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DIREITOS HUMANOS – DIR 1 – 2010-1 – Profa. Ms.

GLADIS DENISE MELCHIOR

UNIDADE I – A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS 1

Os direitos humanos evoluíram histórica e conceitualmente.


Inicialmente eram denominados de “direitos do homem”. No século XVIII, ao serem inseridos nas
Constituições dos Estados, passaram a ser conhecidos como “direitos fundamentais”.
Por fim, ao serem previstos nos tratados internacionais, receberam a nomenclatura de “direitos
humanos”.

Alguns conceitos:
“Trata-se de um conjunto mínimo de direitos necessário para assegurar uma vida ao ser humano baseada na
liberdade e na dignidade.” (André de Carvalho Ramos)
“Os direitos humanos compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que
abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana.” (Joaquín Herrera Flores)
Pode-se concluir dizendo que direitos humanos é a somatória de valores contemplados em normas
jurídicas internas e externas que visam proteger a pessoa humana, para possibilitar a todos uma vida digna.
Essas normas são as Constituições e a legislação infraconstitucional; os Tratados, Convenções, Acordos ou
Pactos Internacionais.

1.1 Fundamentação e evolução dos direitos humanos


Foi no século XX que os direitos humanos ganharam importância e relevância. No século XXI,
encontram-se definitivamente incorporados ao pensamento jurídico.
Segundo a maioria dos doutrinadores, o fundamento dos direitos humanos está ligado ao positivismo e
ao jusnaturalismo.

São três as teorias que conferem fundamentação aos direitos humanos:

Teoria Jusnaturalista: essa teoria apregoa que os direitos humanos são fruto de uma ordem superior
universal, imutável e inderrogável, ou seja, são inatos, naturais, inerentes ao ser humano. Isto significa que
basta nascer um ser humano que já possui direito aos direitos humanos. 2 Sendo assim, os direitos humanos
não são criação legislativa, nem jurídica, razão pela qual é impossível que desapareçam da consciência
humana.
Para esta corrente, a pessoa humana é fundamento absoluto dos direitos humanos, independente do
lugar onde se encontre. Os direitos humanos são preexistentes ao direito positivo (normas jurídicas) que
apenas os declara, pois o direito só existe em função do homem.

1
Esta primeira unidade está embasada, principalmente, na seguinte bibliografia:
- PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
- MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 7. ed. São Paulo:Atlas, 2006.
- OLIVEIRA, Erival da Silva. Direitos Humanos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. Elementos do Direito
v. 12.
2
Em função dessa característica de inerência dos direitos humanos a todos os homens, em 25 de junho de 1993, na
Conferência Mundial dos Direitos Humanos, proclamou-se que “[...] os direitos humanos e liberdades fundamentais são
direitos naturais de todos os seres humanos; sua proteção e promoção são responsabilidades primordiais dos Governos
[...]”.
Comungam deste entendimento os juristas Dalmo de Abreu Dallari, Fábio Konder Comparato.

Teoria Positivista: a teoria positivista, ao contrário da anterior, confere existência aos direitos humanos em
razão da ordem normativa, pois esta é fruto da legítima manifestação da vontade popular, ou seja, somente são
direitos humanos fundamentais aqueles expressamente previstos no ordenamento jurídico positivado
(Constituições, leis, tratados e convenções internacionais). 3
Posicionam-se nesta teoria os juristas Norberto Bobbio e Hans Kelsen.

Teoria Moralista ou de Perelman: esta teoria preconiza que os direitos humanos fundamentais derivam da
experiência e consciência moral de um determinado povo que, com o passar dos anos, chega a uma
consciência social desses direitos.

Assim, pode-se concluir que nenhuma dessas teorias, isoladamente analisadas, é capaz de dar
fundamentação à existência dos direitos humanos fundamentais, pois são insuficientes. A fundamentação dos
direitos humanos fundamentais dá-se através da complementação entre estas três teorias, isto é, dá-se pela sua
coexistência.4
O preâmbulo da Constituição Francesa de 1791 sintetizou a interligação destas três teorias ao afirmar
que: “O povo francês, convencido de que o esquecimento e o desprezo dos direitos naturais do homem são as
causas das desgraças do mundo, resolveu expor, numa declaração solene, esses direitos sagrados e
inalienáveis.”
A evolução histórica dos direitos humanos é indispensável à compreensão da internacionalização e
universalização desses direitos, visto que não são um dado (pronto e acabado), mas um construído, uma
criação dos homens através dos séculos, em constante processo de construção e reconstrução. Nasceram como
direitos naturais universais (jusnaturalismo), transformaram-se em direitos positivos particulares a cada país
(pois contemplados nas respectivas Constituições), e atingiram a plenitude como direitos positivos universais
(afetos à disciplina Direito Internacional dos Direitos Humanos).
Historicamente são três os principais marcos da evolução dos direitos humanos: o Iluminismo; a
Revolução Francesa; o término da II Guerra Mundial.
Porém, antes de analisarmos o Iluminismo, é importante ressaltar que o antecedente mais remoto de
tentativa de limitação do governante através dos direitos humanos foi a Magna Charta Libertatum5, de 1215,
que submetia o Rei inglês a um corpo escrito de normas e previa a inexistência de arbitrariedades na cobrança
de impostos, pois a execução de uma multa ou de aprisionamento ficaria submetida à necessidade de um
julgamento justo. Na prática, não surtia muito efeito, na medida em que, se o Rei a descumprisse, não lhe seria
imposta nenhuma responsabilização.

3
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), proclama que os direitos da pessoa humana
devem ser “protegidos pelo império da lei, para que a pessoa não seja compelida, como último recurso, à rebelião contra
a tirania e a opressão [...]”.
4
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 17: “Na realidade, as
teorias se completam, devendo coexistirem, pois somente a partir da formação de uma consciência social(teoria de
Perelman), baseada principalmente em valores fixados na crença de uma ordem superior, universal e imutável (teoria
jusnaturalista), é que o legislador ou os tribunais [...] encontram substrato político e social para reconhecerem a
existência de determinados direitos humanos fundamentais como integrantes do ordenamento jurídico (teoria
positivista).”
5
MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2007,
p. 75: “A Magna Charta Libertatum, entre outras garantias, previa a liberdade da Igreja da Inglaterra; restrições
tributárias; proporcionalidade entre direito e sanção [...] ; previsão do devido processo legal [...]; livre acesso à
Justiça[...]; liberdade de locomoção e livre entrada e saída do país.
Iluminismo: época em que foi ressaltada a razão, o espírito crítico e a fé na ciência, buscando compreender a
essência das coisas e do homem para chegar às origens da humanidade. O homem passa a ser o centro do
universo.
São iluministas: John Locke (Tratado sobre o governo/1689); Jean-Jacques Rousseau (Contrato
social/1762); Thomas Hobbes (O Leviatã/1748); Immanuel Kant (Crítica da Razão Pura/1781 – A doutrina do
direito, a doutrina da virtude/1795).
Kant delineou o Estado como um instrumento de produção de leis, por meio de seus cidadãos, sendo a
liberdade o principal fundamento para se estabelecer e valorizar a figura da pessoa humana, atentando-se para
a moralidade, a dignidade e a paz perpétua.
Principais documentos de proteção dos direitos humanos no Iluminismo:
- Petition of Rights (1628): tentou novamente incorporar os direitos estabelecidos pela Magna Carta, por meio
da necessidade de consentimento do Parlamento para a realização de inúmeros atos. 6
- Habeas Corpus Act (1679): instituiu um dos mais importantes instrumentos de garantia de direitos, bastante
utilizado até hoje, pois protege a liberdade de locomoção dos indivíduos.
- Bill of Rights (1689): veio para assegurar a supremacia do Parlamento sobre a vontade da lei, diminuindo os
abusos cometidos pela nobreza em relação aos seus súditos.

Revolução Francesa: os iluministas e seus pensamentos impulsionaram as primeiras normas de direitos


humanos, destacando-se a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 26/08/1789, logo após a
Revolução Francesa, cujo marco histórico foi a queda da bastilha, em 14/07/1789.
Os ideais representativos dos direitos humanos neta época foram a liberdade, a igualdade e a
fraternidade, ao lado da necessidade de limitação e de controle dos abusos de poder estatal, através da
consagração dos princípios básicos da igualdade e da liberdade como limitadores do Estado moderno
contemporâneo.
Foi dois anos antes do marco da Revolução Francesa que elaborou-se a primeira Constituição escrita,
a dos Estados Unidos/1787, que contemplou em seu texto direitos fundamentais.
Assim o surgimento do constitucionalismo e da positivação dos direitos humanos são concomitantes,
pois o surgimento do constitucionalismo teve por objetivo principal a organização do Estado e a limitação do
poder estatal, por meio da positivação dos direitos do homem, agora erigidos a direitos e garantias
fundamentais. São os direitos humanos fundamentais, e suas garantias, que consagram o respeito à dignidade
da pessoa humana e garantem a limitação do poder estatal.
Como principais documentos deste período destacam-se:
- Declaração de Direitos do Estado de Virgínia (1776), que afirma: “Todos os homens são iguais, por
natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado
de sociedade, não podem por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da
liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança.”
Assegura também todo poder ao povo, o devido processo legal, entre outros direitos.
- A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) e a
- Constituição Federal dos EUA (1787): ambas consolidam barreiras contra o Estado, como a tripartição do
poder, a alegação de que todo poder vem do povo; estabelecem alguns direitos fundamentais como a
igualdade entre os homens, a vida, a liberdade e a propriedade.

6
MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2007,
p. 76: “[...] significou enorme restrição ao poder estatal, prevendo, entre outras regulamentações: fortalecimento ao
princípio da liberdade, ao impedir que o rei pudesse suspender leis ou a execução das leis sem o consentimento do
Parlamento; criação do direito de petição; liberdade de eleição dos membros do Parlamento; imunidades
parlamentares; vedação à aplicação de penas cruéis; convocação freqüente do Parlamento[...].”
- Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789): garante os direitos referentes à liberdade,
propriedade, segurança e resistência à opressão. Ressalta o princípio da legalidade e da igualdade de todos
perante a lei, bem como o da soberania popular. Valoriza a dignidade humana.
- Constituição Mexicana de 1917 e a
- Constituição de Weimar (Alemanha) de 1919: a importância de ambas estas Cartas é porque foram as
primeiras a incluírem os direitos sociais do trabalho e a função social da propriedade em suas normas.

Pós II Guerra Mundial: nesta época verifica-se o desenvolvimento do sistema internacional de proteção dos
direitos humanos, que é o maior legado da chamada “era dos direitos”.
As atrocidades cometidas na II Guerra Mundial deixaram a certeza de que os Estados, por si só, não
são capazes de proteger e respeitar os direitos humanos, o que motivou a internacionalização e universalização
dos direitos humanos.

Convenção da Liga das Nações: Direito Humanitário e Organização Internacional do Trabalho


Contudo, o primeiro precedente da internacionalização e universalização dos direitos humanos
remonta da Convenção de Genebra de 1864, que criou a Cruz Vermelha Internacional 7, órgão responsável
pela regulamentação da proteção dos militares fora de combate (feridos, doentes, prisioneiros) e da população
civil, por meio do denominado Direito Humanitário ou Direito Internacional da Guerra , que é o direito
aplicado em casos de conflitos bélicos internacionais, impondo limites aos Estados em guerra.
Atualmente, o Direito Humanitário ou Internacional da Guerra possui como fonte principal as quatro
Convenções de Genebra de 1949, sendo que seus princípios devem ser aplicados a todo e qualquer conflito
armado (guerras internacionais e civis).
Na seqüência, também com a proposta de limitar a soberania estatal em casos de guerra, em 1920, após
a I Guerra Mundial (1914-1918), surgiu a Convenção da Liga das Nações (LDN), cuja finalidade era
promover a cooperação, a paz e a segurança internacional, condenando agressões externas contra a integridade
territorial e política em relação aos seus membros, na tentativa de evitar uma nova Guerra Mundial, no que
falhou.
Continha previsões genéricas protetivas dos direitos humanos e específicas sobre o direito do trabalho
(compromisso dos Estados em assegurar condições justas e dignas de trabalho para homens, mulheres e
crianças). Como meio de fazer cumprir tais previsões, impunha sanções econômicas e militares contra os
Estados infratores, o que interferia na soberania estatal, pois os Estados foram obrigados a incorporar direitos
e deveres relacionados aos direitos humanos, provindos do plano internacional.
A Liga, no início, era composta apenas por três nações (Inglaterra, França e Estados Unidos), unidas em
torno do “Tratado de Versalhes”(1919), mas, com o tempo, a ela foram aderindo vários países, alguns por
vontade própria, outros pressionados pelos já membros, através da assinatura do “Tratado das Minorias”, o
qual obrigava os países-membros a respeitarem os direitos das minorias étnicas, nacionais ou religiosas que
habitassem seus territórios. Assim, com o tempo, as previsões da Liga passaram a ser impostas a um grande
número de Estados.
Ao lado do Direito Humanitário e da Liga das Nações atuava a Organização Internacional do Trabalho
(OIT) que, criada logo após a I Guerra Mundial 8, tinha por objetivo promover padrões internacionais de

7
“A Cruz Vermelha Internacional é considerada uma organização não governamental que tem por objetivo conceder aos
países necessitados ajuda humanitária (no mínimo médica). Não tem natureza jurídica de organização internacional,
sendo regida exclusivamente pelo Código Civil Suíço. Os locais onde a Cruz Vermelha estiver instalada serão
considerados territórios neutros, não podendo ser atacados.” In: OLIVEIRA, Erival da Silva. Direitos Humanos. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. Elementos do Direito v. 12, p. 21-22.
8
“A Organização internacional do Trabalho foi criada pela Conferência de Paz após a I Guerra Mundial. A sua
constituição converteu-se na Parte XIII do Tratado de Versalhes. Em 1944, à luz dos efeitos da Grande Depressão da II
Guerra Mundial, a Organização Internacional do Trabalho adotou a Declaração da Filadélfia como anexo da sua
condições de trabalho e bem-estar. Com o passar dos anos mais e mais Estados passaram a aderir às
Convenções Internacionais da OIT e, por conseqüência, comprometeram-se em gerar condições de dignidade
no trabalho. Dessa forma, as regras relativas ao trabalho, nesses Estados que aderiram às Convenções da OIT,
passaram a ser influenciadas pelos direitos humanos internacional, havendo, também aqui, interferência do
plano internacional no interno, ou seja, interferência no conceito de soberania estatal.
O surgimento do Direito Humanitário, da Liga das Nações e da OIT marcou o fim da era em que o
Direito Internacional limitava-se a tratar de questões meramente governamentais entre os Estados (as relações
baseavam-se na reciprocidade), o que preservava a soberania absoluta de cada um deles. Marcou a origem de
uma nova era, limitadora da soberania absoluta, na medida em que os Estados passaram a sofrer influência
externa (internacional) em relação à obrigatoriedade de proteção, garantia e implementação dos direitos
humanos (obrigatoriedade de perseguirem fins comuns à humanidade, mediante a cooperação de todos os
Estados-membros daquelas entidades). E, assim, deu-se o passo inicial ao delineamento do Direito
Internacional dos Direitos Humanos.
Mas, apesar deste passo inicial, somente após a barbárie da II Guerra Mundial (1939-1945) é que houve
a verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, com o surgimento da ONU
(Organização das Nações Unidas).

Organização das Nações Unidas (ONU): Carta das Nações Unidas de 1945
Como a Liga das Nações havia falhado ao não conseguir evitar uma Segunda Guerra Mundial, foi
extinta. E, tendo o Estado-Nação, ao término da II Guerra Mundial, se mostrado um potencial violador dos
direitos humanos (foram, no total, 50 milhões de mortos do início ao final desta Grande Guerra), foi preciso,
então, reconstruir os direitos humanos tendo-se como paradigma a ética e a moral, pelo qual a pessoa passou a
ter o direito a ter direitos, ou seja, o direito a ser sujeito de direitos. E foi com base neste paradigma ético que
se tentou reconstruir os direitos humanos e que estes passaram a ser o norteador da ordem jurídica
internacional contemporânea.
Esta fundada preocupação com os direitos humanos fundamentais em nível internacional acarretou o
fortalecimento do processo de internacionalização dos direitos humanos, pois se presenciou uma expansão de
organizações internacionais, com o propósito de cooperação internacional, preocupadas com as questões
relativas aos direitos humanos.
O marco principal do pós-guerra rumo à internacionalização dos direitos humanos é a Carta das Nações
Unidas (um tratado internacional), promulgada em 24 de outubro de 1945. É o documento que deu nascimento
formal9 à Organização das Nações Unidas (ONU). Pode-se dizer que é a “Constituição da ONU”, pois dita

constituição. A Declaração antecipou e serviu de modelo para a Carta das Nações Unidas e para a Declaração Universal
dos Direitos do Homem.” In: OLIVEIRA, Erival da Silva. Direitos Humanos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2009, v. 12 (elementos do Direito), p. 23.
9
Formal porque, desde antes de eclodir a II Grande Guerra, e mesmo durante esta, já havia, por parte de vários países, a
preocupação com as questões atinentes à paz mundial. Vários encontros entre chefes de Estado foram promovidos para a
discussão do assunto paz e finanças mundial.
Eis o preâmbulo da Carta das Nações Unidas: “NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar
as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à
humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na
igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições
sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam
ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. E PARA
TAIS FINS, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para
manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a
força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o
progresso econômico e social de todos os povos. RESOLVEMOS CONJUGAR NOSSOS ESFORÇOS PARA A
CONSECUÇÃO DESSES OBJETIVOS. Em vista disso, nossos respectivos Governos, por intermédio de representantes
reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma,
concordaram com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que
será conhecida pelo nome de Nações Unidas.” Disponível em: <http://www.unicef.org/brazil/uncarta.htm.> Acesso em:
todos os direitos e deveres a todos os seus membros. Quando promulgada, foi assinada por 51 países, dentre
eles o Brasil. Atualmente, a ONU conta com 192 membros (Estados soberanos) e tem por objetivo manter a
paz e a segurança no mundo, fomentar relações cordiais entre as nações, promover progresso social,
melhores padrões de vida e direitos humanos.10

Pode-se dizer que com a criação da ONU e com a adoção da Declaração Universal dos Direitos
Humanos por sua Assembléia Geral (1948), a soberania estatal relativizou-se, ou seja, não existe soberania
estatal absoluta quando o assunto for violação dos direitos humanos, na medida em que estes passaram a
ocupar espaço central na agenda jurídico-política internacional.
Desde esta época, os Estados não podem mais agir discricionariamente em relação a seus cidadãos, sob
pena de sofrerem responsabilização internacional. Um instrumento que possibilitou esta responsabilização foi
a criação do Tribunal de Nuremberg 11 (1945-1946), que julgou os responsáveis pelas atrocidades cometidas na
II Guerra Mundial. Este Tribunal impulsionou sobremaneira o movimento de internacionalização dos direitos
humanos, adotando não somente o conteúdo dos tratados, como também o direito costumeiro dos Estados
contra a guerra, além dos princípios gerais de justiça aplicados por juristas e pelas Cortes Militares de vários
países. Isto porque os tratados nada mais fazem do que expressar e definir com maior precisão os princípios
dos direitos já existentes e, especificamente em relação à guerra, porque a proibição à guerra é parte da
consciência comum da humanidade.
Foi um grande salto rumo à internacionalização e universalização dos direitos humanos. Ao contrário
do que ocorria antes, quando os países sofriam sanções políticas e comerciais ao infringirem os direitos
humanos fundamentais, houve a responsabilização pessoal dos infratores, o que significa que cada indivíduo
passou a ser, em relação aos direitos e deveres inerentes aos direitos humanos, sujeito do direito internacional
e, assim como os Estados a que pertencem, responsáveis pela observância dos direitos da pessoa humana,
agora universais.
A Carta das Nações Unidas foi o marco do surgimento de uma nova ordem internacional. Deixou-se de
pensar apenas em evitar a guerra e manter a paz, na medida em que e as relações entre os Estados passaram a
ser pautadas na amistosidade e na cooperação econômica, social e cultural, restando demonstrada a profunda

31 jan 2010.
10
A missão da ONU parte do pressuposto de que diversos problemas mundiais – como pobreza, desemprego, degradação
ambiental, criminalidade, Aids, migração e tráfico de drogas – podem ser mais facilmente combatidos por meio de uma
cooperação internacional. As ações para a redução da desigualdade global também podem ser otimizadas sob uma
coordenação independente e de âmbito mundial, como as Nações Unidas. Atualmente, as Nações Unidas e suas agências
investem, em forma de empréstimo ou doações, cerca de US$ 25 bilhões por ano em países em desenvolvimento. Esses
recursos destinam-se a proteção de refugiados, fornecimento de auxílio alimentar, superação de efeitos causados por
catástrofes naturais, combate a doenças, aumento da produção de alimentos e da longevidade, recuperação econômica e
estabilização dos mercados financeiros. Além disso, a ONU ajuda a reforçar o regime democrático em várias regiões, e já
apoiou mais de 70 eleições nacionais. As Nações Unidas foram catalisadoras e promotoras de um grande movimento de
descolonização, que levou à independência de mais de 80 países. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br>. Acesso
em: 31 jan 2010.
11
Trata-se de um Tribunal Militar Internacional criado pelo Acordo de Londres de 1945, com a finalidade de julgar os
crimes de guerra. Para tal foi investido dos poderes de processar e punir as pessoas responsáveis pela prática de crimes
contra a praz (planejar, preparar, incitar ou contribuir para a guerra, em violação aos tratados e acordos internacionais, ou
participar de plano comum ou de conspiração para a realização das referidas ações), crimes de guerra (violação ao direito
e ao direito costumeiro da guerra; tais violações devem incluir – mas não serem limitadas a – assassinato, tratamento
cruel, deportação de populações civis que estejam ou não em territórios ocupados, para trabalho escravo ou para qualquer
outro propósito, assassinato ou tratamento cruel a prisioneiro de guerra ou de pessoas em alto-mar, assassinato de reféns,
saques à propriedade pública ou privada, destruição de vilas ou cidades, devastação injustificada por ordem militar) e
crimes contra a humanidade (assassinato, extermínio, escravidão, deportação ou outro ato desumano cometido contra a
população civil, antes ou durante a guerra, ou perseguições baseadas em critérios raciais, políticos e religiosos, para a
execução de crime ou em conexão com crime de jurisdição do Tribunal, independentemente se em violação ou não ao
direito doméstico de determinado país em que foi perpetrado.
preocupação com questões mundiais, através da adoção de padrões internacionais de saúde, proteção ao meio
ambiente e aos direitos humanos12, a serem adotados por toda a comunidade internacional.
Para conseguir por em prática seus objetivos, a ONU é constituída por seis órgãos principais: a
Assembléia Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela, o
Tribunal Internacional de Justiça e o Secretariado, todos eles situados na sede da ONU, em Nova York, com
exceção do Tribunal, que fica em Haia, na Holanda. Além desses órgãos principais, há várias Comissões para
tratar de assuntos específicos, como a Comissão dos Direitos Humanos (CDH), a Comissão de
Desenvolvimento Sustentável (CDS), Ainda há organismos especializados em várias áreas ligados à ONU,
como: OMS (Organização Mundial da Saúde), OIT (Organização Internacional do Trabalho), Banco Mundial
e FMI (Fundo Monetário Internacional), FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e
Agricultura), UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), dentre tantos outros. Todos os órgãos e
comissões, somados aos demais desdobramentos da ONU e destes mesmos, compõem o Sistema das Nações
Unidas.13

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948


Apesar de a Carta das Nações Unidas ser enfática ao determinar a defesa, a promoção e o respeito aos
direitos humanos e às liberdades fundamentais, não definiu o conteúdo dessas expressões. Esta definição
surgiu três anos após, em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem 14 (DUDH) que, ao trazer
conteúdo à expressão direitos humanos, ou seja, ao definir quais são estes direitos, impôs um valor ético
universal e concretizou uma obrigação legal dos Estados-membros da ONU em relação a estes direitos, que
deixaram de ter soberania no trato das questões atinentes aos direitos humanos, uma vez que somente podem
agir de acordo com os preceitos da Carta e da DUDH.
A DUDH é um código que traz uma plataforma comum de ação a ser seguida por todos os Estados,
consolidando uma ética universal.
Os países parte da ONU passaram a reconhecer os direitos humanos e os valores éticos a eles
relacionados como objeto de preocupação mundial, agora não mais da exclusiva jurisdição de cada um deles,

12
A preocupação com os direitos humanos consta nos arts. 1.º (3), 13, 55, 56 e 62 da Carta, disponível, na íntegra, no site
<http://www.onu-brasil.org.br>: ARTIGO 1 - Os propósitos das Nações unidas são: [...] 3. Conseguir uma cooperação
internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para
promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça,
sexo, língua ou religião; [...] ARTIGO 13 - 1. A Assembléia Geral iniciará estudos e fará recomendações, destinados a: a)
promover cooperação internacional no terreno político e incentivar o desenvolvimento progressivo do direito
internacional e a sua codificação; b) promover cooperação internacional nos terrenos econômico, social, cultural,
educacional e sanitário e favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, por parte de todos
os povos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. ARTIGO 55 - Com o fim de criar condições de estabilidade e
bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade
de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo
e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas internacionais econômicos,
sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e c) o respeito universal e
efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
ARTIGO 56 - Para a realização dos propósitos enumerados no Artigo 55, todos os Membros da Organização se
comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente. ARTIGO 62 - 1. O Conselho Econômico
e Social fará ou iniciará estudos e relatórios a respeito de assuntos internacionais de caráter econômico, social, cultural,
educacional, sanitário e conexos e poderá fazer recomendações a respeito de tais assuntos à Assembléia Geral, aos
Membros das Nações Unidas e às entidades especializadas interessadas. Acesso em: 6 out 2006.
13
A forma completa como está estruturada a ONU pode ser encontrada em: <http://www.onu-
brasil.org.br/conheca_estrutura2.php>.
14
A DUDH não é um tratado, mas surgiu através de resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas, convertida em
lei, o que lhe confere força vinculante a todos os países-membros da ONU. Além disso, vincula a todos os demais países
em razão do direito costumeiro internacional e dos princípios gerais do direito internacional, formados através dos
tempos (a proibição da escravidão, do genocídio, da tortura, de qualquer outro tratamento cruel, desumano e degradante
etc.), pois tem sido incorporada em Constituições estaduais e utilizada como fonte de direito pelos Tribunais de vários
países.
mas sujeitos à jurisdição internacional da ONU que, através da Comissão dos Direitos Humanos, pode
investigar denúncias de violação desses direitos e impor aos Estados medidas que objetivem fazer cessar tais
violações.
Como a DUDH compreende um conjunto de direitos e faculdades, sem os quais é impossível ao homem
desenvolve-se física, moral e intelectualmente, é aplicada a todas as pessoas, de todos os países (mesmo aos
não-membros), raças, religiões e sexos, independentemente do regime político de cada país, pois o único
requisito para a titularidade dos direitos e faculdades nela constantes é “ser pessoa humana”.
Esta nova perspectiva rompeu com o legado nazista de que direitos existiriam apenas para uma
determinada raça, no caso, a ariana. Após a DUDH, houve a consciência universal de que todo e qualquer
indivíduo é membro da sociedade humana, o que confere a cada uma das pessoas “ser sujeito de direitos
internacionais”, tanto quanto “ser sujeito de direitos nacionais”, ou seja, as pessoas passaram a ser cidadãos,
não somente em seus países, mas também cidadãos do mundo.
Além disso, foi com a DUDH que os direitos civis e políticos (arts. 3.º a 21), e os direitos sociais,
culturais e econômicos (arts. 22 a 28) passaram a estar inter-relacionados e, todos, intimamente vinculados aos
direitos humanos.15 Tal Declaração combinou o discurso liberal e o discurso social da cidadania ao conjugar
os valores da liberdade e da igualdade. Nesse sentido,
Vale dizer, sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos
civis e políticos se reduzem a meras categorias formais, enquanto, sem a realização
dos direitos civis e políticos, ou seja, sem a efetividade da liberdade entendida em
seu mais amplo sentido, os direitos econômicos, sociais e culturais carecem de
verdadeira significação. Não há mais como cogitar a liberdade divorciada da justiça
social, como também infrutífero pensar na justiça social divorciada da liberdade. Em
suma, todos os direitos humanos constituem um complexo integral, único e
indivisível, no qual os diferentes direitos estão necessariamente inter-relacionados e
são interdependentes entre si.16
Pela DUDH instituiu-se que, além de os direitos humanos estarem intimamente relacionados com os
demais direitos, são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados entre si, pois decorrem da
dignidade humana, demarcando-se a concepção contemporânea dos direitos humanos: basta existir para ser
sujeito dos direitos humanos.
Esta assertiva torna-se evidente desde o preâmbulo da DUDH, que afirma que a dignidade é inerente a
toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis, bem como no art. 28: todos têm direito a uma
ordem social e internacional em que os direitos e liberdades sejam plenamente realizados.
Daí resultou que uma geração de direitos não substitui a outra, mas interagem entre elas. Por isso
mesmo é que, hodiernamente, a denominação geração de direitos está sendo substituída pela denominação
dimensão de direitos.17

15
No modelo liberal, havia primazia dos direitos civis e políticos, pois a não-atuação estatal significava liberdade,
segurança e propriedade. Após a I Guerra Mundial, iniciaram-se as discussões em torno da cidadania social, sob as
influências da concepção marxista-leninista, com a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (1918 -
República Soviética Russa), e com as Constituições sociais de Weimar (1919) e Mexicana (1917). Assim, houve uma
transição do primado da liberdade para o primado da igualdade, e o Estado passou a ser atuante na prestação dos direitos
sociais. O direito à igualdade passou a ser basilar e adotou-se um extenso leque de direitos econômicos, sociais e
culturais. Todos esses direitos foram, pela primeira vez na história, conjugados na DUDH, sob o primado da dignidade da
pessoa humana.
16
PIOVESAN. Flávia. Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 136.
17
- Direitos de primeira dimensão/geração: são os direitos civis e políticos, garantidores dos anseios liberais de liberdade
(sécs. XVIII e XIX).
- Direitos de segunda dimensão/geração: são os direitos sociais, econômicos e culturais, tradutores do valor da
igualdade (séc. XX).
- Direitos de terceira dimensão/geração: são os direitos ao desenvolvimento, à paz e à livre determinação, à
propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade, ao meio ambiente, à comunicação, que refletem o valor da
solidariedade e da fraternidade, ou seja, destinam-se não apenas a um determinado grupo de indivíduos ou a alguns
A DUDH é a interpretação da expressão direitos humanos e seu propósito é promover o
reconhecimento universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais a que faz referência a Carta da
ONU. Apesar de não ser um tratado, a DUDH possui força jurídica vinculante a todos os países membros da
ONU, ou seja, todos eles estão obrigados a promover, individual ou conjuntamente, a observância e o respeito
universal aos direitos humanos constantes na DUDH. Um Estado que sistematicamente viola os direitos
humanos previstos na Carta e na DUDH não merece aprovação por parte da comunidade internacional.

Universalismo e relativismo cultural


Apesar da concepção de que a DUDH possui força vinculante (universalismo da DUDH), os adeptos da
corrente do relativismo cultural não entendem dessa maneira. Para essa corrente, são direitos de uma
sociedade apenas aqueles constantes no ordenamento jurídico de cada sociedade, de cada Estado
individualmente considerado.
O relativismo cultural é encontrado na China, na África, na Índia, na União Soviética e nos países
islâmicos do Oriente, e os seus teóricos afirmam que o pluralismo cultural impede a formação de uma moral
universal, razão pela qual devem ser respeitados os direitos de cada país, pois fruto de sua evolução sócio-
cultural histórica. Ainda, afirmam que a imposição dos direitos humanos constantes na DUDH a todos os
países representa uma forma de imposição dos valores ocidentais, em detrimento dos valores dos povos
orientais.
Entretanto, os universalistas apregoam que não se pode concordar com bárbaros atentados contra os
direitos humanos em nome das práticas tradicionais e culturais de cada povo, e que nenhuma concessão deve
ser feita às peculiaridades locais quando houver violação ou risco de violação aos direitos humanos
fundamentais, pois seu fundamento é a dignidade humana, ínsita a todas as pessoas, sem exceção. Não se
pode duvidar de que a universalidade é enriquecida pela diversidade cultural, mas esta jamais pode ser
invocada para justificar a denegação ou violação dos direitos humanos.
Como meio de solução ao conflito entre universalistas e relativistas culturais, há propostas
intermediárias, como a de Boaventura de Souza Santos, que defende que os direitos humanos devem ser
respeitados dentro de um padrão ético mínimo e irredutível, o qual seria fruto da confluência entre os valores
do ocidente e do oriente. O ideal, então, seria chegar-se a um universalismo de confluência, ou seja, a um
ponto em que houvesse consenso entre todas as nações em relação aos direitos humanos.
John Rawls18, em seu O direito dos povos, demonstra que uma Sociedade dos Povos razoavelmente
justa, ou, noutros termos, uma sociedade democrática constitucional razoavelmente justa é possível, embora
ainda seja uma utopia. E esta sociedade é aquela que tem por fundamento moral o rol dos direitos humanos. É
uma possibilidade que se liga às tendências e inclinações profundas do mundo social, e que necessita de um
profundo esforço político. E afirma:
Se não for possível uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa, cujos membros
subordinam o poder a objetivos razoáveis, e se os seres humanos forem, em boa
parte, amorais, quando não incuravelmente descrentes e egoístas, poderemos
perguntar, com Kant, se vale a pena os seres humanos viverem na terra. 19

1.2 Os direitos do homem hoje


Rawls afirma que os vários debates internacionais em torno dos direitos humanos poderiam ser
interpretados como uma premonição que indicaria um mundo melhor, pois a eles é dada uma crescente

países, mas ao gênero humano (séc. XX).


18
RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução de Luís Carlos Borges e revisão de Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo:
martins Fontes, 2004, p. 162-168.
19
Íbid., p. 169.
atenção, tanto em relação à sua garantia como à sua violação. Isso é um sinal dos tempos que serve para lançar
um olhar confiante sobre o futuro.
Kant se perguntava se, sendo o homem “torto” como que é, poderia construir algo reto. Mas, apesar de
se questionar, acreditava que poderia haver uma gradativa aproximação ao ideal, através de conceitos justos e
da boa vontade. Acreditava que as pessoas não poderiam regredir para sempre, pois isso representaria o fim da
humanidade, a sua autodestruição. Além de Kant e seu “homem madeira torta”, Bobbio cita Ciaran que
afirmava que o homem é um animal errado.
E o sinal dos tempos modernos levou à catástrofe da II Guerra, mas os direitos humanos surgiram como
uma esperança para apagar a imagem da madeira torta e do animal errado, revelando a grandeza humana em
potencial, na medida em que estão ligados à democracia e à paz.
As Constituições democráticas têm por base os direitos humanos e não há paz sem o respeito a esses
direitos no plano internacional. Democracia, direitos do homem e paz são três elementos necessários ao
mesmo movimento histórico: “[...] sem direitos do homem reconhecidos e efetivamente protegidos não existe
democracia, sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos que
surgem entre os indivíduos, entre grupos e entre as grandes coletividades tradicionalmente indóceis e
tendencialmente autocráticas que são os Estados, apesar de serem democráticas com os próprios cidadãos
[...]”20.
A idéia da universalidade da natureza humana remonta do cristianismo, é antiga, mas foi com a CNU a
e DUDH que essa universalização da natureza humana transformou-se em instituição política, através da
relevância dada por estes documentos aos direitos do homem, uma continuação da sua positivação ocorrida no
século XVIII.
Nesse sentido, pode-se dizer que os direitos humanos foram inventados: as leis encontraram um limite
em direitos preexistentes e os governos passaram a ser democráticos, ou seja, um governo dos homens para os
homens. Houve uma inversão de valores políticos, pela qual a relação política passou a ser vista sob a ótica do
governado e não mais do governante, de baixo para cima, tendo os homens individualmente considerados e a
agregação de suas vontades (vontade popular) como base da relação política.
Ainda, o Direito deixou de ter como enfoque principal os deveres dos cidadãos e passou aos direitos dos
cidadãos, na medida em que os governos passaram a ter uma posição de sujeito ativo, ou seja, passaram a ter o
dever de implementar os direitos dos cidadãos.
Pode-se dizer que os direitos do homem causaram uma reviravolta, são um marco divisório histórico,
um sinal dos tempos. Os direitos humanos fizeram convergir as doutrinas liberal, social e cristã (inter-relação
de todos os direitos: de primeira, segunda, terceira e, quiçá, de quarta ou quinta geração/dimensão), através da
proteção ampla do direito à vida, não só entendido como a proibição do aborto e da eutanásia, mas como
garantir-se uma vida digna e com qualidade a todos os cidadãos.
Hoje, tem-se clara a noção de que somente pelo respeito aos direitos humanos se protegerá a vida, a
liberdade e a segurança social. Proteção contra o quê: contra todas as formas de poder (religioso, político,
econômico, científico). Na pós-modernidade, o conhecimento oprime ainda mais, pois quanto mais sabe o
homem, maior sua capacidade de domínio sobre a natureza e sobre os demais homens.
Assim, os direitos do homem, atualmente, representam um novo fundamento mundial. O problema é
que este fundamento concretizou-se somente no mundo do dever ser (direito), enquanto no mundo do ser
(mundo real, o dia-a-dia) ele é esquecido. Por isso que autores se referem aos direitos do homem como letra
morta: embora figure nas mais diversas Constituições e documentos internacionais, não são respeitados, não
são concretizados.
Bobbio refere que “[...] a história dos direitos dos homens, é melhor não se iludir, é a dos tempos longos
[...]”. Mas como sobreviver a uma longa espera se a cada dia sentimos a aceleração do tempo, através do
galopante avanço tecnológico? Nos salvaremos? Alguém nos salvará? – infere o autor. A sensação é a de que
estamos em uma corrida cada vez mais rápida para o fim, de que o homem deixou de lado a razão.

20
RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução de Luís Carlos Borges e revisão de Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo:
martins Fontes, 2004, p. 169.
Apesar desse túnel quase sem luz, o autor reflete e traz como fórmula para vencermos este caos que se
prenuncia: o compromisso com os direitos humanos. É preciso apostar com confiança neste sinal dos tempos,
pois sem confiança já se inicia a aposta perdedor. Para se ter confiança, Bobbio lança mão da filosofia
kantiana: conceitos justos, uma grande experiência e, sobretudo, muita boa vontade. O imperativo categórico
de Kant pode ser simplificado como: não faça para os demais aquilo que não quer que aconteça consigo
próprio, ou seja, devemos todos ter e pôr em prática valores morais justos, com muita boa vontade. E esses
valores são, sem dúvida, os fundamentos dos direitos humanos: garantir a todos uma vida digna.

1.3 Características dos direitos humanos

O conjunto institucionalizado dos direitos humanos fundamentais tem por finalidade o respeito à
dignidade do ser humano, através de sua proteção e da limitação do arbítrio estatal. Por isso, os direitos
humanos fundamentais podem ser entendidos como o conjunto das regras jurídicas que, em cada momento
histórico, estabelecem condições humanas de vida e condições de desenvolvimento da personalidade humana,
garantindo a todos uma convivência digna, livre e igual.
Em razão dessa preponderância da dignidade humana e da limitação da ação estatal, os direitos
humanos fundamentais sobrepõem-se aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, e apresentam as
seguintes características:
a) Imprescritibilidade: o decurso do tempo não interfere nos direitos humanos fundamentais, pois não se
perdem com o passar do tempo, podendo ser exigidos a qualquer tempo.
b) Inalienabilidade: os direitos humanos fundamentais estão fora do comércio, não podendo ser
alienados/transferidos, seja a título gratuito ou oneroso. Assim, cada indivíduo sempre permanecerá com o
direito subjetivo à totalidade dos direitos humanos fundamentais.
c) Irrenunciabilidade ou indisponibilidade: nenhum ser humano pode renunciar aos seus direitos humanos
fundamentais, o que gera discussões em torno da eutanásia, do suicídio e do aborto. Todavia, em hipóteses
particulares e temporárias, admite-se a renúncia temporária de um direito individual, como nos programas de
reality shows, em que os participantes renuncias ao seu direito de inviolabilidade da privacidade e da
intimidade, temporariamente;
d) Inviolabilidade: os direitos humanos não podem ser descumpridos ou violados por nenhuma pessoa,
legislação ou autoridade, sob pena de responsabilização administrativa, criminal e penal (art. 5.º, XLI, CF).
e) Universalidade: todos os indivíduos são sujeitos de direito em relação aos direitos humanos fundamentais,
independentemente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo, convicção político-filosófica e condição social,
podendo pleiteá-los em qualquer foro nacional ou internacional (conforme parágrafo quinto da Declaração e
Programa de Ação de Viena de 1993).
f) Indivisibilidade: por comporem um único conjunto de direitos, não podem ser divididos (conforme
parágrafo quinto da Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993).
g) Efetividade: é dever do poder público garantir e efetivar os direitos humanos fundamentais, criando
políticas públicas para tal finalidade, pois sua mera previsão legal não se constitui em instrumento hábil à sua
plena satisfação.
h) Normas abertas: princípio da não-tipicidade dos direitos fundamentais, pois ao seu rol podem ser inseridos
novos direitos, não previstos inicialmente pelo constituinte originário (art. 5.°, § 2.°).
i) Interdependência: os direitos humanos vinculam-se uns aos outros e aos demais direitos. Por exemplo, o
direito à liberdade possui estreita relação com o habeas corpus (art.5.º, LXVIII,CF), que é garantidor da
liberdade de locomoção (art. 5.º, XV, CF), ou, como o mandado de segurança, que visa proteger qualquer
direito fundamental.
j) Complementariedade: a interpretação dos direitos humanos fundamentais deve ser feita de forma conjunta,
nunca individualizada, em cada caso concreto, pois não há hierarquia entre eles.
k) Historicidade: estão vinculados ao desenvolvimento histórico e cultural do ser humano.
l) Vedação ao retrocesso: uma vez estabelecidos os direitos humanos não se admite o retrocesso visando a sua
limitação ou diminuição (art. 4°, 3, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – não restabelecimento
da pena de morte).
m) relatividade: acrescentar

1.4 Finalidade dos Direitos Humanos Fundamentais

Antes da existência do Estado havia o que Hobbes 21 denominou de guerra de todos contra todos, pois,
para este autor, o homem era naturalmente mau, ou seja, em seu estado natural, o homem era o lobo do
homem (homini lupus homini), na medida em que, em um meio em que todos gozavam de irrestrita liberdade
natural, o homem defendia seus interesses utilizando-se de todas as armas e formas de defesa e ataque que
estivessem ao seu alcance.
Para possibilitar a convivência em sociedade, os homens abriram mão de parte de sua liberdade
primitiva, cedendo-a ao Estado, que passou a ser o responsável pelo oferecimento das condições que
possibilitariam a convivência social, nos termos apregoados por Rosseau 22 em seu pacto/contrato social. Todas
estas parcelas de liberdade conferidas ao Estado resultaram no poder estatal que, para evitar abusos, foi
limitado pelos direitos humanos fundamentais, erigidos a princípios constitucionais.

Assim, a finalidade dos direitos humanos fundamentais direciona-se à proteção da dignidade da pessoa
humana e apresenta-se, segundo Canotinho, em duplo aspecto:
(a) no plano jurídico-objetivo, são normas de caráter negativo que proíbem a ingerência do poder púbico na
esfera individual desses direitos;
(b) no plano jurídico-subjetivo, são normas de caráter positivo, que indicam o poder de os cidadãos exercerem
positivamente direitos fundamentais e de exigirem do poder público, além do respeito a esses direitos, para
que não sejam lesados ou agredidos, um dever-fazer estatal, no sentido de implementá-los.
Por esta dupla faceta dos direitos humanos fundamentais é que eles constituem-se no pilar do Estado
Constitucional Democrático de Direito, ou seja, sem a limitação estatal conferida pelos direitos humanos
fundamentais não há direito nem justiça (legalidade e legitimidade 23), não há democracia nem paz, uma vez
que a solução pacífica dos conflitos sociais estaria inviabilizada.

1.5 Os direitos humanos e suas dimensões - – A Era dos Direitos – Norberto Bobbio

Segundo a classificação clássica dos direitos fundamentais, que possui por base o enfoque evolutivo
cumulativo, são:
(a) direitos de primeira geração/dimensão: (direitos civis e direitos políticos) correspondem às liberdades
clássicas (liberdades públicas negativas ou formais, ou direitos negativos – Estado não-interventor), realçando
o princípio da liberdade. Surgiram no final do século XVIII, com a Revolução Francesa. São exemplos os
direitos humanos fundamentais do art. 5° da CF/88, os direitos de nacionalidade e os direitos políticos.

21
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria: forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret,
2005. Coleção A Obra Prima de Cada Autor.
22
ROSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2005. Coleção A Obra Prima de Cada Autor.
23
Toda norma jurídica deve, para ser considerada válida, ter presentes a legalidade, que é a observância dos requisitos
formais (ligados aos procedimentos de elaboração da lei), e a legitimidade, que é a observância dos requisitos materiais
(fonte material das leis, ou seja, a lei deve representar a vontade popular).
(b) direitos de segunda geração/dimensão: (direitos econômicos, sociais e culturais) correspondem às
liberdades positivas, reais ou concretas (direitos positivos – Estado interventor), realçando o princípio da
igualdade. Surgiram no início do século XX. São exemplos os direitos sociais, culturais e econômicos.
(c) direitos de terceira geração/dimensão: (direitos transinvididuais: difusos e coletivos) materializam poderes
de titularidade coletiva e difusa, ou seja, são interesses de todo o gênero humano, de modo subjetivamente
indeterminado, sem que estejam presentes, necessariamente, elos jurídicos ou fático determinados.
Os direitos de terceira dimensão realçam o princípio da solidariedade e da fraternidade, a preocupação
com o destino da humanidade; enfocam o ser humano relacional, sem separações por fronteiras físicas ou
econômicas. Surgiram no final do século XX: o direito à paz no mundo, ao desenvolvimento econômico
mundialmente sustentável e do meio ambiente equilibrado, o direito do consumidor e do patrimônio comum
da humanidade, o direito à comunicação. Se a tecnologia e as novas formas de relacionamento social e
econômico criam outras formas de submissão do homem, cabe ao direito constituir meios para sua alforria.
(d) direitos de quarta e, quiçá, de quinta geração/dimensão: não há consenso entre os autores, pois ainda
pendentes de regulamentação jurídica.
A quarta dimensão de direitos resulta da preocupação com a proteção à vida, à liberdade e à segurança
social em razão da evolução tecnológica, como, por exemplo, os direitos ligados à bioética. Neste caso, cita-se
a discussão sobre se o corpo de um indivíduo lhe pertence ou se pertence ao gênero humano, ou seja, é
possível escolher doar medula óssea caso haja compatibilidade com uma pessoa que necessite do transplante
de medula ou é dever doar, em prol da proteção da vida. Também a questão das experiências com células
tronco embrionárias, os alimentos transgênicos etc.

1.6 Classificação dos direitos humanos quanto ao enfoque jurídico positivo

O constituinte originário dispôs cinco espécies do gênero direitos e garantias fundamentais,


correspondendo a cada um dos capítulos do título II da CF/88. É a classificação segundo o enfoque jurídico
positivo:
(a) direitos individuais e coletivos: direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de sua
personalidade, como, por exemplo: vida, dignidade, honra, liberdade (art. 5.°);
(b) direitos sociais: sua finalidade é a melhoria das condições de vida dos hipossuficientes, visando à
concretização da igualdade social, um dos fundamentos do Estado brasileiro (arts. 6.° a 11);
(c) direitos de nacionalidade: nacionalidade é o vínculo jurídico-político que liga um indivíduo a certo e
determinado Estado, fazendo deste indivíduo um componente do povo, da dimensão pessoal deste Estado,
capacitando-o a exigir sua proteção e sujeitando-o ao cumprimento dos deveres impostos (arts. 12 e 13);
(d) direitos políticos: conjunto de regras que disciplinam a forma de atuação da soberania popular, que
permitem aos indivíduos o exercício concreto da liberdade de participação nos negócios políticos do Estado,
de maneira a conferir-lhes os atributos da cidadania. Constam nos arts. 14 a 16, que são um desdobramento do
parágrafo único do art. 1.°;
(e) direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos: partidos políticos são
instrumentos importantes e necessários à preservação do Estado Democrático de Direito (art. 17).
UNIDADE II – A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E OS TRATADOS DE PROTEÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS24

2.1 Breves considerações sobre os tratados internacionais


Os tratados internacionais são atualmente a principal fonte do direito internacional, ao lado dos
costumes internacionais e dos princípios gerais do direito. Sendo normas jurídicas de direito internacional, a
eles se aplica o princípio do pacta sunt servanda, ou seja, o que foi contratado deve, obrigatoriamente, ser
cumprido.
Assim, os tratados de direito internacional, que são acordos jurídicos firmados entre pessoas jurídicas
de direito público internacional (os Estados-nação), vinculam juridicamente a todos os países que os
ratificaram.
Os tratados internacionais também são denominados de Acordo Internacional, Convenções ou
Protocolos.
Há uma lei internacional dos tratados, que tem por objetivo ditar regras gerais a todos os tratados, que
é a Convenção de Viena 25, de 1969. Segundo tal convenção, os tratados somente podem criar obrigações aos
países que a ele aderiram, a menos que tais obrigações façam parte do costume internacional. Neste caso, a
vinculação é geral.
Uma vez que a adesão ao tratado é ato de soberania dos países, e esta será nula se a ratificação se der
pela força ou coação, não podem invocar dispositivos de seu direito interno para eximirem-se do cumprimento
dos tratados que livremente ratificaram.
Existe a possibilidade de ratificação de tratado com reservas. As reservas nada mais são do que uma
declaração unilateral do Estado quanto a modificações na aplicação de parte do tratado em seu território.
Todavia, as reservas somente são válidas se não confrontarem com os propósitos do tratado.

2.2 O processo de formação dos tratados internacionais

O processo de formação dos tratados internacionais inicia-se com discussões, envolvendo vários
países, acerca de algum tema internacionalmente relevante. Após as discussões, ocorre a redação final do
texto e a assinatura/aceite dos países que com tal tratado aquiescem. Este aceite incumbe ao Poder Executivo
da União, nos termos do art. 84, VIII, CF/88 (pois é a União que exerce a soberania em nome da República
Federativa do Brasil).
A mera assinatura de um tratado pode não obrigar o país ao seu cumprimento, dependendo, esta
vinculação obrigatória, de outros atos, de acordo com o direito interno de cada país. No caso brasileiro, além
da assinatura, é necessária a ratificação do tratado.
Todavia, se o efeito jurídico inicia com a ratificação, o simples fato de ter o país assinado algum
tratado indica que está política e moralmente comprometido com o tratado, inclusive com sua ratificação.
Depois de assinado o tratado pelo Executivo brasileiro, o segundo passo é submeter este tratado à
apreciação do Congresso Nacional e sua aprovação, ou não (art. 49, I, CF/88). O Congresso expõe o tratado à

24
Esta unidade tem por principal referência o capítulo IV da obra PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito
Constitucional Internacional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 43-106.
25
O Brasil assinou a Convenção de Viena em 1969, mas ainda não a ratificou. Tal ocorre porque o Executivo enviou a
matéria à apreciação do Legislativo somente em 1992 e este Poder, por sua vez, ainda não se manifestou. Somente após o
referendum do Legislativo é que o Executivo poderá ratificar a Convenção de Viena. E, como a nossa Constituição é
omissa em relação aos prazos, tanto de envio da matéria ao Legislativo, quanto do tempo que o Legislativo dispõe para
apreciá-la, assim como do prazo em que o Presidente deverá efetuar a ratificação e depósito deste documento junto à
ONU ou OEA, estamos sujeitos a tais situações, talvez pela falta de comprometimento de nossos representantes.
votação plenária e, se aprovado, passa a fazer parte do nosso direito interno, através de um decreto do
legislativo (que é uma das espécies de normas jurídicas do direito pátrio – art. 59, VI, CF/88).
Aprovado o tratado pelo Congresso Nacional, cabe ao Executivo efetuar a ratificação (ou adesão) ao
tratado, para que ele passe a ser juridicamente obrigatório interna e internacionalmente. Ainda, o documento
de ratificação deve ser depositado junto à ONU ou à OEA, conforme seja o caso de tratado do âmbito das
Nações Unidas ou do âmbito regional interamericano.

2.3 A hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos

Como já estudamos, uma das características dos direitos humanos é ser norma jurídica aberta. E a
nossa Constituição, após declarar os direitos humanos em seu art. 5°, expressamente prevê que não estão
excluídos outros direitos humanos decorrentes dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil faça parte (art. 5°, § 2°, CF/88). E mais, no § 3° declara que os
tratados internacionais sobre direitos humanos podem ser equiparados à Emenda Constitucional, desde que
observada certa formalidade.
Art. 5°, § 2°. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte.
Art. 5°, § 3°. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada
Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.
Vale dizer que os direitos humanos decorrentes de tratados internacionais de que é parte o Brasil
passam a ser incorporados pelo texto da Constituição, mesmo que não estejam expressamente grafados na
Constituição. O referido § 2° confere a tais normas de direito internacional sobre direitos humanos o caráter
material de direito constitucional pátrio, já que lhes declara valor jurídico de norma constitucional.
Assim, tem-se que, hodiernamente, esta abertura ao Direito Internacional exige do Estado brasileiro (e
de tantos outros), a observância dos princípios materiais políticos do direito internacional pelo Direito interno.
O tratados internacionais sobre direitos humanos integrariam, assim, o chamado bloco de
constitucionalidade de normas abertas. Daí que podemos classificar os direitos humanos no ordenamento
brasileiro como:
- direitos fundamentais formalmente constitucionais: expressamente previstos no texto constitucional;
- direitos fundamentais materialmente constitucionais: não estão previstos na Constituição, mas em outras
normas jurídicas, como nos tratados internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil faça parte
- direitos fundamentais catalogados: são aqueles enumerados no catálogo próprio dos direitos fundamentais
(Título II da CF/88);
- direitos fundamentais fora do catálogo: todos aqueles previstos fora do Título II da CF, mas em outros
artigos da Constituição, como o direito ao meio ambiente (direito fundamental de terceira dimensão), previsto
no art. 225 da CF/88;
- direitos fundamentais implícitos: são aqueles direitos que estão subentendidos nas regras de garantias, bem
como os decorrentes do regime dos princípios adotados pela Constituição.
Canotilho refere que, em conformidade com o princípio da máxima efetividade das normas
constitucionais, no caso de dúvidas deve-se preferir a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos
fundamentais, inclusive quanto aos não catalogados no corpo da Constituição, decorrentes dos tratados
internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil faça parte.
Vale aqui ressaltar que esta força constitucional dos tratados internacionais está adstrita apenas
àqueles que versam sobre direitos humanos, pois os demais tratados de direito internacional de que faça parte
o Brasil (como tratados comerciais, tributários etc.), em nosso ordenamento jurídico possuem hierarquia de
normas infraconstitucionais26.
É tendência da doutrina e jurisprudência brasileiras alegarem que os tratados internacionais
tradicionais apresentam a mesma hierarquia das demais leis federais. E, assim, aqueles podem ser revogados
por estas, pelo princípio de que “lei posterior revoga lei anterior que com ela seja incompatível”.
Ocorre que esta concepção viola o princípio internacional da boa-fé (o pacta sunt servanda, ou seja, o
que foi contratado deve ser cumprido), previsto na convenção de Viena de 1969, pois o País que ratifica um
tratado internacional não pode alegar disposições de seu Direito interno como justificativa para o não
cumprimento do tratado.
Assim, a norma internacional de direitos humanos deverá ser observada no Brasil mesmo que
contrarie norma jurídica brasileira infraconstitucional. A única maneira de desvincular-se da obrigatoriedade
do tratado é renunciando a este mesmo tratado internacional.
Daí que parte da doutrina alega que os tratados internacionais tradicionais possuem sim hierarquia
infraconstitucional, mas, simultaneamente, supralegal. Ter hierarquia infraconstitucional e supralegal significa
que é hierarquicamente inferior à Constituição, mas não pode ser revogado pelas demais normas
infraconstitucionais. Vale dizer: o tratado internacional tradicional deverá ser respeitado pelo Estado que o
ratificou, a menos que a ele renuncie/denuncie expressamente.
Agora, cabe o questionamento. E se o Brasil renunciar a um tratado de direito internacional sobre
direitos humanos, estará desobrigado, ou seja, deixará de imperar o pacta sunt servanda?
Antes de respondermos a esta pergunta, precisamos entender um pouco mais do assunto.
A doutrina entende que os tratados internacionais sobre direitos humanos são jus cogens. E, citando
Juan Antonio Travieso, “Uma norma de jus cogens é uma norma imperativa de Direito Internacional geral,
aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados, em seu conjunto, como norma que não
admite acordo em contrário e que só pode ser modificada por uma norma posterior de Direito Internacional
geral, que tenha o mesmo status.”
Noutras palavras, os tratados internacionais sobre direitos humanos constituem direito imperativo para
os Estados. É como se os direitos humanos fossem uma “supralegalidade internacional”, ou seja, os tratados
sobre direitos humanos são hierarquicamente superiores aos demais tratados internacionais (os denominados
tradicionais).
Já sabemos que as normas internacionais constantes dos tratados sobre direitos humanos que o Brasil
ratifica equivalem a normas de hierarquia materialmente constitucional. Disso decorre que não podem ser
revogadas por norma infraconstitucional.
Ainda, aquelas normas internacionais sobre direitos humanos que são aprovadas pelo Congresso
Nacional com as mesmas formalidades da Emenda Constitucional (art. 5°, § 3°, c/c art. 60, § 2°, CF/88), além
de serem materialmente constitucionais, são também formalmente constitucionais. O § 3° foi acrescentado ao
art. 5° para acabar com qualquer dúvida acerca da constitucionalidade das normas internacionais sobre
direitos humanos.
Mas, não é porque muitos tratados foram aprovados pelo Congresso Nacional sem as formalidades de
3/5 dos votos e dois turnos de votação que tais normas jurídicas sobre direitos humanos deixam de ter
hierarquia constitucional, pois deve prevalecer a concepção material (valor fundante da prevalência da
dignidade humana) sobre a formal.
E, felizmente, este é o entendimento que gradativamente vem sendo adotado pelo Supremo Tribunal
Federal (STF), em oposição ao anterior posicionamento de que a norma de direitos humanos de tratado
internacional possuía hierarquia infraconstitucional.

26
Esta hierarquia de lei dos tratados internacionais que versem sobre matérias outras, que não os direitos humanos, resta
evidenciada no art. 102, III, b, CF/88, que confere ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar, mediante
recurso extraordinário, “as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a
inconstitucionalidade de tratado ou de lei”.
Podemos citar um exemplo desta mudança de entendimento do STF. O art. 5°, LXVII, CF/88,
disciplina que “não haverá prisão civil por dívida, salvo do responsável pelo inadimplemento voluntário e
inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
Ocorre que o Brasil ratificou o tratado internacional de São José da Costa Rica, assim como foi
aprovado pelo Congresso Nacional (decreto legislativo n° 678/1992) que não admite a prisão civil do
depositário infiel.
Até bem pouco tempo, o STF entendia que era possível prender um depositário infiel, em razão de
haver tal autorização em nossa Constituição. Todavia, com o moderno entendimento de que os direitos
humanos são normas constitucionais, mesmo que apenas materialmente, como é o caso das encontradas no
referido pacto internacional, o STF passou a adorar posicionamento que não admite a prisão do depositário
infiel. Também o STJ adotou tal entendimento, inclusive pacificado pela Súmula 419, STJ: “Descabe prisão
civil do depositário infiel.”
E este entendimento está baseado no valor de prevalência das normas de direitos humanos sobre todas
as demais e na interpretação conjunta dos §§ 2° e 3° do art. 5° da CF/88, pois o § 3°, que é posterior ao § 2°,
não revogou este dispositivo.
Mas, então, qual é a diferença entre a norma de direitos humanos internacional apenas materialmente
constitucional e a material e formalmente constitucional? Agora vamos responder àquele questionamento
anterior.
Por expressa disposição do art. 60, § 4°, IV, da CF/88, as normas de direitos humanos fundamentais
jamais poderão ser suprimidas do texto constitucional. Dessa forma, os tratados de direitos humanos material
e formalmente constitucionais são insuscetíveis de denúncia, podendo o Brasil renunciar apenas aos
materialmente constitucionais.
Daí podermos afirmar que os tratados de direito internacional possuem natureza constitucional
diferenciada: ou são materialmente constitucionais ou são também formalmente constitucionais.
Mas, o ideal seria que, para a renúncia de um tratado internacional materialmente constitucional fosse
exigida a anuência do Congresso Nacional, da mesma forma que este consentimento é exigido para a
ratificação.
Todavia, por não haver nenhuma previsão jurídica, o Executivo pode, unilateralmente,
denunciar/renunciar a um tratado de direito internacional sobre direitos humanos sem a necessidade de ouvir o
Poder Legislativo, mesmo que tal ato não seja democraticamente aceitável.

2.4 A incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos

De acordo com o § 1° do art. 5° da CF/88, as normas que versam sobre direitos humanos possuem
aplicabilidade imediata, por isso, eficácia plena.
Ora, sendo as normas de direito internacional sobre direitos humanos incorporadas como normas
constitucionais, estas possuem a mesma eficácia plena e aplicabilidade imediata que as normas de direitos
humanas expressamente previstas no corpo da Constituição pátria.
Isso significa dizer que o cidadão pode exigir um direito humano previsto em tratado internacional
sem a dependência de qualquer ato legislativo posterior que outorgue a vigência interna destes tratados. Trata-
se da sistemática de incorporação automática do direito internacional acerca dos direitos humanos.
Da mesma forma que a ratificação obriga diretamente o Estado brasileiro, as normas de direito
internacional sobre direitos humanos ratificadas geram, de imediato, direitos subjetivos para os indivíduos.
Assim, toda e qualquer norma interna anterior que seja incompatível com a norma internacional de
direitos humanos ratificada perde automaticamente a vigência, passando a ser passível de recurso 27 qualquer
27
Nesse sentido a CF, no art. 105, III, a, atribui ao Superior Tribunal de Justiça a competência para julgar, mediante
recurso especial, as causas decididas pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados “quando a
decisão judicial que a viole. Ainda, poderá ser aplicada sanção pecuniária em favor da pessoa física que sofreu
violação dos direitos humanos, quer pelo Judiciário pátrio, quer pelos Tribunais internacionais competentes.
Todavia, referentemente aos demais tratados internacionais dos quais o Brasil faça parte (tenha
ratificado), aplica-se a sistemática da incorporação legislativa, ou seja, para que as normas do tratado tenham
força jurídica interna, necessário que a legislação infraconstitucional as regulamente. Trata-se de um decreto
de execução de tratado internacional, expedido pelo Presidente da República. Tal decreto representa a
promulgação interna do tratado, garantindo-se o princípio da publicidade, sem o qual nenhuma lei pode
vigorar.
Assim, o Brasil adota um sistema misto de incorporação dos tratados internacionais: sistemática da
incorporação automática para os que versam sobre direitos humanos; sistemática da incorporação legislativa
para aqueles tradicionais.

2.5 O impacto jurídico dos tratados internacionais de direitos humanos no Direito interno brasileiro

Neste ponto, analisam-se as conseqüências jurídicas decorrentes da incorporação de normas


internacionais de direitos humanos pelo Brasil.
Três hipóteses são possíveis, pois o direito enunciado no tratado internacional poderá:

(a) coincidir com o direito assegurado pela Constituição: neste caso, as normas de direito internacional são
idênticas às da constituição.
Exemplos:
- art. 5°, III, CF/88 = art. V da Declaração Universal de 1948 + art. 7° do Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos (PIDCP) + art. 5° da Convenção Americana (“ninguém será submetido à tortura nem a
tratamento cruel, desumano ou degradante”).
- art. 5°, caput, CF/88 = art. VII da Declaração Universal de 1948 + art. 26 do PIDCP + art. 24 da Convenção
Americana (“todos são iguais perante a lei”).
- art. 5°, LVII, CF/88 = art. XI da Declaração Universal de 1948 + art. 14 do PIDCP + art. 8° da Convenção
Americana (“princípio da inocência presumida” – ninguém será considerado culpado senão por sentença
condenatória transitada em julgado).
- art. 5°, LXXVIII, CF/88 = art. 7° da Convenção Americana (“direito à razoável duração do processo, nos
âmbitos administrativo e judicial”).
Neste caso, a adesão aos tratados internacional reforça o valor destes direitos constitucionalmente
assegurados e sua violação poderá gerar responsabilização interna e internacional dos culpados.

(b) integrar, complementar e ampliar o universo de direitos constitucionalmente previstos: trata-se de


inúmeros direitos que, embora não previstos no texto constitucional, passam a incorporar o direito
constitucional brasileiro.
Assim, o direito internacional inova e amplia o universo dos direitos humanos constitucionalmente
assegurados.
Alguns exemplos, dentre tantos:
- Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais:
Art. 11: direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à
alimentação, vestimenta e moradia.

decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência”.


- Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos:
Art. 20: proibição de qualquer propaganda em favor da guerra e de qualquer apologia ao ódio
nacional, racial ou religioso, que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência [também
consta no art. 13 da Convenção Americana].
Art. 27: direito das minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas a ter a sua própria vida cultural,
professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua [também consta no art. 30 da Convenção
sobre o Direito da Criança].
Art. 7°: direito de não ser submetido a experiências médicas ou científicas sem consentimento do
próprio indivíduo.
- Convenção Americana:
Art. 4°: proibição do restabelecimento da pena de morte nos Estados em que a hajam abolido.
Art. 13: vedação da utilização de meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e
opiniões.
O Direito Internacional sobre direitos humanos também se integra com as normas constantes no
ordenamento brasileiro, como é o caso dos vários tratados contra a tortura ratificados pelo Brasil, que,
segundo o Supremo Tribunal Federal, integram a norma do art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
que é norma penal aberta. Assim, sendo a norma brasileira aberta, ou seja, lacunosa, estas lacunas são
juridicamente supridas pela adoção das normas pertinentes no direito internacional.
Art. 233, ECA: Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância à tortura.
Pena. Reclusão de um a cinco anos.
A lacuna deste artigo reside em não haver explicação, no direito interno, do que se entenda por tortura
contra crianças e adolescentes. Para solucionar esta lacuna, adota-se o direito internacional sobre os direitos
humanos.
Atualmente, em que pese tal artigo do ECA ter sido revogado pela Lei n° 9.455/1997, o STF continua
entendendo que no Brasil há previsão do crime de tortura conta crianças e adolescentes, utilizando-se, para tal
afirmação, da lei da tortura (Lei n 9.455/1997 28) que, reformada em 2003, passou a contemplar penalidade
para a tortura praticada contra criança; dos tratados contra a tortura de que o Brasil faz parte, sendo exemplos:
Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança/1990; Convenção contra a Tortura adotada pela
Assembléia Geral da ONU/1984; Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura/1985; Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (ou Pacto de São José da Costa Rica)/1969.

(c) contrariar preceito de direito interno: neste caso, como solucionar este conflito entre normas jurídicas do
direito interno e do direito internacional?
28
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o
fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de
natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso
sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental,
por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de
detenção de um a quatro anos.
§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta
morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público; II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência,
adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
O critério utilizado aqui é: “prevalece a norma mais favorável à vítima, que é o indivíduo titular do
direito humano”. Isto porque não se trata de saber qual das normas é hierarquicamente superior, se a interna
ou a externa, pois o que se deve considerar é a primazia da pessoa humana.
Esta solução é encontrada no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos ao estabelecer
que “nenhuma disposição ou Convenção pode ser interpretada no sentido de limitar o gozo e exercício de
qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtudes de leis de qualquer dos Estados-partes
ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados”.
Um exemplo de prevalência da norma mais benéfica é o art. 7° da Convenção Americana que
determina que ninguém deve ser detido em razão de dívida, a não o devedor de alimentos, contra a previsão
do art. 5°, LXVII da CF que autoriza a prisão do depositário infiel.
Por ser mais benéfica a norma internacional, o STF recentemente mudou seu posicionamento e não
tem mais admitido a prisão do depositário infiel, ao contrário do que era usual há alguns anos atrás, ou seja,
determinava-se a prisão do depositário infiel.
UNIDADE III – O SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIRETIOS HUMANOS29

3.1 Estrutura normativa do Sistema Global convencional de Proteção Internacional dos Direitos
Humanos

3.1.1 – Sistema global/geral de Proteção dos Direitos HUmanos – International Bill of Rights = PIDCP +
PIDESC
A evolução e universalização dos direitos humanos resultaram no consentimento dos Estados em
submeterem-se ao controle da comunidade internacional. Desde então os Estados vem sofrendo ingerência em
sua soberania.
O processo de universalização dos direitos humanos fez surgir também a international accountability,
que é uma sistemática internacional de monitoramento e controle, necessária à efetivação da proteção destes
direitos para que, assim, se cumpra o disposto no art. 55 da Carta da ONU, que prevê que todos os seus
Estados-membros devem promover a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, definidos
na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 (DUDH/1948).
Todavia, como este documento é uma Declaração, houve sérias controvérsias em torno de sua eficácia
vinculativa. Por isso, chegou-se à conclusão de que a DUDH/1948 deveria ser juridicizada, o que aconteceu
com a elaboração de dois tratados internacionais que contemplam os direitos humanos e liberdades
fundamentais inicialmente previstos na DUDH/1948. Trata-se do pacto internacional dos Direitos Civis e
políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Da junção desses dois pactos e da DUDH surgiu, em 1966, a International Bill of Rights (Carta
Internacional de Direitos – CID/1966), que se constitui em uma Carta que contempla os requisitos
minimamente necessários para que uma pessoa possa ter vida digna. Reflete uma visão moral da natureza
humana, por compreender os seres humanos como indivíduos autônomos e iguais, que merecem igualmente
consideração e respeito. Com a CID/1966 inaugura-se o sistema global de proteção desses direitos, ampliado
por diversos tratados multilaterais de direitos humanos - contemplando questões como o genocídio, a tortura,
a discriminação racial, a discriminação contra as mulheres, a violação dos direitos das crianças etc. -, os quais
são analisados na seqüência.
É importante destacar que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos não tem por
objetivo substituir os sistemas nacionais, mas possui caráter subsidiário e suplementar a estes sistemas, para
que suas omissões e deficiências sejam superadas. A responsabilidade primeira pela proteção dos direitos
humanos continua sendo dos Estados, possuindo, a comunidade internacional, responsabilidade subsidiária em
relação a esta proteção, sempre que os Estados falharem na sua missão em relação à proteção dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais.

3.1.1.1 Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Protocolo Facultativo ao Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PFPDCP)

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), embora tenha sido aprovado pela
Assembléia Geral da ONU em 1966, somente entrou em vigor em 1976. Em 2004 já contava com a ratificação
de 154 países. Este pacto possui um catálogo de direitos civis e políticos mais extenso do que o da DUDH e,
sendo um tratado internacional, obriga os Estados-partes a assegurar os direitos nele elencados a todos os
indivíduos que se encontrem sob sua jurisdição, bem como os obriga a proteger esses indivíduos contra a
violação dos direitos civis e políticos. Assim, as obrigações dos Estados-partes são de natureza negativa
(respeitar os direitos, como não torturar, por exemplo) e de natureza positiva (assegurar os direitos
contemplados no pacto, como criar um sistema legal capaz de responder às violações destes direitos).
29
Esta unidade tem por principal referência o capítulo VI da obra PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito
Constitucional Internacional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 157-254.
Este PIDCP é auto-aplicável e tem por principais direitos, dentre os contidos na DUDH: o direito à
vida; o direito de não ser submetido à tortura ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; o direito a
não ser escravizado, nem submetido à servidão; o direito à liberdade e à segurança pessoal e a não ser sujeito à
prisão ou detenção arbitrárias; o direito a um julgamento justo; a igualdade perante a lei; a proteção contra a
interferência arbitrária na vida privada; a liberdade de movimento; o direito a uma nacionalidade; o direito de
casar e formar família; as liberdades de pensamento, consciência e religião; as liberdades de opinião e de
expressão; o direito à reunião pacífica; a liberdade de associação; o direito de aderir a sindicatos e o direito de
votar e de tomar parte do Governo.
Além desses, contempla outros direitos que não constam na DUDH: o direito de não ser preso em
razão do descumprimento de obrigação contratual; o direito da criança ao nome e à nacionalidade; a proteção
dos direitos de minorias à identidade cultural, religiosa e lingüística; a proibição da propaganda de guerra ou
de incitamento a intolerância étnica ou racial; o direito à autodeterminação, dentre outros.
Em 1989, foi criado o Segundo Protocolo ao PIDCP, cuja entrada em vigor data de 1991. Este
Segundo Protocolo ao PIDCP proibiu a pena de morte, estabelecendo que “[...] ninguém dentro da jurisdição
de um Estado-parte [...] poderá ser executado [....], e cada Estado-parte deverá adotar todas as medidas
necessárias a abolir a pena de morte em sua jurisdição [...]”. Em 2004, 54 países já haviam firmado sua
adesão, mas o Brasil ainda não o ratificou.
O PIDCP admite certas limitações a alguns dos direitos que contempla, em casos necessários à
segurança nacional e à ordem pública, quando é decretada situação de emergência, mas desde que os Estados-
partes não submetam os indivíduos a situações indignas e degradantes.
Para que se tenha um controle sobre os Estados-partes, eles são obrigados a enviar ao Comitê de
Direitos Humanos do PIDCP relatórios anuais (e sempre que solicitados) acerca das medidas administrativas,
legislativas e judiciais adotadas, com a finalidade de implementar os direitos contidos no PIDCP. Dessa
forma, estão sujeitos ao controle internacional e à exposição de seus procedimentos ao mundo todo. Este
Comitê, após a análise do relatório, submete-o ao Conselho Econômico e Social da ONU.
Ainda como forma de controle, cada Estado-parte pode alegar a violação dos direitos contidos no
PIDCP impetrada por outro Estado-parte (comunicações interestaduais) e encaminhar estas alegações ao
Comitê. Todavia, este Comitê, para que possa examiná-las, deve ser reconhecido competente para esta
finalidade por ambos os Estados (denunciador e denunciado), mediante uma declaração. A função do Comitê,
neste caso, é tentar uma solução amistosa entre os países envolvidos. Até 1996, dos 132 Estados-partes do
PIDCP, 42 haviam assinado esta declaração, reconhecendo a competência do Comitê de Direitos Humanos
para dirimir as comunicações interestaduais.
Aos países violadores aplicam-se sanções de boicote, embargos e suspensão da assistência
internacional, como forma de pressioná-los a agirem de forma protetiva em relação aos direitos constantes no
PIDCP.

Quanto ao Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PFPIDCP), foi
uma medida adotada em 1966 com o objetivo de ampliar os mecanismos de implementação e monitoramento
dos países em relação aos direitos humanos contidos no PIDCP, pois permite que os cidadãos apresentem
petições individuais denunciando a violação desses seus direitos ao Comitê de Direitos Humanos do PIDCP.
O PFPIDCP é o mecanismo que permitiu o direito de petição individual àqueles indivíduos vítimas de
violação dos direitos enunciados no PIDCP.
Até 2004, 104 Estados haviam aderido ao PFPIDCP e esta adesão é a condição para que um nacional
possa peticionar junto ao Comitê de Direitos Humanos. O Brasil assinou, mas não ratificou este protocolo.
A legitimidade para peticionar é do indivíduo violado em seus direitos, ou de organizações que o
represente. Os requisitos de admissibilidade são: terem-se esgotados os recursos internos (salvo quando
excessivamente demorados ou quando não existem no país violador dos direitos); não estar a questão sendo
submetida a outros órgãos internacionais. Satisfeitos estes requisitos e recebida a petição, o Estado possui seis
meses para dar explicações ao Comitê. Dessas explicações terá ciência o autor, que poderá replicar. Após, o
Comitê publicará sua decisão no relatório anual do Comitê à Assembléia Geral da ONU.
Esta decisão pode conter a declaração da violação e a determinação de reparo à violação cometida,
para que se observem os preceitos do PIDCP e sejam respeitados e garantidos seus direitos. Todavia, o
Comitê não tem como obrigar o Estado violador a cumprir com sua decisão, mas a divulgação da violação e
do não cumprimento das medidas reparatórias no plano internacional causa constrangimento político e moral
ao Estado denunciado, o que pode ser-lhe prejudicial.
Observa-se que há também o Segundo Protocolo Facultativo ao PIDCP, que trata da abolição da pena
de morte que não foi assinado pelo Brasil.

3.1.1.2 Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)

Este Pacto, assim como o PIDCP, é mais extenso que a DUDH/1948, pois incorporou os direitos
econômicos, sociais e culturais nela contidos, expandindo-os. Sendo um tratado internacional (em 2004, havia
151 Estados-partes), não deixa dúvidas de que os países signatários devem observá-lo. Inclusive, a
inobservância dos signatários aos preceitos do PIDESC pode ensejar responsabilização internacional. Os
Estados-partes possuem o dever de respeitar, proteger e implementar os direitos previstos neste PIDESC.
Dentre os direitos previstos neste Pacto, cita-se o direito: ao trabalho e à justa remuneração; a formar e
associar-se a sindicatos; a um nível de vida adequado; à moradia, à educação e à previdência social; à saúde e
à participação na vida cultural da comunidade. São todos direitos fundamentais e inseparáveis dos direitos
humanos, à luz do princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, o qual foi reafirmado pela ONU na
Declaração de Viena de 1993. Não é possível o bem-estar individual a um indivíduo que não goze de bem-
estar social, ou seja, ninguém possui dignidade sem ter acesso a recursos econômicos, sociais e culturais.
Dessa forma, tanto os direitos civis e políticos, quanto os direitos econômicos, sociais e culturais são
acionáveis (as Cortes interpretam tais direitos e as políticas públicas deles decorrentes) e demandam séria e
responsável observância.
Enquanto o PIDCP estabelece direitos e deveres endereçados aos indivíduos (“todos têm direito à ....”;
“ninguém poderá...”), e são de aplicabilidade imediata, o PIDESC estabelece deveres endereçados aos
Estados-partes (“os Estados-partes reconhecem o direito de cada um a.....”). Trata-se de normas
programáticas, sendo necessário que estes Estados adotem medidas econômicas e técnicas, inclusive de
cooperação internacional, até o máximo de seus recursos, que possibilitem a progressiva e completa realização
dos direitos previstos no PIDESC em cada Estado.
Como a implementação deve ser progressiva, os Estados-partes estão proibidos de retroceder ou de
reduzir suas políticas públicas voltadas à garantia dos direitos previstos no PIDESC. Trata-se de uma cláusula
de proibição do retrocesso social.
Para que seja respeitado, os Estados-partes devem elaborar relatórios consignando as medidas
adotadas em observância ao PIDESC, bem como as dificuldades encontradas no processo de implementação
desses direitos. Diferentemente do PIDCP, que criou um Comitê de Direitos Humanos próprio para a
apreciação dos relatórios, neste caso os relatórios são enviados ao Secretário-Geral da ONU que, por sua vez,
encaminhará cópia ao Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, órgão este que pertence ao
Conselho Econômico e Social da ONU.
Outra diferença em relação aos mecanismos procedimentais adotados pelo PIDCP é que, neste caso do
PIDESC, também não há a possibilidade de comunicação interestatal, nem de petições individuais.
Apesar da importância do PIDESC e dos direitos que contempla, a comunidade internacional tende a
dar mais atenção às violações aos direitos civis e políticos, em detrimento das violações aos direitos
econômicos, sociais e culturais, pois estes dependem mais diretamente das ações de cada Estado
isoladamente. Não se observa grande pressão internacional em relação às violações do PIDESC. Além disso, o
processo de globalização econômica tem agravado as desigualdades sociais e, em conseqüência, aumentado a
exclusão social.
É preciso chegar-se à consciência mundial de que direitos econômicos, sociais e culturais devem ser
reivindicados como direitos e não como caridade ou generosidade dos governos.
3.2 – Sistema global especial de proteção dos direitos humanos = demais convenções

3.2.1 Demais convenções internacionais de direitos humanos: breves considerações sobre o sistema especial
de proteção

Da junção dos dois pactos estudados (PIDCP – PIDESC) e da DUDH surge o International Bill of
Rights, que é o sistema global/geral de proteção aos direitos. Porém, com o surgimento de novas situações,
surgem também novos direitos e novos destinatários destes direitos. Deixam de ser titulares de direitos apenas
os indivíduos isoladamente considerados, e passam a ser titulares de direitos também as entidades de classe, as
organizações sindicais, alguns grupos vulneráveis e a própria humanidade.
Dessa forma, o sistema global/geral de proteção necessitou ser complementado pelo sistema especial
de proteção aos direitos, pois este é voltado à prevenção da discriminação e à proteção de pessoas ou grupos
de pessoas particularmente vulneráveis, sendo merecedores de tutela especial. Em razão disso, o sistema
internacional passou a reconhecer direitos endereçados às crianças, aos idosos, às mulheres, às vítimas de
tortura e de discriminação racial, dentre outros, do que decorreu a criação de novas Convenções
Internacionais, com a intenção de proteger tais direitos, para que se tivesse assegurada a igualdade com
respeito à diversidade.30
Analisar-se-á algumas dessas Convenções Internacionais.

Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial


Em 2004, esta convenção contava com a adesão de 170 países, dentre eles o Brasil. Para esta
Convenção, está proibida toda e qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência aos direitos baseada na
raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica. Tudo isso é considerado discriminação racial, ou seja,
tratamento desigual em relação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais nos campos político,
econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Assim, os países-membros estão obrigados
internacionalmente em, progressivamente, eliminar a discriminação racial, assegurando a efetiva igualdade
entre todos, não apenas criminalizando condutas discriminatória como agindo mediante adoção de medidas
especiais de proteção e inclusão de grupos ou indivíduos com vistas a prover sua inserção e crescimento
sociais.
Isto porque, como a mera proibição da exclusão não resulta em inclusão, os Etados-partes necessitam
criar políticas capazes de estimular a inserção e a inclusão social de grupos socialmente vulneráveis à
discriminação racial. É a chamada discriminação positiva (ou ação afirmativa).
No aspecto procedimental, esta Convenção criou o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação
Racial, responsável pelo exame das petições individuais, dos relatórios enviados pelos Estados-partes e das
comunicações interestaduais, nos moldes do Comitê dos Direitos Humanos criado pelo PIDCP. Observa-se
que para ser admitida a petição individual, o Estado-parte deve firmar uma declaração em que declare a
competência do Comitê para o exame das petições individuais (cláusula facultativa). Além disso, para que
uma petição seja admitida (pressupostos de admissibilidade), é necessário que se comprove o esgotamento, a
ineficiência ou o injusto prolongamento de todos os recursos internos (próprios de cada Estado).
Este Comitê age à semelhança do Comitê dos Direitos Humanos do PIDCP: analisa todas as
informações, solicita informações e esclarecimentos ás partes envolvidas, formula sua opinião e faz
recomendações aos Estados-partes. Como o Comitê não possui força jurídica vinculante, aos Estados
infratores aplica-se a sanção da veiculação das infrações perante a comunidade internacional, pois anualmente
o Comitê elabora um relatório, encaminhando-o à Assembléia Geral das Nações Unidas.

30
SANTOS, Boaventura de Souza: “Temos o direto de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito de sermos diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que
reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”
Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher
Esta convenção encontrou forte resistência em países que delegam à mulher apenas o espaço
doméstico e familiar, principalmente em virtude de preceitos religiosos, citando-se como exemplo
manifestações por parte do Egito e da Índia. É, até hoje, a Convenção que teve menor adesão da comunidade
internacional.
Por discriminação contra a mulher, nos termos constantes nesta Convenção, entende-se toda
discriminação, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objetivo ou resultado prejudicar ou
anular o reconhecimento, gozo e exercício, pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na
igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos campos político,
econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Há, também, preocupação com os direitos reprodutivos, garantindo-se às mulheres o direito de
escolher quantos filhos querem ter, direito este aliado ao dever do Estado em prestar-lhes assistência social e
econômica adequadas, para que possam planejar sua prole. Noutras palavras, os Estados devem assegurar que
as mulheres não sejam coagidas na sua escolha pela maternidade.
Igualmente a violência contra a mulher deve ser combatida e eliminada, não sendo permitido aos
Estados que invoquem qualquer costume, tradição ou consideração religiosa para afastar estas obrigações.
Com esta finalidade, em 1993 a Convenção adotou a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a
Mulher, que define a violência como qualquer ato de violência baseado no gênero que resulte, ou possa
resultar, em dano físico, sexual ou psicológico ou em sofrimento para a mulher, inclusive as ameaças de tais
atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, podendo ocorrer na esfera pública ou na esfera privada.
Os Estados-partes, além de estarem proibidos de adotar práticas discriminatórias e de punir tais
práticas, estão obrigados a adotar políticas positivas/ações afirmativas compensatórias para que,
gradativamente, as desigualdades entre homens e mulheres sejam eliminadas. Alia-se à vertente repressivo-
punitiva a vertente positivo-promocional.
Também esta Convenção criou um Comitê, que atua nos moldes dos demais Comitês: possui
competência para o recebimento dos relatórios elaborados pelos Estados-partes e competência para a análise
das petições individuais, bem como para realizar investigações in loco. Em relação a estes dois
procedimentos, somente serão aceitos mediante a declaração de competência do Comitê pelos Estados-parte,
através da assinatura do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra a Mulher.
Este mesmo pacto prevê que o Comitê possa agir de ofício, ou seja, em havendo indicadores de
discriminação contra a mulher, pode investigar sem que tenha sido provocado por algum interessado (a
própria pessoa que sofreu discriminação ou algum Estado).

Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes


Esta Convenção foi adotada pela ONU em 1984 e seu art. 1° define tortura 31 como o ato deliberado de
agente público (pessoa ligada direta ou indiretamente ao Estado) que causa dor ou sofrimentos físicos ou
mentais, com a finalidade de obter informações ou confissões, aplicação de castigo, intimidação ou coação e
qualquer outro motivo baseado em discriminação de qualquer natureza.
Inclui-se, nesta proteção contra a tortura, o direito de não haver extradição ou expulsão para países
onde haja potencial risco de tratamento torturante; o direito à indenização, em caso de ter havido a tortura; o
direito a que a denúncia sobre a tortura seja examinada imparcialmente; o direito a não ser torturado para fins
de obtenção de prova ilícita, como a confissão.
31
PIOVESAN, op. cit., p. 196: o crime de tortura, no Brasil (Lei n. 9.455/97), não exige que o ato seja cometido por
pessoa vinculada ao Estado, ou seja, qualquer pessoa pode cometer tortura e, nesse aspecto, o tipo penal brasileiro é mais
amplo do que o internacional. Todavia, é mais restrito no tocante à finalidade do ato, pois enquanto pela convenção o ato
que causa a dor ou sofrimento pode ter por causa qualquer tipo de discriminação, no Brasil, para ser considerado tortura,
este ato deve ser baseado em discriminação racial ou religiosa.
A Convenção estabelece jurisdição compulsória e universal para os suspeitos da prática da tortura.
Compulsória, porque obriga aos Estados-partes que punam os responsáveis, independentemente da
nacionalidade ou da localidade onde a tortura tenha sido praticada. Universal, porque o Estado-parte em que
se encontre o suspeito da prática de tortura deverá processá-lo ou, então, extraditá-lo para outro Estado que,
tendo o direito de processar o suspeito, solicite a extradição, independentemente da prévia existência de
acordo de extradição entre estes países. Cita-se como exemplo o pedido de extradição do General Pinochet,
feito pelo governo espanhol à Inglaterra.
Procedimentalmente, há um Comitê contra a tortura e adota-se os mecanismos já analisados:
relatórios anuais dos Estados-parte; petição individual 32; comunicações interestaduais; fiscalização in loco
(inclusive de ofício, ou seja, sem provocação dos Estados).
Tanto para as petições individuais quanto para as comunicações interestaduais e a fiscalização in loco
é preciso que os Estados declarem a competência do Comitê para esta finalidade. Da mesma forma que nas
demais Convenções, adota-se a publicidade das decisões do Comitê como forma de pressionar o Estado
violador, submetendo-o a situações embaraçosas perante a comunidade internacional.

Convenção sobre os direitos da criança


Esta Convenção foi adotada pela ONU em 1989 e define criança como todo ser humano com menos
de 18 anos de idade, a não ser que, pela legislação aplicável, a maioridade seja atingida mais cedo. À criança
deve ser exigida proteção especial e de absoluta prioridade.
São direitos das crianças, pela Convenção: direito à vida e à proteção contra a pena capital; a ter uma
nacionalidade; a proteção ante a separação dos pais; de deixar qualquer país e de entrar em seu próprio país;
de entrar e sair de qualquer Estado-parte para fins de reunificação familiar; a proteção para não ser levado
ilicitamente para o exterior; a proteção de seus interesses no caso de adoção; a liberdade de pensamento,
consciência e religião; ao acesso aos serviços de saúde, devendo o Estado reduzir a mortalidade infantil e
abolir práticas tradicionais prejudiciais à saúde; a um nível adequado de vida e segurança social; à educação,
devendo os Estados oferecer educação primária compulsória e gratuita; proteção contra a exploração
econômica, com a fixação de idade mínima para a admissão em emprego; proteção contra o envolvimento na
produção, tráfico e uso de drogas e substâncias psicotrópicas; proteção contra o abuso e a exploração sexual.
Note-se que essa proteção engloba direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, reforçando
a tendência de enfatizar-se a indivisibilidade dos direitos humanos, pois todos devem ser devidamente
protegidos e implementados, sem que se atribua prioridade a nenhum deles separadamente.
A proteção veiculada nesta Convenção foi ampliada pela adoção, em 2000, do Protocolo Facultativo
sobre a Venda de Crianças, Prostituição e Pornografias Infantis, e o Protocolo Facultativo sobre o
Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados. Além de proibir tais práticas, obriga os Estados-partes a
promoverem a criminalização destas condutas, punido os responsáveis. Ambos foram ratificados pelo Brasil
em 2002.
Para fiscalizar o cumprimento desta Convenção e Protocolos respectivos, criou-se o Comitê sobre
Direitos da Criança, responsável pela análise dos relatórios anuais enviados pelos estados-membros. Não
houve a adoção das petições individuais e da possibilidade de comunicações interestaduais, o que é uma
lástima. A atuação do Comitê quanto aos relatórios e às punições é a mesma dos demais Comitês já
analisados.
Outra lástima, e agora relacionada a todas as modalidades de proteção até aqui analisadas, referentes a
todas as Convenções e aos PIDCP e PIDESC, é a falta de uma jurisdição que garanta a aplicabilidade desses
direitos internacionalmente positivados, ou seja, a falta de um Tribunal Internacional com competência para
julgar os casos relacionados ao Direito Internacional dos Direitos Humanos.

O Tribunal Internacional e a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio


32
Em 2004, 242 petições individuais haviam sido recebidas pelo Comitê. Maiores informações podem ser conseguidas
em: <<http://unhchr.ch/html/menu2/8/stst3.htm>>.
A Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio foi o primeiro tratado
internacional de proteção dos direitos humanos, datando de 1948, em razão das atrocidades cometidas na II
Grande Guerra.
Define genocídio como atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso, como: (a) assassinatos de membros de grupos; (b) dano grave à
integridade física ou mental de membros do grupo; (c) submissão intencional do grupo a condições de
existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; (d) medidas destinadas a impedir os
nascimentos no seio do grupo; e, (e) transferência forçada de crianças de um para outro grupo.
A Convenção prevê punição aos envolvidos, sejam governantes, funcionários os particulares, e prevê
que o julgamento será feito pelo Tribunal do próprio Estado onde ocorreu o genocídio, quando isso for
possível, ou pelo Tribunal Penal Internacional, criado para esta finalidade, o qual atuará sempre que o
Tribunal estadual não for capaz de processar e julgar os acusados.
Antes da instauração do Tribunal Penal Internacional, houve alguns Tribunais ad hoc (temporários)
com a finalidade de processar e julgar criminosos contra a humanidade, como o Tribunal de Nuremberg e de
Tóquio, e os Tribunais da Bósnia (1993: crimes contra os direitos internacionais cometidos na antiga
Iuguslávia) e da Ruanda (1994: crimes cometidos ao longo da guerra civil em Ruanda).
Norberto Bobbio afirmou que somente após a aprovação do estatuto do Tribunal Penal Internacional,
que o tornou permanente e independente, é que o sistema global de proteção aos direitos humanos passou a
contar com a efetiva garantia desses direitos, pois anteriormente só havia promoção e fiscalização desses
direitos, na medida em que era impossível a punição penal.
Este tribunal é complementar aos tribunais estaduais, atuando no combate à impunidade contra os
crimes internacionais. É, pois, responsabilidade própria dos Estados o combate a esses crimes, mas, na
ausência ou omissão destes, entra em ação o Tribunal Penal Internacional, que possui jurisdição permanente e
complementar.
Para que se estabeleça a jurisdição do Tribunal Penal Internacional é preciso que o Estado-parte tenha
ratificado o Tratado de Roma na íntegra, ou seja, sem reservas nem ressalvas. O Brasil adotou o TPI inclusive
declarando esta adoção no art. 5°, § 4° da CF/88.
Uma vez que haja tal ratificação integral, são requisitos de admissibilidade da jurisdição internacional
a indisposição do Estado-parte (quando, por exemplo, houver demora injustificada ou faltar independência ou
imparcialidade no julgamento) ou sua incapacidade de proceder à investigação e ao julgamento do crime
(quando houver o colapso total ou parcial do sistema de justiça).
É de competência deste Tribunal Penal Internacional o julgamento dos seguintes crimes:
- (a) de genocídio (tal como definido na Convenção: homicídios de membros de grupos; ofensas graves à
integridade física ou mental de membros de grupos; sujeição intencional do grupo a condições de vida com
vista a provocar sua destruição física total ou parcial; imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos
no seio do grupo; transferência, à força, de crianças de um para outro grupo);
- (b) contra a humanidade (incluindo-se aqui ataques generalizados e sistemáticos contra a população civil,
sob a forma de assassinato, extermínio, escravidão, deportação, encarceramento, tortura, violência sexual,
estupro, prostituição, gravidez e esterilização forçadas, desaparecimento forçado de pessoas, o crime de
apartheid, dentre outros que atentem contra a integridade física ou mental);
- (c) crimes de guerra (definidos nas Convenções de Genebra de 1949, como violações ao direito internacional
humanitário); e
(d) crimes de agressão (estes ainda sem definição, nos termos do art. 5. do referido estatuto). 33
As principais penas são pena máxima de 30 anos, prisão perpétua, excepcionalmente, quando
justificada pela extrema gravidade do crime de pelas circunstâncias pessoais do condenado, multa e perda de

33
Para quem se interessar em saber como age este Tribunal, ou seja, como se procede com os processos por ele julgados,
vide PIOVESAN, op. cit.,
produtos e bens provenientes direta ou indiretamente do crime. Há ainda sanções civis de reparação
indenizatória às vítimas.
Ressalta-se que há responsabilidade primária do Estado em relação ao julgamento de violações de
direitos humanos, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária.
A estrutura do Tribunal Penal Internacional compreende:
- 18 juízes, com mandatos de 9 anos;
- Presidência (responsável pela administração do Tribunal);
- Seção de Recursos;
- Seção de Julgamento em Primeira Instância;
- Seção de Instrução (composta pela Câmara das Questões Preliminares, pela Câmara de Primeira Instância e
pela Câmara de Apelação);
- Gabinete do Procurador (Promotoria: órgão autônomo do Tribunal competente para receber as denúncias
sobre crimes, examiná-las, investigá-las e propor ação penal junto ao Tribunal);
- Secretaria (encarregada de aspectos não-judiciais da administração do Tribunal).

3.2 Sistema global não convencional de proteção dos direitos humanos

Todos os mecanismos vistos até o momento (Convenções, Pactos e Comitês) são denominados de
mecanismos convencionais de proteção aos direitos humanos, no plano internacional. Há, entretanto, outros
mecanismos além desses, denominados de não convencionais, que são resoluções elaboradas por organismos
da ONU, como: a Assembléia Geral da ONU; o Conselho Econômico e Social; a Comissão de Direitos
Humanos, abolida e substituída, em 2006, pelo Conselho de Direitos Humanos, entre outros.
A junção dos mecanismos convencionais de proteção com os não convencionais forma o sistema
global de proteção dos direitos humanos.
Aqueles mecanismos, os convencionais, aplicam-se somente aos Estados-parte e possuem
procedimentos próprios e limitados, como já estudados, caso a caso (Comissões, PIDCP, PIDESC), aplicados
em face de violações de direitos humanos.
Já os mecanismos não convencionais da Comissão dos Direitos Humanos da ONU, que serão
estudados na seqüência, focalizam uma gama maior de direitos e insistem que todos os Estados sejam clientes
potenciais (independentemente de seus vínculos com a ONU), sendo que suas ações consistem em medidas
urgentes de proteção em caráter muito mais preventivo do que punitivo. Além disso, baseia-se muito mais em
informações trazidas pelas ONG’s e pela opinião pública para exercer suas atribuições protetivas aos direitos
humanos do que propriamente às questões normativas.
Os mecanismos não convencionais são muito mais políticos que normativos.

Mecanismos da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas: de 1946 a 1967 esta comissão atuava
genericamente em quaisquer questões afetas aos direitos humanos e sua maior atuação foi na elaboração de
projetos para as várias Convenções e pactos estudados.
Em 1967, passou a atuar na apreciação de casos específicos de violação dos direitos humanos,
seguindo, para tal, dois procedimentos: o procedimento 1235 e o procedimento 1503, este alterado em 2003.
O Procedimento 1235, criado pelo Conselho Econômico e Social da ONU, autoriza a Comissão de
Direitos Humanos a examinar informações sobre violações sistemáticas de direitos humanos e a tomar as
seguintes medidas: aconselhamentos aos Estados; a adoção de uma resolução, determinando que o Estado
apresente informações; mero requerimento ao Estado para que responda às alegações; a adoção de uma
resolução determinando que o Estado adote medidas cabíveis; a indicação de um relator especial ou de um
grupo para examinar a situação; um requerimento ao Conselho de Segurança da ONU para que estude o caso e
adote eventuais sanções.
O Procedimento 1503, também criado pelo Conselho Econômico e Social da ONU, objetiva o exame
de comunicações de violações sistemáticas de direitos humanos enviadas por indivíduos, grupo de indivíduos
ou organizações não governamentais.
Há críticas a este procedimento 1503, pois seu regime é confidencial, ou seja, não há divulgação
pública dos fatos, o que o torna pouco democrático e dificulta a pressão pública, no sentido de adoção das
medidas necessárias a cada caso. Além disso, a maioria das comunicações aceitas versam apenas sobre
violação de direitos civis e políticos; há necessidade de que as violações sejam sistemáticas ou consideradas
muito graves.
Tais comunicações são recebidas pelo Grupo de Trabalho sobre Comunicações, que tem a missão de
analisar se estão presentes alguns requisitos: o objeto da comunicação não pode ser inconsistente com os
princípios da Carta das Nações Unidas; deve haver fundamentos razoáveis para acreditar que a comunicação
revela um padrão consistente de violações sistemáticas a direitos humanos; a comunicação deve ser
endereçada por indivíduos ou ONG’s que tenham tido conhecimento direto e confiável acerca da violação; a
comunicação não deve ser anônima; deve descrever os fatos, indicar os objetivos da petição e os direitos que
foram violados; não usar linguagem abusiva; não deve ter motivações manifestamente políticas; não deve
pautar-se exclusivamente em artigos da mídia; não deve prejudicar as funções de agências especializadas na
ONU; os remédios existentes no âmbito nacional devem ter-se esgotado ou se mostrado ineficientes; a
comunicação deve ser feita em um prazo razoável.
Verificando estarem presentes os requisitos citados, a Comunicação é enviada ao Grupo de Trabalho
sobre Situações, que elabora um relatório e remete para a Comissão dos Direitos Humanos da ONU.
Esta Comissão, recebido o relatório, pode adotar uma das medidas: cancelar o estudo sobre a situação
determinada; manter a situação sob análise, requerendo ao Estado envolvido maiores informações; apontar um
especialista independente; cancelar o estudo da situação sob a Resolução n° 1503 e iniciar um procedimento
público sob a Resolução n° 1235.
Ambos os Procedimento autorizam a indicação, pela Comissão de Direitos Humanos, de um relator
especial, de relatores temáticos ou ainda de grupos de trabalhos para atuarem em países investigados, com o
objetivo de examinarem determinadas violações aos direitos humanos in loco. O Brasil já recebeu a visita de
relatores temáticos: em 1996, relatora referente à violência contra a mulher; em 2000, relator referente à
tortura; em 2002, relator referente ao direito à alimentação; em 2003, relator referente à venda de crianças e à
prostituição infantil, e relatora referente às execuções sumárias e arbitrárias; em 2004, do relator referente ao
direito à moradia, e do relator referente à independência dos juízes e advogados, do relator referente ao direito
ao desenvolvimento; em 2005, do relator especial sobre formas contemporâneas de racismo e do representante
especial da Secretaria-Geral referente à situação dos defensores de direitos humanos; em 2007, do relator
especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias.

Podem ser apontadas as seguintes diferenças entre os mecanismos globais convencionais e os


mecanismos globais não convencionais:

MECANISMOS GLOBAIS CONVENCIONAIS MECAN. GLOBAIS NÃO CONVENCIONAIS


Clientela limitada – membros dos pactos e Todos os Estados são clientes, mesmo que não façam
convenções parte de pactos e convenções
Temas ligados aos pactos e convenções Temas diversificados
Preocupação com a normatização dos DH Pouca atenção às questões normativas
Número limitado de mecanismos/procedimentos a Procedimentos mais flexíveis e mais amplos –
serem usados adaptados às situações (visitação in loco)
Processo decisório baseado no consenso – tentativa Pode haver ações conflitivas entre os Estados –
de evitar conflito entre os Estados baseado na pressão política
Informações pelos Estados-membros dos pactos e Informações pelas ONG`s e opinião pública
comissões

Como já referido no início deste item, a Comissão de Direitos Humanos da ONU foi abolida e
substituída pelo Conselho de Direitos Humanos, em 2006.
Cabe a este Conselho assumir, revisar e, quando necessário, aprimorar e racionalizar os mandatos, os
mecanismos e as funções e responsabilidades da antiga Comissão dos Direitos Humanos, agora do Conselho
dos Direitos Humanos da ONU, para manter e dar continuidade aos procedimentos vistos.
A escolha entre um mecanismo global convencional e um não convencional depende de cada caso
concreto, considerando-se se o Estado violador é ou não parte do pacto ou da convenção violada, se há ou não
pressão pública/política suficiente para sensibilizar os governos, se existe ou não o interesse em construir
precedentes normativos.

OBSERVAÇÃO: atuação do Brasil na ONU34


O Brasil participa dos processos de tomada de decisão e do trabalho das Nações Unidas
principalmente por meio de quatro representações permanentes — nas cidades de Nova York (Estados
Unidos), Genebra (Suíça), Roma (Itália) e Paris (França).
A função das representações é acompanhar de perto a agenda da ONU, ter informações mais
específicas sobre os trabalhos e ampliar a participação do país no sistema. As despesas são inteiramente
custeadas pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Em Nova York: na sede das ONU, em Nova York, o Brasil mantém a Missão Permanente junto às Nações
Unidas , que é chefiada pelo embaixador Ronaldo Motta Sardenberg. O quadro de serviço exterior —
diplomatas, oficiais de chancelaria e assistentes de chancelaria brasileiros — é composto por 32 pessoas, sem
contar os funcionários de outras nacionalidades.
A missão é responsável pela participação do Brasil em todos os eventos da ONU que interessem ao
país, nas reuniões da Assembléia Geral e, periodicamente, do Conselho de Segurança, onde o Brasil ocupa um
assento não-permanente.

Em Genebra: no segundo maior escritório da ONU, em Genebra, a Delegação Permanente do Brasil é


chefiada pelo embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa. O quadro de serviço exterior é composto por 31
pessoas. A equipe participa das ações da sede suíça, responsável, fundamentalmente, por trabalhos relativos à
África, ao Oriente Médio e à Ásia.
Em Roma: - na Representação Permanente do Brasil junto à FAO (Organização das Nações Unidas para
Agricultura e Alimentação), sob a direção do Embaixador José Antônio Marcondes de Carvalho, o quadro de
serviço, composto por 11 brasileiros, trabalha integrado à Agência para combater a fome e a pobreza,
aumentar o nível de nutrição das pessoas, ampliar a produção e a produtividade agrícola dos países e melhorar
a qualidade de vida das populações rurais, por meio do desenvolvimento sustentável.
Em Paris: na Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em Paris, a
Delegação Permanente do Brasil é chefiada pelo embaixador Antonio Augusto Dayrell de Lima. Os setes
brasileiros do quadro de serviço trabalham, assim como toda a equipe da agência, para promover a paz e os
direitos humanos com base na "solidariedade intelectual e moral da humanidade”
34
Disponível em: <<http://www.onu-brasil.org.br/obrasilnaonu.php>>. Acesso em 12/04/2010.
3.3 A estrutura normativa do sistema regional de proteção dos direitos humanos

Lado a lado com o sistema global de proteção dos direitos humanos temos o sistema regional de
proteção dos direitos humanos.
Na verdade, são três os sistemas regionais: interamericano, europeu e africano.
O sistema interamericano é instrumentalizado pela Convenção Americana dos Direitos (de 1969), que
estabeleceu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana.
Os sistemas global e regional não se excluem nem são incompatíveis, sendo ambos úteis e
complementares. Tem-se que há um código universal dos direitos humanos, que é a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (de 1948), com base nos qual os sistemas global e regional se estruturam e buscam seguir e
aprimorar.
Poder-se-ia até mesmo arriscar o palpite de que por vezes o sistema regional oferece mais vantagens
que o global, pois quando há um número menor de Estados envolvidos é mais fácil se chegar ao consenso,
devido à relativa homogeneidade cultural e lingüística da região, e, também, porque países vizinhos podem
exercer pressões mais fortes em face uns dos outros, o que resulta em sanções mais eficientes e eficazes.
Caberá ao indivíduo escolher, dentro do possível, o aparato mais favorável ao seu interesse, à proteção
do seu direito, uma vez que nos direitos humanos a primazia é da norma mais favorável ao indivíduo.

A Organização dos Estados Americanos (OEA) é uma organização internacional estabelecida, em


1948, pela Carta dos Estados Americanos, para obter entre seus Estados membros, como indica o Artigo 1º da
sua Carta, “uma ordem de paz e de justiça, para promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e
defender sua soberania, sua integridade territorial e sua independência”. Hoje ela compreende os 35 Estados
independentes das Américas e constitui o principal fórum governamental político, jurídico e social do
Hemisfério.
Contudo, o estabelecimento da organização internacional que hoje reúne todos os Estados das
Américas e do Caribe marcou uma etapa de um longo processo que remonta a 1889, quando, nas conferências
de Estados americanos, estava sendo tecida uma rede de disposições e instituições que ficou conhecida como
o “Sistema Interamericano”, o mais antigo sistema institucional internacional.
Ainda em 1948, a OEA criou a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.
Os principais órgãos da OEA são:
- Assembléia Geral: órgão diretivo da OEA. A Assembléia Geral realiza períodos ordinários de sessões uma
vez por ano. Em circunstâncias especiais reúne-se em períodos extraordinários de sessões. A Reunião de
Consulta é convocada a fim de considerar problemas de natureza urgente e de interesse comum e para servir
de Órgão de Consulta na aplicação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), o principal
instrumento de ação solidária em caso de agressão.  O Conselho Permanente toma conhecimento dos assuntos
de que o encarreguem a Assembléia Geral ou a Reunião de Consulta e executa as decisões de ambas, quando
seu cumprimento não haja sido confiado a nenhuma outra entidade; vela pela manutenção das relações de
amizade entre os Estados membros, bem como pela observância das normas que regulam o funcionamento da
Secretaria Geral e, ademais, atua provisoriamente como Órgão de Consulta para a aplicação do TIAR.   A
Secretaria Geral é o órgão central e permanente da OEA. A sede, tanto do Conselho Permanente como da
Secretaria Geral, é a cidade de Washington, D.C.
- Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores: funciona como órgão de consulta e para
resolver questões de caráter urgente. A convocação desta Reunião deve ser solicitada ao Conselho
Permanente;
- Conselho Permanente: exerce as funções que lhe forem confiadas pela Assembléia Geral e pela Reunião de
Consulta dos Ministros das Relações Exteriores.
Vela pela manutenção das relações de amizade entre os Estados membros e, para essa finalidade, ajuda de
uma maneira efetiva na solução pacífica de suas controvérsias. Executa as decisões da Assembléia Geral ou da
Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores cujo cumprimento não tenham sido encarregado a
nenhuma outra entidade. Zela pela observância das normas que regulam o funcionamento da Secretaria Geral
e, quando a Assembléia Geral não está reunida, adota as disposições de natureza regulamentar que habilitem a
Secretaria Geral a cumprir suas funções administrativas. Atua como Comissão Preparatória. Prepara, a pedido
dos Estados membros, projetos para promover e facilitar a colaboração entre a OEA e a ONU e outros
organismos americanos. Formula recomendações à Assembléia Geral sobre o funcionamento da Organização
e a coordenação de seus órgãos subsidiários, organismos e comissões. Considera os relatórios dos órgãos,
organismos e entidades do Sistema Interamericano e apresenta à Assembléia Geral as observações e
recomendações que julgar oportuno.
- Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral: órgão diretamente subordinado à Assembléia Geral,
com capacidade decisória em matéria de cooperação solidária para o desenvolvimento integral.
- Comissão Jurídica Interamericana: serve de corpo consultivo da Organização em assuntos jurídicos;
promove o desenvolvimento progressivo e a codificação do Direito Internacional; e analisa os problemas
jurídicos referentes à integração dos países com vistas ao desenvolvimento do Hemisfério.
- Comissão Interamericana de Direitos Humanos: responsáveis pela promoção e pela proteção dos direitos
humanos. É constituída por sete membros, eleitos pela Assembléia Geral, que exercem suas funções em
caráter individual por um período de quatro anos, podendo ser reeleitos uma só vez.
- Secretaria Geral: A Secretaria Geral é o órgão central e permanente da Organização dos Estados
Americanos. Exercerá as funções que lhe atribuam a Carta 35, outros tratados e acordos interamericanos e a
Assembléia Geral, e cumprirá os encargos de que for incumbida pela Assembléia Geral, pela Reunião de
Consulta dos Ministros das Relações Exteriores e pelos Conselhos.
- Conferências Especializadas: são reuniões intergovernamentais destinadas a tratar de assuntos técnicos
especiais ou a desenvolver aspectos específicos da cooperação interamericana e são realizadas quando o
determine a Assembléia Geral ou a Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, por iniciativa
própria ou a pedido de algum dos Conselhos ou Organismos Especializados.
- Organismos Especializados: organismos intergovernamentais estabelecidos por acordos multilaterais, que
tenham determinadas funções em matérias técnicas de interesse comum para os Estados americanos. Gozam
de ampla autonomia técnica no âmbito das recomendações da Assembléia Geral e dos Conselhos. São eles:
Organização Pan-Americana da Saúde; Instituto Interamericano das Crianças; Comissão Interamericana das

35
A Secretaria Geral desempenha também as seguintes funções:
a. Encaminhar ex officio aos Estados membros a convocatória da Assembléia Geral, da Reunião de Consulta dos
Ministros das Relações Exteriores, do Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral e das Conferências
Especializadas;
b. Assessorar os outros órgãos, quando cabível, na elaboração das agendas e regulamentos;
c. Preparar o projeto de orçamento-programa da Organização com base nos programas aprovados pelos Conselhos,
organismos e entidades cujas despesas devam ser incluídas no orçamento-programa e, após consulta com esses
Conselhos ou suas Comissões Permanentes, submetê-lo à Comissão Preparatória da Assembléia Geral e em seguida à
própria Assembléia;
d. Proporcionar à Assembléia Geral e aos demais órgãos serviços de secretaria permanentes e adequados, bem
como dar cumprimento a seus mandatos e encargos. Dentro de suas possibilidades, atender às outras reuniões da
Organização;
e. Custodiar os documentos e arquivos das Conferências Interamericanas, da Assembléia Geral, das Reuniões de
Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, dos Conselhos e das Conferências Especializadas;
f. Servir de depositária dos tratados e acordos interamericanos, bem como dos instrumentos de ratificação dos
mesmos;
g. Apresentar à Assembléia Geral, em cada período ordinário de sessões, um relatório anual sobre as atividades e a
situação financeira da Organização; e
h. Estabelecer relações de cooperação, consoante o que for decidido pela Assembléia Geral ou pelos Conselhos,
com os Organismos Especializados e com outros organismos nacionais e internacionais.
Mulheres; Instituto Pan-Americano de Geografia e História; Instituto Indigenista Interamericano; Instituto
Interamericano de Cooperação para a Agricultura.

A Convenção Americana de Direitos Humanos


É o documento mais importante do sistema interamericano, também denominada de Pacto de São José
da Costa Rica (1969, com entrada em vigor em 1978).
Apenas Estados americanos podem aderir à Convenção Americana dos Direitos Humanos.
Quando implantada, contemplou uma extensa carta de direitos civis e políticos (mais de duas dúzias
de direitos contemplados em 82 artigos), sem contudo, especificar direitos econômicos, sociais e culturais.
Quanto aos direitos de segunda e terceira dimensão, há a determinação para que os Estados-partes devem
alcançar, progressivamente, a plena realização destes direitos, mediantes medidas legislativas e políticas
públicas eficientes à sua promoção e desenvolvimento.
Em 1988, a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) adotou um Protocolo
Adicional à Convenção, definindo direitos sociais, econômicos e culturais.
Assim podem ser citados os seguintes direitos, contemplados na Convenção Americana de Direitos
Humanos:
- civis e políticos: direito à personalidade jurídica, direito à vida, o direito a não ser submetido à escravidão, o
direito à liberdade, o direitos a um julgamento justo, o direito à compensação em caso de erro judiciário, o
direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e
expressão, o direito de resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome, o direito à
nacionalidade, o direito à liberdade de movimento de residência, o direito de participar do governo, o direito à
igualdade perante a lei e o direito à proteção judicial;
- direitos econômicos, sociais e culturais: direito ao trabalho e a justas condições de trabalho, direito à
liberdade sindical, o direito à seguridade social, o direito à saúde, o direito ao meio ambiente, o direito à
nutrição, o direito à educação, direitos culturais, proteção à família, direitos das crianças, direitos dos idosos,
direitos das pessoas portadores de deficiência.
Os Estados-partes tem a obrigação não apenas de respeitar estes direitos (ação negativa de não violá-
los) mas de assegurar o seu livre exercício (ações positivas de promoção e efetivação).
O aparato de monitoramento e implementação dos direitos humanos previstos na Convenção
Americana dos Direitos Humanos é integrado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela
Corte Interamericana.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos


A sua competência alcança todos os Estados-partes da Convenção Americana de Direitos Humanos,
quanto aos direitos e deveres nele inseridos, assim como alcança todos os Estados-partes da OEA quanto aos
direitos previstos na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948 (DADDH).
É formada por 7 membros de reputação ilibada e notoriedade no saber acerca dos direitos humanos,
eleitos pela Assembléia Geral da OEA, dentre cidadãos dos seus Estados-membros, para mandatos de 4 anos,
admitindo-se uma única reeleição.
Sua missão é promover a observância e proteção dos direitos humanos nas Américas, podendo:
- fazer recomendações aos Estados-partes para que adotem medidas promotoras dos direitos humanos;
- elaborar estudos sobre os direitos humanos;
- solicitar informações aos Estados-partes sobre as medidas por eles adotadas na implantação da Convenção e
da DADDH;
- enviar relatório geral anual à Assembléia Geral da OEA;
- examinar as petições individuais encaminhadas por grupos de indivíduos, por indivíduos ou por ONG’s
acerca de violações contra direitos contemplados tanto na Convenção como na DADDH. Observa-se que o
simples fato de ter ratificado a Convenção ou de ser parte da OEA implica na aceitação da Competência da
Comissão para a análise deste mecanismo, sem necessidade de cláusula apartada.
Requisitos para a admissibilidade da petição individual: (a) esgotamento dos recursos internos, salvo
nos casos de injustificada demora processual ou de não haver previsão legal; (b) ausência de litispendência
internacional, ou seja, não estar a causa submetida a outro organismo internacional.
Reconhecida e recebida a petição individual, a Comissão solicita informações ao País denunciado,
podendo fazer recomendações, solicitar a adoção de medidas, enviando, ao final relatório contendo breve
relato dos fatos e da solução alcançada à Secretaria da OEA para que publique.
O prazo para o cumprimento das recomendações e medidas é de três meses, findo o qual, se não
houve solução, o caso é remetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos, salvo decisão contrária da
maioria dos membros da Comissão Interamericana.
Para que seja possível o encaminhamento do caso à Corte Interamericana, é preciso que o Estado-
parte tenha declarado a competência deste órgão jurisdicional (aceitação geral), em cláusula apartada, ou que
o Estado-parte tenha aceitado a competência da Corte para o caso em questão.
- examinar comunicações estaduais acerca de violações contra direitos contemplados tanto na Convenção
como na DADDH, é preciso que os Estados-partes denunciante e denunciado tenham declarado
expressamente a competência da Comissão para apreciar tais comunicações
Uma vez recebida a comunicação estadual, o procedimento é mesmo acima: a Comissão solicita
informações ao País denunciado, podendo fazer recomendações, solicitar a adoção de medidas, enviando, ao
final relatório contendo breve relato dos fatos e da solução alcançada à Secretaria da OEA para que publique.
O prazo para o cumprimento das recomendações e medidas é de três meses, findo o qual, se não
houve solução, o caso é remetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos, salvo decisão contrária da
maioria dos membros da Comissão Interamericana.
Para que seja possível o encaminhamento do caso à Corte Interamericana, é preciso que o Estado-
parte tenha declarado a competência deste órgão jurisdicional (aceitação geral), em cláusula apartada, ou que
o Estado-parte tenha aceitado a competência da Corte para o caso em questão.

Corte Interamericana de Direitos Humanos


Composta de 7 juízes nacionais dos Estados-partes da OEA.
Principais atribuições: consultiva e contenciosa/jurisdicional acerca da interpretação e aplicação da
Convenção Americana dos Direitos Humanos.
Na esfera consultiva, qualquer Estado-membro da OEA pode solicitar parecer da Corte sobre a
interpretação da Convenção ou de outro tratado protetivo dos direitos humanos da OEA. Aqui cabem,
inclusive, pareceres no sentido de saber se a adoção de alguma medida/lei pelos Estados pode lesar a
Convenção e/ou a DADDH. Em estatística de 2007, a Corte já havia elaborado 19 opiniões consultivas.
Em um desses pareceres, concluiu que o habeas corpus é garantia de proteção judicial inafastável, não
podendo ser suspenso nem mesmo em situações de emergência.
Na esfera jurisdicional, é necessário que o Estado-parte tenha declarado a competência da Corte
Interamericana para que esta possa agir. 36 Ainda, somente a Comissão Interamericana e os Estados-partes
podem submeter um caso à Corte, não sendo estendida legitimidade aos indivíduos.
Todavia, após recebida a denúncia encaminhada pela Comissão ou por algum dos Estados-partes da
Convenção (acerca da violação da Convenção), a vítima ou seus familiares poderão apresentar solicitações,
argumentos, provas etc.
36
Até abril de 2008, dos 25 Estados-partes da Convenção, 22 já haviam declarado a competência da Corte. O Brasil
declarou esta competência em 1998. E, até março de 2007 havia proferido 162 sentenças.
A Corte pode determinar medidas tendentes a restauração do direito violado ou que o Estado violador
pague uma justa compensação à vítima.
As decisões da Corte possuem caráter vinculante/obrigatório e de título executivo, cabendo ao Estado
seu cumprimento imediato.

UNIDADE IV - O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E A REDEFINIÇÃO


DA CIDADANIA NO BRASIL – pag. 287 a 310 + 353 a 363

4.1 O Estado brasileiro e o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos


Uma vez analisada a sistemática de proteção dos direitos humanos nos planos internacional e regional,
parte-se para a relação destas sistemáticas com o plano nacional brasileiro. Noutros termos, verificar-se-á a
forma como o direito brasileiro recepciona a legislação internacional em relação aos direitos humanos.
As mudanças ocorridas no Brasil com a democratização, iniciada em 1985 e concretizada na CF/1988,
contribuíram para a reinserção do país no contexto internacional. A partir deste contexto histórico, constata-se
uma crescente preocupação brasileira em relação às obrigações decorrentes da ordem jurídica internacional,
no que se refere aos direitos humanos. Ao mesmo tempo, o processo de democratização incrementou os
debates sociais acerca da proteção desses direitos, bem como possibilitou que várias ONGs aqui
desenvolvessem seus trabalhos em prol da proteção desses direitos.
A CF/1988 tem como um dos seus objetivos, no trato internacional, o primado dos direitos humanos,
pois é princípio orientador do Brasil nas relações internacionais (art. 4., CF/1988).

4.2 O Brasil e os tratados internacionais de direitos humanos


O primeiro passo brasileiro em direção à aceitação das normas internacionais sobre direitos humanos
deu-se em 1984, com a ratificação da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
contra a Mulher. A partir deste ano e, principalmente, após a CF/1988, importantes tratados internacionais
foram ratificados pelo Brasil, destacando-se: a) Convenção Interamericana para Prevenir r Punir a tortura, em
1989; b) Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 1989; c)
Convenção sobre os Direitos da Criança, em 1990; d) Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos,
em 1992; e) Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 1992; f) Convenção
Americana de Direitos Humanos, em 1992; g) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher, em 1995; h) Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição da Pena de
Morte, em 1996; i) Protocolo à Convenção Americana referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(Protocolo de San Salvador), em 1996; j) Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, em
2002; k) Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a
Mulher, em 2002; l) Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança e sobre o Envolvimento
das Crianças em Conflitos Armados, em 2004; m) Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da
Criança sobre Venda, Prostituição e Pornografia Infantis, em 2004.
Como país democrático, o Brasil deve ser um Estado respeitador e garantidor dos direitos humanos. Sua
adesão a vários tratados internacionais demonstra esta preocupação, bem como simboliza sua aceitação à idéia
contemporânea da internacionalização dos direitos humanos e sua atribuição de legitimidade aos organismos
internacionais relacionados à proteção desses direitos. Todas estas questões somadas reforçam a idéia de
cidadania e ampliam o alcance do significado deste termo, pois os brasileiros passaram a ser cidadãos
brasileiros e cidadãos do mundo, ao mesmo tempo em que o rol de direitos fundamentais previstos na CF se
amplia a cada tratado internacional ratificado pelo Brasil.
Apesar de todo este avanço, há ainda vários outros tratados internacionais aos quais o Brasil ainda não
aderiu, e há a necessidade de se adotar providências adicionais tendentes à completa inserção brasileira na
proteção internacional dos direitos humanos, como se analisará no tópico que segue.

4.3 Plena vigência dos tratados internacionais sobre os direitos humanos


Para que os tratados internacionais sobre proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil tenham
plena vigência, são necessárias algumas providências: uma profunda revisão das reservas e declarações
restritivas feitas pelo Estado brasileiro quando da ratificação das Convenções.
Estas reservas e declarações restritivas consistem na declaração de que o Estado brasileiro não concorda
com um ou mais dos artigos de uma Convenção, o que pode abranger, inclusive, a não aceitação de
procedimentos preceituados no tratado ratificado. Ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro ratificou as
Convenções, fez constar ressalvas em relação a algumas das normas que figuram nesses tratados, ou seja, pôs-
se a salvo da vinculação em relação a algumas das regras destas Convenções.
Aos poucos, estas ressalvas e declarações restritivas estão sendo retiradas, mas ainda há várias. Como
esta prática desobriga a implementação de alguns dos direitos humanos internacionais em território brasileiro,
é preciso que o Brasil reveja com urgência esta postura restritiva, para que os cidadãos brasileiros possam
contar com uma ampliação na garantia dos direitos humanos.
Outro procedimento que deve ser adotado pelo Estado brasileiro é a adesão aos Protocolos Facultativos
aos tratados internacionais, para que reconheça a legitimidade dos organismos internacionais quanto ao
recebimento e decisões das petições individuais e das comunicações interestaduais. São exemplos de
Protocolos Facultativos ainda não ratificados pelo Brasil: Protocolo Facultativo ao PIDCP; à Convenção
contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Deve, ainda, elaborar uma
declaração que habilite a Comissão Interamericana a examinar comunicações interestaduais.
Além disso, é dever do Estado brasileiro adotar todas as medicas legislativas, judiciais e administrativas
que se façam necessárias ao pleno e efetivo cumprimento dos direitos e liberdades constantes nos tratados
ratificados. Em assim não procedendo, está sujeito às responsabilizações internacionais cabíveis a cada caso
de omissão ou negligência. E não é só ao direito internacional que estará descumprindo, mas também à
CF/1988, na medida em que o § 2. do art. 5. determina a aplicabilidade imediata dos direitos e liberdades
constantes em tratados internacionais ratificados. Com base no art. 5., XXXV, os indivíduos prejudicados em
razão dessas omissões podem ingressar em juízo buscando indenizações por perdas e danos eventualmente
sofridos.

4.4 O Direito Internacional dos Direitos Humanos e a redefinição da cidadania no Brasil


O Brasil, ao ratificar os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, passa a aceitar o
controle internacional em relação aos direitos humanos em seu território, consentindo com a fiscalização
internacional sempre que houver violação, omissão ou ineficiência das ações estatais no condizente a esses
direitos. Vale lembrar, a atuação internacional é sempre suplementar, é garantia adicional, continuando do
Estado a obrigação precípua de proteção e efetivação dos direitos.
Com esta adesão aos tratados internacionais, muito ganham os cidadãos em cidadania, pois, além de
serem sujeitos dos deveres e direitos internos, passam a ser sujeitos de direitos internacionalmente protegidos
e, com isso, passam a ter cidadania internacional, inclusive com a possibilidade de, individualmente, através
das petições individuais, reclamar seus direitos junto à comunidade internacional.
Também as ONGs passam a ter mais meios de ação, na medida em que se tornam veículos de
divulgação desses direitos, dando à população conhecimento acerca dos direitos humanos internacionais, quer
por meio de suas atividades-fim ou por meio de denúncias levadas aos órgãos governamentais brasileiros e
aos organismos de direitos internacional, pressionando pela tomada de providências que solucionem os
problemas constatados.
A democratização do Brasil manteve e mantém íntima relação com a adesão aos direitos humanos
internacionais, pois ao mesmo tempo que esta abertura política deu margem à ratificação dos tratados
internacionais, os direitos previstos nestes documentos reforça a democracia. Os direitos humanos são tema de
extrema relevância na CF/88, pois há previsão de automática incorporação dos tratados internacionais sobre
direitos humanos ratificados ao direito pátrio constitucional.
Isso significa que, em razão do disposto nos §§ 1˚, 2˚ e 3˚ do art. 5˚ da CF/88, uma vez ratificado um
tratado internacional sobre direitos humanos, as normas nele contidas passam a ser normas constitucionais,
compondo o bloco da constitucionalidade com se fossem Emendas à Constituição, ao contrário dos demais
tratados internacionais, que necessitam ser incorporados pela sistemática legislativa e se tornam normas
infraconstitucionais. Esta primazia dada ao tratamento dos tratados internacionais sobre direitos humanos se
justifica porque são normas destinadas à proteção da pessoa humana, finalidade do Estado, enquanto as
demais normas, decorrentes dos demais tratados internacionais, têm por finalidade assegurar uma relação de
equilíbrio e reciprocidade entre os Estados.

REFLEXÕES SOBRE “CIDADANIA NO BRASIL, o longo caminho”, de José Murilo de Carvalho


1) Segundo a teoria de Marshall, no Brasil o surgimento dos direitos humanos obedeceu a uma ordem inversa.
Qual seria a ordem natural de surgimento dos direitos humanos estabelecida por Marshall? E qual foi,
segundo este autor, a ordem inversa de surgimento destes direitos no Brasil?
2) Esta “inversão de ordem” acarretou em alguma conseqüência negativa à cidadania e à democratização
brasileiras? Explique.
3) A que você atribui a falta de consciência política da maioria do povo brasileiro?
4) A análise histórica da cidadania no Brasil, por meio dos trabalhos apresentados, acrescentou algo novo à
sua bagagem de conhecimentos que considera relevantes e importantes? O que e por quê?

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