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A ÉTICA DE EPICURO: UM ESTUDO DA CARTA A MENECEU

Táuria Oliveira Gomes


Orientador Ignácio César de Bulhões

Mas hoje, toma-se por um sonhador aquele que vive conforme aquilo que ensina.
(KANT apud P. HADOT, O que é a filosofia antiga?, p. 12)

Quero dizer, portanto, que o discurso filosófico [da antigüidade] deve ser compreendido
na perspectiva do modo de vida do qual é, ao mesmo tempo, meio e expressão e, por
conseqüência, que a filosofia é antes de tudo uma maneira de viver, mas que está es-
treitamente ligada ao discurso filosófico. (P. HADOT, Ibid, p. 18-9)

... procuras recordar os raciocínios capazes de ensejar a conquista de uma vida feliz.
(DIÔGENES LAÊRTIOS, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, 83-84)

Resumo: Em Epicuro, encontramos Resumen: En Epicuro, encontramos


uma ética voltada para a busca do pra- una ética volcada para la búsqueda del
zer. Este é entendido como ausência de placer. Este es entendido como ausencia
dor e de inquietação, a aponía e a atara- de dolor y de inquietación, la aponía y la
xía. Essa ética pretende ensinar a evitar ataraxía. Esa ética pretende enseñar a
ou a suportar a dor, o medo e o sofri- evitar o a soportar el dolor, el miedo y el
mento que estão sempre à espreita. Epi- sufrimiento que están siempre a la
curo, na Carta a Meneceu, aborda a espreta. Epicuro, en la Carta a Meneceu,
questão da moral, a maneira de como o aborda la cuestión de la moral, la manera
homem deve encarar a vida, quando de como el hombre debe enfrentar la
procura a felicidade. Essa busca tem um vida, cuando busca la felicidad. Esa
traço que distingue Epicuro de outros búsqueda tiene un razgo que diferencia
filósofos. Para o primeiro, qualquer pes- Epicuro de otros filósofos. Para el
soa, em qualquer idade, pode buscar a primero, cualquier persona, en cualquier
felicidade, dedicando-se à filosofia. Des- edad, puede coger la felicidad,
taca-se ,então, pelo seu materialismo e dedicándose a la filosofía. Se destaca,
empirismo que se articulam à ética. Sua entonces, por materialismo y empirismo
contribuição é apresentar uma ética que que se articulan a la ética. Su
nos ensina a cuidar de nossa vida sem- contribución es presentar una ética que
pre como bem que tem seu acabamento nos enseña a cuidar de nuestra vida
na construção de uma comunidade fun- siempre como bien que tiene su término
dada na amizade. en la construcción de una comunidad
fundada en la amistad.
Palavras-chave: Ética, felicidade, pra-
zer, amizade. Palabras-llave: Ética. Felicidad. Pla-
cer. Amistad.

Introdução

A ética é um campo da filosofia


voltado para os problemas prá-
ticos do homem. De modo geral, as
mana, têm estado preocupadas com
questões concernentes à morte, à so-
lidão, à angústia, ao medo. A insegu-
pessoas, ao longo da história hu- rança é um componente da vida: a

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fragilidade da saúde física e mental, A hipótese é que o objetivo ético da


o inesperado dos acontecimentos ataraxía se apoia sobre a consciên-
naturais e sociais. A ética, então, cia adquirida pelo indivíduo mediante
procura refletir sobre esses proble- uma rigorosa reflexão teórica sobre
mas de modo a estabelecer um bem esses temas.
ao mesmo tempo constante e possí-
vel e, sobretudo, consistentemente O estudo da ética epicurista é rele-
justificado. vante porque representa, em primei-
ro lugar, uma doutrina até certo
Em Epicuro, encontramos uma ética ponto inovadora, que marca sua po-
voltada para ensinar a evitar ou a sição em relação a outros grandes
suportar a dor, o medo e o sofri- modelos éticos, e que, ao fazê-lo,
mento que estão sempre à espreita. enriquece a nossa compreensão da
Epicuro, na Carta a Meneceu, abor- filosofia moral antiga, e, indireta-
da a questão da moral, da maneira mente, enriquece o debate ético
como o homem deve encarar a vida contemporâneo, na medida em que
e da busca da felicidade. este é herdeiro daquele acontecido
na Grécia.
O bem último da vida humana, aquilo
pelo qual a vida vale ser vivida, é a Em segundo lugar, é preciso lembrar
felicidade (eudaimonía). Por sua vez, que os estudos sobre o epicurismo
a felicidade, “ausência de sofrimen- foram retomados de uns vinte anos
tos físicos e de perturbações da para cá (GUAL, 1996, p. 8). Desco-
alma” (EPICURO, 1997, p. 43), é o briu-se que, por diversas razões, ele
prazer duradouro da serenidade do havia sido posto no esquecimento.
espírito. Para alcançá-la, é necessá- Esta tendência foi revertida. Certa-
ria a reflexão filosófica que busca mente, o estudo do epicurismo e su-
estabelecer um conhecimento sobre as concepções éticas deverão
a própria natureza humana, seus de- constar de modo crescente não ape-
sejos e prazeres; sobre o saber prá- nas nos cursos de pós-graduação
tico do autodomínio; sobre a nature- em Filosofia, mas também na gradu-
za dos deuses; sobre o que é e o ação. Este, seguramente, constitui
que significa a morte para o homem; mais um item que caracteriza a rele-
sobre a autarquia; sobre a liberdade vância dos estudos em torno de Epi-
e a responsabilidade; e, sobretudo, curo.
“um exame cuidadoso (...) que remo-
va as opiniões falsas em virtude das O texto básico de pesquisa é a Carta
quais uma imensa perturbação toma a Meneceu, carta esta que se en-
conta dos espíritos”(Id, Ibid, p. 45). contra na obra de Diógenes Laércio
Formulamos o seguinte problema: (livro X, 122 a 135). Trata-se do prin-
quais as características fundamen- ci-
tais da ética epicurista tal como ex-
posta na Carta a Meneceu?

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pal texto de Epicuro “que versa jus- Vida e Obra de Epicuro


tamente sobre a conduta humana Contexto Histórico
tendo em vistas alcançar a tão al-
mejada ‘saúde do espírito’ ” A perda da liberdade política, com o
(LORENCINI, 1997, p. 14). domínio macedônio e depois roma-
no, alterou o quadro da vida grega
As fontes primárias ainda esperam, na Antigüidade, quando a Grécia vi-
em grande parte, pela tradução para nha desenvolvendo sua experiência
a língua portuguesa. Apesar disso, cultural e filosófica. O país passou a
como discriminado mais adiante, as ser imenso organismo político, com
obras essenciais de DIÓGENES um grande aglomerado de povos,
LAÉRCIO (1997) e LUCRÉCIO passando a haver uma mistura entre
(1988) já são acessíveis em nossa gregos e orientais, o que antes não
língua. Como fontes secundárias, acontecia.
temos as obras de comentadores
como MORAES (1998), O grego, sem dúvida, possuía um
FARRINGTON (1968), DARAKI senso de liberdade muito diferente
(1996) e o espanhol GUAL (1996). do depois implantado. Pertencia a
uma cidade-Estado autônoma e tra-
Quanto ao método, a partir da sínte- dicional, sabendo bem usufruir dos
se de Epicuro elaborada na Carta a direitos de democracia, sem submis-
Meneceu, pretender-se-á descer aos são a qualquer senhor.
aspectos mais particulares e de mai-
or riqueza de detalhes, para se ter Contudo, a cultura grega se difundia,
uma visão mais aprofundada do sen- tornando-se comum a todos os Impé-
tido da ética epicurista. Proceder-se- rios Mediterrâneos e dando início ao
á fazendo levantamento de frag- período chamado helenístico. Em
mentos epicuristas e de alguns co- Atenas, que permanecia um centro
mentadores, tratando do contexto de investigação filosófica, vão sur-
histórico, da vida e obra de Epicuro, gindo outros focos de atividades. As
da formação do Jardim, das partes ciências particulares passam a ter
da filosofia relacionadas ao seu pen- desenvolvimento autônomo, princi-
samento e da Carta a Meneceu. palmente em Alexandria, desprega-
das assim da antiga sabedoria filo-
Duas são as traduções da Carta a sófica. O século III a.C., por exemplo,
Meneceu, referidas neste trabalho, a foi tido como esplêndido para as
de Mario da Gama Kury (DIÔGENES matemáticas e para a astronomia,
LAÊRTIOS, 1997) e a de A. Lorenci- mas foi também neste mesmo perío-
ni e E. Del Carratore (EPICURO, do que se desenvolveram as ciênci-
1997). as com base na observação. Surge
um novo tipo de intelectual, conheci-
do como especialista e erudito, que
contribuiu para a valorização da ci-

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ência, no seu aspecto teórico, liberta ‘caos’ em Hesíodos” (DIÔGENES


da religião tradicional e dos dogmas LAÊRTIOS, X, 2). Outra referência
da filosofia. sugere sua sensibilidade ao tema da
dor física e psíquica e, ao mesmo
As novas condições impostas ao tempo, da inutilidade - e do erro - dos
mundo grego tornavam impossível a homens pedirem os favores dos
participação do indivíduo no governo deuses: “Epicuros andava junta-
da pólis, tal como o cidadão grego mente com sua mãe pelas casas de
conhecera na fase democrática. O pessoas pobres recitando fórmulas
conhecimento deixa de ser prepara- expiatórias” (Id, Ibid, 4).
ção para a atividade política, pas-
sando a se ocupar do aprimoramento “Exerceu primeiramente, como seu
interior do homem. Distanciada das pai, o ofício de mestre de letras e de
preocupações políticas, a filosofia gramática; só mais tarde abriu escola
aspirava ao estabelecimento de de filosofia” (JOYAU, 1973, p.11).
normas universais para a conduta Em Atenas conheceu grandes pen-
humana, tendendo a dirigir as cons- sadores e nela também comprou
ciências. O problema ético torna-se, uma casa com jardim onde existiu O
então, o centro da especulação das Jardim de Epicuro. O Jardim era ha-
correntes filosóficas. bitado por mestres e discípulos de
Epicuro que aí cultivavam hortaliças
A ética grega, nesta época, procura- para o próprio sustento bem como
va o bem do indivíduo. A plenitude acampavam em barracas no Jardim.
de sua realização requeria que fos-
sem alcançadas, ao mesmo tempo, a Apresentou testemunhos suficientes
sabedoria e a serenidade interiores, de seus sentimentos insuperavel-
principalmente nas circunstâncias mente bons para com todos, sendo
adversas. seus seguidores fascinados por sua
doutrina. “Sua piedade para com os
Vida e Obra deuses e seu apego à pátria não po-
dem ser expressos com palavras”
Epicuro nasceu por volta de 341 a.C. (DIÔGENES LAÊRTIOS, X, 10). E
em Samos, ilha grega onde começou por sua moderação, não participou
seus primeiros estudos de filosofia. da vida política. “Apesar das pertur-
Morou também em Atenas, Cólofon e bações que afligiram a Grécia, (...)
Lâmpsaco, vindo a falecer em Ate- não se meteu em assuntos públicos,
nas, em 270 a. C., quando tinha se- não desempenhou nenhum papel
tenta e dois anos de idade. nas revoluções” (JOYAU, 1973, p.
12). Contentava-se com muito pouco
Seu interesse pela filosofia teria para viver. Às vezes, bebia vinho,
despertado “após haver repudiado os mas geralmente comia pão acompa-
mestres-escolas porque não soube- nhado de água; e o queijo recebido
ram explicar-lhe a significação de como presente de amigos era guar-

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dado para banquete especial. “Este Képos) e “os filósofos do Jardim”


é o homem, escreve Diôgenes passaram a indicar a Escola; a ex-
Laêrtios, segundo o qual o prazer é o pressão “os do Jardim” tornou-se si-
fim supremo da vida” (X, 11). nônimo de seguidores de Epicuro, os
epicuristas.
Era apreciador do filósofo Anaxágo-
ras e do mestre de Sócrates chama- A palavra que vinha do Jardim pode
do Arquelaos. O sucessor de sua ser resumida em algumas afirma-
escola foi Hêrmarcos, filho de Agê- ções: a realidade é perfeitamente
mortos, após sua morte em conse- penetrável e cognoscível pela inteli-
qüência dos cálculos renais. gência do homem; nas dimensões
do real existe lugar para a felicidade
Epicuro foi também escritor, totali- do homem; desde que ele aprenda
zando cerca de trezentos volumes como buscá-la, a felicidade é ausên-
sem citações de outros autores. Es- cia de dor e perturbação, e para
creveu Da Natureza, em trinta e sete atingi-la o homem só precisa de si
livros. Mas nos restou apenas como mesmo.
legado, suas três Cartas. A primeira
dirigida a Heródoto tratando da físi- A doutrina de Epicuro ensinada no
ca; a segunda dirigida a Pítocles, Jardim pregava que a vida prática
tratando da meteorologia e da astro- deve ser não somente a nossa prin-
nomia e a terceira dirigida a Mene- cipal mas também nossa única preo-
ceu, tratando das concepções sobre cupação. A filosofia não é uma ciên-
a vida humana. A última carta é, no cia, é uma regra do procedimento.
momento, a de interesse, tratando a Epicuro dizia que a filosofia era uma
ética como fatos relacionados com a atividade destinada a estabelecer,
escolha e a rejeição. Os epicuristas por meio de raciocínios e de discus-
chamam esta ética de “ciência do sões, uma vida feliz, sendo o filoso-
que deve ser escolhido e rejeitado, e far não apenas uma questão de pa-
também dos modos de vida e do fim lavras, mas sobretudo de atos. Ensi-
supremo” (DIÔGENES LAÊRTIOS, nava que os homens fazem mal em
X, 30). perder tempo com buscas determi-
nadas apenas pela curiosidade sobre
O Képos assuntos que lhes importam pouco
ou mesmo nada, quando deveriam
O próprio lugar escolhido por Epicuro concentrar todos os seus cuidados
para sua escola é a expressão da sobre as coisas que dizem respeito à
novidade revolucionária do seu pen- sua felicidade.
samento: um prédio com um jardim
nos arredores de Atenas. O Jardim As Partes da Filosofia
estava longe do tumulto da vida pú-
blica e próximo do silêncio do campo. Impossível tratar da ética sem referi-
“Jardim” (que, em grego, diz-se la às concepções que Epicuro elabo-

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rou acerca da natureza e do conhe- na realidade, não é mais do que uma


cimento. parte da física, pois a última liberta o
homem dos preconceitos e dos terro-
O filósofo adota a tripartição da filo- res que o impedem de ser feliz; a
sofia em lógica, física e ética. A pri- moral ensina-lhe de forma positiva os
meira deve elaborar os cânones se- meios de chegar à felicidade. “É evi-
gundo os quais reconhecemos a dente, entretanto, que o conheci-
verdade; a segunda estuda a cons- mento físico não é verdadeiro porque
tituição do real; a terceira, o fim do tranqüiliza a alma, mas, ao contrário,
homem (a felicidade) e os meios tranqüiliza a alma porque é verdadei-
para alcançá-la. Os epicuristas cha- ro” (MORAES, 1998, p. 28).
mam “a física de ciência do nasci-
mento e da morte, e também da na- A Fisiologia
tureza; a ética (...) de ciência do que
deve ser escolhido e rejeitado, e Segundo Epicuro, a física serve para
também dos modos de vida e do fim dar fundamento à ética. Ela funciona
supremo” (DIÔGENES LAÊRTIOS, como uma ontologia, uma visão geral
1997, p. 30). da realidade em sua totalidade e em
seus princípios últimos. É formada
A Canônica por átomos indivisíveis e imutáveis,
dotados da força necessária para
Quanto ao conhecimento, é lícito di- permanecerem intactos e para resis-
zer que Epicuro distingue as opiniões tirem enquanto os compostos não se
verdadeiras das falsas, e que chama dissolvem.
uma opinião de verdadeira quando
esta pode ser evidenciada pela sen- Acreditava e pregava no Jardim que
sação que a confirma. Portanto, a a liberdade não pode ser buscada e
opinião é falsa se o sentido a contra- encontrada na esfera do físico e do
diz. material, mas somente na esfera su-
perior, do espiritual. E, embora em
Segundo Epicuro, a canônica e a cada instante existam mundos que
física são necessárias; mas, ainda nascem e mundos que morrem, Epi-
uma vez, não as devemos estudar curo bem pode afirmar que o todo
senão pelos serviços que prestam à não muda. Com efeito, não só os
moral, e não devemos de modo al- elementos constitutivos do universo
gum inquietar-nos com problemas permanecem perenemente como
que não têm relações com a vida são, mas também todas as suas
prática. “O que faz o valor da canôni- possíveis combinações permanecem
ca é que ela fundamenta em nós a sempre atuantes, exatamente por
certeza; ora, a certeza é um dos causa da infinitude do universo, que
contrafortes da felicidade, visto que dá sempre lugar à concretização de
só ela dá a segurança e a ataraxía” todas as possibilidades.
(EPICURO, 1973, p. 19). A canônica,

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Epicuro então introduz a teoria da E, no que diz respeito à física, a con-


declinação dos átomos (clinámen), cepção da alma como corpo material
segundo a qual os átomos podem e atômico, é fundamental na explica-
desviar-se a qualquer momento do ção da mortalidade do ser humano.
tempo e em qualquer ponto de espa- Daí, todo o enfoque ético voltar-se
ço num intervalo mínimo de linha reta para sua vida única, irrepetível e li-
e, assim, encontrar outros átomos. mitada.

A alma, como todas as outras coisas, Carta a Meneceu


é um agregado de átomos. Agregado
formado em parte por átomos íg- A Carta a Meneceu tem como ponto
neos, aeriformes e ventosos, que básico abordar a ética, mostrando “a
constituem a parte irracional e lógica condição primeira de uma conduta
da alma. E, em parte, por átomos feliz” (GUAL, 1996, p. 134), com
que são diversos dos outros e que vistas a buscar alcançar a saúde do
não têm um nome específico, cons- espírito.
tituindo a parte racional. Portanto,
como todos os outros agregados, a Exortação à Prática Filosófica
alma não é eterna, mas mortal. Essa
é uma conseqüência que decorre Epicuro inicia a Carta a Meneceu
necessariamente das premissas que escreveu para o amigo Mene-
materialistas do sistema. ceu, dizendo que não há idade para
se dedicar à filosofia. O velho pode
A Ética estudá-la em sua velhice, assim
como o jovem em sua juventude.
Epicuro trata de temas da ética nas Alega o filósofo que ninguém é novo
três cartas que nos restaram, bem demais para procurá-la, porque não
como nas Máximas Capitais. se é novo para ser feliz e para se
alcançar a saúde do espírito. Se o
Temas centrais da ética epicurista jovem já se preocupar com a filoso-
como a ataraxía, a ausência de fia, bom será a ele mesmo, porque
medo frente à morte, a caracteriza- assim enfrentará a velhice sem medo
ção do prazer, e a correta compre- das coisas que estão por vir.
ensão dos desejos, têm suas bases
de justificação no empirismo de Epi- Assim sendo, é bom entender a im-
curo, por dois motivos: o princípio de portância da filosofia. Quem a en-
toda escolha ou rejeição é o prazer e tende chama-se sábio e é o ser ca-
a dor; por outro lado, o conhecimento paz de saber a importância do viver.
mesmo do que sejam a morte e o vir-
a-ser das coisas, é relativo às experi- A Divindade: Imortal e Bem-
ências acumuladas que permitem Aventurada
generalizar e inferir a verdade única
ou múltipla sobre elas.

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Epicuro afirma que acredita na exis- que nasce e que um tempo depois
tência dos deuses, em deuses que quer morrer. A este Epicuro chama
são perfeitos e imortais, não sendo de muito tolo. Questiona o porquê de
modificados por falsos juízos que os se viver tão depressa.
mortais têm acerca deles.
Já quanto à morte, Epicuro a trata
Os deuses não interferem no anda- como privação das sensações. Mos-
mento das coisas do cosmo e do tra que não devemos temê-la, mas
homem. Conceber assim a divindade que devemos procurar viver bem e
representaria, para Epicuro, não só de forma feliz até que ela chegue,
fonte de inquietação para os ho- uma vez que não é importante ser
mens, mas também uma impiedade: eterno. “Acostuma-te à idéia de que a
morte para nós não é nada, visto que
os juízos do povo a respeito dos deu- todo bem e todo mal residem nas
ses (...) se baseiam (...) em opiniões sensações, e a morte é justamente a
falsas. Daí a crença de que eles cau- privação das sensações.”
sam os maiores malefícios aos maus (EPICURO, 1997, p. 27). A morte é
e os maiores benefícios aos bons. Ir- um fato pelo que a razão mostra, se
manados pelas suas próprias virtudes, os átomos se dissolvem, somos
eles só aceitam a convivência com os mortais. Pensar a imortalidade seria
seus semelhantes e consideram es- um sonho. Interessa é ter uma vida
tranho tudo que seja diferente deles. com mais qualidade, sem precisar,
(EPICURO, 1997, p. 25-26). para isso, de mais quantidade. Para
Epicuro, o homem poderia ter uma
A Morte é Nada para Nós vida semelhante aos deuses, mesmo
sendo mortal. Epicuro também fala a
Epicuro aborda o valor da vida, ainda Meneceu que não há nada de terrível
que seja curta, mas de grande im- em se deixar de viver. Chama de tolo
portância se for bem vivida. Justifica aquele que diz ter medo da morte.
que de nada adiantaria viver muito, Conclui esta questão de maneira
se não se vivesse bem. Este ensi- brilhante quando diz que a morte não
namento epicurista é um grande le- existe para aqueles que estão vivos.
gado para a sociedade de hoje e nos
faz pensar, por exemplo, o que in- Epicuro trabalha também na morte a
tencionaram os terroristas no ataque questão de que alguns a desejam
a Nova Iorque. Teria sido a mesma para dar fim aos males da vida; en-
questão pensada por Epicuro: ainda quanto outros fogem dela como se
que viva pouco, viva bem? De nada ela fosse o maior de todos os males.
adiantaria viver mais, num mundo
que não fosse desejado. E a morte? A morte é um mal só para
quem nutre falsas opiniões sobre ela.
O filósofo também menciona, na Como o homem é um “composto
Carta a Meneceu, sobre o homem alma” num “composto corpo”, a

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morte não é senão a dissolução des- clarece que não devemos viver a es-
ses compostos, na qual os átomos perá-lo. Diz:
se espraiam por toda parte, a cons-
ciência e a sensibilidade cessam to- Nunca devemos nos esquecer de que
talmente e, assim, só restam do ho- o futuro não é nem totalmente nosso,
mem ruínas que se dispersam, isto é, nem totalmente não-nosso, para não
nada. Assim, a morte não é pavorosa sermos obrigados a esperá-lo como
em si mesma porque, com sua vinda, se estivesse por vir com toda a certe-
não sentimos mais nada; nem pelo za, nem nos desesperarmos como se
seu “depois”, exatamente porque não não estivesse por vir jamais
resta nada de nós, dissolvendo-se (EPICURO, 1997, p. 33).
totalmente nossa alma, assim como
nosso corpo; enfim, a morte tolhe Os Desejos
nada da vida que tenhamos vivido,
porque a eternidade não é necessá- Os desejos são naturais (physikaí)
ria para a absoluta perfeição do pra- ou inúteis (kenaí). Os desejos natu-
zer. rais são aqueles próprios à natureza
humana, isto é, a phýsis é o desejo
Sendo assim, mais uma vez, é ne- de comer, beber, abrigar-se; o de-
cessário vencer o medo da morte. A sejo fundamental de “nos afastarmos
morte, sendo o mais aterrador dos da dor e do medo” (DIÔGENES
males, não é nada para nós; en- LAÊRTIOS, X, 128), isto é, do des-
quanto vivemos a morte não existe, e prazer. Os desejos inúteis, vãos ou
quando vem a morte nós não existi- privados (o termo é traduzido por va-
mos. Por esta razão, nada temos a zio (EPICURO, 1997, p. 35), para
lucrar vivendo eternamente, mas te- outro lado, resultam de opiniões fal-
mos tudo a lucrar vivendo bem, uma sas ou desconhecimento acerca dos
vez que o que conta é a qualidade desejos. Poder-se-ia perguntar se
da vida, não a sua duração. não têm realidade, no sentido de não
corresponder a nada da phýsis, em-
bora resultem em atos e concretiza-
ções culturais e políticas certamente
O Futuro “reais”.

A sorte, o acaso, ou a fortuna tornou- Naturais e inúteis


se, desde as crises agudas da pólis
clássica, uma deusa, a Tiche. Talvez, Quanto aos desejos, alguns são
contra a deificação do que está por chamados por Epicuro de inúteis.
vir de modo obscuro, Epicuro busca Mas há desejos necessários e, por-
suas medidas na perspectiva racio- tanto, naturais. São estes últimos
nal. Em passagem breve na Carta, responsáveis pela nossa felicidade,
Epicuro aborda sobre o futuro, e es- pelo bem-estar de nosso corpo, pe-
las nossas palavras, pela nossa vida.

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jeto de busca “quando sofremos sua


O prazer: início e fim da vida feliz ausência; ao contrário, quando não
sofremos, essa necessidade não se
Epicuro deixa manifesto a idéia de faz sentir” (EPICURO, 1997, p. 37).
que o homem deve filosofar e buscar
através desta prática a felicidade, tal É neste sentido que o prazer é prin-
a obra: Carta a Meneceu. Porém, a cípio. É um princípio que move o ser
felicidade não deve ser buscada por vivo quando este não está como
uma única vez, mas durante todo o deve estar.
decorrer da vida, conforme indica:
“(...) o fim último é o prazer, (...) que Avaliação dos prazeres
é ausência de sofrimentos físicos e
de perturbações da alma. Também, na obra, Epicuro trata dos
(EPICURO, 1997, p. 43). desejos e coloca em evidência o
prazer; todavia, esclarece que, ape-
Fala que só sentimos necessidade sar deste ser um bem, pode chegar a
do prazer, quando não o estamos provocar dor. Sendo assim, dá um
possuindo e carecemos dele, por- conselho: os prazeres precisam ser
que, de outra maneira, não haveria bem aproveitados e analisados de
necessidade. Falamos, no entanto, forma qualitativa e nunca quantitati-
do prazer porque o determinamos va.
importante numa vida feliz. Podemos
assim dizer que o prazer é um bem Epicuro não vê o caro como mais
para o homem, porque nos permite prazeroso, porque, segundo ele, o
escolher e recusar, uma vez que só prazer não é conseguido pelo exces-
é possível falar de dor quando se so, nem pelo requinte, mas pela su-
sabe o que vem a ser o prazer. Mas pressão de uma necessidade que
quando Epicuro trata do prazer, não pode ser sanada de forma simples e
está se referindo a qualquer prazer. com pouco custo. Entendemos assim
O prazer que gera efeito desagradá- prazer como ausência dos sofri-
vel, não é compensado; todavia pre- mentos do corpo e da alma.
cisamos lembrar que nem toda dor
deve ser evitada. A dor pode vir a Se a essência do homem é material,
trazer benefício. também necessariamente será “ma-
terial” o “seu bem específico”, aquele
O desejo natural (comer, beber e, bem que, concretizado e realizado,
mais, estar bem fisica e psiquica- torna o homem feliz. E que bem seja
mente) surge como desejo de supe- este é a natureza, considerada na
rar o desprazer (de fome, de encon- sua imediaticidade, que nos diz sem
trar-se desconfortável física e psiqui- meias palavras, como já vimos; que
camente). O prazer é, portanto, o o bem é o prazer.
satisfazer aquelas necessidades.
Remete a uma carência, faz-se ob-

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Para julgar o prazer, é preciso distin- sim, num cálculo prudente do prazer
guir-lhe duas espécies, o prazer em físico, com o fim de gozá-lo o mais
movimento e o prazer em repouso, puro possível, isto é, o menos mistu-
cuja plena realização se encontra na rado de sofrimento. Esse Prazer dei-
ataraxía. O único prazer completo é xa uma lembrança em esperança,
o prazer em repouso, pois o prazer geram-se os prazeres uns aos ou-
vem da satisfação de um desejo, e o tros, para tornar feliz a vida.
desejo vem de um sofrimento. Nasce
o desejo do fato de sofrer eu de al- Por outro lado, é pela razão que se
guma coisa. Desejo comer, quando escolhem os prazeres, conforme o
sinto fome, e a fome é um sofrimen- que estes podem proporcionar. Cer-
to. O prazer em movimento é o pra- tos prazeres trazem sofrimento,
zer do sofrimento que se está elimi- como quando se come demais; cer-
nando: o que experimento ao comer; tas dores causam prazer, como
o prazer em repouso é o do sofri- quando se segue um tratamento pe-
mento eliminado, quando estou saci- noso. Por isso, nem todo prazer é
ado. objeto de uma escolha; há muitos
que deixamos de lado, quando o mal
O verdadeiro prazer, o prazer em re- que é sua conseqüência supera o
pouso, é um prazer calmo; o ideal da próprio prazer. Do mesmo modo,
vida está numa serenidade perma- muitos sofrimentos nos parecem
nente, feita duma saciedade cons- preferíveis ao prazer, quando esses
tante, não perturbada nem pelo so- sofrimentos, suportados por muito
frimento, nem pelo desejo. Mas a tempo, são compensados, e com
vida do corpo não proporciona essa vantagem, pelo prazer que deles re-
felicidade; os prazeres do corpo são sulta.
misturados de febre e inquietação;
Epicuro desconfia dele, como a mai- Para ter prazer de espírito, é preciso
or parte dos filósofos. Por isso, o ter um pouco de fome. Conservará o
verdadeiro prazer se goza antes no epicurista sua capacidade de gozo,
prazer do espírito, mais profundo, não comendo nunca até a plena sa-
mais completo que o prazer do cor- ciedade, como fazem os animais e
po, porque o corpo se limita à sensa- os homens bestiais, mas conservan-
ção presente, enquanto que o espí- do-se sempre suficientemente nutri-
rito se reporta ao passado e espera o do, para não sofrer fome alguma.
porvir.
Para Epicuro, portanto, o verdadeiro
O objeto do prazer do espírito, como prazer vem a ser a ausência de dor
sua natureza, reduz-se ao prazer fí- no corpo (aponía) e a falta de pertur-
sico, pois consiste, antes de tudo, na bação da alma (ataraxía). Dizemos
lembrança do prazer que se teve e que o prazer é um bem quando ele é
na expectativa do que se prepara. A ausência de dor no corpo e ausência
sabedoria de Epicuro vem a dar, as- de perturbação na alma. Nem liba-

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ções e festas ininterruptas, nem co- necessários, Epicuro coloca os pra-


mer peixes e tudo o mais que uma zeres vãos, isto é, nascidos das vãs
mesa rica pode oferecer são fonte de opiniões dos homens, que são todos
vida feliz, mas sim o raciocinar, que os prazeres ligados ao desejo de ri-
escuta as causas de todo ato de es- queza, poder, honras e semelhantes.
colha e de recusa e que expulsa as
falsas opiniões por via das quais Os desejos e prazeres do primeiro
grande perturbação se apossa da grupo são os únicos que são sempre
alma. e habitualmente satisfeitos, porque
têm por natureza um preciso limite,
Para garantir o atingimento da apo- que consiste na eliminação da dor:
nía e da ataraxía, Epicuro distinguiu: obtida a eliminação da dor, o prazer
prazeres naturais e necessários; pra- não cresce ulteriormente. Os desejos
zeres naturais mas não necessários; e prazeres do segundo grupo já não
prazeres não naturais e não neces- têm mais aquele limite, porque não
sários. Estabeleceu depois que atin- subtraem a dor do corpo, mas variam
gimos o objetivo desejado satisfa- somente no grau do prazer e podem
zendo sempre o primeiro tipo de pra- provocar notável dano. Os prazeres
zer, limitando-nos em relação ao se- do terceiro grupo não tolhem a dor
gundo tipo e fugindo do terceiro. corpórea e, por acréscimo, produzem
sempre perturbação na alma. Por
Entre os prazeres do primeiro grupo, isso, são compreensíveis as afirma-
isto é, aqueles naturais e necessári- ções: A riqueza segundo a natureza
os, ele coloca unicamente os praze- está inteira no pão, na água e num
res que estão estreitamente ligados à abrigo qualquer para o corpo; a ri-
conservação da vida do indivíduo: queza supérflua traz para a alma
estes seriam os únicos verdadeira- também uma ilimitada aspiração dos
mente válidos, porque subtraem a desejos. Referimos pois nossos de-
dor do corpo, como, por exemplo, sejos, reduzamo-nos a nós mesmos,
comer quando se tem fome, beber e neste bastar-se-a-si-mesmo (autar-
quando se tem sede, repousar quía) é que estão a maior riqueza e
quando se está cansado e assim por felicidade.
diante. Ao mesmo tempo, exclui do
grupo o desejo e o prazer do amor, Epicuro refere-se à hedoné. Pode
porque são fonte de perturbação. significar o prazer do corpo ou do
Entre os prazeres do segundo grupo, espírito, uma vez que hedoné traz
ao contrário, coloca todos os desejos toda a gama de significado desde o
e prazeres que constituem as varia- prazer físico até a extasiada contem-
ções supérfluas dos prazeres natu- plação da divindade. E no grego de
rais: comer bem, beber bebidas refi- Epicuro, hedoné muitas vezes é o
nadas, vestir-se com apuro e assim equivalente de makariótes (bem-
por diante. Por fim, entre os prazeres aventurança), o estado de ser dos
do terceiro grupo, não naturais e não

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deuses, e dos homens que conse- lhe aqueles que não comportam em
guem partilhar esse modo de vida. si dor e perturbação, descartando
aqueles que dão gozo momentâneo,
A autarquia mas trazem consigo dores e pertur-
bações.
Epicuro exorta um prazer com o qual
ele viveu no Jardim e recomenda-o A prudência: virtude maior
dizendo que:
Retomando o conceito de felicidade,
o prazer, como bem principal e inato, Epicuro trata então da prudência.
não é algo que deva ser buscado a Vemos esta como um bem, como
todo custo e indiscriminadamente, já preciosa e elevada. O homem só é
que às vezes pode resultar em dor. (...) feliz, se tem uma vida com prudên-
recomenda-se uma conduta comedida cia, com beleza e com justiça; donde
em relação aos prazeres, valendo, (...) podemos dizer que estes quatro
aquele princípio da qualidade em de- elementos estão interligados.
trimento da quantidade. (LORENCINI,
1997, p. 16-7). Caracterização do Sábio

O prazer como ausência de dor Epicuro fala a Meneceu de pontos


essenciais para a prática correta de
Sendo assim, a regra da vida moral ensinamentos capazes de levá-lo à
não é o prazer como tal, mas a razão completa felicidade:
que julga e discrimina, ou seja, a sa-
bedoria que, entre os prazeres, esco O homem sábio (...) jamais deve
acreditar cegamente no destino e na
sorte como se estes fossem fatalida-
des inexoráveis e sem esperança, pa-
recendo despontar aqui aquela sua
crença na vontade e na liberdade do
homem. (LORENCINI, 1997, p. 17)

Diz na Carta que o homem mais feliz


é o sábio, pois este tem um juízo
acerca dos deuses, que se comporta
de modo indiferente em relação à
morte, que compreende o télos (fim)
da natureza e que sabe discernir o
bem maior de coisas simples e fáceis
de obter.

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160 GOMES. Táuria Oliveira. A Ética de Epicuro: um Estudo da Carta a “Meneceu”

A vida política O destino e a sorte

No que se refere à vida política, para Para que a vida seja agradável, ne-
o fundador do Jardim, ela é substan- cessitamos de saúde de corpo e
cialmente não-natural, porque com- tranqüilidade de espírito. Porém,
porta continuamente dores e pertur- todo prazer é bom, mas nem todo
bações, compromete a aponía e a prazer deve ser escolhido. Toda dor
ataraxía e, portanto, compromete a é má, mas nem toda dor deve ser
felicidade. Com efeito, os prazeres evitada. Assim, devemos nos acos-
da vida política, a que muitos se pro- tumar a um padrão simples de vida,
põem, são puras ilusões: da vida po- a fim de obtermos plena saúde e
lítica os homens esperam poder, estaremos alerta e pronto para todas
fama e riqueza, que são, como sa- as tarefas necessárias da vida. Lem-
bemos, desejos e prazeres nem na- bremos que o principal objetivo a ser
turais nem necessários, sendo por- alcançado pelo conhecimento é a
tanto vazias e enganosas miragens. paz de espírito. A essência do ensi-
A vida pública não enriquece o ho- namento de Epicuro estava em se
mem, mas o dispersa e dissipa. Por aprender a viver juntos, e o método
isso é que Epicuro se apartava e vi- de divulgação era feito principal-
via separado da multidão, retirando- mente pelo contato pessoal e de viva
se para os arredores de Atenas, voz.
sentindo-se constrangido de estar
entre a multidão. Assim, Epicuro bem Entendia Epicuro que a humanidade
pode afirmar que de todas as coisas sofria de um mal universal, uma es-
que a sabedoria busca, em vista de curidão mental, um fardo de medo
uma vida feliz, o maior bem é a soci- supersticioso; e grande parte da res-
alidade fundada na relação da ami- ponsabilidade cabia aos ensina-
zade. mentos das escolas. Contestou o
ceticismo, a desconfiança nos senti-
A Carta a Meneceu sugere a socie- dos e na razão; a falsa doutrina do
dade de amigos, isto é, de “seme- prazer, de modo que a desconfiança
lhantes” quanto aos deuses e quanto dos sentimentos era acrescentada à
aos companheiros de Meneceu na desconfiança dos sentidos e da ra-
meditação do que Epicuro escreve: zão; a falsa doutrina dos compromis-
sos sociais, que substituía a amizade
Irmanados pela sua própria virtude, pela justiça, a falsa doutrina de
(os deuses) só aceitam a convivência Deus, que assediava o espírito dos
com os seus semelhantes (...). Medita, homens de medo em vez de enchê-
pois, todas estas coisas (...) contigo los de alegria.
mesmo e com teus semelhantes, e
nunca mais te sentirás perturbado (...) A função de Epicuro era apoderar-se
mas viverás como um deus entre os dos progressos que haviam sido fei-
homens (1997, p. 25-7, 51). tos nos círculos do Liceu, incorporá-

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los em sua própria doutrina e dar-


lhes a maior divulgação possível, Temos que nos ocupar com esta
pois compreendera que tinha algo de vida. O problema da vida é passá-la
novo a dizer, algo que em si mesmo o mais agradavelmente possível,
tinha futuro. Propunha, através de sendo o prazer o bem primitivo e
suas idéias, uma filosofia coerente e inato.
expressada numa divulgação que o
levou ao alcance da compreensão do Segundo Epicuro, a amizade de-
homem comum. sempenha papel fundamental na fe-
licidade. A amizade corresponde a
Nova exortação à prática filosófica um desejo que não é nem natural
nem necessário; ocupando lugar
Quem então poderá ser feliz? Per- importante no ideal da maior parte
gunta Epicuro a Meneceu, sugerindo dos filósofos gregos. É ela uma for-
como resposta o sábio. Este porque ma de amor que não desperta pai-
tem um juízo acerca dos deuses, é xões carnais e que satisfaz plena-
indiferente à morte, compreende a mente o espírito. Quando considera
natureza e entende que coisas sim- a amizade como o primeiro dos bens,
ples e fáceis podem ser boas e cau- concorda Epicuro, simplesmente,
sa de uma vida feliz. com uma tradição, que, sem dúvida,
se apresentava a seu espírito como
Considerações Possíveis uma evidência.

A sabedoria de Epicuro volta-se para Em suma, Epicuro representa uma


o exercício prático de um modo de atitude perante a vida, que centraliza
vida. ação no cálculo dos prazeres. Esco-
lher as sensações para só reter ou
Ele crê nos deuses, ou, pelo menos, procurar as que dão os prazeres
julga não ter boas razões para negá- mais puros, isto é, mais livres de so-
los; parece-lhe, porém, inconcebível frimento, procurar o gozo no prazer
que os deuses se ocupem dos ho- físico, mas só se dar aos prazeres
mens e do mundo. O mundo só se físicos em que o espírito tenha a
explica pelo acaso; o mundo é feito maior participação. O epicureu bus-
de átomos que se combinam sem cará a qualidade, não a quantidade;
regra; o próprio homem é uma com- porque no prazer do gastrônomo o
binação de átomos, fruto do acaso e, prazer do corpo serve de alimento ao
quando morre, tudo se dissolve. Não prazer do espírito.
se tem, pois, que preocupar com a
vida futura, nem mesmo com a mor- Sábio é ser feliz e, vice-versa, para
te, porque enquanto ainda existimos, sê-lo é necessário buscar a sabedo-
a morte não está presente; mas, ria. A Carta a Meneceu exorta ao
quando chega a morte, então somos exercício do filosofar como caminho
nós que não existimos mais. indispensável ao maior dos bens, a

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felicidade (o prazer da ataraxía) rea. E, ainda, da amizade como o elo


compreendida e realizada na vida. É necessário entre a felicidade do indi-
neste sentido básico que a Carta tem víduo e a harmonia da comunidade.
o caráter de um pensamento e ori-
entação prático-ética. Sendo a felici- Cabe, finalmente, observar um traço
dade a busca do prazer como aponía da ética epicuréia, que se depreende
e ataraxía. do exposto, e quiçá de toda filosofia
antiga: a interação e o engajamento
O exercício do filosofar é impregnado entre pensamento e atitude.
de seu fim prático que reúne a refle-
xão, os afetos e a experiência corpó-

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