ANPOCS). Orga- to temático se constitui. Trata-se de diferentes
nizamos eventos internacionais. Estabelecemos perspectivas para análise de fenômenos de per-
vínculos com a New York University e outros formance. Através do debate interdisciplinar
centros de estudos de performance. Em 2008, que aqui se propõe procura-se contribuir para
foi aprovado pela Fapesp nosso projeto temá- a formação de um campo de pesquisa.
tico, “Antropologia da Performance: Drama, Como nota final, observa-se a variedade dos
Estética e Ritual”6. temas e gêneros performativos abordados nos
O projeto temático surge como um desdo- projetos individuais, incluindo teatro, música,
bramento da própria história do Napedra, num dança, cinema, festas, cultos, júris, rituais, esco-
momento de articulação entre diversos grupos las, narrativas, paródias de gênero, movimentos
de pesquisa no Brasil voltados aos estudos de sociais, manifestações étnicas e encenações da
performance, com destaque à inclusão, como vida cotidiana. Nos projetos do coordenador e
membros do Napedra, de professores e alunos de alguns dos outros pesquisadores do Napedra

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 333-336, 2008


Núcleo de Antropologia, Performance e Drama | 335

enuncia-se um propósito específico: repensar a vanguardas artísticas do século vinte: cubismo, sur-
antropologia da performance (e da experiência) realismo, e dada; teatro de Bertolt Brecht, Antonin
Artaud, Jerzy Grotowski, e Eugenio Barba; música
desde os escritos de Walter Benjamin7. E, na
de John Cage; dança de Isadora Duncan e Ann Hal-
formulação embrionária de uma antropologia prin; “happenings” de Allan Kaprow; teatro de rua;
benjaminiana, repensar os paradigmas do tea- guerrilha teatral feminista e WITCH (Women’s In-
tro do campo8. Acima de tudo, o que move os ternational Terrorist Conspiracy from Hell). Na an-
participantes do Napedra são as perspectivas de tropologia a literatura é extensa. Além de alguns dos
explorar um universo em expansão de estudos nomes acima citados, seria preciso mencionar outros:
Marcel Mauss (referência clássica para estudos de téc-
de performance.
nicas corporais e noção de pessoa); Clifford Geertz
(antropologia interpretativa inspirada em noções de
Notas “dramatismo” e “ação simbólica” de Kenneth Burke);
Marshall Sahlins (referência para a distinção entre
1. Ressalta-se a participação da Profa. Regina Polo Mul- estruturas “prescritivas” e “performativas”); Stanley
ler (IA/Unicamp), vice-coordenadora do Napedra e Tambiah (estudos de rituais); John Blacking (antro-
uma das precursoras de estudos de antropologia da pologia do corpo e antropologia da música); Anthony
performance no Brasil. Seeger e Alan Merriam (antropologia da música);
2. Dawsey, John C. De que riem os “bóias-frias”? Walter Anya Royce e Judith Hanna (antropologia da dança);
Benjamin e o teatro épico de Brecht em carrocerias de Edward Bruner e Barbara Kirshenblatt-Gimblett (an-
caminhões. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Fi- tropologia do turismo); Joel Sherzer, Dennis Tedlock,
losofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de Ruth Finnegan, Jack Goody, Walter Ong e Jan Van-
São Paulo, FFLCH/USP, 1999. 235f. sina (etnopoética e literatura oral); Peter McLaren
3. Em 2008, o professor introduziu para alunos da gra- (rituais e educação); et al. Estudos que se inspiram
duação a disciplina Benjamin, Brecht e Antropologia. em noções de jogo, brincadeira e enquadramentos
Em 2009 ou 2010, deverá ser oferecida no PPGAS a lúdicos (play frames) também são relevantes: Gregory
disciplina Antropologia da Performance. Bateson, Mikhail Bakhtin, Johan Huizinga, Roger
4. Esta é a posição de Joseph Roach e Dwight Con- Caillois, Brian Sutton-Smith, et al. Observa-se que
quergood, que foram diretores, respectivamente, dos os escritos de Kenneth Burke, mencionados acima
programas de estudos de performance de New York em parênteses, inspiram não apenas a abordagem de
University e Northwestern. Cf. CARLSON, Marvin. Geertz, mas, também, as de Turner, Goffman e Bau-
Performance: a critical introduction. London and New man.
York: Routledege, 1999, p. 189. 6. Processo Fapesp no. 06/53006-2.
5. Alguns nomes logo vêm à mente: Erving Goffman 7. Na perspectiva de Victor Turner, a antropologia da
(sociologia); Victor Turner e Milton Singer (antro- performance faz parte de uma antropologia da ex-
pologia); Richard Schechner (teatro e antropologia); periência. Em seu concurso para professor titular da
Richard Bauman (estudos de folclore, arte verbal, e Universidade de São Paulo, realizado em 2007, John
antropologia); Judith Butler (estudos de gênero); Dawsey apresentou uma aula magna sobre antropo-
John Austin, Dell Hymes e Charles Brigss (lingüísti- logia da performance em registro benjaminiano (cf.
ca e etnolinguística); Paul Zumthor (literatura oral); Dawsey, J. C. Sismologia da performance: ritual, dra-
J. L. Moreno (psicodrama), et al. Chamam atenção, ma e play. Revista de Antropologia, v. 50, n. 2, 2007
ainda, os estudos em etnocenologia de Jean-Marie – no prelo).
Pradier. Quanto ao teatro e às artes performativas, 8. Nesses desafios ouvem-se alguns dos ruídos e remoi-
seria preciso retomar a história (e pré-história) das nhos dos escritos de Michael Taussig.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 333-336, 2008


336 | NAPEDRA

COORDENADOR Prof. John Cowart Dawsey (USP)

Vice-coordenadora Profa. Regina Polo Muller (Unicamp)

PESQUISADORAS ORIENTADORAS Profa. Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (USP), Profa. Fran-
cirosy Campos Barbosa Ferreira (Unicamp/prodoc), Profa.
Marianna Francisca Martins Monteiro (Unesp), Profa. Rose
Satiko Gitirana Hikiji (USP)

PÓS-DOUTORANDOS Ana Lucia Ferraz, Edgar Teodoro da Cunha, Nilce da Penha


M. Panzutti, Rubens Alves da Silva

DOUTORANDOS André-Kees de Moraes Schouten, Camila Camargo Viei-


ra, Carolina de Camargo Abreu, Celso Vianna Bezerra de
Menezes, Danilo Paiva Ramos, Eduardo Néspoli, Giovanni
Cirino, João Luis Uchoa de Figueiredo Passos, Luciana de
Fátima Pereira de Lyra

MESTRES E MESTRANDOS Adriana de Oliveira, Alice Villela, Ana Goldenstein Carva-


lhaes, Beatriz Tomassi, Kelen Pessuto, Marcos Vinicius Ma-
lheiros Moraes

GRADUANDOS Ana Letícia de Fiori, Bruno Grecco, Flavio Pontes Rodrigues


da Silva

COLABORADORES EXTERNOS Eufrázia Cristina Menezes Santos (UFS), Maria Mommen-


sohn, Rita de Cássia Almeida Castro (UnB), Robson Corrêa
de Camargo (UFG), Vanilza Jacundino Rodrigues, Yaskara
Manzini

SÍTIO ELETRÔNICO www.fflch.usp.br/da (Núcleos de Pesquisa/NAPEDRA)

CONTATO 55 11 3091-3045

CORRESPONDÊNCIA Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA)


Rua do Anfiteatro, 181, Conjunto Colméia, Favo 10
CEP 05800-900
São Paulo, SP, Brasil

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 333-336, 2008


nominata de pareceristas

Nome Filiação Institucional Titulação


Amauri Mendes Pereira (UEZO) Dr. em Ciências Sociais
Ana Claudia Cruz da Silva (UESC) Dra. em Antropologia Social
Ana Claúdia Duarte Rocha Marques (USP) Dra. em Antropologia Social
Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (USP) Dra. em Ciência Social (Antropologia Social)
Antonio Ricardo Micheloto (UFU) Dr. em Ciências Sociais
Bela Feldman-Bianco (UNICAMP) Dra. em Antropologia / Pós-Doutorado
Ciméa Barbato Bevilaqua (UFPR) Dra. em Ciência Social (Antropologia Social)
Clarice Cohn (UFSCar) Dra. em Ciência Social (Antropologia Social)
Claudia Leonor López Garcés (Museu Paraense Emilio Goeldi) Dra. em Antropologia
Claudia Voigt Espínola (UFSC) Dra. em Antropologia Social
Débora Krischke Leitão (UEL) Dra. em Antropologia Social
Delma Pessanha Neves (UFF) Dra. em Antropologia Social / Pós-Doutorado
Dominique Tilkin Gallois (USP) Dra. em Ciência Social (Antropologia Social)
Dorothea Voegeli-Passetti (PUC-SP) Dra. em Ciências Sociais
Esther Jean Langdon (UFSC) Dra. em Antropologia / Pós-Doutorado
Eunice Durham (USP) Dra. em Ciência Social (Antropologia Social) / Livre-Docente
Evelyn Schuler Zea (PPGAS / USP) Dra. em Antropologia Social (Etnologia) / Pós-Doutorado
Fábio Mura (PPGAS / MN / UFRJ) Dr. em Antropologia Social
Francisco Pereira Neto (UFJF) Dr. em Antropologia Social
Gilberto Cardoso Alves Velho (MN / UFRJ) Dr. em Ciências Humanas / Pós-Doutorado
Glória Maria dos Santos Diógenes (UFCE) Dra. em Sociologia
Izabel Missagia de Mattos (PUC-GO) Dra. em Ciências Sociais (Etnologia)
Jorge Coli (UNICAMP) Dr. em Filosofia / Livre-Docente
José Carlos de Souza Rodrigues (PUC-RJ) Dr. em Antropologia / Pós-Doutorado
José Reginaldo Gonçalves (UFRJ) Dr. em Antropologia Cultural / Pós-Doutorado
José Rogério Lopes (Unisinos) Dr. em Ciências Sociais
Karine Pereira Goss (Faculdades Integradas FACVEST) Dra. em Sociologia Política
Lana Lage da Gama Lima (UENF) Dra. em História Social
Lea Carvalho Rodrigues (UFCE) Dra. em Ciências Sociais
Lucia Helena Alves Muller (PUC-RS) Dra. em Antropologia Social
Luciana Hartmann (UFSM) Dra. em Antropologia Social

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


338 | Nominata de pareceristas

Nome Filiação Institucional Titulação


Ludmila Maria Moreira Lima (UNIEURO) Dra. em Antropologia Social
Luiz de Carvalho Assunção (UFRN) Dr. em Ciências Sociais
Luiz Henrique de Toledo (UFSCar) Dr. em Ciência Social (Antropologia Social)
Maria Catarina Chitolina Zanini (UFSM) Dra. em Ciência Social (Antropologia Social) / Pós-Doutorado
María Eloísa Martín (U.San Martín) Dra. em Antropologia Social
Maria Helena Sant’Ana (UFMA) Dra. em Antropologia Social
Marianna M. Monteiro (UNESP) Dra. em Filosofia
Maristela Basso (USP) Dra. em Direito / Livre-Docente
Marta Amoroso (USP) Dra. em Ciência Social (Antropologia Social) / Pós-Doutorado
Miriam Pillar Grossi (UFSC) Dra. em Antropologia Social e Cultural / Pós-Doutorado
Mundicarmo Ferretti (UFMA) Dra. em Ciência Social (Antropologia Social)
Nilton Silva dos Santos (UCAM) Dr. em Antropologia Social
Núbia Bento Rodrigues (UFBA) Dra. em Saúde Pública
Omar Ribeiro Thomaz (UNICAMP) Dr. em Ciência Social (Antropologia Social) / Pós-Doutorado
Ordep José Trindade Serra (UFBA) Dr. em Ciência Social (Antropologia Social)
Orivaldo Lopes Jr. (UFRN) Dr. em Ciências Sociais
Rafael José de Menezes Bastos (UFSC) Dr. em Ciência Social (Antropologia Social) / Pós-Doutorado
Regina Aparecida Polo Müller (UNICAMP) Dr. em Ciência Social (Antropologia Social) / Pós-Doutorado
Reinaldo da Silva Soares (PPGAS / USP) Dr. em Ciência Social (Antropologia Social)
Renato da Silva Queiroz (USP) Dr. em Ciência Social (Antropologia Social) / Livre-Docente
Renato Sztutman (USP) Dr. em Ciência Social (Antropologia Social)
Rogério Gonçalves da Rosa (UFPel) Dr. em Antropologia Social
Rosana Rodrigues Heringer (Action Aid / IUPERJ) Dra. em Sociologia
Sergio Costa (Universidade Livre de Berlim) Dr. em Sociologia / Livre-Docente
Sérgio Freire Garcia (UFMG) Dr. em Comunicação e Semiótica
Sidnei Peres (UFF) Dr. em Ciências Sociais
Suely Kofes (UNICAMP) Dra. em Antropologia Social / Livre-Docente
Tânia Mara Campos de Almeida (UCG) Dra. em Antropologia Social / Pós-Doutorado
Ugo Maia (USP) Dr. em Ciência Social (Antropologia Social)
Valdir Pedde (Feevale) Dr. em Antropologia Social
Vanderlan Francisco da Silva (UERN) Dr. em Ciências Sociais
Wilson José Ferreira de Oliveira (UFPel) Dr. em Antropologia Social
Wilson Trajano Filho (UnB) Dr. em Antropologia / Pós-Doutorado

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 191-200, 2008


números anteriores

Nº 16 (2007) Em Busca de Narrativas Densas: questões acerca de


realidades narrativas, subjetividade e agência social
ARTIGOS E ENSAIOS Anna Catarina Morawska Vianna
A poética do cotidiano missioneiro: etnografia e re-
flexão sobre si mesmo. Compartilhando imagens e ARTES DA VIDA
emoções com os contadores de causos nas Missões Políticas e poéticas da vida urbana: um exercício de
Gaúchas etnografia visual
Flávio Leonel Abreu da Silveira Pedro Jaime Coelho Jr.

O Museu de Folclore Edison Carneiro e a Casa do ENTREVISTA


Pontal: os discursos sobre o folclore e a arte popu- Filme Etnográfico por David MacDougall
lar Edição e tradução: Lilian Sagio Cezar
Patrícia Reinheimer
TRADUÇÕES
Éramos bossa nova hoje somos sin papeles: trans- John Blacking ou uma humanidade sonora e sauda-
nacionalismo, pertencimento e identidade nas re- velmente organizada
presentações dos migrantes latino-americanos e Elizabeth Travassos
brasileiros na Espanha
Rafael Tassi Teixeira Música, cultura e experiência
John Blacking
Glossolalia, iniciação e alteridade no Pentecostalismo
Maurício Ricci Digressão sobre o campo: uma breve apresentação
de “Por uma história da noção de campo”, de Ber-
“Invasão” à Ilha do Medo: o processo de implanta- trand Pulman
ção do turismo e a reação dos autóctones Rachel Rua Baptista Bakke
Emilene Leite de Sousa
Por uma história da noção de campo
Dark Room Aqui: um ritual de escuridão e silêncio Bertrand Pulman
María Elvira Díaz Benítez
DEBATE
Relações Interétnicas, processos de construção da Apresentação
identidade e estratégias etnopolíticas mapuches no Luis Felipe Kojima Hirano
Departamento Los Lagos, Neuquén, Argentina
Sebastián Valverde e Analía García Políticas de inclusão e combate ao racismo: os desa-
fios do debate sobre ações afirmativas no Brasil
Drama Social: Notas sobre um tema de Victor Turner Márcia Lima; Laura Moutinho
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Políticas de ação afirmativa: inclusão no ensino
Antropologia e Visualidade no Contexto Indígena superior
Sílvia Pizzolante Pellegrino Frei David dos Santos; Yvonne Maggie; José Carlos
Miranda; Dojival Vieira

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


340 | Nominata de pareceristas

RESENHAS Tatuagem e autonomia: reflexões sobre a juventude


YAÑEZ, Pablo; MOLINA, Virginia; GONZÁ- Andréa Osório
LES, Oscar. (coord.). Ciudad, pueblos indígenas y
etnicidad A etnografia como categoria de pensamento na an-
Amiel Ernenek Mejía Lara tropologia moderna
Gilmar Rocha
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Dois anos entre
os indígenas – viagens no noroeste do Brasil (1903 Os recursos para ir além e a mecânica do juízo: so-
/ 1905) bre o consumo de substâncias como prática cultural
Deise Lucy Oliveira Montardo jovem nas festas de música eletrônica
Ivan Paolo de Paris Fontanari
DANTAS DE MELO, Fabio José. Os ciganos calon
de Mambaí – a sobrevivência de sua língua A quarta dimensão no trabalho de Trinh T. Minh-ha:
Florencia Ferrari desafios para a antropologia ou aprendendo a falar
perto
FRÚGOLI Jr, Heitor; ANDRADE, Luciana T. de; Jessie Sklair
PEIXOTO, Fernanda A. (orgs.) A cidade e seus
agentes: práticas e representações Por sobre os ombros de um viajante: ensaio sobre o
Margareth Luz movimento, o perspectivismo e o xamanismo na cosmo-
logia Tupinambá a partir da obra de André Thevet
MAUSS, Marcel. Manuel d’ethnographie Daniel Calazans Pierri
João Dal Poz
ARTES DA VIDA
GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures: Alto da Serra
reflected essays Fabiene de M. V. Gama
Claudia Fonseca
ENTREVISTA
INFORME Entrevista com Márcio Goldman e Eduardo Viveiros
Comunidade Virtual de Antropologia de Castro
Aristóteles Barcelos Neto, Danilo Ramos, Maíra
Santi Bühler, Renato Sztutman, Stelio Marras e Va-
léria Macedo
Nº 14/15 (2006)
TRADUÇÕES
Memória de um professor (em três atos) Etnografia e história na Amazônia, por Peter Gow
Celso Azzan Jr. Marta Rosa Amoroso

ARTIGOS E ENSAIOS Da Etnografia à História: “Introdução” e “Conclu-


São Tomé das Letras e Lagoa Santa: mineração, tu- são” de Of Mixed Blood: Kinship and History in Pe-
rismo e risco ao patrimônio histórico e natural ruvian Amazônia
David Ivan Rezende Fleischer Peter Gow

Encontros cartografados: reflexões sobre encontros Dilemas do reconhecimento: apresentação ao artigo


entre meninos e educadores de rua de Nancy Fraser
Julia Frajtag Sauma Heloisa Buarque de Almeida

Cantoria de Pé de Parede: a atualização da cantoria Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da


nordestina em Brasília justiça numa era “pós-socialista”
Patrícia Silva Osório Nancy Fraser

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 191-200, 2008


Núcleo de Antropologia, Performance e Drama | 341

RESENHAS ESPECIAL 15 ANOS


MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo Notas sobre a apropriação de uma etnografia: o caso
Márcio Macedo da Polícia Militar de São Paulo
Piero de Camargo Leirner
COHN, Clarice. Antropologia da criança
Eduardo Dullo O vídeo e o encontro etnográfico
Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz, Edgar Teodo-
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé ro da Cunha, Rose Satiko Hikiji
Luiz Alberto Couceiro
Potencialidades de uma etnografia das ruas do passado
ZARIAS, Alexandre. Negócio Público e Interesses Pri- Fraya Frehse
vados
Taniele Cristina Rui A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos es-
píritos amazônicos
MÍGUEZ, Daniel; SEMÁN, Pablo (orgs.). Entre Eduardo Viveiros de Castro
santos, cumbias y piquetes
Laura Colabella Como terminar uma tese de sociologia: pequeno
diálogo entre um aluno e seu professor (um tanto
BROWN, Michael F. Who Owns Native Culture? socrático)
Joana de Freitas Lins Bruno Latour
HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. A Música e o Risco
Francirosy Campos Barbosa Ferreira Como não terminar uma tese: pequeno diálogo en-
tre o estudante e seus colegas
INFORME Stelio Marras
Comunidades quilombolas e a garantia dos direitos
territoriais: as ações da Comissão Pró-Índio de São
Paulo

Os sumários de todas as edições, os resumos dos artigos publicados, estão disponíveis para consul-
ta em http://revistacadernosdecampo.blogspot.com. O conteúdo completo das últimas edições está
disponível em http://fflch.usp.br/da/cadCampo

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 191-200, 2008


Revista
de
Antropologia
Publicação do Departamento de Antropologia
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo

Fundada por Egon Schaden em 1953


Editor Responsável: Márcio Ferreira da Silva

A Revista de Antropologia tem como objetivo a divulgação e discussão de


temas, resultados de pesquisas e modelos teórico-metodológicos próprios
da Antropologia, em suas diversas áreas e interfaces com disciplinas afins,
a partir de textos inéditos, resenhas e traduções, de forma a proporcionar
aos leitores um panorama sempre atualizado das questões mais relevantes
de seu campo de pesquisa e reflexão no país e no exterior.

Endereço para correspondência /Address for correspondence:


Revista de Antropologia – Departamento de Antropologia – FFLCH/USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – 05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
e-mail: revant@edu.usp.br
Edição eletrônica: http://www.scielo.br/ra
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cd com as revistas esgotadas


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cadernos pagu nos 14 a 19, 21 a 24, 27 a 31
avulsos - R$ 30,00
assinatura 2009 - nos 32 e 33
individual institucional
Brasil R$ 50,00 R$ 60,00
Internacional US$ 50 US$ 100
descontos especiais na compra da coleção
- cheque nominal à Funcamp
- depósito para Funcamp/cadernos pagu
BANESPA ag. 0207 c/c 13-005361-2
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Nº 16 R$ 25,00 R$ 30,00
Nº 14/15 R$ 25,00 R$ 30,00
Nº 13 R$ 15,00 R$ 18,00
Nº 12 R$ 10,00 R$ 14,00
Nº 11 R$ 08,00 R$ 11,00
Nº 10 R$ 08,00 R$ 11,00
Nº 09 R$ 08,00 R$ 11,00
Nº 08 R$ 05,00 R$ 07,00
Nº 07 R$ 05,00 R$ 07,00
Nº 05/06 Esgotado Esgotado
Nº 04 R$ 05,00 R$ 07,00
Nº 03 Esgotado Esgotado
Nº 02 Esgotado Esgotado
Nº 01 Esgotado Esgotado
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Preços válidos até 31/12/2009.

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Banco do Brasil Agência: 3559-9. Conta Poupança 35.621-2 (variação 01). Titular: Enrico Spaggiari
(Informação válida até 31/12/2009).

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Comissão Editorial Revista Cadernos de Campo
Departamento de Antropologia/FFLCH/USP
Av. Professor Luciano Gualberto, 315
São Paulo, SP cep 05508-900
e-mail: cadcampo@usp.br
fax: (11) 3091-3163
Instruções para colaboradores

Objetivo e política editorial Critérios para apresentação de colaborações

Cadernos de Campo – revista dos alunos de pós- 4. A revista aceita periodicamente contribui-
graduação em antropologia social da USP é uma ções nos seguintes formatos: artigos e ensaios,
publicação anual dedicada a divulgar trabalhos traduções, resenhas, entrevistas e produções
que versem sobre temas, resultados de pesquisas estéticas.
e modelos teórico-metodológicos de interesse 4.1. Artigos e ensaios inéditos. Devem indicar
para o debate antropológico contemporâneo e título, resumo entre 100 e 150 palavras e um
que possam contribuir no desenvolvimento de elenco de 5 palavras-chave (separadas por pon-
pesquisas em nível de pós-graduação, no país e to), todos em português e inglês, identificando
no exterior. seu conteúdo. Limite máximo de 30 páginas,
incluídas as referências.
1. A pertinência para publicação das contribui- 4.2. Traduções de trabalhos relevantes e indis-
ções será avaliada pela comissão editorial quan- poníveis em língua portuguesa. Devem apre-
to à adequação ao perfil e à linha editorial da sentar título, nome(s) do(s) autor(es) e do(s)
revista, bem como por dois pareceristas ad hoc tradutor(es). Devem ainda ser acompanhadas
no que toca ao conteúdo e à qualidade dos tra- de cópia do original utilizado na tradução, bem
balhos. A revista publicará preferencialmente como da autorização (do editor e/ou do autor)
trabalhos redigidos em português; todavia, se- para publicação.
rão aceitas contribuições em língua estrangeira 4.3. Resenhas de livros, coletâneas, filmes,
(espanhol, francês e inglês), ficando a publica- documentários, discos etc., editados nos dois
ção nos dois últimos casos sujeita à possibilida- últimos anos a contar da data de publicação da
de de tradução. revista. Devem indicar a referência bibliográfi-
ca do trabalho resenhado. Não devem ultrapas-
2. A remessa espontânea de qualquer colabora- sar 6 páginas.
ção inédita implica automaticamente a cessão 4.4. Entrevistas devem apresentar o(s) nome(s)
de direitos autorais (reprodução/divulgação) à do(s) entrevistado(s) e entrevistador(es). Devem
Cadernos de Campo, assim autorizada à publicá- trazer também uma apresentação de, no máxi-
la. Publicados estes trabalhos, a revista reserva- mo, 1 página. Solicitamos também o envio da
se esses direitos, permitindo, entretanto, a sua autorização do(s) entrevistado(s), concordando
posterior reprodução, mesmo como tradução, com a publicação do trabalho. As entrevistas
desde que citada a devida fonte. não devem exceder 30 páginas.
4.5. Produções estéticas: ensaios fotográficos,
3. Conceitos e opiniões expressos nos trabalhos ilustrações, desenhos, partituras, poemas etc.
publicados são de responsabilidade exclusiva Devem indicar título, em português e inglês, e
dos autores, não refletindo obrigatoriamente a nome(s) do(s) autor(es). Devem trazer também
opinião da comissão editorial. uma apresentação de, no máximo, 1 página.
Tratando-se de imagens, devem vir em preto e
branco, sem extrapolar o limite de 8 imagens,

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


acompanhadas da indicação do autor e do ano. 8. As referências bibliográficas devem vir ao
Legendas são opcionais. O envio do material final do trabalho, depois das notas e listadas
e da apresentação deve ser feito apenas por via em ordem alfabética, obedecendo aos seguintes
digital (CD ou e-mail). Solicitamos também as padrões exemplificados, segundo as normas da
devidas autorizações de uso, incluindo a pos- ABNT NBR 6023 (pede-se atenção à pontua-
sível publicação de uma das fotos na capa da ção, espaços, usos do itálico e de maiúscula):
revista.
8.1. Livros:
5. Os trabalhos (exceto os do item 4.5) devem
ser apresentados em 3 vias impressas, acompa- LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris: Plon,
nhadas de cópia em mídia eletrônica (enviada 1962.
______. O cru e o cozido. Tradução de Beatriz Perrone-
por e-mail ou CD). Devem indicar, em folha
Moisés. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
separada, nome(s) do(s) autor(es), titulação, BATESON, Gregory; MEAD, Margaret. Balinese Cha-
afiliação acadêmica, endereço para correspon- racter. A Photographic Analysis. New York: The New
dência e e-mail. Os textos devem estar digita- York Academy of Sciences, 1942.
dos em página A4, fonte Times New Roman,
corpo 12, espaçamento 1,5 cm, com margens 8.2 Trabalhos em coletâneas:
esquerda/direita 2,5 cm, cabeçalho/rodapé STOCKING JR., George. The Ethnographer’s Magic:
3 cm, em formato Rich Text (.rtf ) ou Word Fieldwork in British Anthropology from Tylor to
Malinowski. In: ______. (Org.). Observers observed
(.doc), compatível com Windows.
– Essays on Ethnographic Fieldwork. Madison: The
University of Wisconsin Press, 1983. p. 70 - 120.
6. Quadros, mapas, tabelas, imagens etc. de- TURNER, Terence. Ethno-ethnohistory: Myth and His-
vem ser enviados em arquivo separado, com tory in Native South American Representations of
indicações claras, ao longo do texto, dos locais Contact with Western Society. In: HILL, J; WRIGTH,
em que devem ser incluídos. No caso das foto- R. (Orgs.). Rethinking History and Myth. Indigenous
South American Perspectives on the Past. Urbana:
grafias, devem estar digitalizadas com resolução
University of Illinois Press, 1988. p. 235-281.
acima de 300dpi, formato TIFF e em p&b.
8.3 Artigos em periódicos (versões impressa
7. As notas devem ser numeradas com algaris-
e eletrônica)
mos arábicos, em ordem crescente e listadas ao GEERTZ, Clifford. Ethos, world view and the analysis of
final do texto, antes das referências bibliográ- sacred symbols. The Antioch review, Yellow Springs, v.
ficas. Menções a autores ou citações presentes 17, n. 4, p. 234-267, 1957.
no corpo do texto devem se adequar aos res- BEVILAQUA, Ciméa. Direitos coletivos: do contrato ao
pectivos modelos: um único autor, (Geertz, status?. Pontourbe: revista do núcleo de antropologia ur-
bana da USP, São Paulo, ano 1, v.1, 2007. Disponível
1957) e (Geertz, 1957, p. 235), e mais de um
em: <http://www.n-a-u.org/pontourbe01/Bevilaqua.
autor, (Hobsbawn; Ranger, 1984) e (Hobsba- html>. Acesso em: 23 mar. 2009.
wn; Ranger, 1984, p. 254). Títulos do mesmo
autor com o mesmo ano de publicação devem 8.4. Teses ou dissertações acadêmicas:
ser identificados com uma letra após a data: DAWSEY, John Cowart. De que riem os bóias-frias? Wal-
(Lévi-Strauss, 1962a) e (Lévi-Strauss, 1962b). ter Benjamin e o teatro épico de Brecht em carrocerias
Citações com mais de 3 linhas devem ser apre- de caminhões. 1999. Tese (Livre-docência) – Faculda-
sentadas em parágrafo próprio. de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universi-
dadede São Paulo, São Paulo, 1999.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-350, 2008


9. Autores(as) que tiverem artigos e ensaios pu-
blicados receberão dois exemplares. Resenhis-
tas e demais colaboradores(as) receberão um
exemplar cada.

10. As contribuições devem ser enviadas para:


Comissão Editorial da Cadernos de Campo
Departamento de Antropologia/FFLCH/USP
Av. Professor Luciano Gualberto, 315
São Paulo, SP - CEP 05508-900
e-mail: cadcampo@usp.br

Para maiores informações, consultar os seguin-


tes endereços eletrônicos:
http://revistacadernosdecampo.blogspot.com
http: //fflch.usp.br/da/cadcampo.html

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IV. MUSICOLOGIA
Um estudo do discurso intercultural, interdisciplinar e intercomunicativo
em cujos termos o estudante competente em ambas as artes busca
produzir resultados válidos tanto para uma quanto para outra. Uma
fenomenologia, uma axiologia e uma teoria histórico-evolutiva podem
servir a ambas.

A. ORIENTAÇÃO SISTEMÁTICA B. ORIENTAÇÃO HISTÓRICA

Processos de música e discurso em espaço-tempo próprios Processos de música e discurso em espaço-tempo gerais

O CONTINUUM BIOCULTURAL O CONTINUUM BIOCULTURAL

Enquanto fato Enquanto valor Música e discurso Seres Huma


Densidade Estética Densidade Semântica dependem, para a sua continuidade, da
para sinais auditivos disponibilidade de matéria-prima para vivê
Tradições, costumes, leis que, em sua maior parte, deve ser primeiro
selecionada e processada (manipulada) de acordo com
tradições particulares desenvolvidas cultural e socialmente
para torná-la (a matéria-prima) adequada para uso

como comunicação, como comida, ab


disciplina e jogo e segura

por
indivíduos que cultivam habilidade em transformar os materiais
manipulados em produtos concretos, muitos dos quais duram
mais que seus produtores e servem

Arbitragem Arbitragem para funcionalizar, para estrut


musical não-musical para os membros de uma sociedade, a cultura, da
os valores de continuidade e variância aos membros de uma socied
da cultura e as suas potencialidades provas materiais dos valore
para elaboração e extensão continuidade e variância da cul

segundo suas habilidades em fazer uso destas provas e potencialidades


a serviço de quaisquer que possam ser as aspirações e o destino do homem.

C. IMPLEMENTAÇÃO VI. O EVENTO BIOCULTURAL (CONTEXTO)


Determinantes Extrínsecos
Registros escritos Organologia Geográfico Institucional Estratigráfico
Registros áudio-visuais Iconografia Famílias Dialetos de Idiomas
Arquivo Paleografia
Publicação Arqueologia Línguas Músicas
Biblioteca Museu Idades Eras Períodos

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