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ETHOS EMERGENTE

Notas etnográficas sobre o “sucesso”

Diana Nogueira de Oliveira Lima

Introdução econômico como esfera independente –, ao


mesmo tempo em que se firma o fenômeno da
Embora Mauss (1999 [1902], p. 102) afirme sociedade norte-americana, também na Europa
que “a riqueza é vista como um efeito do mana; setentrional, onde a legitimidade da aristocracia
em algumas ilhas, a palavra mana chega a desig- vai desaparecendo de maneira acelerada, um
nar o dinheiro” [tradução minha] na cultura oci- novo modelo de valor passa a ser cultivado. No
dental, historicamente, as representações sobre o contexto do liberalismo que domina o século XIX
dinheiro são sempre repletas de ambigüidades. e se estende até as primeiras três décadas do
Até o século XVIII, julgada menor pelo ethos século XX (cf. Polanyi, 1957 [1944]), a riqueza
cavalheiresco, sua manipulação direta era relega- autônoma, produto do “mérito” (mercantil) indivi-
da à burguesia comerciante, cuja disposição para dual, pronuncia-se como critério de distinção.
a utilização racional do capital como um fim em Porém, no interior desse mesmo ambiente históri-
si mesmo, uma “vocação”, sabemos, ocorria das co, fazendo oposição às concepções economicis-
características peculiares à ética protestante ascé- tas de progresso, se desenha, sob a forma de
denúncia dos males causados por uma civilização
tica (cf. Weber, 1987).
que se concentra em aperfeiçoar objetos, colo-
Com a revolução moderna – que dissocia a
cando em risco a “subjective culture” (Simmel,
riqueza fundiária do poder político e estabelece o
1971), uma importante bifurcação na mentalidade
ocidental. Desse modo, na sociedade moderna
Artigo recebido em junho/2006 convivem o mérito burguês, que, apoiado nas
Aprovado em julho/2007 noções de liberdade e igualdade, associa positi-

RBCS Vol. 22 nº. 65 outubro/2007


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vamente trabalho e resultado prático (sendo o Permanentemente imersos na difícil tarefa


dinheiro uma de suas medidas), e a concepção de compatibilizar a manutenção de um padrão de
romântica de valor, para a qual sensibilidade e vida que responda às necessidades de sua alma
educação de si (Bildung) estão acima de tudo. A “aristocratizada” com a atitude de recusa e mesmo
fórmula aristocracia intelectual – neologismo in- de desprezo pelo enquadramento exigido no
glês significativo do deslocamento que transfere o emprego estável, essas pessoas vivem uma vida
valor positivo para uma posição supostamente atravessada de sentidos por vezes antagônicos.
antiburguesa – é expressiva da luta dos artistas e Não é apenas o dinheiro ou a proveniência “care-
intelectuais românticos contra os filisteus, ou seja, ta” desse dinheiro o que incomoda. Para esse
aqueles que renunciam ao espírito em nome do grupo, a legitimidade do próprio “sucesso” –
“vil metal”. A qualidade do valor “trabalho” esbar- mesmo que advindo de uma atividade intelectual
ra ainda em um outro obstáculo: apesar da perda ou artística – tem seus limites. “O sucesso fácil, a
de sua supremacia, o velho espírito aristocrático aceitação unânime, o aplauso geral poderiam ser
(ou, pelo menos, a sua memória) continua circu- encarados com uma certa reserva”. Se ele se torna
lando nas sociedades, invadindo, inclusive, as for- “contínuo e praticamente ininterrupto” (Idem, p.
mações norte-americanas.1 Entre a honra aris- 30), passa a ser comprometedor. Pois não se trata
tocrática e a distinção romântica desenvolve-se, apenas de não se render aos mandamentos buro-
assim, um processo complexo de deslizamentos cratizantes do mercado mais convencional de tra-
que fazem da superposição do trabalho com o balho, mas de se imprimir ao que se faz uma
dinheiro algo inadmissível. Mesmo no interior da marca autoral reveladora de uma interioridade
burguesia, observa-se, como é o caso na paradig- elaborada e, portanto, inovadora.
mática família Buddenbrook, que com o passar Com base em elementos etnográficos reuni-
das gerações o valor do aperfeiçoamento da sub- dos em investigação de longo curso realizada
jetividade vai sendo incorporado ao estilo de vida entre integrantes da rede de relações que esteve
das famílias e promovendo um paulatino afasta- por muito tempo em evidência na coluna social e
mento dos valores mais imediatos da matéria. A é conhecida ora como “Nova Sociedade Emer-
ênfase no trabalho bruto, meramente comercial, e gente” ora como “os emergentes da Barra”, e em
na luta impessoal pela fortuna como valor em si observação paralela do estilo de vida de segmen-
vai sendo, então, transformada por uma necessi- tos da “elite” do Rio de Janeiro que lêem a colu-
dade romântica de singularização, de modo que na social e incorporaram o tema da “emergência”
os critérios da realização pessoal, da criatividade de maneira depreciativa ao seu cotidiano durante
e da autenticidade passam a assumir papel decisi- a segunda metade da década de 1990, neste arti-
vo nas escolhas ocupacionais. Nesse processo, a go vou descrever e analisar o recente surgimento
profissão vai deixando de ser apenas um meio de de um tipo social particular. O objetivo é colocar
vida para ser também um campo para a expres- em causa sujeitos sociais que entusiasmada e
são e o desenvolvimento individual. irrestritamente consideram “sucesso” a resposta
A descrição que Velho oferece do ethos financeira obtida daquilo que representam como
dominante entre seus “nobres” é elucidativa dos seu esforço, seu empenho, sua dedicação e seu
dilemas convencionalmente vividos pelos filhos e talento para o mercado. Diferentemente de outros
netos da burguesia:2 novos-ricos que ascenderam calcados no valor
moderno da igualdade de oportunidades, os inte-
A disponibilidade financeira era muito valorizada, grantes da “Nova Sociedade Emergente” já há três
especialmente se não provinha de um trabalho gerações perpetuam a aderência a um ethos que
considerado excessivamente “careta” [...]. Deli- associa direta e positivamente trabalho árduo,
neia-se, assim, logo de saída, uma possível con-
êxito material e consumo conspícuo.
tradição [...]. Para poder “curtir” as coisas boas da
vida é fundamental ter dinheiro, mas, entre essas
coisas boas, uma das mais essenciais é não ter
horário fixo, trabalhar no que realmente se gosta,
não estar “burocratizado” etc. (1998, p. 27).
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A mídia noticia o “sucesso” segmentos médios e altos da sociedade, residen-


tes nos grandes centros urbanos (Néri, 2002), eles
O processo de redemocratização do país eram elogiados, nos espaços menos sérios da
criou na sociedade brasileira grandes expectativas mídia, como indivíduos “bem-sucedidos”. Seu
de que a Nova República traria não apenas o “sucesso” era ilustrado de maneira recorrente com
renascimento das liberdades políticas e civis, mas uma vasta coleção de bens de alto custo. Entre
também um definitivo desenvolvimento econômi- 1994 e 2000 os “emergentes da Barra” foram repe-
co e social. Em um ambiente de 80% de inflação tidamente retratados na mídia, rodeados de carros
mensal e longa estagnação econômica, em março importados, mansões cinematográficas, vestindo
de 1990 foi empossado no país o primeiro presi- “roupas de marca” etc. O estereótipo da “emer-
dente eleito pelo voto direto após 29 anos. gente”5 tal como exibido no jornalismo social é
A abertura comercial e financeira e a privati- uma mulher loira de cabelos lisos, que tem a pele
zação, introduzidas por Collor e continuadas pelo tratada com recursos de dermatologia estética e o
governo Itamar Franco, propunham “uma ruptura corpo moldado por uma lipoaspiração e mantido
com o modelo brasileiro de crescimento com ele- na academia de ginástica sob a orientação de um
vada participação do Estado e proteção tarifária” personal trainer. Ela está sempre “produzida”
(Castro, 2005, pp. 142-165). Por meio do Programa com grifes, jóias e brilhos de um modo geral, é
Nacional de Desestatização e da liberalização dos “batalhadora” e é casada com um empreendedor
controles sobre as importações, pretendia-se o de “sucesso”.
redesenho do parque industrial e a transição para Em julho de 1994, foi para classificar e para,
uma “economia mais aberta” e promissora. a partir daí, dar espaço à notícia acerca de uma
Desse modo, em tese, nos últimos anos, a gente desconhecida, porém muito endinheirada,
política econômica passou a ser predominante- que o jornal O Globo empregou a fórmula “Nova
mente presidida pelos princípios do mercado Sociedade Emergente”. Imagens legendadas com
livre, segundo os quais a prioridade deve ser a entusiasmo e, mais tarde, outras, julgadas com con-
mobilização da capacidade empresarial, dos re- trariedade – e mesmo zombaria – indicaram-me a
cursos produtivos e dos mecanismos de inovação fertilidade desse fenômeno para uma reflexão acer-
e produção de novas tecnologias, o estímulo ao ca da ressonância do consumo sobre o processo
funcionamento adequado dos mercados e o social. Além da exposição dos bens de consumo
desimpedimento da comercialização interna e ex- preferidos pelos “emergentes”, o colunismo social
terna. Em outras palavras, a partir do início da trazia também numerosas páginas sobre uma
década de 1990, é sobretudo nos termos da “com- suposta disputa – entre essa rede de relações e gru-
petitividade” e da “produtividade” que passam a pos ali entendidos como “tradicionais” – pela con-
ser tomadas as decisões em setores muito influen- dição de “elite moderna”. Em outras palavras, não
tes do país. apenas os hábitos dos “emergentes” vinham sendo
Foi, portanto, em um ambiente de revitali- exaustivamente monitorados, mas também os cri-
zação do doux commerce que, por intermédio térios de escolha e manipulação de bens industriais
dos jornais, o mapa sociológico do Rio de Janeiro por eles adotados vinham sendo focalizados como
viu surgir a “Nova Sociedade Emergente”.3 medida para a avaliação do mundo social. E o que
Nomeada pela colunista social Hildegard Angel, era mais curioso: os inúmeros agentes arrolados
essa rede social – que tem como motivos centrais pela mídia para tematizar exaustivamente aquela
de articulação entre seus integrantes o alcance emergência superlativa – a propósito tão episódica,
recente de um elevado poder aquisitivo e o se comparada às curvas de mobilidade na socieda-
endereço de residência na Barra da Tijuca4 – ga- de brasileira (Scalon e Costa Ribeiro, 2001) – esta-
nhou, por seis anos, destaque constante nos veí- vam muito menos voltados para o tema da ascen-
culos de comunicação. são social propriamente dita, suas condições e
Enquanto inúmeras vozes lamentavam e exi- oportunidades, e muito mais empenhados em dis-
giam soluções para a “crise econômica” que atin- correr sobre os usos (e “mau usos”) materiais que
gia principalmente a remuneração salarial dos ela favorecia.
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Quem condena o “consumismo”? mundo, jamais poderão pertencer à verdadeira


“elite”. De acordo com o jornalismo social e com
Quando entrei em estado etnográfico, rapi- todos aqueles que não apenas leram o jornalismo
damente me ficou evidente que não era apenas a social mas incorporaram também sua terminolo-
mídia que tinha sempre muito a dizer a respeito gia ao cotidiano, os “emergentes”, e especifica-
dos “emergentes”. Ao comentar sobre minha pes- mente eles, como não têm nem educação e nem
quisa, era impressionante a vontade de saber que berço, investem somente e de maneira conspícua
ela suscitava entre os mais diferentes atores so- em estética corporal, marcas famosas, decoração,
ciais. Entre pessoas próximas – arquitetos, psica- carros importados, festanças e assim por diante.
nalistas, economistas, engenheiros, pedagogas – Será, porém, verdade que os “emergentes” estão
era notório o interesse pelos dados que vinha sozinhos no consumo conspícuos desses bens?
apurando sobre “aquela gente [é] absurda”, “pes- Indo além, será que efetivamente eles estão
soas vazias”, “pessoas que não passam daquilo envolvidos em uma disputa ou aspiram para si o
mesmo”, “pessoas que consomem só por con- lugar ocupado pelos sujeitos sociais a quem a
sumir”, “que não têm educação”, “pessoas que coluna social se refere como “Tradicional Elite
não têm berço”, “que adoram aparecer”. Sua Carioca”? Ainda, para colocar a questão em ter-
satisfação em ver cientificamente explicitado o mos veblenianos (1998), existe entre eles o inte-
abismo que os distingue dos “emergentes” não es- resse em, no tempo ocioso, investir na interiori-
caparam ao meu caderno de campo. E mais do dade, aprimorar o espírito e afastar-se dos valores
que isso, a insistência com que recorriam ao as- mais imediatos da matéria? Eles desejam, desse
sunto, buscando novidades e reiterando seu repú- modo, distinguir-se definitivamente de quem que
dio aos modos materiais “emergentes”, convoca- não dispõe de tempo para o cultivo de si, uma
ram-me à observação paralela de sua própria vez que precisa trabalhar arduamente para sus-
pauta de consumo. Afinal, quem eram aquelas tentar certo padrão de vida?
pessoas para quem, do outro lado da cidade, Depois de um momento dedicada unica-
reina a falta de gosto? Estava claro que o fato mente à coleta e ao exame de colunas sociais e
social “emergentes da Barra” não se constituía de matérias publicadas sob a rubrica “Sociedade”
apenas de pessoas que se portam de um jeito ou nos meios de comunicação impressos de alcance
de outro. O enorme falatório a seu respeito não nacional – fundamentalmente o jornal O Globo, as
podia escapar à reflexão. revistas Veja e Caras – e de entrevistas explorató-
Foi assim que incorporei à análise o mundo rias, passei, finalmente, a interagir com a “Nova
capitalista que transcorre nas ruas mais “privile- Sociedade Emergente”. O arquiteto e decorador
giadas” da cidade, por onde, da mesma maneira Éder Meneghine – figura emblemática da Barra da
como entre os “emergentes”, também são consu- Tijuca, que conheci desde que me coloquei as
midos produtos para a aparência, grifes nacionais primeiras interrogações e com quem mantive con-
e estrangeiras, carros importados etc. Os sinais tato durante quatro anos – apresentou-me a um
etnográficos apurados desse modo, talvez um dos sócios de um portal eletrônico voltado para
tanto assistemático, por sua vez, remeteram ao assuntos de interesse no bairro. Curioso pelos
questionamento sobre a validade explicativa das resultados da pesquisa, esse pequeno empresário
falas separatistas que encontrei – evidentemente, barratijucano tomou-me como colaboradora de
sem perder a dimensão da diferença de estatuto seu site, introduzindo-me no circuito do society
que as afasta – na mídia e nas conversas à minha local. Então, ao mesmo tempo em que continua-
volta, bem como na teoria sobre fronteiras de sta- va a manter-me informada como leitora do colu-
tus (cf. Bourdieu, 1979). De maneira muito geral, nismo social de veículos nacionais, pude freqüen-
todas elas concordam que alguns atores sociais, tar os eventos sociais dos “emergentes” ao lado
nesse caso específico, os “emergentes”, porque dos redatores das páginas eletrônicas. Por três
não foram socializados no código adequado, não meses estive presente em festas, inaugurações ou
foram educados em contato com a arte e não a- mesmo situações mais prosaicas que, segundo a
prenderam a relacionar-se esteticamente com o equipe, mereciam ter a cobertura do portal. Na
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medida em que fui sendo incorporada naquele mulheres e obter um ângulo complementar àque-
meio – tendo sempre o cuidado, dada a flutuação le do circuito das festas. O primeiro contato de
valorativa do termo “emergente”, de me apresen- pesquisadora da diferença com a academia foi, no
tar como alguém que está “escrevendo um livro entanto, paralisante. Suas dimensões são real-
sobre a Barra” – e sendo acolhida com muita mente inéditas, mas os equipamentos, as modali-
receptividade,6 fui entendendo que a coluna dades de treinamento, as logomarcas que classifi-
social produzida no interior da socialidade “emer- cam a indumentária dos freqüentadores, a ex-
gente”, ou seja, a coluna divulgada pelo site em citação diante da precisão fornecida pela moder-
que colaborei mas também em outras, veiculadas nidade eletrônica de aparelhos importados, o tipo
por outros jornais da região, é amplamente valo- de música, nada disso me causou impacto. É certo
rizada, constituindo o eixo dos encontros. Nessas que a maior parte das muitas outras academias de
ocasiões, todos, homens e mulheres, querem ser ginástica espalhadas pelo Rio de Janeiro são
fotografados para exibição nas páginas locais, e menos confortáveis e abrangentes, mas no con-
ninguém parece considerar aquele espaço “brega” ceito e na atitude do público, elas são todas muito
ou de menor importância. Ao contrário, a cada semelhantes. Descobri, ainda, que o estabeleci-
evento é comum ouvir comentários sobre fotos mento organiza toda quinta-feira uma happy hour
mais antigas, e há quem reclame e “exija” maior em seu restaurante. Ali, jovens universitários, em-
visibilidade da próxima vez. O fato de já não ocu- presários ou profissionais liberais conversam
parem um lugar privilegiado nos canais de gran- sobre assuntos variados como cinema, relações
de circulação não é um problema ou motivo de afetivas, educação infantil, viagens, vinhos, mas
ressentimento e nem abala sua vontade de posar, sobretudo falam de trabalho. Eles vestem uma
mesmo que a foto seja apreciada apenas entre versão da moda que, na falta de um termo mais
eles mesmos. preciso, vou chamar de cara, comem e bebem às
A continuidade da etnografia revelou que o vezes mais, às vezes menos regulados pela preo-
convívio na Barra da Tijuca é muito marcado, e cupação com uma estética que insiste no corpo
mais do que isso, promovido e incentivado por esguio e “definido”.
festas, campeonatos e comemorações. Todo tipo A um primeiro olhar, a explicação para a
de acontecimento merece celebração. Em cada subversão das formas convencionais de ser “eli-
uma dessas ocasiões é flagrante a presença de te”, por parte dos “emergentes”, parecia simples e
inúmeras mídias fazendo a “cobertura” do evento. antiga: Em vez de discretos e cultivados, eles são
Essas mídias são produzidas por moradores da ostensivos e se dedicam muito mais ao superficial
Barra para os moradores da Barra, que nunca me do que ao profundo. Com efeito, não diferem em
pareceram se importar com sua posição em rela- nada da primeira geração de todas as famílias
ção à suposta “distinção” da Zona Sul do Rio de ascendentes produzidas pela modernidade. O
Janeiro. Ao contrário, em todos esses jornais, as tempo mostrará, porém, que seus filhos e netos
colunas sociais abrangem a metade das edições e (assim como os descendentes de tantos outros
são comentadas por diferentes “colunistas” do novos-ricos que os antecederam) acabarão por
bairro, cujos artigos jamais fazem avaliações sobre internalizar os valores e os modos mais sofistica-
a adequação ao “gosto” prescrito para quem dos que a via natural da educação, e conseqüen-
supostamente ambicionaria o posto de “elite”. temente do contato com as artes e as humanida-
Na terceira fase do trabalho, levei em consi- des, suscitam nas linhagens de extração burguesa.
deração os importantes investimentos na aparên- Com os anos, o deslumbramento diante das pos-
cia física feitos por aquelas pessoas (bem como a sibilidades aquisitivas ficará para trás e o cultivo
representação de que são particularmente ligados da interioridade ganhará maior espaço em sua
à aparência), e seguindo sugestão de mais de uma existência, tornando-os mais elaborados e polidos
informante, no início de novembro de 2002, pas- e menos dispostos à exibição.
sei a freqüentar a filial Barra de uma importante Não obstante, a informação etnográfica so-
academia de ginástica do bairro, com a intenção bre os hábitos de consumo dessa rede permitiu
de vivenciar mais de perto o cotidiano dessas verificar, através da mídia e na experiência direta,
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que passadas duas, às vezes três ou até mesmo A suposição inicial de simplicidade foi,
quatro décadas desde sua ascensão e depois de assim, mostrando-se ilusória diante de um cenário
dez anos de existência pública, seus descenden- mais complexo em função de dois aspectos: de
tes mantêm o mesmo estilo de vida que fez a um lado, o desejo por bens de alto custo, mate-
fama desses empreendedores da Zona Oeste do rial e simbolicamente fabricados pelo capitalismo,
Rio de Janeiro: carros importados, corpos “malha- não se manifesta apenas entre os “emergentes da
dos”, resorts, grifes, festas e, sobretudo, exposição Barra”; de outro, ainda assim, é ao mote do “con-
na mídia. Ao mesmo tempo, a ampliação do esco- sumismo” que o imaginário coletivo recorre para
po do trabalho de campo, ou seja, a observação sustentar uma relação de oposição entre estabele-
da pauta de consumo de outros grupos dos estra- cidos e outsiders (Elias, 2000).7
tos médios e altos do Rio de Janeiro e de suas
falas sobre as preferências dos “emergentes”, apo-
ntou que o repertório de bens materiais que con- Trabalhadores e “bem-sucedidos”
sagrou os “emergentes”, bem como as aparições
na mídia, as festas, a academia de ginástica como De acordo com a teoria contemporânea
ponto de socialização etc., não lhes são tão exclu- sobre consumo (cf. Miller, 1987; Campbell, 1995),
sivos. O cotejo dos dados empíricos com a medi- essa prática é a outra face da experiência social
da clássica para a avaliação das fronteiras de sta- moderna, ordenada em torno do mercado. Para
tus, qual seja, o “gosto”, revelou que a Miller, o processo de retorno ao ambiente mer-
sensibilidade estética na sociedade brasileira con- cantil para escolha e apropriação de objetos abri-
temporânea não é um parâmetro claro para a des- ria aos sujeitos sociais uma possibilidade de recu-
crição dessas fronteiras no interior da “elite” eco- peração da subjetividade alienada no processo de
nômica. A etnografia permitiu o contato com produção industrial. Colin Campbell, em The
pessoas educadas em contextos socioeconômicos romantic ethic and the spirit of modern consume-
abastados há várias gerações. No interior desses rism, defende a necessidade de aliar à explicação
ambientes da “elite” abordados pela pesquisa, sobre as transformações nos modos de produção
deparei-me com alguns jovens que – fazendo uma compreensão das transformações ocorridas
forte contraste com o que se esperaria, por exem- na atitude da demanda face aos objetos renova-
plo, de indivíduos educados pelos “nobres” estu- damente ofertados pelo capitalismo.
dados por Velho (1998) na década de 1970 – reve- A releitura do material etnográfico indica
laram ter sido o dinheiro o critério prioritário para uma pista para o desvendamento dos dados.
a sua definição profissional. Não foi raro encon- Além do traço consumista que atraiu meu interes-
trar pessoas que fazem questão de apontar os se, já na primeira notícia sobre a “Nova Sociedade
“emergentes” como outros com base no critério Emergente”, uma outra característica era sublinha-
do gosto e da “futilidade” e, ao mesmo tempo, da pela mídia:
reservam uma parcela importante de sua agenda
semanal à freqüência em academia de ginástica e Surge, nos domínios e condomínios da Barra da
salão de beleza, consomem produtos de grife e Tijuca, uma nova safra de socialites. Que recebe,
freqüenta, viaja e, sobretudo, gasta. E a fina flor
ficam, muitas delas, envaidecidas quando desta-
desse grupo social emergente vai se reunir na
cadas pelo colunismo social. A espera de mais próxima quinta para um happy hour na penthou-
uma hora por uma mesa em um restaurante bada- se do Caesar Park em torno do seu decorador
lado, em pé, sobre um salto alto, na rua, não é darling, o Éder Meneghine. Entre as 300 novas
vivenciada como algo desagradável, mas já as cabeças coroadas, estarão lá Joana Macedo (o
cadeiras do Teatro Municipal, ouvi de Alice, – marido é latifundiário urbano na Barra), Tania
arquiteta, filha de um advogado importante, uma Pereira (Ourobrás), Ana Borges de Souza (mulher
elegante, o marido Janualdo é dono da maior
mulher trilingüe educada, como sua mãe, em um
marmoraria do país, a Mardil), Vera Loyola (o
colégio católico tradicional – são duras demais e marido, Pelino Bastos é sócio da A.C. Lobato),
portanto “impossível ficar sentada ouvindo Fátima Mania (Hospital das Clínicas da Barra),
Nelson Freire depois de dez minutos.” Carminha (do Bernard Rajzman), Samira, Tania
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Bueno (dona de Caldas Novas em Goiás). perceber mediante o exame do cenário econômi-
Elegantes e perfumadas. Dariam para encher um co em que vive o país exatamente desde a déca-
novo tomo inteiro do Sociedade Brasileira da da de 1990 – quando, para o jornalismo econô-
Helena Gondim […] (Caderno “Ela” do jornal O
mico, o Brasil tornou-se uma “economia emer-
Globo, jul. 1994 [grifos meus]).
gente” e os “emergentes da Barra” viraram notícia
na coluna social.
Desde o seu surgimento, não é apenas sobre
Nessa década, trabalhar muito, produzir
o que consomem ou sobre como consomem que
resultados, receber bônus como a participação
o colunismo social assunta em torno dos “emer-
nos lucros, tudo isso passou a ser a lógica impe-
gentes”. Os “negócios” aos quais se deve sua
rante entre os funcionários de alto e médio esca-
“emergência” e o esforço “produtivo” neles des-
lão nas grandes empresas. Para alcançar metas em
pendido são também uma fala midiática insisten- empresas agora “competitivas” e “eficientes”, ape-
te. Essa fala esteve presente, como se pode ver, no sar da sofisticada tecnologia disponível,9 muitos
texto que lhes deu origem e apareceu também em profissionais foram sendo envolvidos em um regi-
muitos outros momentos do trabalho de campo. À me de trabalho de aproximadamente doze horas
fala da “produtividade” e do trabalho árduo, o diárias, adentrando, por vezes, nos fins de sema-
senso comum não confere o mesmo acento que na. Enquanto para alguns, esse esquema é uma
ao tema da “futilidade”, do “(mau) gosto” ou do distorção que estrangula a criatividade, para
“consumismo”. Mas ela é reiteradamente sublinha- outros, trata-se de um grande estímulo ao seu “es-
da na mídia,8 além de ter sido um tema freqüente- pírito empreendedor”.
mente repetido nas rodas de conversa durante a A implementação do mercado livre, precisa-
pesquisa e em entrevistas exploratórias. mente nos anos 1990, não agiu e é evidente que
A representação renovadamente enunciada não, apenas nas práticas. A “reforma estrutural”
pelo sistema discursivo que se montou em torno introduzida pelo governo Collor, inspirada nos
dos “emergentes”, cujo conteúdo, como já menci- princípios do“neoliberalismo” que se alastrou por
onei, se difunde para além das páginas das colu- boa parte do mundo, e todas as mudanças que a
nas sociais e invade o vocabulário cotidiano ca- acompanharam encontraram uma sociedade polí-
rioca, é a de que eles gastam muito dinheiro. tica, econômica e simbolicamente desgastada. É
Contudo, uma escuta mais acurada percebe uma desse contexto de transformações que identifico o
mensagem maior subjacente, qual seja, de que nascimento de um tipo social particular.
para ganhar o dinheiro que tanto gastam, os Esse tipo social, ele sim específico, é marca-
“emergentes” trabalham muito. Segundo os seg- do pela valorização transgeracional da relação
mentos da mídia impressa analisados e os pró- não mediada entre trabalho árduo, dinheiro e
prios “emergentes”, eles são acima de tudo “pro- consumo conspícuo. Deles, há um grande contin-
dutivos” e, por isso, “bem-sucedidos”. E porque gente, envaidecido com o mérito objetificado
são “bem-sucedidos” podem, ou, mais do que naquilo que seu dinheiro pode pagar, na Barra da
podem, merecem consumir muito. Tijuca. Ali, verifiquei que o binômio trabalho e di-
nheiro vem, em muitos casos, sendo perpetuado
como um significado positivo já ao longo de duas
Ethos emergente ou três gerações, o que significa dizer que sobre-
vive como valor entre sujeitos sociais para os
A impossibilidade de especificar os “emer- quais a riqueza já não é mais uma novidade. A
gentes da Barra” a partir do exame da pauta de “Nova Sociedade Emergente” cria seus filhos para
consumo presente em seu estilo de vida já era o negócio, incentiva o aprendizado da língua
uma certeza. A despeito do jogo acusatório repro- inglesa porque ela é “100% importante no merca-
duzido no senso comum, suas escolhas de con- do” e tende a permanecer no bairro, onde não há
sumo não lhes são efetivamente algo tão particu- museus e nem salas de concerto. Não obstante,
lar. Além disso, a “produtividade” tampouco é um assim como o “consumismo”, o tipo social entu-
valor louvado apenas na Barra, como se pode siasmadamente “produtivo” não está somente na
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Zona Oeste da cidade. Ademais, em inúmeras fazem questão de sublinhar o quanto se distin-
situações ao longo dos anos em que prestei aten- guem por serem “batalhadores” de sucesso. Entre
ção na maneira como diferentes grupos das elites si, eles falam de “negócios” e falam do dinheiro
econômicas do Rio de Janeiro se relacionam com que gastam na mesma proporção com que ado-
o consumo e, em seguida, com o trabalho, cons- tam os produtos e as marcas, nos quais foi gasto
tatei que as pessoas que têm diante da vida o que, muito dinheiro, como expressão de sua auto-ima-
aproveitando a terminologia jornalística, passei a gem de “vencedores”. Obedecendo à mesma lógi-
chamar de uma atitude emergente ou a qualificar ca utilizada pela mídia e pelas organizações na
como aderentes a um ethos emergente não tive- era da “competitividade” e da “produtividade”
ram necessariamente uma ascensão social recen- para exaltar quem “batalhou”, “venceu” e merece
te, nem sempre são negociantes ou apresentam notoriedade e premiação, aqueles a quem prefiro
baixa escolaridade própria ou familiar. me referir como pessoas orientadas pelo ethos
André, por exemplo, que se reconhece co- emergente endossam um código que associa
mo “emergente da Barra”, começou a trabalhar prestigiosamente sucesso no trabalho com dinhei-
quando cursava a faculdade porque queria ro.
“ganhar [a minha] grana”. Ele fala com prazer Embora tenha encontrado na Barra da
sobre sua trajetória: Tijuca um grande número de indivíduos que,
como André, além de falarem de si através da
Meu pai sempre me deu estudo, me deu um carro exposição e da preocupação com a (rica) apa-
bom quando eu fiz dezoito anos, eu sempre rência são também “batalhadores”, minha prefe-
morei bem. Mas o resto, ele disse que eu tinha
rência pela expressão ethos emergente, em vez
que me virar... Eu adoro um charuto, um bom
vinho, eu sou fascinado por carro. de “emergentes da Barra”, para definir o fenôme-
Às vezes, a gente sai do trabalho lá pelas nove e no estudado não se deve apenas ao fato de ter
vai jantar. Acaba sendo uma continuação do tra- encontrado esse tipo social também em outras
balho, porque a gente aproveita pra resolver regiões da cidade. Não foram raros os casos em
muita coisa, é muita coisa...Eu já trabalhei, uma que me defrontei com indivíduos oriundos de
vez, 36 horas seguidas... Fim de semana passado
famílias estabelecidas – filhos e netos de profis-
fui com a minha namorada pr’um hotel na Ilha
Grande. Mais de 600 reais a diária... É super
sionais qualificados, de empresários de porte va-
exclusivo. São 6 ou 8 suítes só. Não tem nem car- riado ou mesmo, eventualmente, de artistas e in-
dápio, você pode pedir o que quiser. Eu não telectuais – que tiveram uma “boa educação”,
gosto de me preocupar com preço... Eu não me mas que optaram por uma formação universitária
importo em gastar. Eu trabalho pra cacete... e uma carreira profissional em que a meta era,
claramente, enriquecer.
Nos meios sociais onde a conduta é presidi- Embora não se percebam como tal e muitas
da pelo ethos emergente, a explicitação do su- vezes façam mesmo parte daquele universo de
or do trabalho que lhes garante um elevado pessoas que acionam a categoria “emergente”
padrão de vida é tão insistente quanto os bens de como uma calúnia, a atitude das pessoas que par-
consumo de luxo adquiridos, sinalizando o tilham o ethos emergente em face do trinômio tra-
“sucesso”. Enquanto a classe analisada por Veblen balho/dinheiro/consumo conspícuo é muito se-
(1998) gostava, acima de tudo, de exibir como melhante à conduta dos “emergentes da Barra”.
sintoma de sua riqueza o ócio, e os “nobres”, Suas vidas são prioritariamente dedicadas ao tra-
estudados por Gilberto Velho, procuravam se balho e, fazendo oposição ao tipo ideal do
afastar dos constrangimentos do trabalho bruto e empreendedor capitalista descrito por Weber, a
rotinizado porque eles inibem a criatividade, ou quem o ascetismo secular do protestantismo proi-
do “sucesso fácil” porque ele contradiz a tão valo- bia o “uso irracional da riqueza”, no tempo vago
rizada expressão da autenticidade, no contexto consomem bens e serviços de alto custo para seu
social que investiguei há indivíduos que não só prazer e conforto – que entendem serem refina-
estão totalmente imersos nesse mundo do traba- dos e universalmente desejados. Hábitos culturais
lho burocrático, como sentem orgulho dele e convencionalmente valorizados por outros seg-
ETHOS EMERGENTE 81

mentos da “elite” são, muitas vezes, considerados e o tempo empregado para adquiri-lo podiam
entediantes: variar, mas não muito. Desde então, entretanto,
na “elite” da sociedade carioca contemporânea,
Eu não tenho paciência pra teatro, pra cinema, o outros conteúdos e outras formas vêm recebendo
único programa que a gente faz, o meu prazer, é
comer fora..., me disse Hugo, morador da Lagoa,
marcas distintivas positivas.
consultor independente na área de tecnologia há,
aproximadamente, 20 anos, doutor em Enge-
nharia pela PUC-Rio. Conclusão

Fernando – jovem de 20 anos que sempre O argumento central neste artigo é o de que,
morou no Leblon, cujo pai é pediatra especializa- mais do que um grupo geograficamente localiza-
do em fitoterapia, a mãe, advogada e o avô mater- do (na Barra da Tijuca) que desenvolve hábitos
no, professor universitário na área de Biologia – materiais específicos informados por uma visão
passou sua vida escolar no Colégio Santo de mundo própria, o fenômeno da “emergência”
Agostinho10 e atualmente está cursando o sétimo refere-se a um ethos que, ao longo da etnografia,
período da faculdade de Administração de Em- encontrei em variados espaços sociais. O ethos
presas na PUC–Rio. emergente positiva a combinação de trabalho ár-
Não faz muito tempo, ele me pediu sigilo duo com consumo conspícuo e difere seus adep-
em relação à instituição onde trabalha, mas me tos dos sujeitos sociais historicamente conhecidos
contou brevemente sua rotina: como novos-ricos por duas razões principais: 1)
permanece como um valor familiar mesmo com o
Eu vivo atualmente de 8 a 10 horas do meu dia passar das gerações; 2) manifesta-se entre jovens
no estágio... Os valores de salários e participa-
indivíduos criados em contextos em que a expli-
ções nos lucros enchem os olhos dos estagiários
de ambição. Ambição essa que me impulsiona e
citação dessa associação e a priorização do
que também impulsiona muito dos estagiários dinheiro na definição ocupacional é historica-
que trabalham comigo. mente tida como impensável e, mais do que isso,
desprezível.
“Ralar” muito, ter “sucesso” e ser premiado Em meu estudo identifiquei que o ethos
é, como espero ter conseguido demonstrar, a emergente passou a ser característico de alguns
seqüência lógica que ordena a vida de outras pes- meios a partir da década de 1990, coincidindo
soas além daquelas que integram a rede de rela- com a recente de transição na História político-
ções conhecida como os “emergentes da Barra”. econômica do país. Para compreender esse pro-
No período em que a economia brasileira se vol- cesso simbólico, que não só é concomitante, mas
tava para a “competitividade”, a “produtividade”, está entranhado nos processos de abertura co-
o “empreendedorismo” e o “sucesso” dos “vence- mercial e financeira, iniciados no governo Collor,
dores” objetificados em bens de consumo extra- além das evidências etnográficas, minha pesquisa
vagantes mereceram reiterados cumprimentos do acatou como dados também o modo como essas
crescente jornalismo social. Até então, para pes- mudanças foram reportadas na mídia impressa
soas como os “emergentes”, os bem-sucedidos do especializada em assuntos econômicos e o modo
mercado e as celebridades do mundo pop, no como repercutiram nas relações de trabalho den-
Brasil e mesmo na sociedade norte-americana tro das grandes organizações. Finalmente, levei
analisada por Mills (1975), não havia outro nome: em conta ainda tanto o conteúdo, como o enor-
novos-ricos; nem outro sentimento: menosprezo. me crescimento do colunismo social que ocorreu
De sua parte, historicamente, uma vez formado na segunda metade da década de 1990. A análise
o capital econômico, ansiosos por substituírem do discurso ali veiculado permitiu verificar a auto-
o menosprezo por prestígio, essas personagens, ridade que esse volumoso segmento editorial pas-
através das gerações, cuidavam de acumular capi- sou a atribuir aos esquemas de pensamento do
tal simbólico. Sobre o conteúdo e a forma desse mercado. Examinei, então, no extensão, na forma
capital simbólico não havia dúvida. Os caminhos e no conteúdo a maneira como são ali elogiosa-
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mente destacados indivíduos “batalhadores” e burguesia francesa – continuamente permeado de


“bem-sucedidos”. A comparação entre o jornalis- ponderações sobre as dificuldades de circunscri-
mo social contemporâneo e o colunismo das ção e localização desse segmento social, bem
como sobre a utilização dos termos burguês ou
décadas de 1970 e 1980 levou à constatação de
burguesia,“tanto no mundo erudito (exigências
que a idéia de que o “sucesso” – corolário de de definição) como entre o nativo (reações de
riqueza material e celebridade – está ao alcance desconfiança)” [p. 29, tradução minha] – constitui
de todos os indivíduos que dispõem de espírito importante advertência à ingenuidade. Se ainda
empreendedor e perseverança para trabalhar assim emprego aqui a palavra burguesia para de-
competitivamente, irrompeu em muitos canais im- signar o grupo analisado por Velho – um grupo
pressos de comunicação na década de 1990, co- que, posso adivinhar, reagiria com muito mais
do que desconfiança à inclusão nessa categoria –
notados com grande positividade.
é porque estou empenhada em apreender espe-
Dialética entre práticas e representações cificamente as representações sobre o trabalho
acerca de sujeitos e objetos, entendo que a “emer- no interior dos grupos abastados. Segundo a
gência” vem se constituindo como uma nova genealogia realizada por Velho, seus nativos eram
forma de diferenciação na sociedade brasileira. filhos de profissionais liberais civis ou militares
Ainda que a mídia e o senso comum tenham que, em alguns casos, se tornaram empresários.
insistido na tematização do conjunto de bens que 3 Quando afirmo que essa rede de relações surgiu
fazem o estilo de vida de um segmento que ela, nos jornais, tenho em mente o fato de que seus
a mídia, definiu como “emergentes da Barra”, afir- integrantes, antes de terem comparecido a uma
mo tratar-se, desde a década de 1990, de um jogo festa comentada pela coluna social do caderno
mais amplo de identificação social ordenado em “Ela” do jornal O Globo, em setembro de 1994,
nem sequer se conheciam. Segundo informação
torno de uma noção de “sucesso” que correspon- levantada no campo, o primeiro contato entre
de a acúmulo financeiro (que por sua vez permi- eles teria sido deflagrado pela notícia de que for-
te o consumo conspícuo) resultado de trabalho mariam um “novo society”.
árduo.
4 A Barra da Tijuca é uma região do Rio de Janeiro
A análise do discurso veiculado por meios que começou a crescer na década de 1970.
de comunicação de alcance nacional – como a Inicialmente, sua ocupação obedeceu às diretri-
revista Veja, de um lado, e a Caras junto com zes prescritas pelo plano piloto do arquiteto
outras publicações do mesmo segmento editorial, modernista Lúcio Costa; na década seguinte, em
de outro – sugere uma pertinência mais abran- favor de um “maior aproveitamento relativo” do
gente para o meu argumento. Contudo, uma vez espaço, o modelo original de paisagem urbana
sofreu reformulação substantiva; hoje a região
que minha investigação não envolveu a observa-
comporta pistas de alta velocidade, grandes shop-
ção direta do estilo de vida de grupos da “elite” ping centers, condomínios murados, outdoors e
econômica de outras parcelas da sociedade brasi- redes de restaurantes, onde se pode observar a
leira, o conjunto dos dados só pode sustentar a língua inglesa predominando nos dizeres públi-
afirmação da vigência deste critério de diferencia- cos em geral. Essa região, de arranjo muito diver-
ção social no Rio de Janeiro. gente ao da Zona Sul da cidade, onde, desde a
década de 1960, as camadas médias e altas cario-
cas concentram moradia, a Barra da Tijuca pas-
sou a ser habitada sobretudo por grupos em
Notas
ascensão social recente. Segundo a palavra nati-
va, trata-se da “Miami brasileira”.
1 A mordacidade com que Sinclair Lewis discorre
sobre Babbit e seu mundo não deixam dúvidas 5 Embora a “emergência” não seja, em absoluto,
sobre a existência de ressalvas ao tipo “business um fenômeno particularmente ou exclusivamente
man” também nos Estados Unidos. Muito mais feminino, grande parte do discurso a seu respei-
recentemente, a prosa ácida de As correções, to gira em torno das mulheres “emergentes”.
romance de Jonathan Franzen, vencedor do
6 Sua receptividade pode ser atribuída, entre outras
National Book Award de 2001, recoloca a ques-
razões, ao seu prazer em aparecer. Meu “livro”
tão em pauta.
constituía um novo e prestigioso espaço para a
2 O estudo de Le Wita (1988) sobre a “cultura” da exposição de seu estilo de vida.
ETHOS EMERGENTE 83

7 Vale lembrar a discussão de Elias e Scotson (2000) LEWIS, Sinclair. (1980), Babbit. São Paulo, Abril
sobre a diferença e a desigualdade social como Cultural.
uma relação entre estabelecidos e outsiders. Em
seu estudo de caso, os autores demonstram que MAUSS, Marcel. (1999 [1902]), “Théorie générale
em um contexto onde nenhuma diferença ime- de la magie”, in _________, Sociologie et
diata salta aos olhos, a fofoca opera como um anthropologie, Paris, Quadrige/Presses
mecanismo de controle social de eficácia impres-
sionante. Universitaires de France.
8 Reportagens sobre férias em lugares paradisíacos MILLER, Daniel. (1987), Material culture and
são recorrentes na revista Caras. Chamo atenção, mass consumption. Oxford/Nova York,
contudo, para o fato de que quando uma pessoa Basil Blackwell.
“bem-sucedida”, um integrante da rede social
“emergente” ou uma celebridade qualquer apare- _________. (1998), A theory of shopping. Ithaca,
ce em férias, as imagens vêm sempre acompa- Nova York, Cornell University Press.
nhadas da mesma explicação: trata-se de um
intervalo entre temporadas de trabalho exaustivo. MILLS, C. Wright. (1975), A elite do poder. Rio de
9 Muitas vezes em razão mesmo dessa tecnologia a Janeiro, Zahar Editores.
jornada de trabalho se prolonga: a Internet per- NÉRI, Marcelo Cortês. (2002), “Brazilian macroe-
mite a interação com o outro lado do mundo,
onde a qualquer hora há alguém trabalhando
conomics with a human face: metropo-
para dar resultados. litan crisis, poverty and social targets”,
in Economics Working Papers, 464,
10 Sua irmã mais velha estudou no Colégio de
Graduate School of Economics, Getulio
Aplicação da UFRJ. Ela cursa a faculdade de
Vargas Foundation (Brazil), Rio de
Medicina em Teresópolis e me disse ter escolhido
especializar-se em Dermatologia Estética porque
Janeiro.
“não tem muita perturbação e é um mercado que POLANYI, Karl. (1957 [1944]), The great transfor-
ainda tem muito espaço pra crescer”. mation: the political and economic ori-
gins of our time. Boston, Beacon Press.
SCALON, Maria Celi & COSTA RIBEIRO, Carlos
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approche ethnographique de la culture
bourgeoise. Paris, Éditions de la Maison
des Sciences de l’Homme.
166 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 65

ETHOS EMERGENTE: NOTAS EMERGING ETHOS: ETHNO- ETHOS EMERGENT: NOTES ETH-
ETNOGRÁFICAS SOBRE O “SU- GRAPHIC NOTES ON THE SO- NOGRAPHIQUES À PROPOS DU
CESSO” CALLED “SUCCESS” “SUCCÉS”

Diana Nogueira de Oliveira Lima Diana Nogueira de Oliveira Lima Diana Nogueira de Oliveira Lima

Palavras-chave: Dinheiro; Sucesso; Keywords: Money; Success; Work; Mots-clés: Argent; Succès; Travail;
Trabalho; Consumo; Mídia. Consumption; Media. Consommation; Médias.

Na década de 1990, o mapa socioló- In the 1990s, the sociological map in Au cours des années 1990, la carte
gico do Rio de Janeiro viu surgir, na Rio de Janeiro witnessed a new social sociologique de Rio de Janeiro a
mídia, um novo segmento social. A segment. The “new emerging socie- témoigné l’apparition, dans les mé-
“nova sociedade emergente”, uma ty,” a network of relations formed by dias, d’une nouvelle tranche sociale.
rede de relações composta de sujeitos social subjects abiding a recent and La “nouvelle société émergente”, un
sociais cumpridores de recente, expressive social ascension, has been réseau de relations composé d’ac-
porém muito expressiva, ascensão in the print media for six years. The teurs sociaux exécuteurs d’une
social, foi tema constante de notícia term “emerging,” borrowed from the récente – néanmoins très expressive
impressa ao longo de seis anos. O economic terminology used to refer – ascension sociale, a été le thème
termo “emergente”, tomado de em- to ascending economies, though constant de la presse écrite tout au
préstimo do vocabulário econômico sometimes used for stigmatization, long de six années. L’expression
utilizado para falar das economias em prizes successful people with a spe- “émergent”, empruntée au vocabu-
ascensão, ainda que por vezes fosse cial appreciation, for it has the appeal laire économique où elle est em-
empregado como estigma, premiava of metamorphosing historical yearn- ployée pour se référer aux écono-
as pessoas “bem-sucedidas” com um ings of a promising Brazilianism. Ba- mies en ascension, quoique parfois
especial sabor de vitória, pois tinha sed on newspaper articles and ethno- utilisée en tant que stigmate, récom-
como apelo o fato de metaforizar os graphy carried out from living amid pensait les personnes qui avaient
históricos anseios de uma brasilidade integrants of such network, the article “réussi” avec une saveur spéciale de
promissora. Com base em matérias analyses the complex ideation refer- victoire, car elle avait la qualité de
de jornal e etnografia realizada a par- ring to concepts of productivity, com- métaphoriser les aspirations his-
tir do convívio com integrantes dessa petitiveness, and economic success toriques d’une brésilienneté promet-
rede de relações, este artigo faz uma prevailing in the contemporary teuse. Basé sur des articles de jour-
reflexão sobre o complexo imaginá- Brazilian society. naux et sur l’éthnographie réalisée à
rio referente às idéias de produtivida- partir de la cohabitation avec des
de, competitividade e êxito econômi- intégrants de ce réseau de relations,
co em vigor na sociedade brasileira cet article propose une réflexion sur
contemporânea. l’imaginaire complexe relatif aux
idées de productivité, de compétitiv-
ité et de succès économique en vi-
gueur dans la société brésilienne
contemporraine.

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