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Um erro que vive

De Gustavo Lemos

Peça escrita durante a Oficina Regular


do Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná,/ Regional Maringá
sob orientação de Marcelo Bourscheid,
no 2º semestre de 2010.
B – Olhar fixo no nada.
Cena 01

A – A alegria do cão que persegue a carroça.

(pausa)

A – O sorriso do cão que persegue a carroça.

(pausa)

A – O sorriso...

(interrompendo. A fala de B aumenta gradativamente)

B – Raiva é uma doença infecciosa que afeta os mamíferos e é causada


por um vírus que se instala e multiplica primeiro nos nervos periféricos e depois no
sistema nervoso central e dali para as glândulas salivares, de onde se multiplica e
propaga. A transmissão dá-se do animal infectado para o sadio através do contato
da saliva por mordedura, lambida em feridas abertas, mucosas ou arranhões.

A – A alegria do cão que persegue a carroça.

B – Afaste-se! Não te criei para ficar no meio disso! Por acaso você veste
trapos? Está sem banho? Por acaso não te dei educação?

A – Você já viu a alegria do cão que persegue a carroça?

B - Senhor, não semeaste tu, no teu campo, boa semente? Por que tem,
então, joio?

A – Vocês veriam o sorriso.


B - E disse: Escreve; porque estas palavras são verdadeiras e fiéis. E disse
mais: Está cumprido. Quem vencer, herdará todas as coisas; Mas, quanto aos
tímidos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos fornicadores,
e aos feiticeiros, e aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua parte será a
segunda morte.

A – Se importa se eu te der um sorriso?

B não responde.

A pega um alicate.
Arranca os dentes, um a um.
Junta-os em forma de sorriso e entrega à B.

A - O que vai fazer com ele?

B não se mexe.
Cena 02

A está ajoelhado desenhando corações no chão de areia

A - Eu engoli um ralo.

B – É fome.

A – É medo.

B – De quê?

A – Eu toco o tempo.

B – Eu não tenho tempo.

A – Eu não quero o seu tempo! (sussurrando) Construí um castelo de vento,


com vidraças e torre. Eu construí um templo em que a bailarina dança e o
trompetista simplesmente ouve. Eu construí a verdade...

B – ...a verdade e a vida, ninguém vem ao pai senão...

A - E a bailarina? E o trompetista?

B – O nome deles não está na lista.

(pausa)

A –...mas ela matou o trompetista e agora dança no escuro. Ela chora


enquanto dança e em cada dança revive a morte da melodia que ouvia - gritos e
gemidos - não tem mais plateia, não tem mais aplausos, não tem mais sentido.
Dança com a sutileza de uma garça. Não vê seus passos e suas mãos, não vê o
espaço e morre no templo que eu mesmo construí.

B – Você precisa de ajuda.

A – Eu engoli a bailarina. E o ralo.

A volta a desenhar no chão de areia

B - Reze quatro vezes ao dia. Ao levantar, quando comer, ao entardecer e


antes de repousar. Quando estiver no batente, não se distraia: o esforço dignifica
o homem e somente com equilíbrio espiritual que corpo e mente entrarão em
harmonia.

A - Profecias.

B - (riso descontrolado)

A - Profecias sim olhe! Profecias de cegos escritas na parede do templo.


Profecias de um tempo são profecias de nuvem, de chão e de vento. São
profecias de pessoas tristes que dançam como a bailarina. Profecias cegas de um
monstro nas paredes do templo, desenhadas com carinho.

B - Sozinho?

A - Caminho. As paredes do templo. Palavra.

B – Monstro.

(pausa)
A - Falo como fala quem não se ouve. Ando como anda quem não é visto.
Mordo com o sorriso prometido e transo com o silêncio de um papelão que mofa,
de uma solidão que estanca. Eu brinco com a flor que nasce em minha testa e
rego placas que me advertiam. E me divirto. Não estou no reflexo das vitrines; não
estou na lista de pagamento; na lista de promessas. Do lado de fora da catedral
sonho com um campo repleto de flores, com cores e promessas pagas com beijo.
Eu construí um templo e posso tocar o tempo. Nas paredes desse templo o
monstro desenha com carinho de mãe.

A leva a mão à boca devagar.


A mão tapa sua boca por inteiro.
Grita desesperadamente.
Cena 03

Os dois estão sentados e têm água até a canela. A está corcunda.

A–

B – Carrega nos ombros o fardo da sua incompetência.

A–

B – Me desculpem, por favor. (sussurrando) É um perturbado.


Cena 04

A vasculha o chão, está corcunda e suas mãos atrofiadas.

A – Verdade, aqui você está?

(pausa)

A – Canta para mim?

(pausa)

B – Não perca seu tempo.

A – Tempo dura quanto?

B – O suficiente.

A – Pra encontrar?

B – Para ser realista.

A – Sou felicista, sorrisista. Sou o que mais de ista rimar com beijo.

B – Não te suporto.
.
A – E eu amo

(silêncio)

A – Tempo dura quanto?


B – Eternamente.

A – Eternamente?

B – Eternamente.

A – Eternamente?

B – Eternamente.

A – Eternamente sem verdade, eterna é a mente sem verdade, é terna a


mente sem verdade, é ter na mente cem verdades. A semente o sol e a verdade.

A alcança uma faca de açougueiro.

B - As apólices de seguro de vida, especialmente no seguro de acidentes


pessoais excluem, expressamente, de cobertura os eventos decorrentes de
suicídio ou tentativa de suicídio, voluntário ou involuntário do segurado.

A – Flor importa se eu te der?

(B não responde)

A vê sua mão desabrochar devagar como uma margarida.


Por alguns segundos admira a beleza daquela flor.
Com a faca separa braço e antebraço na altura do cotovelo e entrega à B.

A – Fazer o que vai com ela?

(B não se mexe)
Cena 05

A está corcunda, ligamentos atrofiados e movimentos rígidos.

A – Do alto de uma fome explode a flor de dez espinhos com um sorriso de


diamante que não lhe sobra nenhum medo. E dessa flor de dez sementes surge
um brilho em passarinho com medo de céu, de mar, de poeira. Um medo que o
templo não suporta, não suprime e não venera. É desse medo que surge a
impossível chance: um erro. Um erro que vive. Vive e sorri por detrás da covardia.
O medo da flor é o sorriso do erro covarde.

B – Não é por você que eu faço isso.

A – Se te admiras não coçar com sete dedos: você fede e chora como todo
mundo. E desse mundo de todo é que a flor, o sorriso e o medo se vingam:
durante a noite.

B – Não é por você que eu faço isso!

A - (sussurrando) Me enviaram um total de três ideias: crer, produzir,


ostentar e morrer. São três porque de quatro sobra a muda. A singularidade da
mudinha. A mudinha tão disforme que caminha sobre a pedra e encerra o início de
todas as outras. Mas a flor nunca me disse que das três a quarta fosse a mais
simpática. E quando me enviaram a quinta, entendi como entende quem se
explica: as ideias não são minhas.

B – Se pagasse o que eu pago não seria tão liberto. A pena que não nego é
o suor que te sustenta.

A – Estamos todos presos do lado de fora de um abraço.


B – Porque não te levanta e te alimenta? Porque não te corrige? Não
precisa ser assim, você sabe.

A – Porque da dúvida vem o peso e a tormenta vomitando palavras de


outras bocas num sentimento de educado. Por que se não houve quem as disse,
negaria também a morte que nasce todas as outras ideias – (sussurrando) que
nascem de uma flor, lembrem-se. As paredes do templo senhoras já não são, não
carregam suas saias pelos degraus de uma verdade absoluta, (declamando) Por
que dos ventos se ouve a mais fina poesia: aquela não escutada e nunca vista.
Aquela feita por mortos para os cegos de olhos e os surdos de ouvidos: a profecia
do sorriso.

B – E disse: quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá.

A – E de viver cansou a poesia. O poeta do tempo agora escuta, como


escutava o trompetista.

(silêncio)
Cena 06

A está corcunda. Ligamentos atrofiados. Músculos enrijecidos. Quase não


tem movimentos e fala com dificuldade.

A – Olha, Mariadivina Salvadora Quedança aceitou Jãosanto Pobreza


Queouve em eternidade. Leram sentenças do nunca vivo pra acordar a morte do
pecado feliz. Vão cantar verdade em três ideias repetindo o que. Um novo
caminho já feito pela carroça e pelo cão sorrindo.

B toma-o nos braços.

A – Não deixa ir para. Não deixa. Não.

Chove devagar.

A – Choram a morte da flor de. Cumprimentada em lágrimas por um ser de


nunca. Singela profecia muda da ideia quarta. Porque o nunca desse tempo já não
há. Medo de sor-ri-sos (risos).

B – Não chora.

(soluça)

B - Não chora.

(soluça)

B – Meu bebê.

Escuro.

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