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A gestão do indizível1

michael pollak
Nascido na Áustria em 1948, o historiador e sociólogo Michael Pollak residia na França
desde 1971. Foi pesquisador do Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS),
no Institut d’Histoire du Temps Présent e no Groupe de Sociologie Politique et Morale,
em Paris, até sua morte, em 1992

Tradução de Gabriele dos Anjos

resumo Entre as entrevistas realizadas para uma pesquisa abstract Among the interviews conducted in the course
sobre mulheres sobreviventes num campo de concentração, a of research on women concentration camp survivors the
entrevista feita com Ruth A. possui um interesse particular, na interview with Ruth A. is particularly interesting because it
medida em que ela mostra quão facilmente, embora de maneira shows how easily, but wrongly, silence can be taken for
equivocada, o silêncio pode ser considerado como forgetting. The obstacles encountered throughout this
esquecimento. Os obstáculos encontrados no decorrer desta interview and the discussions to which they gave rise
entrevista e as discussões que ela ensejou trouxeram à luz a bring to light the inscription of all individual history and
inscrição de quaisquer história e memória individuais numa memory in a collective history and memory. They also
história e memória coletivas. Eles também demonstraram que demonstrate that history and memories have to be related
histórias e memórias devem ser relacionadas aos locais onde to their sites of production just as much as to the
elas foram produzidas, assim como aos públicos aos quais elas audiences for which they are intended. Such an analysis
se destinam. Tal análise do relato de vida deve ser considerada of the life story suggests that it has to be regarded as a
como uma reconstrução da identidade e não apenas como uma reconstruction of identity and not simply as a factual
narrativa factual. narrative.

palavras-chave Memória, entrevista, relato de vida, nazismo, keywords Memory, interview, life story, Nazism,
holocausto, Auschwitz, campo de concentração, identidade. Holocaust, Auschwitz, concentration camp, identity.

Não, eu não poderia odiar. Eu penso somente: pobre humanidade. E também: eu prefiro mil vezes es-
tar entre os perseguidos que entre os perseguidores. Mas, apesar de tudo, eu não posso condenar
ninguém, porque eu me coloco sempre esta questão: como eu teria me comportado no lugar dos ou-
tros? Eu não sei. Não se pode saber. (Ruth A.)

Entre as entrevistas realizadas para uma pesquisa sobre mulheres sobreviventes


do campo de concentração Auschwitz-Birkenau, a entrevista que eu fiz com Ruth A. possui um
interesse particular, porque ela mostra a qual pon­­­to o silêncio pode ser facilmente, mas falsa-
mente, assimilado ao esquecimento.
Em nenhum outro lugar a ascensão do nazismo no comando do país pôde ser observada
tão diretamente quanto em Berlim. Mas, ao mesmo tempo, a vida anô­­­nima na cidade grande
parecia oferecer maiores possibilidades de escapar aos tormentos cotidianos. Também, em ne-
nhum outro lugar, as vítimas designadas do regime, os judeus, são tão tributários de cada ‘in-
dicador’ de melhoria, para a manutenção de ilusões sobre a verdadeira natureza do regime e a
respeito de seu futuro. Sabe-se que a administração nazista conseguira impor à comunidade
judia uma parte importante da gestão administrativa de sua política antissemita, como a pre-
paração das listas de futuros deportados até a gestão de certos lugares de trân­­­sito e a organiza-

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ção do abastecimento durante os comboios. Os zistas ou de milhões de seguidores do regime, são


representantes das comunidades judias se deixaram difíceis de esclarecer no caso das vítimas.
levar a negociar com as autoridades nazistas, espe- Depois de um contato feito através de seu mé-
rando, pri­­­mei­­ramente, poder desviar a política ofi- dico, Ruth A. aceitara sem hesitar minha proposi-
cial, mais tarde, “limitar os desgastes”, para final- ção de entrevista. O primeiro encontro aconteceu
mente chegar a uma situação na qual se acabara em novembro de 1983, em seu apartamento, assim
até a esperan­­­ça de poder negociar um tratamento como os encontros seguintes. Como ela havia de-
melhor somente para os judeus berlinenses. Assim, finido por telefone, esse primeiro encontro deveria
a situação berlinense ilustra particularmente bem somente permitir uma “apresentação”. Uma entre-
a progressiva redução do que é negociável, e tam- vista destinada a registrar a história de uma vida
bém a distância ínfima que às vezes separa a defe- necessita do estabelecimento de uma relação de
sa do grupo e sua resistência da colaboração e do confiança. E, como em outros casos, esse primeiro
compromisso. Nesse caso, é tão surpreendente que encontro confirmava que o sucesso nessa empresa
o eminente historiador sobre o nazismo Walter dependia de que o entrevistado escolhesse seu en-
Laqueur (1983) tenha escolhido o gênero do ro- trevistador, assim como o inverso. “Ser judeu. Vo-
mance para dar conta de uma situação tão inex- cê pode me dizer o que quer dizer isso?” foi uma
trincável? das primeiras questões que Ruth me colocou com
Frente a esta lembrança, o silêncio parece se insistência desde este primeiro encontro. E esta
impor a todos aqueles que querem evitar de cen- questão permaneceu presente durante toda a entre-
surar as vítimas. E certas vítimas, que partilham vista. Depois de eu lhe explicar meu projeto, nós
esta mesma lembrança “comprometedora”, estão, decidimos nos reencontrar várias semanas seguidas
elas também, voltadas ao silêncio. Também o pró- durante aproximadamente quatro horas. Mas, an-
prio desenrolar dessa entrevista refletia menos a tes do segundo encontro, Ruth já me telefonara
dificuldade de falar de uma experiência traumati- para pedir um tempo para reflexão. Certamente,
zante em si, que a dificuldade de evocar um pas- ela tinha sido testemunha em dois processos, mas
sado que permanece difícil de comunicar, de fazer ela temia, ao falar de sua vida, reabrir as feridas de
compreender, de transmitir a todo estranho ao um período que ela ‘ultrapassara’. De forma mais
grupo atingido. Ao invés de arriscar produzir um geral, ela colocava em questão o próprio sentido
mal-entendido em uma questão tão grave, não é de um retorno a estes temas, quarenta anos mais
melhor se abster de falar? Poucos períodos histó- tarde. Foi insistindo com os outros contatos que
ricos foram tão estudados quanto o nazista, assim fiz para minha pesquisa, em Berlim, junto à co-
como sua política antissemita e o extermínio dos munidade judia e à Universidade, que eu pude fa-
judeus. Entretanto, e apesar da abundante literatu- zer Ruth voltar atrás de sua hesitação.
ra e do lugar deste período nas mídias, ele frequen- Três meses mais tarde e de uma maneira com-
temente permanece um tabu nas histórias indivi- pletamente inesperada, outro obstáculo surgiu. Uma
duais na Alemanha e na Áustria, nas conversas jovem amiga de Ruth, que aliás eu encontrara em
familiares, e mais ainda nas biografias dos perso- um contexto completamente diferente, pedira a
nagens públicas. As razões de tal silêncio, tanto Ruth para que esta “não se entregasse a contar a
quanto são compreensíveis no caso de antigos na- história de sua vida nos marcos de uma pesquisa,

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pois este exercício poderia destruir toda sua vida De fato, ela tinha discutido com amigos e conhe-
privada”. Ao longo de uma discussão animada, es- cidos sobre sua participação nessa pesquisa, aceita
ta amiga de Ruth me expusera suas reservas em re- com entusiasmo após as hesitações iniciais. Desde
lação a estas pesquisas históricas e em particular então, o desenrolar da entrevista se dava também
em relação a estes pesquisadores e jornalistas que em função dos julgamentos sobre esta pesquisa e
“passeiam com um gravador e expropriam as víti- sua utilidade segundo cada um deles. Aquela que
mas de seu sofrimento para se enriquecerem com quisera então dissuadir Ruth de continuar nessa
sua publicação”. Acrescentava ela que, além disso, empresa sabia, por experiência própria, a qual pon-
e sobretudo quando se trata de minorias, certas re- to é difícil de se fazer compreender. Nascida de
alidades só podiam ser compreendidas por aqueles um “casamento misto” entre um pai judeu e uma
e aquelas que as haviam vivido. Ela invocara ou- mãe não judia que pedira o divórcio durante os
tras razões de ordem mais geral para dissuadir Ru- anos de 1930 por razões profissionais e muito li-
th de continuar a entrevista: a saber, os efeitos ne- gada a seu pai, o qual ela só reencontrou em 1945
gativos, sobre a vida privada, da pesquisa em ciên- depois de ter vivido os bombardeios a Berlim com
cias humanas, com o risco da análise conduzir a sua mãe, ela optou, após a guerra, pelo judaísmo,
uma manipulação do indivíduo2. Este argumento esco­­lha que deve ser compreendida menos como
era facilmente sustentado pelo fato de que, nesse um engajamento religioso que como a vontade de-
projeto, o relato de vida devia permitir compreen- liberada de se colocar ao lado das minorias fracas
der toda a complexidade dos fatores em jogo tan- e oprimidas. Compreende-se melhor então sua des-
to na sobrevivência como na readaptação ao meio confiança diante de toda fala rápida e simplista
social após o retorno dos campos. Todavia, era jus- sobre o passado.
tamente a perspectiva metodológica adotada –, a Considerada de um ponto de vista sociológico,
saber, partir da extrema diversidade das experiên- uma biografia não fala dela mesma. Para além das
cias singulares antes de toda interpretação mais variações quase infinitas das histórias sociais indivi­
geral – que tinha convencido a Ruth, originalmen- ­duais, a pesquisa tenta esboçar as constantes, socio­
te, da utilidade da pesquisa e que a havia levado a ­­­logicamente produzidas, que definem um dado
participar nela. gru­­­­po. “A sociologia de um conjunto construído de
Esses obstáculos à entrevista me obrigaram igual- ‘histórias de vida’ é, assim, inseparavelmente a aná­
mente a explicitar minhas próprias intenções de ­li­­­se do retorno da história e do retorno sobre a his­
pesquisa. As discussões que resultavam desta expli- ­­tória” (MUEL-DREYFUS, 1983, p.12). Ora, o que
citação deviam revelar o senso que tinha, no con- une antes de tudo os sobreviventes de um campo
texto preciso da oposição a esta pesquisa, o termo de concentração é a experiência de uma persegui­­­ção
‘domínio privado’. Nas discussões em separado extrema em um dado período de sua vida. Es­­­sa
com Ruth e com sua amiga, eu descobri que, em mesma lembrança é um dos cimentos mais fortes
certa medida, Ruth tinha organizado toda sua vi- da comunidade judia berlinense e alemã atual. Dis-
da social em torno da possibilidade não de poder so resulta o reconhecimento da necessidade da coe­
falar de sua experiência em campo de concentra- ­­são do grupo contra toda agressão potencial. Mas
ção, mas de experimentar um sentimento de segu- essa coesão não poderia esconder a grande di­­­­ver­­­
rança, sendo compreendida sem ter que falar disso. sidade de representações que os indivíduos têm de

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sua ligação com o grupo. Essas concepções tam- honra. Distribuir os jornais era um ato patriótico.
bém são formadas pela história, e colocam em jogo Diante de todos os alunos, convocados a ir ao
os jul­­­­gamentos contraditórios sobre o comporta- pátio da escola, a menina judia foi assim conde-
mento das instâncias dirigentes da comunidade du­ corada. Era mesmo muito divertido (Ruth A.).
­­­rante o nazismo. Assim, toda entrevista “individual”
põe em jogo, indiretamente, uma multitude de de- Depois da guerra, a inflação galopante empo-
finições do grupo e de ligações com o passado. brece a família de Ruth que, habituada até então
Nesse sentido, seria errôneo assimilar os obstá- a um estilo de vida confortável, tem que enfrentar
culos encontrados na entrevista aos efeitos de um a fome. A política não ocupa um lugar central na
tipo de controle organizado do que pode e o que história contada por Ruth. Ela se lembra da ocu-
não pode ser dito sobre o passado. Ao contrário, pação “com brio“ do Ruhr pelas tropas francesas.
esses obstáculos e as discussões que eles provoca- A busca, em uma época sombria e pobre, de um
ram tornaram explícita a inscrição de toda história pouco de felicidade, de um pouco de liberdade
e de toda memória individuais em uma história e pessoal é bem mais importante que a política. É
memória coletivas. Do mesmo modo, eles mostra- assim que Ruth relata seu primeiro casamento na
ram que histórias e memórias devem ser relacio- metade dos anos 1920, o qual coincide com certa
nadas aos lugares de sua produção tanto quanto melhoria das condições materiais de vida de sua
aos públicos aos quais são destinadas. família, no momento da estabilização econômica
entre 1924 e 1929:
Perspectivas de futuro e horizonte político
Entre os amigos de meu pai, eu conheci meu pri-
Nascida em 1904 em Dusseldorf, na Renânia, meiro marido, ele também gerente comercial em
Ruth passou sua juventude em uma família da pe- editora. Simpatizamos, e uma noite, depois de
quena burguesia judia assimilada. Seu pai é geren- bebermos um pouco, nos dissemos, como que
te comercial em uma editora. Sua educação é “to- para nos divertir: vamos nos casar. Casar, isso
lerante e liberal, sem referência religiosa”. Na es- liberta da família e permite fazer tudo que, até
cola, durante os anos de guerra, ela partilha o en- então, era proibido (Ruth A.).
tusiasmo patriota de todos os seus colegas. Ela não
conhece a discriminação e o fato de ser judia faz, Em 1927, o jovem casal se muda para Berlim,
indiretamente, com que seja mesmo condecorada onde o sogro de Ruth possui uma editora, a qual,
no fim da Primeira Guerra Mundial. no fim dos anos 1920, começa a progredir. Em
1930 ela encontra, em uma consulta, Karl A., um
Como todas as crianças, eu era cheia de entu- mé­­dico que se tornaria seu segundo marido. Esse
siasmo por tudo que dizia respeito à Alemanha. “amor à primeira vista” transforma profundamen-
Como nós todos, eu tinha uma consciência patri- te sua vida. Esse amor permite a ela se descobrir
ótica e nacional. Sendo a única judia da escola, melhor e a encoraja a se afirmar mais. Assim, ela
eu tinha que distribuir os jornais durante as horas en­­­­­­­tra no mundo da alta burguesia berlinense, se
de ensino religioso. E o mais engraçado, é que fa­­­­­miliariza com a pintura e a arte (seu marido pos-
no fim da guerra, me deram uma medalha de sui uma coleção conhecida, composta sobretudo

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de obras expressionistas), a vida teatral, os concer- forma suficientemente lógica para permitir tirar
tos; ela frequenta certos cafés da moda, como o delas consequências para sua própria vida.
Romanisches Café. Ela se divorcia, mas guarda Era algo incompreensível, esse nacional-socia-
uma profunda relação de amizade com seu primei- lismo. Então aconteceu o caso Röhm, e esse pe-
ro marido. Ela não quer obrigar Karl A., que é mais sadelo mostrou-se de uma só vez. Eles foram to-
de dez anos mais velho que ela, a se divorciar, para dos assassinados. Isso levou a pensar: puxa, o
que ele possa assumir suas responsabilidades de pai. que tudo isso significava? Era mais sério que ha-
víamos pensado... 1935, a Legislação de Nurem-
Eu não queria que ele abandonasse sua família berg. Começávamos a realmente nos preocupar.
e seus dois filhos. Ele adorava sobretudo sua Meu marido não tinha mais direito ao título de
filha. Ele queria que eu finalmente prestasse meu Doutor. Ele teve que se desligar de seu pessoal
exame de bacharelado, e ele concordava que doméstico, e só podia empregar velhas pessoas
eu fizesse medicina mais tarde. Por razões ma- judias. Situação pouco confortável (Ruth A.).
teriais, minha família não pudera me deixar es-
tudar (Ruth A.). Um ano mais tarde, Berlim e os novos senho-
res da Alemanha mostraram um rosto um pouco
Todo um mundo se abre a Ruth, no mesmo mais “aberto”, por ocasião dos jogos Olímpicos.
mo­­­mento em que a realidade política se prepara Hélène Meyer, judia alemã esgrimista, medalha de
para destruí-lo. É surpreendente que ela dê pouca ouro, tinha até mesmo o privilégio de fazer a sau-
atenção, assim como seus amigos, à data fatídica dação alemã diante da bandeira da cruz gamada,
de 1933, ano da tomada do poder pelos nazistas. quando da cerimônia de entrega das medalhas
(BRANDT, 1984, p.20).
O início dos anos 1930 era ainda muito belo, mui- As diferentes medidas de discriminação profis-
to interessante, com muitos passeios, viagens sional, boicote de lojas de judeus, exclusão da fun-
muito bonitas, mesmo ao exterior. Chegou 1933. ção pública e da magistratura, desde 1933, assim
Não se podia levar isso realmente a sério, em como as leis sociais de Nuremberg, tiveram como
todo o caso não tanto quanto deveríamos... Era consequência, em Berlim como no resto da Ale-
como um fantasma que passa rapidamente. Não, manha, a emigração de mais de 40% da população
na época, nenhum de nós levara isso a sério... judia recenseada, até 1939. As estatísticas para Ber-
Não, eu não conhecia nenhum nazista. Nosso cír- lim, estabelecidas por Bruno Blau, recenseiam
culo de amigos era composto de democratas, nós 172.672 pessoas judias (4,30% da população) em
não éramos do Zentrum, nem social-democratas, 1925, 160.564 (3,8%) em 1933 e 75.344 (1,7%) em
mas sobretudo desse novo partido, muito negro- 1939 (BLAU, 1946, p. 3).
vermelho-ouro3 (Ruth A.). A propaganda antissemita generalizada não pa-
rece ter afetado Ruth. Ao contrário, ela consegue
Da mesma maneira, a cronologia propriamen- dar mais detalhes das discriminações que ela sofreu
te política desses anos aparece em seu relato como diretamente:
uma sequência desordenada de catástrofes, que, de As perseguições a judeus eram ainda muito es-
qualquer maneira, não são ligadas entre elas de condidas. E não havia ainda essa ideia funda-

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mental de extermínio dos judeus. Vimos cartazes nhecimentos e seu senso prático5.
‘Não compre em lojas judias’ ou ‘Os judeus são
nossa infelicidade’... O curioso é que deixamos Modo de assimilação e relação com o social
passar tudo isso sem refletir uma só vez, sem nos
dizermos: chega, vamos embora da Alemanha! De um dia para outro, a família A. deve se con-
Nas ruas, havia vitrines com jornais e eu guardei vencer da inutilidade de sua riqueza. Os pais de
o Stürmer4 com imagens tão más e tão feias. Cer- Karl haviam comprado um grande terreno para
tamente interessa a você o que eles escrevem. construção em uma periferia residencial. Ele foi
Eles descreveram os judeus com narizes muito vendido em 1938 e uma soma muito grande é
longos e arqueados. Eu jamais vi judeus com na- transferida para sua conta, três dias antes do assas-
rizes assim, mesmo em Auschwitz... Durante dois sinato de Ernst vom Rath na Embaixada Alemã
anos, eu fiz cursos privados com um casal de de Paris. “Então esse famoso ‘imposto punitivo’
professores que viviam no Kurfürstendamm, e que foi decretado, e todo este dinheiro foi confiscado.
foram excluídos do sistema de ensino. Eles eram Para Karl e para mim restavam alguns 220 marcos
judeus. Foi assim que eu fiz o Abitur [exame de por mês. Nós tínhamos conseguido sacar algum
conclusão do curso secundário, na Alemanha]. dinheiro pouco tempo antes dessas medidas6.
Durante dois anos, eu frequentei o curso. E em A situação dos judeus berlinenses se degrada
1936 eu enviei à Universidade os formulários de com uma rapidez inaudita. As comunidades judias
inscrição, bem preenchidos. No questionário era perdem seu estatuto de associações de direito públi­
necessário indicar também: “judeu”. Reenviaram- ­­co, os passaportes dos judeus não são mais renova­
me todos os formulários riscados, sem nenhuma ­­dos, e, a pedido da Suíça, que quer evitar uma “imi­
explicação. Então eu não pude cursar medicina. ­­­gração selvagem”, esses mesmos passaportes são
Mas uma amiga judia pôde ainda se inscrever em marcados com um “J”. A imigração se torna mui-
uma disciplina literária e ela fez seu doutorado em to difícil e leva ao confisco de todos os bens. No
letras na Alemanha antes de emigrar. (Ruth A.) fi­­­nal de outubro, todos os judeus de nacionalida-
de polonesa são expulsos, medida que atinge mais
Apesar dessa discriminação e das dificuldades, particularmente Berlim. Da mesma forma, o interna­
a vida social permanecia suportável nas grandes ­mento temporário da população masculina judia
cidades e mesmo agradável para as famílias abas- após a Noite de Cristal. Ao final de 1938, todos
tadas. “Com a riqueza se pensa sempre que tudo os órgãos de imprensa judeus são proibidos; os ju-
vai sair bem. Quando se tem muito dinheiro, acre- deus não têm mais direito a ir a concertos e a tea­­­­
dita-se que se é intocável”. A deterioração progres- tros, a cinemas ou museus. São lhes retirados todas
siva do estatuto dos judeus se realiza, por assim as matriculas de seus carros, certas ruas berlinenses
dizer, sem impor decisões muito brutais. O ano lhes são interditadas, e são obrigados a portar os
1938 marca um ponto sem retorno. Mas a partir nomes de “Israel” e “Sarah” no começo de 1939.
desse momento, também, o relato de vida de Ruth No mesmo período começam as mudanças para
ganha em contorno, ao mesmo tempo em que au- os “imóveis judeus” (BALL-KADURI, 1973, p. 199).
mentam a responsabilidade e o papel que lhe são Em seu relato, Ruth não pode mais estabelecer
atribuídos nessa situação e que valorizam seus co- a cronologia das diferentes medidas. Isso quer di-

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zer que, após a Noite de Cristal, o intervalo que formas diferentes de ligação com a judeidade e du-
subsiste para reação é nenhum: as concepções opostas de “assimilação”, na origem
de atitudes divergentes em relação à emigração. Na
Antes, eu diria que nós vivíamos uma boa vidinha, Alemanha, país que não possui uma separação en-
para não dizer uma vida alemã... mas depois veio tre Igreja e Estado idêntica à da França, mas no
o decreto que impunha os prenomes de Israel e qual algumas religiões gozam de um estatuto ofi-
Sarah. Uma besteira inacreditável, quando se pen- cialmente reconhecido, o pertencimento religioso
sa... e depois a estrela, era necessário estar mar- é um critério importante da identidade social de
cado. Porque aqueles que não a portavam eram todo indivíduo. O abandono das tradições religio-
denunciados por aqueles que sabiam que éramos sas, no caso da família de Ruth, produziu nela a
judeus. (Ruth A.) capacidade e o pendor para afrontar todas as situ-
ações da vida “de indivíduo para indivíduo”, fa-
Nessa situação, é a ela que toca o papel primor- zendo a abstração dos pertencimentos de grupo.
dial. Ela se dá conta que seu marido, assim como Esse “desenraizamento” em relação a uma dimen-
toda sua família, estão como que paralisados, in- são importante da identidade social para todo o
capazes de reagir, incapazes de tomar decisões: alemão da época permitiu-lhe visualizar muito ce-
do a emigração.
Antes do nascimento de meu marido, dois outros Ao contrário, Karl encarna o tipo de assimila-
filhos morreram. Seus pais decidiram ter outro fi­­­ ção considerada como realizada em uma socieda-
lho. Um filho desejado. Esse foi ele, meu marido, de na qual as organizações religiosas ocupam um
Karl. Sim, ele foi mimado. Pena. Ele era mandado lugar im­­portante na vida cultural, na educação e
para a escola acompanhado por um criado que nos ser­­­­viços de saúde. Nesta lógica, a Enciclopé-
vinha igualmente buscá-lo na saída da escola. Vo- dia Judaica, editada em Berlim em 1927, valoriza
cê pode imaginar! Fora de sua profissão, ele era uma assimilação descrita como uma “racionaliza-
incapaz de toda atitude prática. Ele sempre me ção e uma secularização da vida judaica”, adequa-
olhou espantado porque eu sabia me virar, ele me das à da manutenção da “fidelidade à herança
olhava como uma das sete maravilhas do mundo: cultural e religiosa”. Ao contrário, essa Enciclopé-
‘ah, é, também se pode fazer assim’? (Ruth A.). dia julga de maneira negativa outra forma de as-
similação como a “conversão religiosa ao cristia-
Para melhor dar a compreender a diferença en- nismo e os casamen­­­tos mistos”, que renegaria a
tre ela mesma, dotada de senso prático e seu ma- herança tradicional judia. Essa segunda forma de
rido, Ruth evoca a oposição entre sua própria edu- assimilação é mais fre­­­­quentemente, segundo a En-
cação e a de seu esposo, uma educação da grande ciclopédia, fator de “tensões psicológicas”7. A co-
burguesia que escapou à miséria do pós-guerra e munidade judia berli­­nense – com suas numerosas
às consequências da inflação. A isso se juntam os escolas, sua biblioteca, sua coleção de quadros,
princípios de uma educação religiosa na qual a seus serviços sociais e seus hospitais – representa
crença em um destino imutável se fundava em leis o modelo de uma assimilação coletiva que se dá
e regras escrupulosamente respeitadas. Mas, para pela conquista de um lugar reconhecido na socie-
além da fé religiosa, Ruth e Karl representam duas dade alemã. Consagrando mais de 30% de seu or-

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çamento às obras sociais, a assembleia de repre- eu não fui. Meu marido encheu dois táxis com
sentantes da comunidade judia berli­­­­nense, eleita toda a prataria de sua família. Ele fez isso mais
por todos os membros maiores de am­­­bos os sexos, apressadamente que qualquer outra coisa. Sua
era composta, no final dos anos 1920, de uma irmã estava como ele: angustiada e meticulosa.
maioria liberal e uma fraca minoria sionista (HER- Honestamente, eu não teria jamais feito isso. Eu
LITZ; KIRSCHNER, 1927, p. 891-894). Uma for- dera joias a uma amiga que partia para a Dina-
te identidade judaica, longe de se opor, ia junto marca. E, após a guerra, eu as recuperei. Eu teria
com um patriotismo alemão, e mais particular- preferido jogar tudo no canal de Landwehr que
mente prussiano. Para uma família que, como a entregá-las. (Ruth A.)
de Karl, investira tudo, havia gera­­ções, nessa obra
coletiva, deixar a Alemanha signifi­­cava deixar uma Finalmente, é seu marido que, por sua confian-
comunidade ‘modelo’ tanto do pon­­to de vista de ça em um destino querido por Deus, e por seu es-
sua organização social como de suas contribuições pírito “prussiano”, a saber, a fé cega em uma Ale-
culturais à história moderna ale­­­mã e judia. Recém manha “Estado de Direito”, faz fracassar todos os
e inesperadamente chegada nes­­se mundo maravi- planos de emigração que Ruth elabora:
lhoso, Ruth é menos sensível que seu marido à
perda desse mundo que não fora sem­­pre o seu e Regularmente, todas as sextas-feiras à noite, seis
ao qual ela não pertence de pleno direito. amigos de meu marido, médicos como ele, vi-
Comparando às vezes seu próprio caso àqueles nham nos ver. Tínhamos discussões inquietas.
de casais amigos, Ruth deixa igualmente transpa- Todos médicos judeus. Um após o outro, três
recer, sem jamais fazer disso um objeto de reflexão deles emigraram. Todas as nossas discussões
específica, a oposição das atitudes masculina e fe- giravam em torno da emigração e sobre o que
minina face às mudanças na vida social, às dificul- ia acontecer conosco e com a Alemanha. Nesse
dades materiais e a uma eventual imigração. Iden- meio-tempo, a guerra explodira. Nós fixamos na
tificando-se plenamente com o que eles considera- parede um grande mapa para seguir o desenro-
vam como o fruto inalienável de seu trabalho e de lar da guerra. E meu marido, que se interessava
sua herança, os homens não podiam se separar de muito por política e que era muito inteligente di-
sua propriedade privada, nem de sua comunidade, zia, espantado: ‘Mas o que eles estão fazendo?
nem da Alemanha. Mais habituadas a decodificar A França derrotada, a Polônia rapidamente mor-
as relações sociais a partir de uma posição relati- ta... Em dezoito meses, assistimos a um segui-
vamente dominada, as mulheres assumiam frequen- mento ininterrupto de vitórias de Adolf Hitler na
temente, nessa situação, as decisões necessárias e Europa. Como era possível que Chamberlain te-
dirigiam-se à emigração. nha ido ao Ninho de Águia e ele tenha querido
Desde então, ela compreende que “era, sobre- fazer um tipo de tratado com esse Hitler. Pura
tudo, preciso não obedecer”. E ela dá como exem- loucura. Tudo isso era impossível de compreen-
plo a obrigatoriedade dos judeus entregarem seus der. E o cúmulo foi quando eles fizeram um acor-
objetos de valor: do com a Rússia. Adolf Hitler acolhe com todas
Demandavam-nos depositar todos os objetos de as honras Molotov em Berlim. Não, tudo isso nos
valor em um lugar determinado. Evidentemente deixou completamente estupefatos. Eu sempre

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pressionei para emigrarmos. Até 1938, era ainda o fato é que ele me botou porta afora. Eu tive que
fácil, em 1939 se tornou muito difícil. Havia so- me mudar. Os judeus eram ‘concentrados’ em
mente uma possibilidade: partir para Shangai. imóveis pertencentes a judeus. Em nove de no-
Mas o que você quer que façamos em Shangai? vembro, dia de minha mudança, era um dia de
Ninguém queria saber de nós judeus. E não se boicote aos comércios judeus. [trata-se do dia
podia imaginar que a escolha pudesse ser: Shan- anterior à Noite de Cristal]. Os carregadores da
gai ou morte. Esperávamos que a guerra termi- mudança me olharam e choraram comigo. Eles,
nasse rapidamente e a paz se restabelecesse. não eram pró [regime], eles eram certamente co-
Absoluta ilusão! Após 1939 foi a angústia, a an- munistas e eles disseram: ‘mas, o que é isso?’
gústia absoluta. Bom, nós não emigramos. Esta- eles estavam verdadeiramente chocados. Eles me
va muito difícil fazer meu marido se mexer. Eu viram, eu, meu apartamento, minha vida. Eles pen-
era esportiva e muito ativa. E eu tinha a possibi- saram: ‘porque essa senhora deve sair daqui?’
lidade de obter para nós documentos falsos. Eu Além disso, eu estava grávida e na manhã se-
comprei uma carteira de identidade para mim. guinte eu deveria ir pessoalmente à polícia para
Bem, evidentemente, tratava-se de uma carteira lhes dar meu aparelho de rádio, objeto igualmen-
falsa. Mas esse tipo de documento poderia dar te proibido aos judeus. (Ruth A.)
proteção, se, além disso, se estivesse integrado
em uma unidade de trabalho. Para meu marido, Assim como os carregadores, os amigos não ju-
eu tinha a possibilidade de comprar um docu- deus dão testemunho de sua simpatia. Mas, inexo-
mento oficial da Cruz Vermelha com foto. Com ravelmente, as relações sociais se deslocam entre
este documento, ele poderia ter se virado muito “judeus” e “arianos”. A política de segregação ra-
bem. Mas, em sua opinião, não era preciso se cial, de “dissimilação” progressiva do grupo judeu
erguer contra o destino. (Ruth A.) se realiza plenamente, na medida em que, na vida
cotidiana, pesam-se os riscos de tal ou tal contato.
Todos os eventos contribuem para sufocar a Por vezes, na ausência de ruptura marcada, é im-
esperança. Entretanto, é em 1938, ano de inflexão, possível estabelecer a posteriori a origem da rup-
que se realiza enfim o sonho de Ruth e de Karl: tura de uma relação. Assim, a maior parte dos ami-
seu casamento. Ruth está grávida. Ela fala de seu gos renanos de Ruth não eram judeus, contraria-
aborto com lamentação, tristeza e ao mesmo tem- mente ao círculo de amigos de seu marido, que se
po com certo alívio: o que seu filho poderia espe- recrutava na alta burguesia judia berlinense. Fre-
rar? Após o repouso imposto pelos médicos, Ruth quentemente é ela que não contata mais seus ami-
tomou seu lugar e ainda se reaproximou de seu gos por medo de os “embaraçar”, para não “causar-
marido, que lhe transmite os conhecimentos de lhes problemas ou expô-los a sanções”, talvez tam-
base em medicina. Ele vem viver em seu pequeno bém para evitar uma rejeição. As fronteiras sociais
apartamento; posteriormente, eles devem deixá-lo arbitrariamente estabelecidas pela política marcam
no fim do ano para se mudar para um “aparta- até mesmo a simpatia e os sentimentos. A adapta-
mento judeu”: ção dos comportamentos individuais resulta tam-
Isso aconteceu com uma revogação do aluguel bém do cuidado de não colocar o outro à prova
pura e simples. O proprietário fingiu lamentar, mas por medo de ser decepcionado. Assim, o episódio

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seguinte é um daqueles que Ruth evoca penosa- ças, eles também vieram para Berlim. Eles acre-
mente e cheia de hesitações: ditaram que, em uma grande cidade, seria sem-
pre mais fácil se virar que em uma cidade onde
Eu mesma tinha muitos amigos não judeus. Entre todo mundo se conhece. Meu irmão emigrou em
outros, uma mulher que me era muito próxima. 1935, primeiro para a Dinamarca, e depois para
Ela era de um meio hostil a Hitler. Acho que eles a Suécia, onde ele se casou. Ele teve dois filhos.
eram simpatizantes do Zentrum. Ela se preocupou Tão longamente quanto possível, ele nos escre-
muito comigo. Ela queria que eu emigrasse. Mas veu por intermédio da Cruz Vermelha. Após a
uma noite, era o primeiro alerta aéreo em Berlim, morte de meu pai, ele fez tudo para levar minha
em 1940, ela não quis que eu ficasse na casa mãe, para fazer com que ela fosse para a Suécia.
dela. Ela me mandou embora. Ela tinha medo que Mas recusaram isso a ela. A comunidade judia
outros a denunciassem por dar abrigo a uma ju- na Suécia, ela também era assim. Ela não queria
dia. Ela tinha medo. E isso, sim, para mim foi um bocas demais para alimentar. Ele teve dois filhos,
golpe. Sim, os alemães também tinham medo. e depois pegou pólio. Foi demais. Ele não podia
Eles não viram claramente em qual aventura eles mais viver assim. Ele se suicidou (Ruth A.).
estavam engajados. O que me aconteceu, não
se podia prever. E o dia que alguém não tinha Reféns da esperança
mais vontade de jogar o jogo, ele sabia que es-
tava morto (Ruth A.). Desde o início da guerra, a vida de Ruth está
indissociavelmente ligada ao destino da comuni-
Em outro encontro, ela volta a esse episódio: dade judaica berlinense. Karl, profundamente re-
ligioso, membro de uma das grandes famílias ju-
Esta passagem com a mulher que me mandou dias berlinenses, fora antes da guerra próximo da
embora de sua casa durante o bombardeio, talvez direção da comunidade judia, composta de rabinos
seja melhor não escrever. Ela já era idosa e ocu- e de dignatários. Desta forma, ele tinha mesmo
pava uma posição social elevada. Certamente ela ocasionalmente participado de negociações com a
temia por sua aposentadoria. Porque, durante o administração. Juridicamente, as comunidades ju-
bombardeio, o vigilante do imóvel (Blockwart) te- dias na Alemanha gozaram, até 1938, do estatuto
ria podido ver a casa dela para fazer um contro- de associação de direito público, antes de serem
le. Bom, isso não foi bonito. Mas se pode por isso transformadas, nesse mesmo ano, em associações
fazer um julgamento sobre ela? (Ruth A.). de direito privado. Em 1939, é criada, em âmbito
nacional, a Reichsvereinigung der Juden in Deuts-
Em quem confiar, em quem contar na luta pe- chland, reagrupando obrigatoriamente todas as pes-
la sobrevivência cotidiana? Dolorosamente, desde soas de ‘raça judia’ segundo os critérios da lei de
antes de sua deportação, ela deve viver a experiên- Nuremberg de 1935. Uma associação voluntária
cia da solidão na perseguição, de limites na ajuda que agrupa uma comunidade de crentes é assim
mútua também. substituída por uma organização sob tutela do Es-
Meus pais tinham sua vida em Dusseldorf e, quan- tado que gerencia todos aqueles que a ideologia
do eles se deram conta da amplitude das mudan- racial define como ‘judeus’. Essas transformações

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jurídicas tiveram como consequência a redução boios para o Leste, sua narrativa hesitante demons-
significativa da margem de manobra e de autono- tra o estado psicológico que devia predominar en-
mia das comunidades judaicas, colocando-as aos tre os oficiais da comunidade que acreditaram por
poucos sob as ordens da Gestapo. muito tempo poder efetivamente negociar sua sor-
Contudo, até por volta de 1941, a vida cultural te e salvar assim as tradições e a continuidade da
da comunidade judaica berlinense conhece certo comunidade9. As primeira deportações para o Les-
impulso. A comunidade judia absorve na Kultur- te começam em 1940. O primeiro comboio deixa
bund a maior parte dos artistas e intelectuais ex- Berlim em outubro de 1941.
cluídos da vida cultural nacional. A proibição dos Em 1941, 1942 e 1943, o que sabiam efetiva-
judeus de frequentarem os cinemas e os teatros, mente os judeus berlinenses sobre o destino desses
assim como a exclusão das crianças judias das es- comboios? Dois tipos de comboios, um em dire-
colas públicas aumentam paradoxalmente as tare- ção de Theresienstadt, outro em direção ao ‘Leste’
fas e a animação cultural da comunidade judaica. deixavam Berlim. Nos primeiros eram admitidos
O número de escolas judias até aumentara em 1940. apenas dignatários e velhos10: “Theresienstadt era
Da mesma forma, os grupos de jovens continuam considerado como alguma coisa de relativamente
a existir, antes que alguns escolhessem a clandesti- melhor. A significação precisa de Auschwitz, eu
nidade8. Nos marcos da política de dissimilação- não a conheci, certamente não. Exceto a direção
emigração, muitos internatos foram autorizados a Theresienstadt, se tratava sempre de comboios pa-
formar jovens judeus para a agricultura, a fim de ra o Leste”11. A partir de 1941, os rumores sobre
prepará-los para a emigração para a Palestina. Uma seu destino real, o extermínio, se ampliam:
escola desse tipo funcionou até 1943 em Neuen-
dorf, próximo de Berlim. Os dias, as horas eram cheias de inquietude e ner-
As tarefas de organização e de gestão social da vosismo. Em torno de nós se dizia que todo mundo
co­­­munidade judaica berlinense aumentavam na desaparecia. E certamente, as discussões de sex-
medida em que a população judia se tornava mais ta-feira à noite com os colegas médicos giravam em
mi­­­­serável. O porte da estrela torna-se obrigatório torno desses temas, e nós escutávamos as emissões
a partir de 19 de setembro de 1941. Entre o final de da BBC, eu não entreguei meu rádio, o que poderia
1941 e o início de 1942 restrições suplementares resultar em pena de morte... e eu escutei o discurso
quanto à participação na vida pública são decreta- de Thomas Mann quando ele disse que na Alema-
das: proibição de utilizar o telefone, de comprar nha, no coração da Europa, se assistia ao massacre
jornais, de utilizar transportes em comum, de ter dos judeus. E depois nós dissemos – era minha
animais domésticos, de ter roupas além do estrita- opinião: ‘Não é posssível, mesmo esse ai sucumbiu
mente necessário (BALL-KADURI, 1973, p. 204). aos exageros da propaganda inglesa. É impossível’.
Ruth trabalha para a administração social da Era 1941. E depois quando Hitler declarou guerra
comunidade judia de 1939 à 1942; ela se ocupa da à Rússia, nós nos debruçamos sobre o mapa e dis-
distribuição de roupas e de outras formas de ajuda semos: ‘com a Rússia na guerra, ela está perdida.
material. Sem necessariamente conhecer todas as Mas isso vai durar ainda quatro anos!’ Meu marido
implicações de suas diferentes tarefas, em particu- não se enganou nesse cálculo. Ele me disse: ‘eu
lar aquelas que são ligadas à preparação de com- não vou sobreviver’. Desde o início ele pensou na

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morte. E depois ele me disse: ‘Mas tu, querida, tu varredor de ruas, seu marido foi colocado na Sie-
sobreviverás!’ Ele tinha um tipo de intuição. mens, como parte do contingente de judeus sub-
metido ao trabalho obrigatório, dispondo, a prin-
Ao passo que as notícias difundidas pelo rádio cípio, do estatuto de trabalhadores indispensáveis
não são suficientes para fazer crer nos rumores, ao esforço de guerra. Nessa usina, situada no bair-
uma testemunha o consegue: ro de Wedding, conhecido por ser um dos feudos
do Partido Comunista Alemão, Karl goza da sim-
Uma noite, a preparação de um comboio durou patia e do apoio dos operários, apesar de sua falta
mais tempo e eu tive que ficar no escritório situado de habilidade e de força física:
na Münchnerstrasse além da hora autorizada aos
judeus. Não era bom caminhar portando a estrela Ele tinha que abrir grandes caixas e carregá-las
nesse horário. Na minha angústia, deviam ser oito ao centro. E os operários o ajudavam o tanto quan-
e meia passadas, eu me dirigi ao agente de polícia to podiam, porque no início ele não sabia como
que estava de serviço na esquina da Kaiserallee e abrir as caixas. E um dia ele abre uma caixa e vê
Berlinerstrasse. Eu me dirigi a ele: “eu sou judia e um grande cartaz: a Frente Vermelha está viva
não tenho mais o direito de estar na rua. O que eu (Rotfront lebt!). E o contra-mestre o viu, pegou o
faço?” E ele me olhou: ‘Escute, tire este Isaac (es- cartaz e o destruiu. Se acusassem meu marido
trela)’. Eu fiquei próximo dele e descosturei a es- de ter trazido o cartaz, ele teria sido fuzilado ime-
trela e ele me acompanhou até em casa. Ele subiu diatamente. Mas certamente ele não teria colado
ao nosso apartamento, sentou-se e nos disse: ‘Só os cartazes para a Frente Vermelha, certamente
posso aconselhá-los a se suicidarem!’ Pois ele foi que não. (Ruth A.)
testemunha do assassinato de judeus de Litzmanns-
tadt (Lodz), abatidos diante das tumbas que eles Apesar disso, rapidamente essa sensação de se-
mesmos tiveram que cavar. Eles tombavam e quan- gurança se revela uma ilusão:
do os cobriam de terra, era possivel ainda ver me-
xerem seus pés e suas mãos. Essa novidade não Em outubro de 1942, a própria comunidade judia
era muito animadora. Mas, apesar de tudo, nós não teve que propor uma lista de 1000 pessoas para
nos suicidamos. Mas era alguma coisa. Nós man- um comboio. Destino desconhecido, como sem-
tivemos contato com esse homem. Ele nos trazia pre. E, a princípio, os operários indispensáveis
patê de fígado, pequenos pãos. Ele nos queria ao esforço de guerra estavam protegidos. A co-
bem. Mas, ao mesmo tempo, ele escolhia em nos- munidade judia berlinense pensou então que
so apartamento o que ele tinha necessidade. Eu seria astucioso colocar nessa lista as pessoas
posso compreender muito bem isso, é humano. cujos cônjuges estavam protegidos. É por isso
Pode-se compreender. Ele sabia que nos levariam que me colocaram na lista. É justamente para
e que tudo ficaria no apartamento, uma ocasião esse comboio que, pela primeira vez, separaram
para ele de obter alguns objetos. E eu preferia que famílias, marido e mulher. Havia um SS vindo de
fosse ele que os agentes da Gestapo. (Ruth A.) Viena, Brunner. Ele queria se impor por seu com-
Apesar dessas informações, eles sentem-se rela- portamento: gravata e botas de couro. E ele que-
tivamente protegidos do perigo imediato. Após ser ria introduzir um novo método, em concorrência

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com o de M. Prüfer. Efetivamente me convocaram mentação durante esse período. E nós tínhamos
no dia seguinte, às 7 horas da manhã, na Sina- muito pouco para comer. De qualquer maneira,
goga da Oranienburgerstrasse, onde eu recebi com os cartões judeus, só tínhamos o direito de
a ordem de preparar uma mochila e alguma ba- fazer compras após as 16 horas, quando não
gagem para o comboio de depois de amanhã. havia mais nada. Mas nosso agente de polícia e
E quando eu escutei isso, eu fiz uma coisa que um amigo de meu marido, um comerciante que
jamais fizera na vida, fui ver meu marido na usi- entregava cigarros à Luftwaffe, nos traziam co-
na. Quando eu cheguei chorando, ele pressentiu mida. E quando a zeladora, uma mulher simples,
do que se tratava. Primeiro os operários me ofe- soube que eu não recebia mais nada, ela come-
receram um café da manhã, depois eles me es- çou a colocar todas as manhãs dois pequenos
conderam numa grande caixa. Muito nervosa e pães em nossa porta. (Ruth A.)
após uma longa caminhada – o transporte em
comum já era proibido aos judeus – eu estava Na mesma época, o pai de Ruth morre. Em-
tao cansada que adormeci nessa caixa. À noite, pregado na Associação de Judeus do Reich, ele é
nós voltamos juntos. E nós queríamos terminar designado, com outras 14 pessoas, como prisio-
com nossa vida porque queriam nos separar. E neiro, após um atentado contra um oficial em
isso falhou completamente. Veja bem, eu estou uma caserna berlinense. Trocado no último mo-
aqui, diante de você. No nervosismo do momen- mento por uma outra pessoa, o pai de Ruth mor-
to, meu marido não encontrou as ampolas que re de um ataque cardíaco quando ele toma conhe-
ele deveria nos injetar. Simplesmente, ele não cimento que os 15 prisioneiros foram fuzilados
teria podido fazer isso. Eu compreendi essa ati- imediatamente. Seu enterro, no grande cemitério
tude depois. ‘Eu não posso ser teu assassino’, judeu de Weissensee, é, por assim dizer, a última
me disse ele, com um ar suplicante por compre- reunião de família:
ensão. Essa foi a noite mais horrível da minha
vida. Na manhã seguinte, eu estava deitada no Só estavam presentes os amigos mais próximos
chão, reduzida a nada pelos medicamentos que da família. Em torno de 40 pessoas. Evidentemen-
eu tomara. E quando a Gestapo chegou, eles te, estavam meu marido e os membros de sua
disseram simplesmente: ‘Mas não podemos levá- família, minha mãe também. E, se eu me recordo
la nesse estado’. Havíamos preparado duas mo- bem, de todas as pessoas presentes nesse en-
chilas, para mim e meu marido. Ele não teria me terro, eu fui a única que sobreviveu. É um fato
deixado partir sozinha. Mais tarde eu soube que, duro de encarar. Talvez dois ou três tenham con-
no meu lugar, uma jovem, médica no hospital seguido ainda emigrar. É possível. Mas eu não
judeu, partira voluntariamente para acompanhar conheço ninguém que esteja ainda vivo. É um
seu noivo. Assim, a cifra de 1000 pessoas fora verdadeiro milagre que eu ainda esteja viva. E eu
atingida e não me procuraram mais. Averiguou- sempre me pergunto: por que tu vives ainda? Fre-
se que me riscaram das listas, e depois eu vivi, quentemente, isso dá uma sensação de culpabi-
por assim dizer, escondida em casa durante seis lidade. Você me compreende? (Ruth A.)
meses, de outubro de 1942 a março de 1943. O aprisionamento
Certamente, eu não recebia mais cartões de ali-

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Após a deportação de sua mãe, no início de


último calvário da comunidade judia berlinense,
1943, Ruth e Karl são aprisionados nas “ações de
de seus últimos signos de orgulho, de divisões e
usinas”12, quando os operários judeus, até então
de compromissos também.
protegidos por seu estatuto de trabalhadores indis-
pensáveis à produção de guerra, são presos em seu
Levaram-nos à Grosse Hamburger Strasse, onde
local de trabalho. Fiel a seu marido, Ruth renun-
ficavam um antigo asilo e escolas judias. A partir
cia a aproveitar as últimas ocasiões de fugir ou de
desse momento, nós éramos já prisioneiros, em
entrar na clandestinidade.
torno de 3000. E lá nós ficamos no chão, em col-
chões sujos. Eu me lembro muito bem. Meu ma-
Em 23 de março de 1943, ocorreu a grande ação rido teve sua primeira crise de asma. Ele sofreu
de deportação dos operários e do pessoal da muito, e o acaso quis que ele se instalasse sob
comunidade judaica. Nesse dia, meu marido não uma pequena placa de mármore, lembrança dos
fora trabalhar. Como uma caixa caíra no pé, ele doadores dessa sala, que não eram outros senão
não podia caminhar. E quando eles vieram pro- seus pais: Julius A. e Betty, nascida... Eles não
curar todo mundo, ele não estava lá. E em 26 de teriam jamais imaginado que seu filho um dia es-
março, alguns dias mais tarde, oficiais da comu- taria deitado ao pé dessa placa, sofrendo. Nós
nidade judia vieram nos procurar, com um cami- ficamos ali durante 15 dias. Nós partimos de Ber-
nhão de mudanças. Nós pegamos nossas mochi- lim em 20 de abril. E por 18 de abril chegou um
las, já preparadas. Pediram-nos para levar todas transporte de jovens judeus. Eles vinham de Neu-
as nossas ferramentas de trabalho. E meu marido endorf, onde receberam ensino agrícola para se
efetivamente pegou todos os medicamentos que preparar para sua vida em Israel... Jovens cheios
ele ainda tinha. Nesse caminhão já estavam reu- de futuro, gentis, e que viveram verdadeiramente
nidas outras pessoas e eles continuavam a pro- na esperança de poder se consagrar à agricul-
curar. Procuraram em muitos imóveis. Alguns não tura14... Mas circulavam igualmente rumores de
abriram a porta. Infelizmente, nós abríramos a que era necessário desconfiar de apontadores
porta. Nosso apartamento, um velho apartamen- que procuravam aqueles que escolheram a clan-
to berlinense, tinha duas entradas e nós podería­ destinidade. Inicialmente, nós devíamos ser en-
­­mos ter partido pela cozinha. No fundo, eu não viados a Theresienstadt, com papéis verdes, co-
era obrigada a aparecer. Para eles eu já estava mo todos os antigos combatentes condecorados.
morta. Mas eu fiquei com meu marido. Ele não Meu marido era condecorado com a Cruz da Fer-
suportaria jamais tudo aquilo sozinho. Eu quisera ro, primeira classe. E depois eles procuraram dois
emigrar e eu comprara para nós documentos fal- outros médicos, para acompanhar um outro com-
sos. Mas ele não podia fazer isso. Ele não era ca­ boio para o Leste. E eu protestei junto aos orga-
­­­paz de fazer alguma coisa contra a lei. (Ruth A.) nizadores da comunidade judia. Mas eles não me
escutaram. Nosso direito de sermos enviados a
De três a cinco mil judeus escolheram a clan-
Theresienstadt não contava mais: eles tinham ne-
destinidade em Berlim, dos quais em torno de
cessidade de médicos e nos mudaram de com-
1400 sobreviveram13. Tendo decidido jamais se
boio. Em contrapartida, se eu ouso dizer, eles
separar, Ruth e Karl se tornaram testemunhas do
deram para mim também a braçadeira de médico.

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Assim nós pudemos ficar juntos. Alguns daqueles 1942, outras tarefas sociais a completar além da
que organizavam os comboios talvez tenham pen- preparação de comboios para o Leste, aos quais
sado em salvar sua pele. Eu também ouvi dizer os dirigentes e funcionários da comunidade tam-
que se tratava nesse momento de homens em bém não escapavam. Nessa situação, e para ter
‘casamento mixto privilegiado’15. Sim, eu os co- certeza de que ninguém escapa dela, a Gestapo en-
nheci. E nenhum deles está mais vivo. Ninguém gajou apontadores para lhe designar judeus clan-
está mais aí. Ao contrário, quando eu já estava destinos. Mas ao lado dessas últimas tentativas de
em Auschwitz, chegou um outro comboio da co- trocar sua morte por uma colaboração, é necessá-
munidade judia, sempre de 1000 pessoas, das rio igualmente assinalar a coragem de mulheres
quais um certo número foram imediatamente mor- com “casamento misto privilegiado”. Elas conse-
tas. Entre elas, havia apontadores, você compre- guiram, em 1943, com uma manifestação de rua
ende, havia aí um tipo de auto-justiça em Aus- diante da prisão, fazer libertar seus maridos (BALL-
chwitz, isso existiu. (Ruth A.) KADURI, 1973, p. 212).
Ruth recusa-se a fazer um julgamento sobre a
Antes do campo de concentração, Ruth preci- atitude da comunidade judaica, pois suas ações es-
sou ter feito a experiência da fronteira frequente- tão fundadas naquelas qualidades que ela sempre
mente fluída entre cooperação e resistência, entre admirou em seu marido: correção, pontualidade,
negociações e compromissos. Envolvida com a obediência, respeito escrupuloso da lei e da ordem.
preparação de comboios antes de 1942, ela conhe- Não tendo tido a força, como mulher, de fazer seu
ce os raciocínios que puderam levar os responsá- marido partilhar sua resolução de desobedecer ou
veis da comunidade judia a cooperar com a Ges- emigrar, única chance de sobrevivência, ela não
tapo na esperança, seja de “evitar o pior”, seja de pode também reprová-lo. Após sua última tentati-
poder limitar os desgastes pela “artimanha”. Ins- va de convencer seu marido a fugir, a experiência
crevia-se, por exemplo, de preferência, as esposas do campo só reforçará sua atitude.
de “trabalhadores indispensáveis à produção de
guerra” nas listas de comboios. Contando com o Nós partimos da estação de mercadorias Putlitzer
respeito à unidade familiar, esperava-se assim que Strasse em vagões para animais. E no vagão vi-
os SS poupariam tanto as esposas como os filhos zinho, uma mulher grávida gritava, e era impos-
e isso diminuiria o número total de deportados. sível ajudá-la. Um balde para todo mundo, rapi-
Ruth tomou consciência do caráter ilusório dessa damente cheio. E o que nos deram para comer
‘escolha’. Em certa medida, as associações judias rapidamente apodreceu. E o choro e as reclama-
se tornaram, por força das coisas, correias de trans- ções começaram... eu pude olhar por entre duas
missão da Gestapo, desde o início da guerra16, mas tábuas do vagão. E eu vi os ferroviários levanta-
elas conseguiram, até o verão de 1942, suavizar rem os braços para cima, apavorados... Em algum
certas medidas e garantir um mínimo de serviços lugar na Alta-Silésia o trem parou. Ataque aéreo.
sociais e de sustento material para os judeus que E eu quis fugir. Mas meu marido recusou. Para
viviam ainda em Berlim (BALL-KADURI, 1973, ele era o Destino. No último vagão viajavam os
p. 225-226). Após o fechamento de todas as esco- agentes da Gestapo, entre os quais o responsá-
las judias, não havia efetivamente mais, no fim de vel do transporte, M. Prüfer. Não, não, dizer que

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eles não sabiam é impossível. Eles sabiam exa- fuga interior, uma recusa de compreender. Esse
tamente o que se passava na rampa, em Aus- tipo de instinto de sobrevivência reforça sua con-
chwitz... No dia seguinte, 21 de abril, dia de meu vicção, em detrimento de todas as informações,
aniversário, nós chegamos. Os commandos: ‘Fo- que sua deportação a levaria efetivamente a um
ra, fora!’, as mulheres à esquerda, os homens à campo de trabalho.
direita! Mães com seus filhos, velhos e os que
não podiam mais caminhar, no meio. Quase a E desde a entrada, se escutava: Vês esta nuvem,
metade das pessoas afluiam ao meio, onde es- são teus pais que queimam! Eu escutei isso e
tavam estacionados os caminhões da Cruz Ver- nada mais. E efetivamente, a 100 metros dali, se
melha alemã. As pessoas sempre tinham confian- podia ver uma grande nuvem negra, como uma
ça vendo esse signo. E depois eles perguntavam grande nuvem pesada... uma imagem curiosa,
quem era médico. Evidentemente eu não respon- inquietante. ‘São teus pais que queimam’! Eu es-
di, eu não tinha o diploma. E meu marido, que já cutei, mas compreender, não, eu não compreen-
subira em um desses caminhões da Cruz Verme- di... após a tatuagem era necessário se por em
lha [que partiam para a câmara de gás], desceu filas de cinco, sempre de cinco. Ficamos em pé,
dali com dificuldade. E depois nós nos vimos pe- lá, com a cabeça raspada, grotescas, eu em uni-
la última vez. E a sua maneira, tão amável, tão forme russo. Não se sabia mais o que iria acon-
gentil, ele me abençoou e me abraçou pela última tecer, tudo era como um espetáculo de horror,
vez. Ele tinha a expressão 1000 vezes mais emo- incompreensível. E eu me refugiei em uma redo-
cionante que o Cristo na cruz... E lá, quando nos ma de vidro, eu podia ver tudo, escutar tudo em
separaram, eu soube que ele estava perdido. Ele torno de mim, mas eu não compreendia nada. Era
não podia caminhar. Ele, Karl A., que tivera o mun- provavelmente um tipo de ‘autoproteção’, eu me
do a seus pés, filho de uma grande família, como recusava a compreender, devo repetir, eu fiquei
ele teria podido compreender que aos olhos de sentada sob essa redoma de vidro, durante mui-
um SS ele não era nada, nada mesmo? De 1000 to tempo, muitíssimo tempo, porque o espírito
pessoas, não fomos mais que duzentos a serem humano não pode medir o tamanho de uma tal
conduzidos ao campo. (Ruth A.) coisa. (Ruth A.)

Sob uma redoma de vidro Como efetivamente encontrar uma ordem ou


uma lógica nas medidas perfeitamente arbitrárias,
Ruth descreve o choque de sua chegada no até destrutivas, em relação ao bom funcionamento
campo em termos muito próximos dos de outras do campo de trabalho que ela acredita encontrar:
narrativas: desnudamento, ducha gelada, raspa-
gem completa do corpo, distribuição de vestimen- A quarentena era prevista para evitar a introdu-
tos provenientes dos mortos, tatuagem do núme- ção no campo de doenças contagiosas. E para
ro. O que distingue sua narrativa é que Ruth diz nós, que vínhamos de um lugar relativamente
não ter sofrido fisicamente graças a seu “treina- limpo, era completamente absurdo. Foi na qua-
mento” e a seu “lado esportivo”. Para resumir sua rentena que pegamos doenças. Meu uniforme
reação, ela utiliza uma imagem que simboliza uma russo estava cheio de pulgas. Foi a primeira vez

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na vida que eu tive pulgas. E eu me cocei, e é variava segundo as “mais velhas dos blocos”, ver-
coçando que a gente se expõe ainda mais a dadeiras rainhas em seu território:
pegar tifo... e efetivamente, três semanas após,
dia após dia – a incubação dura geralmente 21 Se a gente tivesse sorte, tinha-se uma mais velha
dias – eu tive tifo. E foi esse o primeiro milagre, de bloco boa. Uma vez eu fiquei em um bloco no
eu ter sobrevivido a isto, com a ajuda de uma qual a mais velha era uma criminosa que esfa-
enfermeira judia, que tinha um medicamento pa- queara seu marido. Ela era a mais velha de bloco
ra o coração que ela me dava no momento em mais sádica que se pode imaginar. Ela se fixara
que meu pulso sumia e que eu começava a de- o objetivo de matar uma garota por dia. Além dis-
lirar. Eu estava ainda em quarentena. Alguns so, ela dominava uma outra garota, muito lésbica,
camaradas que iam trabalhar em Auschwitz pe- era algo corrente no campo. Aquela ali ao menos
garam rãs. E com essas rãs, nós fizemos uma tinha o mérito de acalmá-la para que ela não eli-
espécie de uma sopa. Era a primeira vez que mine sua vítima. (Ruth A.)
eu comia uma sopa de rãs. Eu perdia peso, eu
estava magérrima. Durante essas três semanas, Em sua “redoma de vidro”, sempre, ela é levada
não nos deram quase nada para comer... e pa- a transgredir os limites do desgosto que ela acredi-
ra a chamada, era necessário sair todas as ma- tava intransponíveis. Em seu caso, tratava-se do
nhãs e permanecer em pé. E aquele que não contato com os ratos:
conseguisse ficar em pé, estava condenado à
morte. Era um método totalmente deliberado: O pior eram os ratos. Uma noite eu tinha que sair
quando alguém, no campo, perdia consciência, para ir às latrinas. E, de repente, eu vi um turbi-
para a câmara de gás!... E durante a chamada, lhão em torno de mim, como uma tempestade que
as outras mulheres me seguraram dos dois la- levanta poeira da terra. Eu não conseguia com-
dos para que eu não caisse. Pensando hoje, eu preender. Havia centenas, milhares de ratos que
não me recordo disso: eu tinha tarjas negras se seguiam, ratos grandes como coelhos. Era hor-
diante dos olhos, eu não podia ver nada, eu es- rível, eu que tinha pavor de ratos. Mais tarde, um
tava como cega. A febre era terrível. Em segui- amigo professor de zoologia me explicou que is-
da eu sabia reconhecer imediatamente essa so existe, ratos migrantes... as vezes havia deze-
febre nos outros, e o que era necessário fazer, nas de ratos mortos sobre a terra. E um SS me
como ajudá-los. (Ruth A.) disse: ‘junte-os!’. Jamais na minha vida eu tocara
um rato. Hoje isso me seria totalmente impossí-
Após o período de quarentena e de sua doença, vel... Naquele momento, eu terminei por me ha-
Ruth é engajada em diferentes commandos de tra- bituar. E no bloco hospitalar onde eu dormia, os
balho, mais ou menos duros: recolher urtigas para ratos fizeram seu caminho de um lado a outro da
a cozinha, revirar a terra com colheres, triar os ves- peça, e à noite eles passavam em minha enxerga,
timentos e os objetos dos deportados para preparar correndo em minhas costas. Isto não me fazia
seu reenvio “ao Reich”. Sem poder reconstituir mais nada. (Ruth A.)
uma ordem cronológica, ela se lembra das múlti- Nesse mundo que permanece incompreensível,
plas mudanças de bloco, e de um tratamento que a humilhação que destrói mais a personalidade é

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a punição física, o fato de ser batido: ­­­ os deportados arriscam efetivamente de chegar
var,
a um abandono completo de si, a se transformar
Em um commando, eu devia triar os sapatos por em “muçulmanos” e corresponder assim à imagem
pares, colocá-los em grandes sacos e levar esses de “sub-homens” que os SS querem exterminar.
sacos de um lugar para outro. Era muito pesado,
eu não conseguia fazer isso. Eu estava sentada, Nós não estávamos mais com a plena posse de
mas completamente distraída, olhando fixamen- nossas capacidades mentais. Eu acho que às ve-
te diante de mim. E então uma guarda veio em zes havia brometo na comida. E se tinha sempre
minha direção com seu pastor alemão e suas lu- a garganta seca, a língua pendia da boca como
vas de couro negro. E ela me bateu com suas um pedaço de madeira. Nós estávamos avoados.
próprias mãos. O cachorro, como se ele tivesse E se tinha tanta fome que no momento da distribui­
consciência, recuou. Ela me bateu até que eu ­­ção das refeições, algumas de nós lambiam no
perdi a consciência. As outras garotas me socor- chão as gotas de sopa que caiam das marmitas.
reram e me trouxeram água. E eu voltei à consci- Uma vez os SS colocaram, para ‘brincar’, óleo de
ência. Mas não me pergunte o que quer dizer ser rícino na comida. E aquelas que fizeram nas cal-
batido por alguém! Alguma coisa se quebra pro- ças foram mandadas à câmara de gás. (Ruth A.)
fundamente em você. Quebraram sua espinha.
Fisicamente alguma coisa foi quebrada. É o que Tomada de consciência
há de pior. Além disso, ser batida por uma mulher, e vontade de sobrevivência
é muito deprimente, muito triste... Eu fui batida
uma segunda vez por uma Kapo. Em um com- Seu estado de semiconsciência, de recusa de
mando muito duro, onde era necessário revirar a compreender o que se passa a sua volta, durou em
terra, eu penei muito. Um dia, a Kapo viu vir de torno de seis meses. É pelo imperativo de assistir
longe um grupo de SS, duas mulheres e três ho- às “seleções” que ela termina por compreender o
mens. Quando eles se aproximaram, a Kapo se que se passa no campo verdadeiramente.
jogou sobre mim, e me bateu, gritando: ‘Vai, te
mexe, trabalha!’. Era para fazer bonito aos SS. E As seleções no campo [em oposição àquelas efe-
quando eles foram embora, ela me olhou: ‘Ah, és tuadas no ‘Revier’] eram perfeitamente imprevisí-
tu, mas não era em ti que eu queria bater’. Ela veis e arbitrárias, como na loteria. Eu passei por
tinha se enganado e isso me afetou muito e eu seis dessas. Um dia, todo o mundo em pé e ali-
devia fazer uma expressão engraçada. À noite, nhado devia contar-se, de 1 a 514. E depois se
eu encontrei sobre minha enxerga um cesto de dizia: de 501 a 514, um passo à frente. Até a 500,
batatas e cebolas fritas. A Kapo deve ter ficado todas foram levadas para a câmara de gás. Uma
com a consciência pesada. E foi uma refeição outra vez, era preciso contar 1, 2, 1, 2. E as ga-
que me ajudou muito. (Ruth A.) rotas de número 1 desapareceram. Eu comecei
a compreender. Na vez seguinte, o mesmo jogo,
Nesses comandos de trabalho, esses tipos de eu era o 1. Eu senti a angústia, o medo da morte.
hu­­­milhação, a fome, destroem progressivamente Eu transpirei e fiz nas calças. Mas dessa vez, fo-
toda resistência física e moral. Se eles se deixam le­ ram os número 2 que desapareceram... uma vez

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mais, eu tinha escapado. Seis vezes ao todo. Mas quais se passava. Tudo isso, eu tinha visto e es-
na terceira vez, eu estava completamente apática. cutado, mas eu não compreendera. Somente no
Um dia, eu trabalhava no commando da triagem final de seis meses eu me disse a mim mesma
de vestimentas. Era um bloco onde se juntavam onde eu estava: em uma fábrica, cuja única fun-
as vestimentas dos récem-chegados, e era ne- ção era o assassinato. (Ruth A.)
cessário triá-los segundo sua natureza e qualida-
de: as camisas, as calças, os casacos... E um Uma vez admitida a realidade, Ruth pode se
outro commando deveria descosturar as bainhas adaptar a ela mais conscientemente. Ela aprende
dos casacos e das calças para procurar dinheiro o que ela chama de “técnica do campo, o que é
que os deportados haviam escondido neles. Efe- necessário não fazer e o que é necessário fazer pa-
tivamente, encontravam-se ali muitas coisas. E ra amanhecer viva”. Ela se dedica a compreender
eram as coisas das pessoas que eram levadas a ordem hierárquica e as regras que regem o cam-
diretamente à câmara de gás! Um dia, eu estou po. Ela procura compreender e saber. Primeiro, ela
sentada lá e, entre todas as coisas, eu encontro procura encontrar os seus. Ela demanda aos outros
um pequeno babeiro no qual estava bordado ‘o à sua volta informações sobre os comboios vindos
querido de sua mamãe’. Ali, bruscamente, meus de Berlim, os dias da partida de sua mãe, da pri-
olhos se abriram: mas são as coisas das pessoas meira mulher e da filha de seu marido, todos mor-
assassinadas! E eis tu, no meio de tudo isso, e tos na câmara de gás. Um dia, ela toma conheci-
as vezes tu chegas a adormecer... Isso foi para mento da morte de seu marido:
mim a grande revelação e um grande calafrio de
horror. Você compreende? De repente, eu disse Eu não sei exatamente o seu fim. Eu creio que ele
a mim mesma que eu bem poderia me deparar foi espancado até a morte logo após sua chega-
com o corpete de minha mãe que era assassina- da. Um dia, dois médicos poloneses vieram ao
da naquele mesmo momento. Ali, subitamente, campo das mulheres e me procuraram. ‘Ah, é
eu compreendi o que se jogava nesse campo. você a mulher de Karl, meu Deus, a única coisa
Era um sistema racional cujo objetivo era explorar que ele fez foi chamar seu nome!’. ‘Ele ainda es-
as pessoas e matá-las. Por assim dizer, era sim- tá vivo?’ Eles não me responderam, me tomaram
plesmente uma empresa, uma fábrica que mata- nos braços e depois foram embora. Eu não sei
va as pessoas após ter explorado sua força de como ele morreu. O fato de eles não me terem
trabalho e após ter utilizado diferentes partes dos dito mais nada me faz pensar que deve ter sido
seus corpos os cabelos, os ossos, etc. E essas um fim terrível. E durante todos esses anos, esse
roupas, essas montanhas de óculos, de coroas pensamento horrível ficou comigo. Mesmo a ideia
dentárias de ouro, pequenas valises, todos esses de que de agora em diante ninguém poderia fazê-
produtos eram reenviados a Berlim. Durante ao lo sofrer não me consolou. (Ruth A.)
menos seis meses, eu fiquei na minha redoma de
vidro. Eu escutara tudo, eu vira tudo, mas nada De agora em diante, seus pensamentos e toda
tinha me penetrado. Era demasiadamente incom- sua energia são orientados por sua vontade de so-
preensível, demasiadamente inimaginável. Os breviver. Após a perda dos seus e sem perspectivas
mortos, os agredidos, os enforcados diante dos de futuro, ela vive somente no presente, com exce-

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ção de sonhos, muito raros, que trazem a recorda- ciente possuir o contravalor e o meio de paga-
ção de seu marido. mento, sendo os cigarros um tipo de moeda. No
fundo, Auschwitz era um Estado autárquico, apro-
Eu sabia que eu estava nesse campo por uma visionado pelos deportados que chegavam e tra-
única razão: ser morta. E o único pensamento que ziam tudo. Nós também, nós tínhamos levado
eu tive face a essa certeza da morte é simples- muitos medicamentos, meu marido colocou seu
mente que ninguém poderia me fazer mais nada. melhor terno e eu minha roupa de ski mais chique.
Mas eu não queria dar a eles o prazer de minha E tudo podia movimentar o mercado negro. Se
morte. E, por essa razão, eu aprendi tudo o que encontrava mesmo batom! Que húngara chegaria
se necessita saber sobreviver. A primeira coisa sem seu batom! Mas isso custava vidas humanas,
que eu aprendi foi a não seguir sistematicamente esse Império da Morte, todo esse sistema sabia-
as ordens, a não obedecer. Por exemplo, quando mente calculado: uma vez dentro, ninguém saía.
a ordem era dada, em circunstâncias excepcio- Mesmo os SS estavam ligados pelo seu juramen-
nais, de deixar o bloco, quando era necessário to de não falar dele no exterior. E esse silêncio foi
fazer fila fora das chamadas, eu ficava em minha pago a eles por joias, divisas fortes, diamantes,
cama, escondida sob a enxerga, até que a sele- eles todos puderam enriquecer nesse Estado.
ção fosse terminada. Eu me escondi. É assim que (Ruth A.)
eu escapei à grande ação de ‘despiolhamento’
que custou tantas vidas. Eu disse para mim mes- Entre os commandos relativamente privilegia-
ma: ‘eu posso me virar sozinha com meus piolhos dos, Ruth cita a administração (o Schreibstube), o
e minhas pulgas: eu não tomarei banho.’ Era o serviço às famílias de SS, a lavagem de roupa dos
que havia de mais importante: nem sempre obe- SS, e mesmo os responsáveis pelas latrinas (o “com-
decer. Se alguém obedecesse todas as ordens, mando da merda”). Os membros desses comman-
já estava perdido. A cada vez, podia-se dizer: dos gozavam de certos privilégios, como melhores
uma vez mais tu escapaste, amanhã ainda esta- lugares para dormir, um acesso mais fácil aos ali-
rás viva... Sim, se adquire um tipo de técnica do mentos e à informação, o fato de por vezes serem
campo, tanto eu como as outras, eu não pretendo liberados das chamadas da manhã e da noite, que
ter sido melhor que as outras. (Ruth A.) com frequência duravam horas. Em geral, os com-
mandos que cumpriam serviços diretos para os SS
Ela fica sabendo da existência do ‘Canada’, es- e aqueles que eram julgados indispensáveis ao bom
se mercado negro alimentado por certos comman- funcionamento do campo ofereciam mais seguran-
dos, como o da triagem de roupas ou o da cozinha. ça. Isso era verdadeiro também para o serviço hos-
pitalar (o Revier) e todo o seu pessoal.
Algumas encontraram meias de seda e as levaram A ocasião de juntar-se a esse serviço se apresen-
ao campo, apesar do risco de serem controladas ta a Ruth durante a grande epidemia de tifo, entre
pelas SS; outras tinham um pedaço de pão; outras o final de 1943 e começo de 1944. “Os micróbios
ainda trabalhavam na cozinha, tinham um peda- não perguntavam quem era nazista ou judeu”. Es-
ço de margarina. Com isso, elas podiam comprar sa epidemia tinha atingido as fileiras dos SS. Para
tudo que elas queriam. Havia de tudo, era sufi- represar a epidemia, o extermínio foi acelerado,

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os blocos e as roupas foram desinfetados e os de- Falando de relações pessoais entre deportadas,
portados foram vacinados. Para fazer isso, quem Ruth estabelece uma diferença profunda entre o
quer que tivesse conhecimentos médicos era re- que ela viu e viveu antes e após seu recrutamento
crutado. Tendo chegado ao campo com uma bra- ao Revier. O trabalho duro, a falta de comida, as
çadeira de médica, Ruth foi nomeada por sua che- chamadas diárias que levavam horas, a mudança
fe de bloco e transferida ao Revier, onde ela reen- frequente de bloco, de commando de trabalho, to-
contra Érika, médica vinda de Praga, com quem da a organização da vida no campo tornava difí-
ela estabelecera amizade durante uma quarentena ceis, ou mesmo impossíveis, as chances de guardar
por uma cistite. ou manter ligações duráveis. É por isso que os pe-
quenos grupos de auxílio mútuo que se formavam
Nós nos tornamos grandes amigas. Como todos nos comboios decompunham-se muito rapidamen-
os médicos, ela tinha sido diretamente colocada te após a chegada ao campo. A isso se junta o rei-
no Revier, e quando da grande ação de vacina- nado absoluto das Kapos, casta à parte que, para
ção, ela me tomou como sua assistente. Para mim manter seu controle, tinha, assim como as SS, ten-
era a grande chance, e ela logo percebeu isso. dência a não deixar se formarem redes de auxílio
Ela era inteligente e já tinha conhecido a prisão mútuo e de solidariedade. Falando de relações se-
durante dois anos. E lá eu desempenhei a função xuais, reservadas a aqueles e aquelas que tinham
de médica. Ninguém pedia mais nada, nada de escapado das situações fisicamente mais degradan-
diploma. (Ruth A.) tes e que podiam obter um pouco de alimento su-
plementar, Ruth descreve as frequentes atividades
No que diz respeito ao trabalho médico propria­ homossexuais como estando submetidas às situa-
­mente dito, ela sublinha os limites do que se po- ções hierárquicas próprias ao campo de trabalho,
dia fazer, bandagens uma vez ou outra, mas so- as Kapos por vezes constituindo em torno de si
bretudo um apoio psicológico, “escutar e conso- verdadeiras côrtes.
lar”: “Elas ti­­­nham uma grande confiança em todas Ao contrário, no Revier, o recrutamento não
as que ves­­­tiam a blusa branca. Era tudo que eu somente do pessoal médico, mas também das Ka-
podia fazer”. pos – mais velhas dos blocos – era largamente de-
cidido por Orli Wald-Reichert, chefe do Revier, e
Relações pessoais: Enna Weiss, médica-chefe. Fazendo isso, elas ti-
a base de toda a confiança nham o cuidado de constituir um grupo que po-
dia trabalhar e viver em uma certa harmonia. Era
Na mesma medida em que Ruth se distancia, necessário, então, evitar também todo o excesso de
no espaço do campo, dos commandos de traba- violência da parte das Kapos. Para descrever essas
lho or­­­di­­­­­­nário e se aproxima dos grupos de depor- mulheres e o ambiente assim criado, Ruth utiliza
tados pri­­­­­­vilegiados, no caso o pessoal da medici- as expressões “elas tinham classe”, “um certo ní-
na, sua nar­­­­­­­rativa se torna mais ‘pessoal’. Os no- vel”. Esse recrutamento, acompanhado de condi-
mes próprios e a apreciação nuançada das quali- ções de vida melhores e de uma maior continui-
dades de tal ou tal pessoa, deportada ou SS, ga- dade na ocupação de diferentes postos, permitia a
nham importância. constituição de relações pessoais e de pequenos

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grupos de auxílio mútuo fundados na amizade, no pequeno grupo muito unido. Antes, no campo de
amor e no respeito ao outro. trabalho, nós passávamos o tempo, as outras mu-
lheres e eu, a falar de receitas de cozinha. No
Érika era para mim uma espécie de necessidade Revier se discutiam problemas médicos, o que
vital. Eu tinha muita afeição por ela, eu a admira- era necessário fazer ou dizer, ou não dizer. Mas
va, ela era muito inteligente, ela tinha classe. Ela nós tínhamos também escolhido fazer, cada uma,
era para mim o que todo mundo tem necessidade pequenas exposições sobre o que nos preocu-
e que os psicólogos chamam hoje em dia um pava... Eram horas preciosas... Nós nos mantive-
personagem de referência (Bezugsperson). Ela mos vivas, por assim dizer, e agora com um tipo
teve um destino terrível. Ela vivia em Praga; em de vida interior... Uma vez, eu falei de Rembran-
1934 seu marido emigrou para Israel dizendo: ‘eu dt, de sua vida, de tudo que eu sabia tão bem a
te buscarei’ e, depois, mais nenhuma notícia. Eu propósito de seus quadros. Antes, eu lera muitos
a admirava e a respeitava enormemente, quase livros de arte. Isso me apaixonava. Mas meu as-
tanto quanto ao doutor Hautval. Ela era única no sunto preferido era Goethe e Fausto. Eu o conhe-
mundo. E era um verdadeiro presente ter podido cia de cor, tanto a primeira parte como a segun-
encontrar tais pessoas... O amor, a camaradagem da. As outras sabiam pouca coisa: eu podia en-
e a amizade eram os valores supremos. E lá, no siná-las muito. (Ruth A.)
Revier, contrariamente ao campo de trabalho, eu
aprendi a importância de ter a quem se pudesse Essas relações de amizade abrem também a via
falar e ter confiança. (Ruth A.) à elaboração de uma atitude comum face aos SS e
que tende a “evitar o pior” ou a “limitar os desgas-
Em sua narrativa, Ruth sublinha: “Cada uma tes”. Por exemplo, a não indicação da presença de
de nós tinha uma ligação preferencial”. Em sua doenças crônicas e contagiosas devia permitir evi-
des­­­crição, ela recorre a um termo atualmente a um tar-se a seleção automática daqueles que tinham
ter­­­mo na moda nos tratados pedagógicos, “persona­ essas doenças. Um esforço de organização podia
­­gem de referência”17. Fazendo isso, ela destaca o de­ também permitir uma melhor repartição dos me-
­­­nominador comum de uma multitude de relações dicamentos. Mas, em contato direto com os SS, e
de casal: a confiança que, sozinha, permite limitar mais particularmente com os médicos SS, essas
o arbitrário e está no fundamento de todo o sen- mesmas pessoas deviam sempre decidir o grau de
tido de continuidade e de estima de si e dos outros. sua relação com aqueles. Assim, alguém podia se
A partir de tais relações de casal, grupos mais aproximar excepcionalmente dos médicos SS por
amplos podem ser constituídos, como um grupo razões pessoais.
de médicas-amigas que, nos momentos privilegia-
dos de seus encontros, colocam “entre parênteses Érika colocara suas duas filhas, para escondê-las,
a realidade do campo”. na casa de tchecos, em troca de muito dinheiro.
Mas eles as entregaram para as autoridades, e
Nós éramos seis a nos reunir frequentemente, à assim as gêmeas, Renée e Irène, chegaram um
noite, cada uma de nós contava como era sua dia ao campo de famílias em Auschwitz. Ora, mui-
vida antes de ir para o campo. Nós éramos um tas mulheres desse comboio conheciam Érika.

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Nós tínhamos que examiná-las para ver se elas cial do mundo, tinha momentos humanos. Uma
tinham escondido joias em suas vaginas. E essas vez ele chegou sozinho. Ele me pediu para indicar
mulheres disseram à Érika que suas filhas che- as doenças de mulheres das quais eu me ocu-
garam com elas. O doutor Mengele se interessa- pava. Visivelmente, elas tinham tifo. Mas era ne-
va por todas as anomalias fisiológicas no campo. cessário não dizer isso. Então eu disse: ‘uma diar-
Ele tinha lá um material humano que ninguém no reia’. Ele me olhou e deve ter observado meu so-
mundo poderia lhe oferecer! Ele colecionava gê- taque. ‘De onde tu vens?’ – ‘De Berlim’. ‘E seu
meos, esse era o centro de interesse de suas marido, o que fazia?’ Isso foi totalmente excep-
pesquisas. Érika sabia que suas filhas gêmeas cional. Normalmente era ‘Arztin, Du’ (Tu, médico!).
estavam ainda vivas, na medida em que Menge- Jamais um SS tratava na terceira pessoa uma
le não as tinha examinado para decidir sua sorte. deportada. E eu lhe indiquei outras berlinenses,
Por intermédio de Edna Weiss, médica-chefe do e quando houve a seleção seguinte, eu pude sal-
Revier, suplicara a ele para entregá-las a ela. E var duas delas. Talvez ele fizesse essa exceção
ele efetivamente chamou essas crianças e per- porque se lembrava de seus anos de estudo na
guntou quem era sua mãe. E as crianças respon- Universidade Humboldt. Quando ele me disse
deram que sua mãe, médica, estava morta, não ‘você’, ele estava sozinho, evidentemente. Jamais
sabendo que ela se encontrava em Auschwitz. E em presença de um outro SS ele teria deixado
Mengele as deixou ir para o Revier. E um dia ele isso acontecer. Era sempre a mesma coisa. Quan-
as deixou sair pelo portão de Auschwitz e elas do um SS estava sendo controlado, quando ele
chegaram a nós em Birkenau. E isso foi um ato se sentia observado, ele devia corresponder a
humano. (Ruth A.) seu papel e provar aos outros SS que ele era du-
ro. Os SS sempre cometeram as maiores atroci-
Érika e Ruth, inseparáveis, podem assim se ocu- dades na presença de outros SS. Eu me lembro
par das crianças e formam uma “família”, um ter- de um SS que tinha a reputação de assassinar
mo usado igualmente por outras deportadas para ao menos uma pessoa por dia. Quando ele atra-
designar as relações particularmente estreitas man- vessava o campo sozinho, sem ser observado
tidas no campo entre mulheres de gerações dife- por outros SS, eu jamais o vi cometer crueldades.
rentes e crianças que, por assim dizer, se “adota- Cada ser tem um lado humano. E eu tento sem-
ram” reciprocamente (adelsberger, 1956, p. pre, com todo o mundo, encontrar esse lado hu-
122). As passagens da entrevista que se referem às mano. Em uma relação de indivíduo a indivíduo,
relações com os médicos SS merecem uma atenção quase ninguém escapa a sentimentos humanos.
particular porque elas testemunham muito clara- É em grupo, se identificando a crenças ou a or-
mente a tendência de Ruth a jamais pensar o mun- ganizações e quando alguém se sente observado,
do social em termos de pertencimento a um grupo que se quer estar à altura de seu papel e que se
e a querer considerar somente as relações de indi- chega a fazer tudo o que é dito para se fazer.
víduo a indivíduo. (Ruth A.)

Eu não devia dizê-lo e vão querer minha cabeça. A ambiguidade das relações sociais
Mas mesmo Mengele, o ser mais frio e mais gla-

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Uma vez em contato direto com os SS, e mais


víamos contar interminavelmente, um-dois, um-
particularmente com os médicos SS, os deportados
dois ou em filas de cinco. E eu dizia às outras:
que ocupam posições privilegiadas devem sempre
‘Escutem, coloquem-se na fila direito’. Mas quan-
decidir sobre sua ação para com outras deportadas
do eu olhava para outro lado, já havia novamen-
e sobre o grau de suas relações com os SS. Ocupar
te seis e não cinco na minha fila. Eu dizia a elas
posições-chave permite influenciar o recrutamento
‘Cinco! Nós vamos nos incomodar, a sexta tem
a posições privilegiadas e, indiretamente, salvar ou-
que se colocar em outro lugar’. ‘Mas deixe-me
tras deportadas. Pertencimentos comuns, nacionais,
ficar aqui, ao meu lado é minha filha’. Era uma
políticos e por vezes religiosos comandam frequen-
judia polonesa que dizia isso. Ela não compre-
temente essas lógicas de auxílio. Assim, desde sua
endera simplesmente a importância da ordem
chegada a Auschwitz-Birkenau, Ruth foi confron-
na fila. Elas diziam todas: ‘Que besteira fazer
tada à concorrência entre grupos de deportadas
filas de cinco!’ Somente alguém que conhecera
pelo acesso às posições privilegiadas:
a construção prussiana (o ‘Drill’), que sabia o
que era o senso da ordem, podia se habituar a
Aquelas que estavam há mais tempo no campo, isso. E felizmente esse senso me fora transmitido.
sobretudo as polonesas, tinham já o espírito do Eu o tinha em mim. (Ruth A.)
campo, elas ocupavam os postos dirigentes e
sabiam se virar. Nós nos demos conta disso ra- Essa passagem da entrevista, aparentemente
pidamente. E as polonesas, em maioria no campo, oposta à ideia que “era necessário jamais obede-
tinham ciúme de todas as alemãs que chegavam cer” indica que os benefícios da obediência ou da
e ameaçavam pegar seus postos. (Ruth A.) desobediência são função das circunstâncias. Se-
gundo o testemunho de uma deportada alemã re-
As deportadas de nacionalidade alemã eram
crutada para a administração do campo, uma das
oficialmente favorecidas pela administração do
primeiras atividades consideradas como um “ato
campo. A isso se junta a vantagem da língua, mas
de resistência” foi racionalizar o sistema de con-
mais ainda uma compreensão implícita da disci-
tagem e de melhor organizar a chamada da manhã
plina e da ordem do campo. Pode-se falar de um
a fim de abreviar sua duração18. Resistir significa-
fundo comum de educação partilhado por aqueles
va ao mesmo tempo se opor ativamente aos SS e
que conceberam a ordem do campo e aqueles e
“organizar a sobrevivência”. Ora, isso passava por
aquelas, entre os deportados(as), que estavam me-
uma melhor gestão do campo, encorajada em par-
lhor preparados(as) às tarefas da manutenção de
te pelas SS. Outros testemunhos confirmam que
uma tal ordem.
o sentimento de segurança relativa resulta de uma
ordem e de um desenrolar previsível da vida, en-
Durante as chamadas da manhã, nós ficávamos quanto que toda a medida excepcional, como um
frequentemente em pé durante horas até que ‘Blocksperre’ (proibição de deixar os blocos) pro-
todas as filas estivessem em ordem e a contagem voca angústia e pânico (FENELON, 1976, p. 164,
feita. Eu sabia fazer isso, me colocar em filas de 262-263). Poder, em uma certa medida, antecipar
cinco. Eu tinha esse hábito desde os tempos de as ações e as reações dos SS delimitava os espaços
educação física na escola. Lá também nós de- e os momentos nos quais era melhor “obedecer”

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ou “desobedecer”. Mas tentar influenciar as cole- Sim, me insultaram muito. E mesmo aquelas que
gas de detenção nesse sentido pode ser interpreta- eu admirava me atacavam. Elas detestavam os
do como uma complacência ou um compromisso. alemães. ‘Quem poderia amar os assassinos?’ É
Entre todas as categorias de deportadas, a de judia verdade que é difícil. Talvez elas errassem tam-
alemã era particularmente exposta a esse gênero bém por generalizar demais... Uma vez uma mu-
de “mal-entendido”. Enquanto judia, Ruth fazia lher do nosso grupo chegou a me dizer: ‘se eu
parte da categoria situada na posição mais baixa ouvir mais uma palavra sobre os alemães eu vou
da escala. Enquanto alemã, ao contrário, fazia par- cuspir’. Certamente isso é compreensível. Se al-
te da categoria superior. Poder se comunicar com guém viveu isso pessoalmente, como não deses-
o médico SS Mengele permitiu, como se viu, sal- perar? Como compreender que isso tenha podido
var as filhas de Érika, mas também tirar as berli- acontecer ao ‘pais dos poetas e dos pensadores’,
nenses da seleção. Mas cada pessoa protegida era nessa Alemanha altamente culta e admirável? Nós
substituída por outra vítima. Salvar uma amiga fomos testemunhas disso. Não, ninguém poderia
pela única razão que ela tinha a mesma origem compreender isso. E depois se esqueceu que os
geográfica era necessariamente percebido pelas ou- culpados eram apenas uma certa categoria de
tras como um ato de favoritismo injustificado e pessoas. Eu também, por momentos, esqueci dis-
atraia críticas sobre aquelas que agiam assim. A so. Mas em meu retorno, quando eu vi aqui o de­
situação por vezes ambigua das judias alemãs, ao ­­sespero e a desorientação completa das pesso-
mesmo tempo embaixo e no alto da escala, ao as, eu me lembrei que é necessário não genera-
mesmo tempo mais diretamente ameaçadas e mem- lizar. O que elas teriam podido fazer, as pes­­soas?
bros de um grupo linguístico relativamente privi- (Ruth A.)
legiado, constitui o grupo mais exposto às críticas
das deportadas, mas também o mais desorientado: Os critérios do aceitável
“No campo, nós não éramos amadas. Nos chama-
vam de Jackele. E nós tínhamos a reputação de No seu setor, os médicos SS exigiam das deporta­
sermos arrogantes”. ­das médicas um aspecto físico e estético ‘aceitável’,
Por outro lado, a grande heterogeneidade do relembrando a função médica. Elas deviam ter ca-
grupo, partido entre tradições judias e alemãs, de belos e portar a blusa branca. “Não se pode dizer
lealdades religiosas ou culturais diversas, impede que os médicos SS tivessem simpatia por nós, mas
a eclosão de uma solidariedade de grupo que teria eles mostravam um tipo de respeito superficial co-
podido servir de base a redes de auxílio mútuo, mo se encontra entre colegas”. Numerosos teste-
como aquelas que se constituíram no caso das fran- munhos descrevem assim as relações entre médicos
cesas ou polonesas19. SS e deportadas ocupando posições dirigentes no
Ruth evoca as tensões entre ela, que tinha guar- Revier, como a chefe do Revier e a médica-chefe.
dado, apesar de tudo, um certo patriotismo e um
certo orgulho cultural e suas amigas deportadas de Eu conhecia pessoalmente muito bem Enna. Era
origem polonesa e francesa: uma bela mulher, e ela tinha ocupado, parece,
Nós tínhamos também discussões políticas. E se- uma posição elevada no serviço de cirurgia do
guidamente eu era atacada: tu e tua germanofilia. hospital de Belgrado. No campo, ela se tornou

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como que petrificada, sem nenhuma emoção. A proximidade social, os mesmos critérios de
Mas, em sua posição, ela não poderia jamais se pertencimento e o domínio da mesma língua ten-
dar ao luxo de manifestar emoção. Mengele a dem a homogeneizar os julgamentos sobre o que
escolheu para acompanhá-lo. Ela ia com ele pa- é ‘aceitável’, e mesmo ‘normal’, e que outros recu-
ra as seleções. Mas ela jamais tomou decisões sam em nome de uma certa moral. Como o auxí-
por si própria. E no fundo, se tudo isso não tives- lio é fortemente moldado por critérios de perten-
se se passado em um campo de concentração, cimento comum, o comportamento de uma de-
teria sido dito que eles formavam um belo casal, portada ocupando uma posição dirigente parece
dois seres – não se pode dizer simpáticos – mas ser percebido como tanto mais comprometedor
bonitos de se olhar... Quanto ao seu trabalho e quanto aquelas que emitem esse julgamento ficam
a sua posição, ela dizia: ‘Eu posso trabalhar com excluídas dos benefícios potenciais associados a
esse homem. E se não sou eu que o faço, dez essa posição. Isso não impede que uma moral da
outras o farão em meu lugar. Eu salvo quem po- recusa force a própria admiração daquelas que op-
de ser salvo!’ Era seu ponto de vista. Ela podia tam por uma outra atitude. Assim, Ruth, que mos-
falar com ele, ele falava com ela de igual para tra compreensão por Enna Weiss e que aceita como
igual, como com uma colega. Mas ele não se necessária e por vezes benéfica uma cooperação li-
explicou jamais sobre o que ele fazia no campo, mitada com os médicos SS, fala com uma admira-
sobre o que ele pensava disso. Ao menos foi ção sem limites de suas camaradas francesas que
isso que Enna me disse, mas acontecia a eles optaram por uma recusa sistemática, testemunhan-
de ficarem só os dois. Para nós, Enna dizia sem- do assim mais orgulho que ela mesma.
pre: ‘É necessário fazê-lo e eu o faço da melhor
forma, acreditem!’ Eu acreditei nela. Ela fazia A epopeia do retorno
ares de grande senhora, ao mesmo tempo com
um lado ‘dama de ferro’. Era uma personalidade Quanto mais se aproxima o fim da guerra, mais
forte. Mas não se via a que ponto esse trabalho os guardas dos campos de concentração são recru-
a fazia sofrer. (Ruth A.) tados também entre os soldados feridos, inaptos
para o front, ou entre os homens idosos. Eles che-
Outros testemunhos, de sobreviventes de ori- gam ao campo sem nenhuma preparação específi-
gem alemã e austríaca, confirmam essa apreciação, ca, sobretudo sem o doutrinamento ideológico ra-
reconhecendo também a Enna Weiss um papel mui- cista que todo SS conheceu em sua formação. Cer-
to positivo (LINGENS-REINER, 1948, p. 262-263). tos problemas de disciplina nas fileiras do pessoal
Ao contrário, os testemunhos de deportadas fran- SS não são certamente estranhos a esse recrutamen-
cesas trazem por vezes um julgamento sobretudo to. Desde então, saber discernir entre os guardas
severo20, vendo, no contato seguido e estreito com ‘bons’ e os ‘malvados’ pode ser decisivo, e isso tan-
Mengele, os signos do comprometimento. Entre to mais na medida em que o mundo SS e dos cam-
as deportadas ocupando posições privilegiadas, a pos se decompõe, assim como o Terceiro Reich, e
própria definição dos casos de comprometimento que o périplo do retorno coloca Ruth em situações
é muito variável segundo os testemunhos de dife- ‘anárquicas’, em meio à debandada geral, o que so-
rentes categorias de internadas. mente uma apreciação justa e rápida do entorno

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social permite dominar. aproximavam do campo, e se começavam a trans-


portar os deportados a outros campos da região,
Um dia, perto da cerca, havia um jovem soldado com frequência dependências de Auschwitz. É
com um rosto de criança e grandes olhos azuis. nesse momento que igualmente nos enviaram,
Ele me pergunta: ‘Mas porque estás aqui?’. Eu Érika, suas duas filhas e a mim, para um pequeno
respondo: ‘Eu sou judia’. Então ele ficou comple- campo na Alta Silésia. Havia um chefe de campo
tamente confuso. E ele disse: ‘O que, essa é a SS, três guardiãs SS, uma médica deportada e
única razão? É terrível! Eu nunca mais poderei ajudantes de médico e 500 deportadas. Nós par-
olhar para minha mãe nos olhos se eu colaborar timos de Auschwitz em um verdadeiro trem, em
com isso!’... Ele tinha certamente sido transferido compartimentos de terceira classe. Era surpreen-
do front. E ele me pergunta: ‘O que eu posso fazer dente porque, na época, havia vagões de quarta
por você?’ Eu peço a ele então para me trazer um classe. E nossos guardas eram velhos de unifor-
livro. E efetivamente na manhã seguinte eu en- me verde, do Volksturm – eu acho. Érika e suas
contrei no mesmo lugar um livro. Eu me lembro filhas estavam sentadas em um outro vagão, e eu
exatamente do título, Pequena enciclopédia dos viajava em um compartimento com os guardas.
conhecimentos, e embaixo do livro um pacote de Eu usava uma blusa branca do serviço sanitário,
folhas de tabaco. E isso tinha um grande valor. e nas costas me pintaram uma grossa cruz ver-
Os cigarros eram a moeda do campo. E eu estou melha, isso tinha um ar estranho. Mas olhada de
certa que esse jovem, ele não pôde superar esse frente, eu tinha uma aparência normal, meus ca-
choque. Ele deve ter se suicidado. Você quer que belos tinham crescido um pouco, eu tinha uns
eu o condene? Isso também se pode dizer, é ne- brincos, e me diziam que eu deveria ter este cor-
cessário dizer. Eu não posso denegrir todos os te de cabelo muito parecido com o que eu tenho
alemães. Eles eram diferentes uns dos outros. atualmente. Um dos guardas partilhou seu pão
Nem todos quiseram isso. (Ruth A.) comigo. Ele deve ter se dado conta que eu comia
rapidamente, que eu não comia o suficiente há
No campo, a sobrevivência dependia da manu- muito tempo, e ele me perguntou: ‘O que você
tenção de ligações duráveis, de certa continuidade, faz aqui?’. E eu respondi a ele que nós éramos
de certa ordem social. No momento da liberação prisioneiras. Ele não queria acreditar em mim. Eu
e do retorno a Berlim, ela se torna função das re- disse que eu era judia, mas isso não queria dizer
lações pessoais, frequentemente mutantes. O relato muita coisa para ele. Que situação irreal ! E você
sobre os últimos meses passados em diversos cam- não vai me acreditar, mas ele me fez propostas,
pos parece um romance de aventuras em um perí- ele me pediu em casamento! Era bizarro, curioso
odo onde nenhuma ordem social, nenhuma con- em um ponto, depois de mais um ano no campo,
tinuidade subsistem. Sem balizas, sem orientações eu atravessava uma paisagem em um trem de
que permitem um mínimo de previsão e de pre- turismo, com verdadeiros rostos...
cauções, Ruth conta somente com suas relações do Nós chegamos à noite. E era necessário fazer
momento e com suas artimanhas. cinco quilômetros a pé. E havia uma guardiã SS
O fim é um romance a parte, um verdadeiro ro- que devia nos acompanhar e nos entregar ao che-
mance policial. No final de 1944, os russos se fe do campo. Talvez houvesse ai também mais

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alguns guardas em uniforme verde, eu não me metemos nos rever, se nós sobrevivêssemos, em
lembro mais. Esse campo para 500 detentas fazia um café em Praga, na praça Wenceslas, na pri-
parte de Gross-Rosen. Tinham instalado ali uma meira sexta-feira à tarde após nossa liberação.
olaria. Na nossa chegada, nos mostraram os alo- Nosso campo de Hochweiler encontrava-se no
jamentos, e para nós, o pessoal médico, um pe- pé da montanha de Iser, na Tchecoslováquia. Ha-
queno quarto com camas superpostas. Na praça via primeiro 300 moças, a maioria polonesas, e
iluminada do campo nos esperava uma cozinha mais tarde, 300 húngaras. Um empresário requi-
rodante militar para nos servir uma sopa. Mas as sitara as detentas para um trabalho que consistia
meninas viram as altas chaminés da olaria e todo em desmontar peças de avião, desaparafusá-las,
mundo estava gelado: você bem sabe que, em e as meninas o faziam com seriedade e aplicação,
Auschwitz, uma chaminé simbolizava a morte. E parafuso por parafuso. Eram peças enormes pro-
de repente, o silêncio completo. Poder-se-ia ouvir venientes de aviões que foram derrubados. Tudo
cair uma agulha. Todas nos pensamos que nós isso deveria ser reutilizado. E eu, por assim dizer,
iríamos passar por ali, por essa chaminé. A sopa a única médica responsável. Eu escolhi três me-
fazia sem dúvida parte da encenação para nos ninas para me ajudar. E eu tive muita sorte. Nes-
tranquilizar. Iriam matar nós todas... E depois, se período, não houve nada de grave. Não tínha-
pouco a pouco, nós nos demos conta que nós mos muitos meios. Novamente, não se podia fazer
podíamos realmente comer, dormir e sobreviver. nada além de bandagens, abrir os abcessos. Du-
E de repente, um estrondo. Todo mundo falava, rante esse período, só ouve uma morte, uma judia
era para tapar os ouvidos, de tanto que estava grega, morta de esgotamento físico. E esse em-
barulhento... No dia seguinte, o SS chefe do cam- presário fazia tudo para que nós fôssemos bem
po se apresentou, pequeno, muito polido. E ele tratadas e nutridas. Ao meio dia nós comíamos
disse que era necessário se sustentar reciproca- todas juntas em uma grande mesa e se podia
mente, e que nós deveríamos fazer tal e tal traba­ mesmo servir-se novamente. Comparado com
­­lho, e que colocavam a nossa disposição esse Auschwitz, era o paraíso. E como eu não podia
cam­­­po e o serviço médico. Então, lá, isso soava acreditar nesse idílio, eu me dizia que devia haver
co­­­mo a mensagem de um anjo descido à terra. um ‘truque’. E, com efeito, havia um.
Eu só fiquei nesse campo por quinze dias. Uma Havia uma ordem secreta vinda de Gross-Rosen,
guardiã SS, chefe de um outro pequeno campo, dizendo que, se o inimigo estivesse a até 40 qui-
chegou e pediu uma médica deportada falando lômetros de nosso campo, era necessário liquidar
alemão para cuidar de seu campo. Ela me esco- as detentas ao amanhecer. E, para fazer isso,
lheu sem pedir minha opinião: ‘Eu te quero’. Eu pediam que se recenseassem as armas e os ca-
era a única que podia falar com ela. As outras mo­ libres que os SS dispunham e se preocupassem
­­ças do campo eram quase todas húngaras. E Éri­ antecipadamente com o enterro dos corpos. Co-
­­ka tinha o sotaque de Praga, e eu tinha, se você mo eu sabia de tudo isso? Não era para mim que
quiser, o sotaque que Johanna Feige amava. Era a Gestapo enderessava esse tipo de documento
seu nome. Eu tive então que me separar de Érika. secreto! Era simplesmente por que Johanna Fei-
Foi muito triste. Nós éramos muito ligadas uma à ge, essa brava diretora do campo, simplesmente
outra, também por causa de suas filhas. Nós pro- não sabia ler e escrever. Ela era de Berlim, mas

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de origem muito simples e representava o papel dava presentes. Bem no fim da guerra, vieram
mais brilhante de sua vida, em um belo uniforme, procurá-la para integrá-la nos SS. E como eu
decidindo sobre mais de 500 vidas humanas... E, sabia o que nos esperava, eu reuni as amigas,
isso, havia, certamente, subido à sua cabeça. moças em quem eu podia confiar, e eu falei igual-
Johanna Feige não sabia ler, mas ela me tomou mente com essa guardiã SS tcheca, Maria. Os
um pouco para sua confidente: eu era alemã, ela operários tchecos que trabalhavam em uma co-
me compreendia, eu vinha também de Berlim, ela lina perto do campo cantaram em tcheco para
me chamava: ‘Médica, venha ver isso!’ E foi assim que os alemães não pudessem compreendê-los:
que eu vi o documento secreto em forma de te- os russos estão a tantos quilômetros! Maria ar-
legrama: o dia em que os russos estivessem a 40 rumou uma serra de metal e, durante a noite, nós
quilômetros do campo, era necessário liquidar serramos as grades de nossas janelas. Ao lado
todo mundo. Estava dito preto no branco. E nes- de nosso alojamento, havia um velho moinho sem
se documento perguntava-se se os Waffen SS de uso, um riacho e se podiam escutar os passos
nosso campo tinham armas e cartuchos suficien- dos soldados que montavam guarda. E, uma noi-
tes para isso. Na resposta, eu compreendi, além te, nós partimos pelas janelas, atravessamos o
disso, que havia armas e munições suficientes riacho e caminhamos, guiadas pelos sons dos
para liquidar 500 pessoas. canhões. Foi combinado que eu esperaria a SS
Johanna Feige ia seguido a Gross-Rosen, onde Maria, a quem nós prometemos levar conosco.
ela tinha uma ligação com um SS bem graduado. E eu continuei com ela. E veja, o primeiro tanque,
Ele escrevia a ela cartas de amor às quais ela não era um tanque russo! A vila natal de Maria já es-
podia responder. E ela me disse: ‘Você poderia tava ocupada pelos russos. Foi lá que nós dor-
responder em meu lugar?’ E me divertiu no mais mimos pela primeira vez novamente em uma ca-
alto grau escrever essas cartas, fazer declarações ma. (Ruth A.)
de amor, sublinhar a importância de ter conheci-
do esse SS. Eu me inspirei em certos versos de Rever Berlim
Goethe... Assim, eu redigi três longas cartas de
amor. No dia em que as novidades se tornaram Maria, em sua vila, encontra dificuldades por
francamente más e que já se ouviam os sons do ter sido integrada nas tropas SS. Ela decide acom-
front, Feige me perguntou: ‘O que tu achas, a panhar Ruth a Berlim. Sem se lembrar em detalhe
guerra ainda pode ser ganha?’ Era uma questão dessa travessia da Alemanha, Ruth evoca imagens
de dois gumes, muito, muito perigosa. Eu respon- de Praga, onde, reconhecida como alemã, ela foi
di: ‘Você me pergunta isso nos marcos do serviço salva do furor anti-alemão por sua tatuagem e um
ou a título pessoal?’ Ela compreendeu onde eu certificado das tropas soviéticas designando-a co-
queria chegar e disse: ‘Questão totalmente pes- mo deportada. Ela vai ao encontro marcado com
soal’. Então eu disse a ela: ‘A guerra está perdida’. Érika, que ainda não retornou. Ela a espera duran-
Ela me olhou, furiosa: ‘Você sabe muito bem o te dez dias. A pé, às vezes em caminhões que tra-
que eu poderia fazer com você!’ E partiu. zem de volta STO franceses, Maria e ela chegam à
Outra mulher SS, de origem tcheca, devia igual- fronteira alemã. Em algum lugar, entre as tropas
mente nos guardar e, de tempos em tempos, nos soviéticas e americanas, elas se alojam em um hos-

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pital militar alemão abandonado pelo pessoal. muito curiosa. E eu não sei como eu me encontrei
de repente na casa dele, com essa família nume-
Havia soldados alemães gravemente feridos. Os rosa. E eu revi uma vida em família. Eu estava
médicos e enfermeiras tinham fugido. E eu tra- chocada, com a reza à mesa e tudo. E eles me
tei uma dúzia de jovens, fiz bandagens com len- encontraram um quarto independente. E lá meu
çóis desmanchados. Eles eram todos jovens, primeiro marido me reencontrou. Ele fez tudo pa-
quase crianças. Nesse hospital, nós descobri- ra me encontrar. Sua segunda mulher, cristã, ha-
mos reservas de batatas, e isso nos ajudou mui- via salvo seu apartamento e ele só tinha um de-
to. E todos esses jovens que estavam lá, mor- sejo, me ser útil. E ele fez o que pôde. Foi meu
rendo, me deram bilhetes destinados a suas melhor amigo. (Ruth A.)
mães. Muito, muito triste, uma verdadeira tragé-
dia. (Ruth A.) Mas reencontrar antigos amigos pode também
reservar surpresas desagradáveis. Assim, Ruth pro-
Em Dresden, também, há imagens da destrui- cura antigos vizinhos. Na Berlim bombardeada,
ção completa. “Nós havíamos pensado que nada marcava-se, às vezes, com giz, nas paredes das ruí-
mais poderia nos tocar. Mas Dresden era chocan- nas, a lista de mortos e sobreviventes, com o novo
te”. Sem documentos, sua tatuagem de deportada endereço dos últimos. É assim que Ruth encontra
lhe serve de documento para utilizar os raros trens amigos a quem ela tinha confiado certas coisas an-
que a levam, após múltiplas peripécias, a Lankwitz, tes de sua deportação.
na periferia sul de Berlim.
Eu revejo essa mulher. E imediatamente ela me
E eis que estou na estação de Lankwitz, sozinha. diz ‘Mas nós não temos mais tuas coisas’ Eu pen-
O que fazer? Pessoas totalmente estranhas me sei que ela iria dizer: ‘Graças a Deus tu estás viva!’
propuseram então de me alojar em sua casa. To- Não, uma frieza absoluta. Todo mundo estava
do mundo estava na mesma miséria e havia mui- ocupado consigo mesmo e por sua própria so-
to auxílio mútuo. Era um caos, a cidade comple- brevivência. As pessoas só estavam tocadas pe-
tamente destruída. Foi duro rever Berlim nesse lo que lhes dizia respeito muito pessoalmente a
estado. Isso me dava uma ideia do que essas eles mesmos e a seus próximos. O resto não exis-
pessoas, eles também, deviam ter sofrido. Meus tia. (Ruth A.)
amigos viveram em uma adega durante três me-
ses. Toda essa época era uma loucura. Em todas Além disso, um muro separa aqueles que co-
as esquinas se formavam comitês, comissões co- nheceram o inferno dos campos daqueles que que-
munistas onde era necessário inscrever-se para rem se informar, por melhor intencionada que se-
obter um alojamento. E, então, um velho nazista, ja sua procura de informação. Quando Ruth quer
de alto escalão, com condecorações douradas se inscrever na faculdade de medicina, cinco pro-
de não sei o que, fez tudo para que se enviasse fessores a convidam a contar a eles “a verdade so-
alguém para ficar na casa dele. Ele esperava que bre Auschwitz”.
eu fizesse publicidade: olhem tudo o que ele fez Eles [Ruth pediu que fosse preservado o anoni-
pelos judeus, pelos deportados! Uma situação mato desses professores dos quais um só vive

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ainda] estavam sentados diante de mim e me dis- pode chamar de ‘o ano zero’, se agrava mais com
seram: ‘Então, conte-nos como era na verdade’. a perda de sua amiga Érika.
Eu respondi: ‘Eu não posso contar assim, eu não
tenho nem a força, nem tempo. Era horrível e ini- Um dia de agosto de 1945, eu recebi pelo inter-
maginável. Façam questões!’ ‘É possível que se médio de organizações judias internacionais um
tenha feito abajures de pele humana?’ ‘Mas senhor pacote enviado por Érika. Ela fora morar em Tel-
professor, era o que havia de menos grave. Os Aviv. Como para muitos outros, nossa separação
abajures eram feitos a partir do que restava dos foi muito dolorosa. Nós quiséramos viver juntas e
mortos, isso não fazia mais mal a eles. Mas o que montar um negócio de produtos cosméticos. E,
eles fizeram com as pessoas vivas era bem pior!’ depois, eu soube dois anos mais tarde que ela
Depois, eles me pediram detalhes. Mas eu não se suicidou. Ela não suportou essa atmosfera de
podia dá-los. Eu só podia dizer: ‘eu vi com meus gueto. E então eu me fiz recriminações. Talvez
próprios olhos a chegada cotidiana de uma mas- ela teria sabido melhor ultrapassar suas decep-
sa de pessoas. Eu os vi sair dos trens, entrar no ções se eu estivesse com ela. E sozinha, face a
campo. E depois eu não os vi mais. Mas os fornos todos os problemas de sobrevivência – era o ano
crematórios queimavam dia e noite. Dizem que zero – eu estava muito deprimida e eu me disse
havia quatro, eu contei três. O que é certo é que com toda a clareza: é uma coisa ou outra. Ou tu
todos foram para a câmara de gás e queimados... acabas com a vida, ou tu colocas uma pedra so-
E quando a capacidade dos fornos crematórios bre o passado e recomeças com uma atitude po-
era insuficiente, eles foram queimados simples- sitiva. Era uma escolha muito clara. A morte não
mente sobre fogueiras. Isso foi assim. O que mais me fazia mais nenhum medo. E eu me disse: ‘Uma
vocês querem escutar? Se eu estou aqui sentada vez mais eu quero recolocar no seu lugar esse
diante de vocês, isso é pura sorte. Eu tive sorte. mundo e esse século’. Eu quis me provar, uma
Se se pode chamar isso de sorte. É uma sorte última vez, que eu podia viver. (Ruth A.)
es­­­capar a esse inferno? Eu sofro muito por isso
e eu não sei absolutamente se eu terei forças para Enquanto que nada de seu relato sobre o perío­
esquecer tudo isso’. Então um deles me disse: ­­do passado em Auschwitz-Birkenau deixa transpare­
‘Mas minha cara Ruth A., você deveria escrever ­­cer a menor ideia suicida, ela apresenta sua situa­
tu­­­do isso, isso a aliviará e salvará’. Era a entrevista ­­ção de pós-guerra como a escolha deliberada, embo­
com os cinco professores. Eles ficaram até mes- ­­ra di­­­fícil, da vida. Ao mesmo tempo ela opta mui-
mo um pouco emocionados. E eles devem ter se to cons­­­cientemente contra uma emigração considera­
dado conta que eu não disse uma única palavra ­­da mui­­­­to difícil por razões de idade, de língua e
excessiva. Eu me perguntei: ‘Será que eles ver- de cul­­­tura, e por uma nova vida em Berlim. Des-
dadeiramente não souberam de nada? Se eles de en­­­tão, essa escolha se traduz por uma inserção
tivessem sabido, eles não teriam me interrogado social que se acompanha de certo silêncio sobre
dessa maneira’. Parece mesmo que muitas pes- seu passa­­do em campo de concentração. Sem na-
soas não sabiam de nada disso. (Ruth A.) da esquecer, sem nada renegar de seu passado, ela
A dificuldade que Ruth experimenta para viver tenta reconstruir uma vida ‘normal’, ao mesmo
durante os primeiros anos do pós-guerra, que se tempo em que se ‘normaliza’ a vida na Alemanha

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do pós-guerra. enviadas mais tarde.

Uma estranha na própria casa “Certamente, após a guerra, ninguém ousaria


dizer diretamente qualquer coisa contra os judeus.
Esse processo não se dá sem problemas. Primei- De certa maneira, tinha-se o campo livre e certas
ramente, esses problemas são de ordem adminis- demandas eram concedidas antecipadamente”. Mas
trativa. Não tendo nenhum documento provando essa situação dá também lugar a um mercado ne-
sua identidade, lhe dão novos documentos, a par- gro particular que, sob uma forma muito diferen-
tir do certificado estabelecido pelas tropas soviéti- te, perpetua um tipo de estatuto específico. Se en-
cas na Tchecoslováquia no momento de sua libe- contram múltiplos traços disso nas publicações da
ração. Ora, os russos erraram sua data de nasci- comunidade judaica da época. Assim, antigos na-
mento, mas os funcionários berlinenses deram mais zistas pretendem ser distinguidos pelo apoio aos
fé a esse documento do que à palavra de Ruth. Pri- judeus para prevenir a perda de seus bens ou de
meiro ela fica indiferente a esse “rejuvenescimento seus direitos nos processos de desnazificação21. As-
de três anos”. Mas os problemas ressurgem quan- siste-se mesmo à emergência de um mercado de
do, em 1953, ela quer refazer seus documentos com “atestados de boa conduta” estabelecidos por par-
base nos registros de estado civil, com vistas a sua ticulares judeus em benefícios de tal ou tal funcioná­
futura aposentadoria. É nesse momento que ela ­rio nazista. Em consequência, a comunidade judia
pode fazer corrigir seu ano de nascimento, e pro- de Berlim, recriada em 1945, estabelece um tribu-
var seu estado civil de viúva. Ela é então levada a nal de honra por esse tipo de negócio em março
uma ação suplementar para mudar novamente seu de 1946 e decide, em setembro do mesmo ano:
prenome, Sarah, o nome outorgado a todas as mu-
lheres judias figurando no registro de casamentos Um membro da comunidade judia em Berlim que
de 1938 como seu único prenome. toma posição, de maneira apressada, em favor
Desde 1945, seu estatuto de deportada lhe dá de um membro do NSDAP [Nationalsozialistische
di­­­­rei­­­to a certas vantagens, como melhores cartas Deutsche Arbeiter Partei] ou de uma das organi-
ali­­­men­­­­­­­tares, lembrando-lhe igualmente a perma- zações anexas quando dos processos e proce-
nência de seu passado. Por vezes esse estatuto pro- dimentos de desnazificação, ou então que se
voca ciú­­mes. omite de testemunhar em casos que ele conhece,
mesmo que ele possa fazer deposições sobre
Um dia eu chego no escritório para buscar minhas eles, pode ser excluído, por decisão simples, de
cartas de alimentação. Eu tinha direito a uma cer- todos os serviços sociais feitos pela comunidade.
ta categoria. Mas o empregado se recusou a me (Der Weg, 28, 6.9.1946, p.1).
dá-las, dizendo: qualquer um pode se fazer essa
tatuagem. Eu não sabia o que responder. Se al- Durante os primeiros anos de pós-guerra, Ruth
guém sofre uma tal injustiça, não sabe como en- desfruta do apoio da comunidade judia, ela recebe
frentar. Eu fiquei muda. Eu fiquei com muita von- regularmente pacotes provenientes de organizações
tade de pegar o tinteiro e jogar em sua cabeça. judias internacionais e americanas. Em 1946, uma
Fui embora sem as cartas. Mas elas me foram mulher vinda da Dinamarca a reencontra, graças

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às pesquisas da Cruz Vermelha, e lhe entrega as de indenização. Assim, o funcionário que se ocu-
joias que ela confiou a uma amiga antes de sua de- pa do caso de sua mãe, faz com minúcia o cálculo
portação. Quando ela quer vendê-las no mercado de tantos marcos correspondentes a tantos dias de
negro, ela tem novamente a experiência de que não deportação antes de sua morte na câmara de gás.
é fácil ser ao mesmo tempo ‘judia’ e ‘alemã’. “Eu Profundamente repugnada, ela recusa essa soma.
fui ao campo de antigos deportados (UNRA) ao Ao contrário, em seu próprio trabalho ela trata de
lado do Schlachtensee para trocar uma bolsa em demandas que ela julga ‘abusivas’ e acha mesmo
prata por manteiga. Era um dos centros do merca­ que ‘alguns enriqueceram’.
­do negro. E eles não queriam me deixar entrar no O que está em questão, aqui, não é unicamen-
campo porque não queriam acreditar que eu fosse te uma lei, nem mesmo o princípio de indeniza-
judia”. ções financeiras, mas os efeitos sobre os destinatá-
Cenas da vida cotidiana a lembram sem parar rios decorrentes de sua colocação em prática. Além
que as fronteiras sociais que o nazismo solidifica­ disso, não se deve esquecer que a legislação das in-
­ra com tanta violência iriam ficar ainda muito denizações financeiras por uma dívida ‘política’ e
tem­­­­­­­po vivas, na medida em que elas tinham inva­ ‘moral’ se inscreve em um processo mais amplo de
­­dido tanto as mentalidades quanto os sentimen- ‘normalização’ da vida pública na Alemanha, que
tos. Mas, mais importante que essas cenas que se é marcado notadamente pela criação das duas re-
poderiam achar anedóticas, sua vida profissional públicas em 1949: integração de cada um dos es-
testemunha uma continuidade entre sua experi- tados alemães em um dos blocos ideológicos, por
ência do campo e aquela do pós-guerra. Recusa- um lado; ‘reconciliação interior’, por outro. A li-
da na Universidade por falta de atestados capazes gação íntima no marco da ‘reconciliação interior’,
de provar que ela fizera seu bacharelado em cur- entre as vítimas do nazismo de um lado e de outro
sos privados, seus provessores não tendo sobre- aqueles que tinham sustentado ativamente o regi-
vivido, ela não pode realizar seu sonho de fazer me, resulta do desenvolvimento simultâneo de me-
o curso de medicina. Mas já em 1945, o Senado didas de indenização de uns e da reintegração pro-
de Berlim, cujos serviços médicos devem enfren- gressiva dos outros na função pública. Uma lei de
tar riscos de epidemias e as dificuldades coloca- 1953 (Bundesentschädigungsgesetz) estabelece as
das pelo desenvolvimento de doenças venéreas, regras gerais de indenização das vítimas políticas
propõe a ela um emprego. Ela deve essa oferta “a e raciais. Essa lei harmoniza e substitui as diferen-
suas experiências na luta contra as epidemias em tes ordens que, em 1945, trataram dos mesmos
Auschwitz-Birkenau”. problemas nas zonas de ocupação (BLESSIN, 1960,
Em torno de 1953, e sempre por causa de sua p. 59). Ao mesmo tempo, um dos problemas jurí-
experiência pessoal, ela recebe uma demanda de se dicos maiores da jovem República Federal era re-
ocupar do serviço de distribuição de indenizações definir o estatuto e o tratamento daqueles que eram
às “vítimas do fascismo e aos perseguidos raciais”, funcionários antes de 8 de maio de 1945. Por um
regulamentados em Berlim pela legislação de 1951 lado, o pertencimento anterior à função pública
e 1952. Quando ela evoca essa política de indeni- não dava nenhum direito a ser integrado após a
zação, ela destaca de um lado seu apecto humi- guerra. Essa medida traduz ao mesmo tempo uma
lhante e de outro os abusos cometidos nas práticas vontade certa de depuração, mas também a impos-

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sibilidade de reintegrar sobre o território reduzido do que se deixa transparecer de si mesma por oca-
da Alemanha Federal todos os antigos funcioná- sião das diferentes interações sociais. E se, em vá-
rios refugiados do Leste. Mas, por outro lado, e rias oportunidades, durante a entrevista, Ruth de-
para destacar a continuidade jurídica do Estado e clara “jamais ter falado de sua experiência em Bir­
a reivindicação da jovem República Federal de ser ­kenau”, “ter recalcado tudo para poder viver”, ela
a única representante legítima da Alemanha, o pa- explica indiretamente essa atitude pela ausência de
rágrafo 131 da Constituição de 1949 prevê a regu- ligações que lhe teriam permitido falar disso e ul-
larização de todas as reivindicações materiais e fi- trapassar assim a lembrança graças a um trabalho
nanceiras decorrentes de uma situação anterior de de constituição de uma memória coletiva.
funcionário. Então, em 1951, o parlamento fede- É nesse sentido que ela constata, com tristeza,
ral vota uma lei nomeada ‘Lei 131’, segundo o pa- a oposição no tratamento dos deportados entre a
rágrafo correspondente da Constituição. Essa lei Alemanha Federal, onde se resolveram todos os
exclui dos direitos às vantagens da função pública problemas pela indenização financeira, e a Repú-
unicamente aqueles que foram classificados, quan- blica Democrática Alemã, onde se conferiu um
do dos procedimentos de desnazificação, nas duas sentido ao sofrimento, reconhecendo e honrando
primeiras categorias da escala das responsabilida- da mesma forma todas as vítimas do fascismo. É
des nos crimes do regime nazista. Além disso, essa nos mesmos termos que ela fala das associações de
lei ordena às administrações locais, regionais e fe- antigos deportados na França das quais ela ouviu
derais a consagrar 20% de seu orçamento destina- falar. Ao contrário, ela não se reconhece plenamen-
do ao pessoal aos direitos que decorrem do pará- te em nenhum dos grupos de base política ou re-
grafo 131 da Constituição. Na prática, essa regu- ligiosa que, na Alemanha Federal, integram a me-
lamentação favoreceu a reintegração de antigos na- mória das vítimas na sua filosofia mais geral.
zistas de posição inferior e pouco comprometidos Apesar de todas as dificuldades provocadas por
(FRIEDRICH, 1984, p. 272 e seguintes). Verifica- essa relação com o passado na vida cotidiana, Ru-
se que a ‘ normalização interior’ repara as vítimas th consegue construir uma vida profissional e pri-
e reabilita os ‘nazistas médios’. vada que ela considera feliz. Mas essa conquista
Ruth tem a ocasião de vivenciar isso: o chefe decorre largamente de uma disposição que consis-
da administração do bairro onde ela se ocupa das te em jamais ‘politizar’ sua memória, a não pensar
indenizações de deportados é um antigo membro o social em termos de pertencimentos e de coleti-
da Waffen-SS. E quando, um dia, o silêncio habi- vos, mas como relações de indivíduo a indivíduo.
tual entre aquele do qual o passado não tem nada Por outro lado, encontram-se todas as dificuldades
de secreto e aquela que a tatuagem marca para sem- que coloca a redefinição de uma identidade judia
pre se rompe, Ruth deve engolir essa frase da par- na Alemanha no plano coletivo. Assim, nos pri-
te de seu chefe: “Mas enfim, se as pessoas, e tam- meiros anos do semanário Der Weg, testemunham-
bém você, sobreviveram, isso não devia ser tão ter- se a dificuldade, para os representantes da comu-
rível assim”. nidade, em definir sua função e também as tradi-
Mesmo se tais cenas não se repitam todos os ções com as quais eles querem se religar. Trata-se
dias, é necessário se proteger, “entrar na sua con- de garantir um serviço social para uma população
cha”. Isso se traduz por um controle permanente em trânsito, que só está esperando a possibilidade

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de emigrar? As comunidades judias instaladas na gestão da memória segundo as possibilidades de


Alemanha não são apenas “associações de liquida- comunicação em algum momento da vida. Essa
ção” (W. G. H. M., 1946, p. 2; FABIAN, 1947, p. gestão da memória não rege somente o que é di-
18)? É necessário se definir como “judeus na Ale- to em diferentes contextos e em diferentes mo-
manha” ou como “judeus alemães”? (Der Weg, 6, mentos da vida. A escolha das amizades e do grau
5.4.1946, p. 3). Ou, então, o estatuto de vítimas de intimidade acordado a esta ou àquela pessoa
confere um papel específico ao grupo judeu na também fazem parte disso. Nós tentamos agir so-
construção da nova democracia alemã e na aboli- bre contextos nos quais nós nos exprimimos, as-
ção das tradições totalitárias? Não seria necessário sim como nós modificamos o que nós dizemos
classificar as vítimas judias entre os resistentes (GA- em função da variação desses contextos. Deste
LINSKI, 1947, p. 11)? Com qual herança cultural modo, toda a vida social atual de Ruth pode apa-
se religar? O orgulho relativo de pertencer a uma recer ao mesmo tempo como o resultado e o re-
grande tradição, a tradição alemã, é combinado flexo de tal modo de gestão da memória. Sem fé
com dúvidas quanto à função cultural dos judeus religiosa, ela guardou apenas ligações distantes
alemães no conjunto da cultura judaica. Assim, com a comunidade judaica: ao contrário, ela fre-
certos artigos insistem sobre a atualidade do papel quenta regularmente uma loja maçônica judia,
de mediador que representaram os judeus alemães onde muitas das conferências e discussões tratam
entre os judeus ocidentais e aqueles do Leste (FA- de tradições culturais. Ela refez velhas relações
BIAN, 1947a), enquanto outros remarcam o pouco pertencentes ao meio médico de seu marido e faz
de futuro que concedem as organizações judias in- parte de um grupo de amigas de sua geração, reu-
ternacionais a uma comunidade tão enfraquecida nidas por vínculos de auxílio mútuo e de solida-
(FABIAN, 1947b). Uma série de artigos põe em fo- riedade frequentemente estabelecidos após a guer-
co a contribuição judia à grande cultura alemã22. ra nessa cidade de mulheres, viúvas e solteiras
A isso vem se juntar, se bem que de uma maneira (MEYER; SCHULZE, 1984).
anexa, o velho debate sobre a assimilação (Der Weg, Assim, sua escolha de continuar a viver em Ber-
27, 4.7.1947, p.3). lim poderia igualmente, sob certos aspectos, ser
interpretada como a escolha de um lugar onde cer-
Ficar em silêncio sem nada esquecer ta compreensão pode existir sem que haja necessi-
dade de explicações. Em poucas cidades as conse-
Em um momento da entrevista, Ruth diz: “Infe­ quências da guerra são tão visíveis quanto em Ber-
­­lizmente, eu não tive razão quando pensei que eu lim, tanto no urbanismo quanto na composição
havia colocado tudo isso no último cantinho do social da população. Além disso, ela pode ali con-
meu cérebro, e que todo esse passado estava bem viver com contradições difíceis de serem geridas e
enterrado lá. Desde que nós nos encontramos, eu se fazerem compreendidas em outro lugar.
me dou conta que eu não esqueci nada, e que tu- Durante toda a entrevista, o significado das
do está presente como no momento em que eu palavras “alemã” e “judia” muda em função das
vivi”. situa­­­ções que aparecem no relato. Em várias vezes,
Um passado que permanece mudo é talvez Ruth destacou: “Você acreditando ou não, eu amo
menos o produto do esquecimento do que de uma a Alemanha e os alemães”. Frequentemente essa

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afirmação era seguida da frase: “Espero que você za quase sempre para designar os outros, tendência
não me critique”. Ao mesmo tempo, esse amor reforçada pela situação de entrevista, que tratou
não a cega de forma alguma, e não lhe dá ilusões principalmente sobre o período nazista. Ao mes-
sobre o que se passou ou sobre o que se passa na mo tempo, ela não pode também se reconhecer
Alemanha: completamente na definição que a transformou
em vítima, quer dizer, seu pertencimento judeu. É
Após a guerra, as opiniões estavam muito dividi- em Israel, do qual ela fala com certa admiração,
das. Uma parte da população estava verdadei- que ela se dará conta que não é suficiente ter sofri­
ramente chocada pelo que se passou durante ­do para ser admitido plenamente em um grupo:
esses 12 anos. Eles deslizaram por esses fatos
totalmente inconscientes. Outros estavam decep- Em meu hotel, havia sobretudo grupos de turistas
cionados por esse fim pouco glorioso. Se não judeus americanos. Era início dos anos 1960. E
fosse isso ou aquilo, nós teríamos ganhado a guer- para eles eu não era ‘aceitável’ porque eu vivia
ra! Sim, isso se ouvia ainda muito seguido. E se na Alemanha, no pais dos assassinos de meus
alguém pudesse lançar um olhar no coração das pais, de meus irmãos e irmãs. Como eu podia
pessoas, perceberia que muitas delas no fundo viver na Alemanha? Eles não aceitaram isso. Nin-
permaneceram as mesmas. Somente a lei as in- guém me compreendeu quando eu disse que era
comoda, elas têm medo. Ninguém tem mais a minha pátria, ou ao menos que ela havia sido mi-
coragem de proclamar abertamente tal opinião. nha pátria, e que eu amava esse país. Eles pen-
(Ruth A.) saram sobretudo que eu não era normal. E eu
quase tive que me desculpar. Mas enfim, eu tinha
Em outras passagens, a entrevistada fala com necessidade de me justificar perante eles pelo
um certo orgulho desse povo ao qual ela não po- fato de viver na Alemanha? (Ruth A.)
derá nunca mais se identificar plenamente:
É assim que ela define sua ‘pátria’, em outra
Eu vivo e eu vivo bem. De uma maneira inacredi- parte da entrevista: “Minha pátria é minha língua,
tável e bem evidentemente graças ao Plano Mar- a poesia que eu amo enormemente, e as pessoas,
shall, a Alemanha soube refazer sua economia. os amigos, os alemães que eu amo, mas não a Ale­
É necessário reconhecer, os alemães são cora- ­ma­­nha enquanto tal, tomada em seu conjunto”.
josos, assíduos ao trabalho e insolentes. Isso são
fatos. Eles têm uma capacidade de impor sua Relato de vida e gestão da identidade
vontade e eles são arrogantes. Ao mesmo tempo,
é um povo com muitos lados que se pode amar. O relato de vida, esse condensado de uma his-
Eu tive muitos amigos e encontrei novamente ami- tória social individual, é suscetível de múltiplos
gos, e seria falso de minha parte se eu os conde- modos de apresentação em função do contexto no
nasse indiscriminadamente. Eu não tenho mais o qual ele é feito (Goffmann, 1973). Mas a exten-
que dizer sobre isso. (Ruth A.) são dessas variações não é ilimitada. Em uma pa-
Certamente, ela não pode mais se reconhecer lavra, a concepção que se tem de si mesmo, o sen-
completamente no adjetivo ‘alemão’, que ela utili- tido da identidade que se exprime no relato de vi-

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da, se distinguem por uma variabilidade, mas uma ausência de todo sentimento de poder chegar a
variabilidade restrita. Cada um pode fazer a expe- fazer-se compreender, o silêncio sobre si mesmo –
riência da variação passível de ser feita no relato diferente do esquecimento – pode ser uma condi-
de um pedaço de sua vida, aumentando ou afas- ção necessária (presumida ou real) para a manu-
tando este ou aquele aspecto, ou ainda mudando tenção de uma comunicação com o meio ambien-
sua tonalidade23. Esse relato não é jamais o mesmo, te. As razões desse silêncio atravessam, aliás, toda
de acordo com os momentos e os lugares. De to- a entrevista com Ruth e constituem de certa ma-
dos os relatos superpostos, pode-se destacar tam- neira seu fio condutor.
bém um núcleo duro que se encontra repetidamen- Assim, as dificuldades e bloqueios que aparece-
te, e isso, com frequência, de uma maneira idênti- ram ao longo da entrevista não eram nunca casos
ca, palavra por palavra. Em todas as entrevistas de de falta de memória ou de esquecimentos, mas de
uma longa duração24, nas quais a mesma pessoa uma reflexão sobre a própria utilidade de falar e
volta muitas vezes sobre um número restrito de de transmitir sua história. No princípio dessas di-
eventos-chave (seja por sua própria iniciativa, seja ficuldades encontra-se a tensão ligada a um estatu-
pela incitação do pesquisador), esse fenômeno po- to social que a evolução política tornou ambíguo,
de ser constatado até na entonação. Apesar de im- e mesmo impraticável. Utilizando os termos ‘ale-
portantes variações, se encontra um núcleo duro, mão’ ou ‘judeu’, Ruth tanto se integra, tanto se
um fio condutor, uma sorte de leitmotiv em cada exclui do grupo e das características assim desig-
relato de vida (LEHMANN, 1983). nadas. Ser ‘alemã’ e ‘judia’, essa questão insistente
Essas duas características de todos os relatos de com a qual Ruth me acolheu em nosso primeiro
vida sugerem que eles devem ser considerados co- encontro, é, em princípio, uma atitude para com
mo instrumentos de reconstrução da identidade e a vida que impede a emissão de um julgamento
não somente como relatos factuais. Por definição, sobre um indivíduo em função de qualquer crité-
reconstrução a posteriori, o relato de vida ordena rio de pertencimento. Essa atitude moldou sua vi-
os eventos que demarcaram uma vida; além disso, são da realidade do campo de concentração, ao
recontando nossa vida, nós tentamos geralmente mesmo tempo em que esta última reforçou, em
es­­­­tabelecer certa coerência por meio de ligações ló­ troca, essa visão do mundo.
­­gicas entre eventos-chave (que aparecem então so- Em certo grau, essa tensão constitutiva de seu
bre uma forma cada vez mais solidificada ou estereoti­ ser e de sua maneira de ser a leva também a um
­­pada) e uma continuidade pelo ordenamento crono­ ‘desdobramento’ permanente de sua pessoa, a pen-
­­lógico. Tudo se passa como se coerência e continui­ sar ao mesmo tempo no que ela fez e em todas as
­­dade estivessem comumente admitidas como os alternativas do que ela teria podido fazer ou pen-
signos distintivos de uma identidade assegurada. sar. É por tal trabalho de comparação e de tomada
É imaginável a dificuldade que se coloca aos em consideração de uma multitude de alternativas
sobreviventes de um campo de concentração tal que se elabora geralmente todo o sentido do que
trabalho de construção de uma coerência e de uma é ‘normal’, todo o senso comum, que permite ao
continuidade de suas próprias histórias e, mais indivíduo sentir-se e estar em paz com o mundo
particularmente, àqueles que escolheram permane- (ou, mais precisamente, com este ou aquele grupo
cer na Alemanha. Compreende-se, então, que, na de pertencimento). É assim que o indivíduo, por

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um trabalho de identificação, faz coincidir seu e também à sorte, no sentido do puro acaso esta-
próprio sentido de si, sua identidade, com o que tístico. A síndrome do sobrevivente poderia resul-
é socialmente considerado como normal. No caso tar da valorização social negativa que afeta diferen-
de Ruth, o grau de indecisão face à avaliação de temente certos recursos aos quais este ou aquele
uma multitude de comportamentos, do seu tanto sobrevivente teve acesso. Mas essa valorização va-
quanto o dos outros, parece indicar um tipo de ria segundo as classes, o sexo, o meio cultural. So-
invasão de todas as dimensões de sua vida e de sua mente a história individual tomada em seu con-
memória por essa tensão fundamental irredutível. junto, e não somente a situação do internamento,
Marcada pelas contradições que ela não resol- permite retraçar todas essas articulações, trate-se da
veu, a entrevista com Ruth, sem ser representativa aprendizagem e do domínio dos diferentes recur-
das realidades sociais que ela atravessou, restitui sos que se devem mobilizar para sobreviver, da ca-
de­­­­las mais que “uma visão” particular. O fato de pacidade efetiva de mobilizá-los em uma situação
se abster de todo julgamento e a distância que ela dada, mas também de sua valorização social e dos
to­­­ma em relação a ela mesma sugere que, assim efeitos que essa situação tem sobre a vida psíquica
como a ordem social, seu senso individual de iden- do sobrevivente. O silêncio escolhido como modo
tidade resulta da gestão de um equilíbrio precário, de gestão da identidade, além do acomodamento
de uma multitude de contradições e de tensões. com o círculo social, poderia igualmente constituir
Indiretamente, essa entrevista questiona as gran- a recusa de deixar julgar a experiência concentra-
des teorias de inspiração psicológica sobre a sobre- cionista, situação extrema segundo os cânones da
vivência em situação extrema e sobre a síndrome moral corrente, que estão no princípio das teorias
dos sobreviventes (ver BETTELHEIM, 1979; LIF- de Bettelheim e Lifton. Os valores que sustentam
TON, 1967), ao mesmo tempo em que ela sugere essas teorias são aqueles de um individualismo he-
ligações entre essas teorias. Assim como o relato roico. Quando, na entrevista, Ruth se refere a seu
de vida de Margareta Glas-Larsson, essa entrevista próprio sentimento de culpabilidade, é em nome
confirma a importância, para a sobrevivência, de do luto de sua família. Por outro lado, nenhuma
saberes práticos, de competências linguísticas e da tendência à desconfiança, outro componente da
capacidade de decodificar rapidamente situações e “síndrome do sobrevivente”, pode ser detectada em
relações que contam tanto quanto os recursos de seu relato, nem em seu comportamento. Ao con-
ordem intelectual e moral invocados por Bruno trário, é uma tomada de partido pela vida, e sobre-
Bettelheim (1979). A síndrome do sobrevivente, tudo pela confiança e pelo amor, que ela invoca
descrita por Robert J. Lifton (1967), que vem de como as qualidades mais importantes que ela guar-
um sentimento de culpabilidade, parece fazer eco da como lembrança de suas experiências em Birke-
à teoria de Bettelheim (1979). Isso é, muito prova- nau. Mais que tudo, ter sabido manter uma ilha
velmente, tanto mais marcado quanto as caracte- de relações fundadas na confiança e no amor per-
rísticas e o comportamento do sobrevivente não manece para ela o fator decisivo de sua sobrevivên-
correspondem ao modelo ideal de Bettelheim, quer cia. São as mesmas qualidades que ela valoriza quan-
dizer, a sobrevivencia se deve à mobilização de ou- do ela resume seu pensamento: “Eu te amo. Em
tros recursos que aqueles invocados por Bettelheim, que isso te diz respeito?”.

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notas juventudes sionistas da Hechaluz, que escolheram a luta e


a clandestinidade em Berlim, e, no caso do grupo Baum, a
1 Este artigo foi originalmente publicado em francês: “La resistência armada.
gestion de l’indicible”, de Michael Pollak. Actes de la 9 Para os dirigentes da comunidade, alguns artigos
recherche en sciences sociales n° 62-63 [L’illusion mostram a pressão que pesava sobre eles (WELTLINGER,
biographique], juin 1986, p. 30-53. A publicação desta 1954).
tradução foi autorizada pelos editores da Actes de la
recherche en sciences sociales (Collège de France), por 10 São parte desses as pessoas com idade superior a 65
meio de mensagem eletrônica, em 03 de junho de 2010. anos, os inválidos da Primeira Guerra Mundial e aqueles
que foram condecorados, os judeus de casamentos mistos
2 No centro da crítica do registro sistemático dos cidadãos, divorciados, no caso deles terem filhos não judeus, os altos
da informatização crescente e do cruzamento cada vez funcionários da Reichsvereinigung e os meio-judeus.
mais frequente, ainda que ilegal, de bancos de dados, este
tema foi o argumento mobilizador da campanha contra o 11 Esta passagem da entrevista com Ruth é confirmada
último recenseamento geral da população na República pela descrição dada por Jacob Jacobson em um relatório
Federal Alemã (RFA). Esta campanha foi fortalecida pela escrito pouco após a guerra: “As pessoas foram separadas
proibição, pela Corte Constitucional – a qual tinha, além em dois grupos, um com destino ao Leste, outro a
disso, anunciado as regras mínimas a serem respeitadas Theresienstadt. Aqueles que recebiam um ‘T’ (para
tanto pela administração pública quanto pelos centros de Theresienstadt) ousavam respirar novamente. Os outros, ao
pesquisa – do recenseamento nas formas previstas. No contrário, com um ‘O’ (Leste) empalideciam. Embora
centro da crítica se encontravam todas as questões poucos detalhes fossem conhecidos, era evidente que
tocantes à vida privada, notadamente a co-habitação, Theresienstadt era bem melhor que o Leste. O tipo de
indicador do modo de vida. Esta informação – e este era o pessoas escolhidas para irem para Theresienstadt era um
argumento – permitiria à administração pública controlar a indicador disso”. (J. Jacobson. Terezin. The Daily Life,
vida privada, e até manipulá-la. 1943-1945, s.l,.n.d., ronéo. Esse texto me foi disponibilizado
por St. Jersch-Wenzel, a quem eu agradeço).
3 Ela se refere aqui ao partido católico Zentrum e ao partido
democrático alemão DDP, substituído em 1930 pelo 12 Do dia 27 para o 28 de fevereiro de 1943, os operários
Deutsche Staatspartei. judeus foram aprisionados pela primeira vez em seu local
de trabalho para serem deportados.
4 O Stürmer, editado por Julius Streicher, era, entre todos
os órgãos de imprensa nazistas, o mais violentamente 13 Segundo St. Jersch-Wenzel (30 Jahre Jüdische
antissemita. Gemeinde zu Berlin. Katalog zur Ausstellung im Berlim-
Museum, 1971, p. 25), cerca de 5000 ilegais viviam em
5 O relato de vida reflete aqui o que Bourdieu escreveu, de Berlim em 1944, dos quais 70% foram aprisionados pela
forma mais geral, sobre a constituição de uma identidade Gestapo.
social, a qual ganha contornos pela diferenciação
(BOURDIEU, 1979, p. 118). 14 Trata-se de um grupo Hachscharah, sobre o qual se faz
frequentemente alusão na literatura. Ver os extratos de um
6 Trata-se da contribuição obrigatória de um milhão de testemunho de A. Borinski, em K.J. Ball-Kaduri (1973, p.
marcos imposta à comunidade judia em seguida ao 219-220).
atentado a vom Rath, o qual também fornecera o pretexto
para a organização da Noite de Cristal. 15 De fato, o trabalho da comunidade judaica pôde ser
mantido até sua dissolução oficial, em 10 de junho de 1943,
7 Assimilação, em G. Herlitz e B. Kirshner, Jüdisches graças ao recrutamento de judeus vivendo em “casamentos
Lexikon, Berlin, Judischer Verlag, 1927, t.1, p. 518-523. mistos privilegiados”. Por “casamento misto privilegiado”, a
8 Leon Brandt (1984) traça a história comovente das linguagem administrativa designava casamentos entre um

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homem não judeu com uma mulher judia, ou um homem 24 No quadro dessa pesquisa, são relatos de duração de
judeu e uma mulher não judia, cujos filhos eram de religião mais de 30 horas cada um.
não judia antes de 15 de setembro de 1935, data de início
da aplicação das Leis de Nuremberg.
16 É a opinião, entre outros, de R. Hilberg (1961).
17 Bezugsperson designa, em alemão, na psicologia do
desenvolvimento, as primeiras pessoas com as quais a referências
criança estabelece ligações duráveis de confiança.
Adelsberger, L. Auschwitz. Berlin: Lettner, 1956.
18 Eu devo essa informação a Joan Ringelheim, que fez
essa entrevista em Nova Yorque. Ball-Kaduri, K. J. ‘Berlin wird judenfrei’ in Jahrbuch für
die Geschichte Mittel-und Ostdeutschlands.
19 Esse fato é destacado no testemunho de E. Lingens- Publikationsorgan der Historischen Kommission zu Berlin.
Reiner, Prisioners of Fear, Londres, Victor Gollancz, 1948, Berlin: colloquium Verlag, 1973.
p. 119.
Bettelheim, B. Survivre. Paris: R. Laffont, 1979.
20 Entrevista com uma médica deportada, em 1983.
Blau, B. ‘Entwicklung der jüdischen Gemeinde Berlin’ in
21 O semanal judeu Der Weg escreve, em seu número 3 Der Weg, 5, 29.3.1946, p. 3.
(15.3.1946, p. 1): “... Encontram-se demandas por
camaradas do partido (membros do NSDAP) endereçadas Blessin, G. Windergutmachung. Bad Godesberg:
à administração sem ao menos um atestado no qual um Hohwacht, 1960.
judeu depõe sobre seu reconhecimento e apoio que ele Bourdieu, P. La distinction. Paris: Ed. De Minuit, 1979.
recebeu... Nós não queremos acreditar que um judeu
aceitaria atualmente fornecer tais atestados por dinheiro...” Botz, G.; Pollak, M. ‘Survivre dans um camp de
Assiste-se mesmo ao avesso das “provas arianas”, que concentration; entrevista com Margareta Glas-Larsson’.
deram lugar à denegação da paternidade, para salvar os Actes de la recherche en Sciences Sociales, 41, févr. 1982,
filhos de casamentos mistos. Assim, Der Weg escreve, em p.3-28.
seu número 4 (22.3.1946, p. 3): “Nós nos lembramos dos Brandt, L. Menschen ohne Schatten. Juden zwischen
processos, pouco dignos, nos quais velhas senhoras Untergang und Untergrund 1938-1945. Berlim: Oberbaum,
testemunhavam que elas não tiveram seus filhos de seus 1984.
maridos, para salvá-los. E nós sabemos que mães FABIAN, H.E. ‘Liquidationsgemeinden?’ in Der Weg, 18,
procuram hoje pais judeus, porque seus maridos eram 2.5.1947, p. 18.
membros do partido”.
_____. ‘Ein Blick Von draussen’ in Der Weg, 27, 4.7, 1947, p.
22 Uma rubrica especial (na qual são apresentados, entre 1-2.
outros, Henri Heine, Moses-Mendelsohn e Ernst Rothenau)
do semanário Der Weg se intitula “A contribuição judaica à Fénélon, F. Sursis pour l´orchestre. Paris: Stock, 1976..
cultura alemã”. Friedrich, J. Die kalte Amnestie. Francfort: Fischer, 1984.
23 Entre todos os relatos de vida, um curriculum vitae é Galinski, H. ‘Unsere Widerstandskämpfer’ in Der Weg, 11,
sem nenhuma dúvida o mais sucinto, e o mais formalizado. 14.3.1947, p. 11.
Mas, mesmo nesse caso, encontram-se partes julgadas
incompreensíveis ao lado de passagens variáveis em Goffmann, E. La mise em scène de la vie quotidienne. t.
função dos empregadores que se quer atingir. Isso indica a 1, Paris: Ed. De Minuit, 1973.
validade das duas características de todo relato de vida Herlitz, G.; Kirshner, B. Jüdisches Lexikon. Berlin:
mencionadas aqui. Judischer Verlag, 1927.

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