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A estrutura da transferência

na psicanálise com crianças


Myriam R. Fernández

O
trabalho que ora apresentamos se desenvolveu durante três encontros,
como parte do seminário de Psicanálise com crianças, que teve como tema
inicial, a transferência.
Dividimos o assunto em três subtítulos, cujos temas foram apresentados, um a
um, em nossos encontros.

I. O Sujeito em Análise e as Entrevistas Preliminares


na Psicanálise com Crianças

"No início da psicanálise está a transferência. Está lá graças ao psicanalisante",


diz Lacan na Proposição de 9 de outubro de 1967.
Na psicanálise com crianças não é diferente. No início de uma análise com
criança, também está a transferência.
E quem está em análise? Sempre, em análise, está o sujeito do inconsciente,
sujeito dividido e sintomático, cujo nascimento se dá pela entrada na ordem
simbólica da linguagem. Foi o que Freud nos mostrou exemplarmente, em Além
do Princípio do Prazer, com o fort da, o par opositivo de significantes.
Na psicanálise com crianças, não é outro o sujeito que está em análise — é
também o sujeito do inconsciente, sintomático na medida em que fala, representado
por um significante para outro significante. É, pois, o sujeito que pode trabalhar
em análise, e o campo deste trabalho, nós o sabemos, é a transferência. Aliás,
podemos dizer que uma análise é o trabalho da transferência.
Se, entretanto, a transferência está no começo da análise, sabemos que uma
análise e, logo, a transferência, não se iniciam com a chegada do paciente ao
consultório. Há um tempo — tempo que é lógico, na medida em que se trata da
temporalidade do inconsciente—há um tempo para que a transferência se instaure.

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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças

Isto acontece também na psicanálise com crianças que é, da mesma forma que com
o adulto, trabalho da transferência. Em se tratando de crianças, porém, há di-
ferenças em relação à análise com adultos e, portanto, em relação à transferência.
Um adulto, bem ou mal, busca análise. Uma criança é levada à análise—a demanda
inicial vem dos pais. Esta diferença é fundamental, inclusive no que se refere a este
tempo prévio à consolidação da transferência.
Falar de tempo prévio, preliminar ao início do trabalho analítico, é falar das
entrevistas preliminares. Em 1971,0 saber do psicanalista, dizia Lacan: "não há
entrada possível em análise sem entrevistas preliminares". Como pensar esta frase
de Lacan e pensá-la também em termos da psicanálise com crianças?
Em primeiro lugar, se é pela via do desejo que um sujeito chega à análise,
sabemos também que é pelo fato de estar sofrendo que ele busca análise. E o que
p faz sofrer, senão seu sintoma? Acontece que este mesmo sintoma que o faz sofrer
é sentido como um corpo estranho, como um sofrimento que lhe é infligido de fora,
por um outro, seja ele quem for. Assim, tal sofrimento poderia ser-lhe também
extirpado por um outro — sempre pequeno outro — que, no caso, seria o analista.
A expectativa é, pois, de uma relação dual, imaginária, deixando-nos perceber
claramente que este sintoma nada tem ainda de analítico, uma vez que o sujeito
não se reconhece no mesmo.
O sintoma a ser escutado em análise é aquele que tem valor de mensagem —
"o sujeito recebe a sua própria mensagem, sob a forma invertida, do campo do
Outro", diz-nos Lacan. Para que um sintoma tenha valor de mensagem a ser
decifrada será preciso, antes de mais nada, que o sujeito nele se reconheça, que
nele se sinta implicado. Só então poderá o sintoma se constituir em verdadeira
demanda que, ao ser dirigida ao campo do Outro, no qual inicialmente se situa o
analista, retornará ao sujeito sob a forma de uma pergunta. O sujeito se questiona,
então, sobre o seu sintoma (Por que faço isso? Por que sinto isso? Sou normal?),
sobre o que ele é (Quem sou eu?), sobre o que o Outro quer — é o Che Vuoi? —
testemunha da divisão do sujeito e de sua alienação fundamental ao desejo do
Outro, na medida em que, ao questionar o desejo do Outro, é sobre o seu próprio
desejo que se interroga.
Este é o momento da demanda de análise, em que o analista é posto no lugar
do sujeito suposto saber, do saber suposto como podendo responder a pergunta do
sujeito. O analista sustenta a função de sujeito suposto saber, embora sabendo que
não tem o saber que lhe é demandado. Não se deixando enganar, sustenta o engano,
possibilitando assim & fixação da transferência. Sustentar o engano, porém, não

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significa enganar nem se enganar. Logo virá o desengano ... Ao demandar ao


analista que responda, sem obter tal resposta, só resta ao analisante a via da
associação livre, isto é, só lhe resta trabalhar para que se elabore o saber que
responda à pergunta do sujeito. É, já então, o desejo que se põe a caminho ... O
analista é, de certa forma, deslocado deste lugar de sujeito suposto saber, e sua
função será a de causar o trabalho em análise. O sujeito suposto saber—que não
é um nem outro — será o único sujeito em análise, sujeito desse saber suposto a
elaborar, e que permite que a análise aconteça. É o trabalho da transferência que
já está em jogo. Terminou o tempo preliminar.
Vemos, então, que as entrevistas preliminares foram o tempo necessário à
emergência da transferência, e a sua consolidação como campo do trabalho
analítico.
De início disséramos que este tempo é lógico, como toda temporalidade do
inconsciente. Isso significa dizer que o real, o encontro com o real — a tiquê —
está aí neste tempo preliminar, e que o preliminar de uma análise, como diz Eduardo
Vidal, é justamente o encontro com um ponto de tiquê, que é tanto para o analista
como para o paciente. Daí falarmos em emergência da transferência, emergência
de um significante que seja o significante da transferência, a partir do qual pode
começar o trabalho de análise. Algo que emerge é algo que irrompe, algo que não
se sabia e que só depois desta irrupção, num a posteriori simbólico, pode ser
significado. O não se sábia tira o analista do lugar do sujeito suposto saber. O
significante da transferência é o algo que não se sabia. A tiquê estaria, pois, neste
não se sabia.
Nas entrevistas preliminares, portanto, as coisas não se passam de forma simples
e linear como, num primeiro momento, podem parecer. Quando há tiquê, não há
simplicidade—há é a surpresa, o espanto.
Só depois, então, poderemos definir o antes que corresponde às entrevistas
preliminares e defini-lo como lugar de um encontro com o incalculável.
As entrevistas preliminares são, pois, a condição de toda análise, seja com
adultos ou com crianças. Como já dissemos, se a psicanálise é uma só, temos que
considerar as diferenças quando se trata da análise com crianças. Nesta, a demanda
inicial é dos pais. É esta demanda que faz com que nos tragam o filho. Isso vai
supor também a questão da transferência dos pais. Aí estão dois aspectos funda-
mentais — demanda e transferência — que apontam para a importância das
entrevistas preliminares, não só com a criança, mas também com os pais.

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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças

De que demanda e de que transferência se trata no que diz respeito aos pais?
Quanto à demanda, não se trata, é claro, da demanda em que o sintoma se
constitui e que, ao se dirigir ao campo do Outro, retorna ao sujeito como pergunta
sobre o seu desejo. Pergunta que, ao ser relançada ao analista e ficando sem
resposta, permitira o surgimento do desejo. Esta é a demanda na qual o desejo
alienado se articula e que, só em análise, pode ser escutada. É a demanda que o
sujeito, adulto ou criança, terá que formular. A demanda dos pais, é, pois, outra
coisa. A questão é escutar de que ordem ela é, já que se trata de uma demanda para
a análise de outro sujeito — o filho.
No que se refere à transferência dos pais, não podemos vê-la como a trans-
ferência que é escrita no materna, no qual o significante da transferência é o agente
da instauração transferenciai e de um primeiro surgimento do sujeito. Esta é
reservada apenas e justamente ao sujeito que surge para a análise e que, no caso,
é revestido pelo corpo da criança. Algo há, porém, de transferência, em se tratando
dos pais, pois, de outra forma, seria praticamente impossível a análise com a
criança. Talvez possamos falar, em relação aos pais, numa transferência afetiva,
mas considerando sempre que afeto, em Lacan, não tem nada a ver com sentimento
e sim com um corpo que é afetado pelo significante. Este significante poderia ser,
num primeiro momento, "psicanálise", depois o nome do analista, em relação ao
qual haverá uma certa suposição de saber, sem, no entanto, haver a instituição do
sujeito suposto saber. No caso dos pais, no que diz respeito à transferência, faltaria
sobretudo o próprio significante da transferência, uma vez que não haveria o sujeito
sintomático, aquele que é representado por seu sintoma enquanto significante e
que, como tal, dirige-se ao analista para ser escutado.
Assim, as entrevistas preliminares com os pais são fundamentais, também no
sentido de que permitem que apareça ou não a transferência afetiva com a
psicanálise, substituindo-se esta por um particular analista qualquer—aquele que
tem um nome que o marca e que poderá vir a ser o analista de seu filho. Seja como
for, a transferência dos pais fica mais como vínculo intersubjetivo e, portanto, no
nível imaginário.
Foi Lacan que atraiu a atenção sobre a importância das entrevistas preliminares,
já um tanto tardiamente, em O saber do psicanalista, no qual faz a teorização sobre
as mesmas. É, pois, na clínica lacaniana que elas adquirem uma importância
específica.
Na clínica kleiniana não há entrevistas preliminares como tempo de instauração
da transferência, o que fica explicado quando M. Klein diz textualmente que, nas

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crianças, a transferência é imediata. Claro está que se trata de uma transferência


puramente imaginária.
Já Anna Freud considerava a necessidade de um tempo prévio, mas que é de
preparação da criança para a análise. Trata-se, portanto, de um preliminar peda-
gógico.
Mannoni e Dolto falam da importância de um período prévio à análise. Buscam
ver o que há de significativo no discurso dos pais e o lugar que a criança ocupa no
fantasma dos mesmos, principalmente da mãe — o que, aliás, é outra função
importante das entrevistas preliminares com os pais. Ambas, porém, consideram
a criança como um sintoma do conflito dos pais. Acontece que a criança, com seu
sintoma, não é só a expressão do conflito parental. Quanto à transferência, Mannoni
fala na questão da transferência múltipla e Dolto diz textualmente: "a transferência
é a relação imaginária, ao mesmo tempo consciente e inconsciente..."
Vemos, então, que é apenas em Lacan, com a sua clínica do real, que as
entrevistas preliminares têm um lugar teoricamente bem definido. Aliás, há muitas
análises de crianças que ficam apenas no preliminar das entrevistas.

II. A Estrutura da Transferência

Vimos já a importância fundamental das entrevistas preliminares, como tempo


necessário à emergência da transferência e a sua consolidação como campo do
trabalho analítico. Perguntamo-nos agora: afinal, o que é a transferência? Qual a
sua estrutura? É o tema que hoje tomaremos, ainda que de maneira breve, sempre
considerando que a transferência, em termos estruturais, é uma só, seja na análise
com adultos ou na análise com crianças. As diferenças existem, como sabemos,
mas elas se prendem à forma de instauração, de consolidação, de manejo da
transferência e não à sua estrutura.
Quando nos colocamos a pergunta sobre o que é a transferência, de imediato
nos vem uma primeira resposta: a transferência é amor. A sua estrutura é, pois, a
do amor que implica o desejo que se articula na demanda. Vamos porém, devagar...
Ao dizermos que a transferência é amor, nada mais fazemos que nos afirmar,
com Lacan, no campo freudiano. Em Observações sobre o amor transferenciai,
Freud diz textualmente: "A resistência não cria esse amor, encontra-o pronto, à
mão..." E mais adiante, no mesmo texto: "o amor transferenciai é provocado pela
situação analítica".

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Que "a transferência pode se definir como amor" é também o que diz Lacan no
Seminário VIII, onde vamos ouvi-lo dizer ainda: "o problema do amor nos
interessa, na medida em que vai nos permitir entender o que ocorre na transferência,
e diria, até um certo ponto, na causa da transferência". O amor está pois, na causa
da transferência, na causa deste "fenômeno em que estão incluídos juntos o sujeito
e o psicanalista", como coloca também Lacan, em 1964, no Seminário XI. "É —
continua ele—um fenômeno essencial ligado ao desejo como fenômeno nodal do
ser humano e que foi perfeitamente articulado no Banquete, de Platão—um texto
em que se debate sobre o amor". Diz ainda Lacan que "o momento essencial, inicial,
ao qual se deve reportar a questão que temos que nos colocar, da ação do analista,
é aquele em que é dito que Sócrates jamais pretendeu nada saber, senão o que diz
respeito a Eros, quer dizer, o desejo... Platão não pode fazer mais que nos indicar
o lugar da transferência".
Vemos, então, claramente apontado por Lacan que o lugar da transferência é o
amor e que, em um texto em que Platão estabelece um debate sobre o amor, o de
que se trata é também do desejo. "Sócrates pretende não saber nada, salvo saber
reconhecer o que é o amor (o Eros), quer dizer—afirma Lacan—o desejo". Iguala,
assim, o amor ao desejo, na medida em que o percurso de um é o percurso do outro,
na busca de algo que nunca vai se completar. "Na análise—diz Lacan—o sujeito
vai em busca do que tem e que não conhece, o que vai encontrar é isso que lhe
Salta". E ainda:wé nesse tempo, nessa eclosão do amor de transferência que deve-se
ler esta inversão de posição que, desde a busca de um bem, faz a realização do
desejo". Entendamos aqui realização do desejo como "emergência à realidade do
desejo como tal". A pergunta de Sócrates a Agatão é: "pode alguém desejar o que
já tem?"
Temos já agora um pouco mais de clareza quanto ao que significa dizer que a
estrutura da transferência é a do amor e a do desejo, que apontam para a falta e,
portanto, para o objeto. Vejamos, então, qual é afinal, esta estrutura.
Quando Lacan toma o Banquete — um texto de discursos—para aí mostrar a
estrutura do amor de transferência, podemos pensar que não é por acaso: falar de
discurso é falar do simbólico. De saída, pois, Lacan está colocando o amor de
transferência dentro de uma estrutura simbólica e que, como tal, obedece às
mesmas leis que regem a linguagem—a metáfora ea metonímia. Estas são também
as leis segundo as quais trabalha o inconsciente, na medida em que é estruturado
como uma linguagem, isto é, formado por significantes que trabalham. A trans-

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ferência, então, só pode ser transferência de significantes — significantes que


formam o saber não sabido do inconsciente — e nunca de sentimentos.
Dizer, porém, que o amor tem uma estrutura simbólica, não exclui que ele tenha
também uma vertente imaginária e uma outra real. São estas três vertentes do amor
que Lacan aponta na análise que faz do Banquete, no Seminário da Transferência.
Afirmando a estrutura simbólica do amor, diz Lacan no mesmo seminário: "...
do que se trata é que justamente o amor como significante (...) é uma metáfora, na
medida em que a metáfora a aprendemos a articular como substituição ...". É
justamente a metáfora do amor que Lacan nos dá em seguida, ao colocar que "a
significação do amor se produz quando a função do erastés, do amante (podemos
ler — desejante), como sujeito da falta, vem do lugar, se substitui à função do
eromenós que é objeto, objeto amado". Lacan diz ainda que "entre estes dois termos
que constituem em sua essência o amante e o amado, não há nenhuma coincidência
— o que falta a um não é o que está escondido no outro. E aí está todo o problema
do amor". Podemos, então, dizer que do que se trata é da falta, que está tanto no
amante como no amado.
É justamente a função da falta como constitutiva da relação de amor que Lacan
assinala no discurso de Sócrates, quando este pergunta a Agatão: "este amor do
qual falas, é ou não amor de alguma coisa, é tê-lo ou não tê-lo? Pode alguém desejar
o que já tem?" E pouco depois Sócrates dá lugar a Diótima no discurso sobre o
amor.
Diótima, enquanto mulher e, portanto, enquanto lugar da falta, sabe do amor e
nos introduz no mito do nascimento do amor. É pontuando esta passagem que
Lacan vai colocar a sua célebre fórmula: "amar é dar o que não se tem — é dar
uma falta". E continua mais adiante: "o amor não pode ser articulado senão ao
redor dessa falta pelo fato de que, no que deseja, só pode haver falta". Podemos já
aqui pensar na questão do objeto do desejo, enquanto objeto a perdido e que, como
tal, é sempre faltante.
Apesar de estarmos falando da estrutura do amor de transferência como sim-
bólica, o que vai definitivamente confirmá-la como tal, na análise que Sócrates faz
do Banquete, é a presença de três personagens: Agatão, Sócrates e Alcibíades. É
o momento em que Lacan diz: "há que ser três e não apenas dois para amar",
marcando a estrutura ternária da transferência, enquanto relação do sujeito ao
grande Outro. Não se trata, pois, de uma relação dual imaginária de outro a outro.
Aí está presente o grande Outro da linguagem, a partir do qual o sujeito recebe a
sua própria mensagem sob a forma invertida.

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É este também o momento em que Lacan compara o lugar de Sócrates ao lugar


do analista, na medida em que, ao ouvir o discurso que Alcibíades lhe dirige,
Sócrates o desvia para Agatão, dizendo: "Tudo o que acabas de dizer de tão
extraordinário falando de mim, é para Agatão que o disseste".
"Estruturalmente — diz Lacan — a intervenção de Sócrates tem todas as
características de uma interpretação". É porque sabe sobre o desejo que Sócrates
pode agir, neste momento, como analista, permitindo que o desejo de Alcibíades
siga seu caminho.
"Há agalmas em Sócrates e isto foi o que provocou o amor de Alcibíades", diz
Lacan no Seminário da Transferência, e no Seminário XI acrescenta: "Alcibíades
vem pedir a Sócrates algo que não sabe o que é, mas que chama de agalma". É,
pois, este agalma que constitui o objeto do desejo de Alcibíades e que Sócrates
sabe que lhe falta, assim como falta a Alcibíades — não lhe pode dar porque nada
tem para dar. "É porque Sócrates sabe que ele não ama".
Não podendo conseguir de Sócrates o objeto de seu desejo, Alcibíades tenta
seduzi-lo, oferecendo-se como objeto amado, como eromenon. Como diz Lacan
no Seminário XI, "amar é essencialmente querer ser amado". É o amor em sua
função de tapeação, mostrando a sua face de resistência, que o analista não pode
desconhecer. E é por não desconhecê-la que se nega a responder a demanda,
permitindo que, da posição de objeto a ser amado, o paciente passe à posição de
amante, isto é, de sujeito desejante.
Não nos esqueçamos, no que diz respeito à criança, que sua posição já é de
agalma — objeto a ser amado — o que tem a ver com o lugar que ela ocupa rio
fantasma da mãe. A substituição se daria, pois, no sentido de que pudesse, desta
posição passiva de objeto no fantasma da mãe, passar a ser, ela mesma, mais livre
para cuidar do seu próprio desejo.
Podemos perceber que a dialética da transferência é também a dialética do desejo
que se articula na demanda, que é da ordem da linguagem. Falar é demandar. A
demanda do sujeito se constitui a partir da demanda do Outro da linguagem, e o
desejo é aquilo pelo qual o sujeito se situa em relação à demanda do Outro (sendo
a mãe o primeiro Outro). A demanda é, pois, condição de desejo. O sujeito está
sujeitado à demanda do Outro e é pela via do desejo que pode sair dessa sujeição.
A única forma, porém, pela qual seu desejo pode surgir é pela não resposta do
Outro à sua demanda.
É aí que surge a dimensão da ação do analista, orientada pelo desejo do analista.
Ao não responder à demanda do sujeito, faz aparecer o desejo, permitindo que,
pela associação livre, se realize o trabalho da transferência. Este trabalho vai ter,

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então, como causa, o desejo do analista, que deve ser apenas, e nada mais, o de ser
causa do desejo.

III. O Significante da Transferência


Iniciemos agora, relembrando alguns pontos essenciais do que já vimos a
respeito da transferência. Repetimos, então, que uma análise é o trabalho da
transferência e que a função do analista, orientada pelo desejo do analista, é causar
este trabalho.
Vimos que a estrutura da transferência é simbólica, isto é, uma estrutura ternária
enquanto relação do sujeito ao grande Outro da linguagem. Não se trata, pois, de
uma relação intersubjetiva. Ao contrário, como vai dizer Lacan na Proposição de
9 de Outubro de 1967, "a transferência é, em si mesma, uma objeção à inter-
subjetividade". Trata-se, já o sabemos, de uma relação que se estrutura em torno
da falta, uma vez que o objeto é desde sempre perdido. Lembremo-nos de que o
agalma que Alcibíades vem pedir a Sócrates—este misterioso objeto de seu desejo
— Sócrates não lhe pode dar porque lhe falta, assim como falta a Alcibíades;
Sócrates sabe que nada tem para dar. "É porque sabe que ele não ama", afirma
Lacan.
É esta também a posição do analista. Se há algo a respeito de que o analista tem
que saber, este algo é a falta. Não é este, porém,, o saber que lhe é suposto por
aquele que o procura. Como diz Lacan no Seminário VIU, "do analista se vem
buscar a ciência do que se tem de mais íntimo (...). Esta ciência ele é suposto tê-la".
O sujeito, portanto, entra em análise numa posição de engano absoluto, deman-
dando ao analista um saber que este não tem. É o que penso podermos matematizar
com o discurso da histérica ( f- §*) em que o sujeito (S) demanda ao analista, que
ele coloca na posição de significante mestre (Si), um saber (S2) que, na verdade,
é ele mesmo que tem, mas que não sabe que tem (um saber sobre o objeto a falante,
sobre aquilo que ele é no desejo do Outro). Este é o engano que, por algum tempo,
o analista sustenta, mas sem enganar nem deixar-se enganar, possibilitando assim
a fixação da transferência. Como já dissemos, logo porém, virá o desengano, uma
vez que o analista, da sua posição de semblante de objeto a (e aqui é bom escrever
o materna do discurso do analista, §-2 |j), só pode responder com a falta de resposta
à demanda do sujeito, falta esta que permitirá que o desejo se ponha a caminho e
que se elabore o saber que responda à pergunta do sujeito.
Já estamos aqui falando do sujeito suposto saber (Ss S2), que Lacan vem
primeiramente formular em 1964, no Seminário XI, dizendo: "o sujeito suposto

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saber, na análise, é o analista" e "desde que haja S s S2 há transferência". Alguns


anos depois, na Proposição de 9 de outubro, continuando sua formulação sobre a
transferência, que desembocará no materna do significante da transferência, Lacan
irá dizer: "O sujeito suposto saber é, para nós, o pivô no qual se articula tudo o que
se relaciona com a transferência".
É importante marcarmos, porém, que dizer que o sujeito suposto saber, na
análise, é o analista, nada tem a ver com o analista enquanto pessoa, nem mesmo
enquanto sujeito, e sim com o analista enquanto função de causa. Tem a ver, pois
com aquilo a que Lacan se refere no Seminário XI, dizendo: "esse ponto pivô, em
torno do qual o movimento gira, é o que eu designo pelo nome de desejo do
analista". Ainda no mesmo seminário, continua Lacan: "Enquanto o analista é
suposto saber, ele é suposto saber também partir ao encontro do desejo in-
consciente. É por isso que eu digo que o desejo é o eixo, o pivô, o cabo, o martelo,
graças ao qual se aplica o elemento-força que há por trás do que se formula primeiro
no discurso do paciente como demanda, isto é, a transferência. O eixo, o ponto
comum desse duplo machado é o desejo do analista, que eu designo aqui como
uma função essencial (...) esse desejo (...) é precisamente um ponto que só é
articulável pela relação de desejo a desejo".
Vemos, assim, que se sujeito suposto saber e desejo do analista estão no mesmo
lugar, neste ponto de articulação de desejo a desejo, então o Ss S2 será o único
sujeito em análise, sujeito desse saber suposto a elaborar. A elaboração desse saber
será o trabalho da análise, isto é, trabalho da transferência, a ser realizado pela via
da associação livre, que supõe que o inconsciente é um saber (S2) — trata-se do
saber não sabido do inconsciente.
É importante, em relação ao inconsciente, poder fazer a distinção entre saber do
inconsciente (S2) e sujeito suposto saber (Ss S2). Se o inconsciente é um saber (S2),
não é, porém, o sujeito suposto saber (Ss S2). Tanto assim que quando Lacan
escreve os discursos, em todos o saber (S2), e o sujeito (S) são escritos como
opostos, são separados. No final da análise isto fica bem claro, pois, se o fim da
análise é também o fim do Ss S2, não é, entretanto, o fim do inconsciente, ou seja,
do saber não sabido (S2). O inconsciente não se esgota.
Estamos, já há algum tempo, falando do sujeito suposto saber, e nos parece que
é hora de nos perguntarmos: sujeito suposto por quem? Não pode ser por outro
sujeito. Como diz Lacan na Proposição—"um sujeito não supõe nada, é suposto"
e "suposto pelo significante que o representa para outro significante".

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Se o analista tem a hipótese de um saber inconsciente do lado do analisante e,


por isso, o faz falar, o analisante, por sua vez, supõe um saber ao analista. E do
lado do analista, pois que fica o Ss S2. Trata-se, no entanto, de um saber sem sujeito,
na medida em que o único sujeito em análise, voltamos a repetir, será o desse saber
suposto, ainda a elaborar.
Lacan nos dá, então, na sua Proposição, a escritura do "suposto desse sujeito,
colocando — como diz — o saber em seu lugar de adjacência da suposição".
Temos, então, o materna da transferência, que é a escrita do significante da
transferência.

Sq
s (Si, S 2 ... Sn)
Sendo:
S — significante que representa o sujeito
S q — significante qualquer, frente ao qual o sujeito é represen-
tado sobre a barra
s (Si, S2... Sn) — saber não sabido do inconsciente (S2), formado pela cadeia
de significantes articulados.
Na primeira linha está o significante (S) da transferência que representa o sujeito
para outro significante; neste caso o significante qualquer (Sq). O sujeito é
representado por seu sintoma enquanto significante, que se dirige a um particular
analista qualquer. O analista é, pois, colocado no lugar do significante qualquer
(Sq), mas que, sendo qualquer, supõe uma particularidade do lado do analista e da
análise. O paciente diz: "meu analista".
Na Proposição, Lacan se refere a esta particularidade "no sentido de Aristóteles",
ou seja, da lógica aristotélica que implica a lógica de classe. Se se diz — "meu
analista", "um analista"—é porque há constituída a classe dos analistas.
Nesta primeira linha do materna da transferência, vemos bem precisado o caráter
binário do significante, uma vez que não há um significante sem outro significante.
A respeito da segunda linha, diz Lacan: "sob a barra, o s representa o sujeito,
implicando no parêntese o saber, suposto presente, dos significantes no incons-
ciente, significação que ocupa o lugar do referente ainda latente nesta relação
terceira que o junta ao par significante/significado".
Tentemos ler o que está sendo dito. Em primeiro lugar, o sujeito, para Lacan,
não é uma subjetividade e, pela formulação que faz do sujeito suposto saber,
podemos dizer que o sujeito é só a suposição de trabalho inconsciente. O sujeito é

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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças

escrito no lugar do significado em sua relação ao significante (S) e, enquanto


significado, é representado por seu sintoma endereçado ao analista. No parêntese
temos o saber (S2) suposto presente dos significantes no inconsciente. Esse saber,
na verdade, é suposição do significante primeiro (Si), pois o segundo significante
(S2) não supõe nada.
O saber suposto é a significação que ocupa o lugar do referente ainda latente,
em sua relação terceira que o junta à dupla significante-significado. Teremos que
ver depois que referente é este que, no momento, é ainda apenas latente.
Vejamos, então, na escrita do materna, como fica o saber nessa relação terceira
ao par significante-significado.

s S2 (saber) referente latente (significação)

O saber inconsciente é então uma significação e esta se produz como terceiro


termo entre significante e significado, quando um primeiro significante (Si) se
articula a um segundo significante (S2) que vem dar significação ao primeiro. Por
trás dessa significação está o saber escondido que a produz. O saber inconsciente
se manifesta, então, como significação. É preciso o deciframento para que apareça
como saber e isto se compreende a partir da metáfora. O efeito de significação se
produz por metáfora, em que há a substituição de um significante por outro.
Lembremo-nos da metáfora do amor, em que "a significação do amor se produz
quando a função do erastés, do amante (isto é, desejante), como sujeito da falta,
vem no lugar, substitui-se à função do objeto, objeto amado".
Lacan diz, porém, que "a significação ocupa o lugar do referente ainda latente"
e temos que pensar o que isto quer dizer. É o saber (S2) sob a forma de significação
que ocupa tal lugar.
Já vimos que o momento de entrada em análise, que se dá exatamente pela
irrupção do significante da transferência, é também o momento de um não se sabia
e, portanto, de um encontro com um ponto de tiquê, que é tanto para o analista
como para o paciente. Esse não se sabia, que surge como tiquê, justamente no lugar
onde se produz a significação, é algo que escapa a todo registro que seja da ordem
do significado e da significação, que implicam também o significante — escapa,
portanto, ao simbólico. É algo que estava lá, de forma latente, mas que não se sabia
e que, justamente com o significante da transferência, irrompe também, escapando
ao próprio significante. Trata-se então, da emergência fugaz do objeto a, para o

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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças

qual aponta todo o trabalho da transferência, mas que ainda não está lá. É o referente
latente, em cujo lugar está o saber sob a forma de significação encobridora.
O sujeito, em análise, dirige-se ao analista, que ele coloca no lugar do sujeito
suposto saber, demandando-lhe um saber que este não tem. Coloca, portanto, o
saber no lugar de objeto de desejo. O objeto está, então, do lado do Outro e,
recoberto pelo saber, sustenta a demanda na transferência. Ao não responder à
demanda, o analista, na sua função de causa, faz aparecer o desejo, permitindo que
se realize o trabalho da transferência, ao mesmo tempo, em que é, de certa forma,
deslocado do lugar de sujeito suposto saber. Ocupando o lugar de objeto causa de
desejo, sai do campo do Outro, permanecendo nele apenas como falta.
Por outro lado, o sujeito em análise, que busca o objeto de seu desejo, objeto
que nada mais é que saber o lugar que ele ocupa no desejo do Outro, esse sujeito,
pela via da associação livre, irá construindo tal saber, até chegar à descoberta final
— a de que, no desejo do Outro, ele é apenas objeto a causa do desejo. Esse é o
momento final de análise em que, do lugar que ocupava de semblante de objeto a
o analista cai definitivamente como resto.
Vemos então que o objeto a esteve aí o tempo todo, ainda que recoberto pelo
saber e que, em torno dele, se faz o trabalho de análise.
Quando se disse a princípio que a análise é o trabalho da transferência, vemos
que isto fica confirmado no final de análise. Foi o amor de transferência que
permitiu que o sujeito, de sua posição de objeto amado, de objeto de desejo do
Outro, passasse finalmente a objeto causa de desejo. E este é todo o trabalho de
uma análise...

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