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ARENA CONTA ZUMBI Tem rei.

Tem rei lutando?


Musical em dois atos de G. Guarnieri – Augusto Boal – Tem rei.
Edu Lobo Tem negro apanhando?
TEATRO DE ARENA DE SÃO PAULO Tem lei.
Tem gente brigando?
PRIMEIRO ATO Epa rei, meu pai.
É Zambi?
RITMO: ATABAQUE, BATERIA, TODOS OS ATORES Zambi no açoite.
ENTRAM E CANTAM. OS ATORES NÃO SAEM
NUNCA DE CENA ASSUMINDO OS SEUS ZAMBI NO AÇOITE
DIFERENTES PERSONAGENS DIANTE DO PÚBLICO.
É Zambi no açoite, êi, êi, é Zambi
1 E Zambi, tui, tui, tui, tui, é Zambi
É Zambi na noite, êi, êi, é Zambi
O elenco do Arena começam a cantar: E Zambi, tui, tui, tui, tui, é Zambi (repetir durante o texto
seguinte)
1 – O Arena conta a história
pra você ouvir gostoso, O número de mortos na campanha de Palmares – que
quem gostar nos dê a mão durou cerca de um século – é insignificante diante do
e quem não, tem outro gozo. número de mortos que se avolumam, ano a ano, na
campanha incessante dos que lutam pela liberdade. Ao
2 – História de gente negra contar Zambi prestamos uma homenagem a todos
da luta pela razão, aqueles que, através dos tempos, dignifica o ser
que se parece ao presente humano, empenhados na conquista de uma terra da
pela verdade em questão, amizade onde o homem ajuda o homem.
pois se trata de uma luta
muito linda na verdade: Vem filho meu, meu capitão.
é luta que vence os tempos, Ganga Zumba, liberdade, liberdade
luta pela liberdade! Ganga Zumba, vem meu irmão.
É Zambi morrendo, êi, êi, é Zambi
3 – A história que o Arena conta É Zambi, tui, tui, tui, tui, é Zambi
É a epopéia de Zumbi; Ganga zumba, êi, êi, êi, vem aí
tanto pró e tanto contra Ganga zumba, tui, tui, tui, é Zambi.
juro em Deus que nunca vi.
(Entra um cantador – o papel do desempenhado
4 – Os atores tem mil caras indiferentemente por todos os atores)
fazem tudo neste conto
desde preto até branco CANTADOR:
direitinho ponto por ponto.
Feche os olhos e imagine
5 – Há lenda e há mais lenda Viver em mil e seiscentos
há verdade e há mentira em plena terra africana
de tudo usamos um pouco vendo os maiores portentos
mas de forma que servira Havia guerra e mais guerra
a entender nos dias de hoje entre pessoal de lá,
quem está com a verdade, era gente de Zambi que só queria lutar:
quem está com a verdade, É assim que conta a História
quem está com a mentira. que num feio navio negreiro

2 TODOS

Há lenda e há mais lenda Rei Zambi tão afamado, viajava prisioneiro


há verdade e há mentira,
de tudo pegamos um pouco, (Os atores jogam-se no chão simulando um barco.
mas de forma que servira Remam)
A entender no dia de hoje
quem está com a verdade 3
quem está com a verdade
quem está com a mentira. CORO:

(Os atores se acomodam em cena e as frases seguintes Êi, Zambi! Êi, Zambi! Êi, Zambi!
são ditas em quase escuridão, sussurradas). Zambi no açoite!
Êi, Zambi!
Tem rei no açoite? Zambi perdido no mar.
Êi, Zambi! 3 – Viramundo.
É noite Zambi! 1 – Pequeno instrumento de ferro que prendia pés e
ZAMBI: (de pé com as mãos amarradas às costas, no mãos do escravo forçando-o a uma posição incômoda
meio do barco) – Quebro as pontes, derrubo as velas, durante vários dias.
arrebento o mundo. 3 – Se a ofensa requeria castigo mais
prolongado.
ZAMBI: 1 – Cepo.
- Êi, Zambi! 2 – Longo toro de madeira que o negro deveria carregar
Luanda, Luanda! à cabeça preso por uma corrente ao tornozelo.
- Cadê seu filho, Zambi? 1 – Se fugisse.
Ficou em Luanda, ficou cercado, sozinho lutando. 2 – Libambo.
- Cadê seu neto, Zambi? 3 – Argola de ferro que rodeava o pescoço do negro
Ganga Zona seu nome, nem mesmo gente inda é. É dor com uma haste terminada por um chocalho.
irmão. Que faz esses negros parado, que faz que não 2 – Ou então a gargalheira.
quebra esse bojo e atira tudo no mar? 3 – Ou golilha.
1 – sistema de correntes de ferros que impedia os
CORO: movimentos.
- É o banzo, Zambi, é o Banzo. 3 – Se furtasse.
É o Banzo, é o banzo, é o banzo 1 – Prendiam-lhe na cara uma máscara de folha de
Luanda, Luanda Flandres fechado no occiput por cadeados e
Ai, sinto o cheiro da mata penduravam-lhe nas costas uma placa de ferro com os
das terras de lá seguintes dizeres “Ladrão”.
Luanda, 2 – O “Ladrão e Fujão”.
Luanda, cadê Luanda, 3 – Se o senhor queria obter uma confissão do negro
aonde está, aonde está apertava os seus polegares com os anginhos.
Cadê Luanda, aonde está 2 – Dois anéis de ferro que diminuíam de diâmetro a
medida em que se torcia um pequeno parafuso
4 provocando-lhe dores horríveis.
1 – Nas falhas mais graves o negro era supliciado
Quebra o mastro publicamente nos pelourinhos da cidade com o...
Quebra a vela 2 – Bacalhau.
Quebra tudo que encontrá 3 – Um chicote especial de couro cru.
Quebra a dor
Quebra a saudade 7
Quebra tudo até afundá
ATOR 4 – Não há trabalho nem gênero de vida no
5 mundo mais parecido à cruz e a paixão de Cristo do que
o vosso.
MERCADO – MERCADOR APREGOA SEU PRODUTO TODOS – Padre Antônio Vieira.
ATOR 5 – E foi através desses instrumentos
MERCADOR: olha o nego recém-chegado. Magote engenhosos que se persuadiu o negro a colaborar na
novo, macho e fêmea em perfeito estado de criação das riquezas do Brasil.
conservação. Só vendo moço e com forças. Para
serviço de menos empenho tenho os mais fracos e FUGA
combalido, pela metade do cobrado. Quinze mil réis o
são, sete mil e quinhentos os estropiados. Escravo 1 – Zambi, êi Zambi.
angolano purinho. Olham o escravo recém-chegado, 2 – Cadê Zambi?
magote novo, macho e fêmea cantador. 3 – Onde está?
4 – Curou as feridas.
CANTADOR: assim é que conta a história, que nas 5 – Tomou fôlego.
terras de um senhor, sentiu Zambi afamado, o chicote 6 – Estufou o peito.
do feitor. 7 – Partiu.
1 – Zambi fugiu.
(TRÊS ATORES REVEZAM-SE NA DESCRIÇÃO TODOS – Zambi fugiu.
CIENTÍFICA, SLAIDES ILUSTRATIVOS SÃO
MANIPULADOS POR UM QUARTO ATOR; UM NARRADOR: Negros de todos os lugares procuravam
QUINTO ARRANJA A TELA) as matas fugindo desesperados. Horror a chibata, ao
tronco, às torturas. Buscavam no desconhecido um,
6 futuro sem senhor. Enfrentavam todo o perigo. Fome,
sede, veneno, flecha dos índios, capitães do mato.
1 – Se desagradava ao branco Agonia pela liberdade. Idéia de ser livre.
2 – Tronco.
3 – Pescoço, pés e mãos imobilizados entre dois NEGROS NAS MATAS
grandes pedaços de madeira retangular.
2 – Se houvesse ofensa mais grave. 8
NICO – Não quero ser livre. Ser livre pra que? 12
1 – Quieto Nico, tú vem cum nóis.
NICO – Pra que? Me diz. Pronde é que vão? TODOS: Mas tem os peixes que ainda não falei
2 – Pra longe, pra num sei onde. De toda forma e qualidade tem
NICO – Pois eu fico. No menos sei onde estou. Tem traíra, e tem cará e jundiá.
3 - Tú vem cum nóis que braço faz falta. Tem caborge e tem plaba e carapó.
NICO – Vou coisa nenhuma. Ter muita querença dá E pitu e caranguejo e aruá.
sempre em bolo.
9 – Quem é negro tem sua sorte que é essa de tai de 13
escravo.
5 – Coisa nenhuma, sorte de negro é ganhar a mata, NICO – Mas também tem cobra que é um nunca se
plantá, construir cidades, seus reis, sua nação. acabar
NICO – Quem muito quer cai em desgraça. Deixa de ser tem jacaré, cobra rainha e mussú,
tão querençoso, mano. Aqui se come, se bebe, se tem tem caninana, tem jibóia e jericoá,
teto pra dormir. Negro ladino consegue escapar da tem jararaca, cascavel, surucucu,
chibata e até que a Sinhá daqui não é das mais e papa ovo, e cobraverde, assim não dá.
malvadas.
6 – Cala a boca, negro, tu já perdeu a vontade? 14
NICO – Vontade eu tenho de saber de mim.
7 – Melhor o desconhecido do que essa prisão. MOÇAS: Mas tem sabiá, tem canário e curió
NICO – Melhor se saber do que se arriscar. O que é que tem passarinho tão bom de se olhar,
tem aí pela frente, me diz? Que é que tem ninguém Papa capim, cardeal e arumará,
sabe, né? E tem xexeu, guriatã e tem brejá.
1 – Sabemo, que tem gente que já viu. Tem palmeiras,
árvore de não se acabá. 15
NICO – Palmeira e árvore e daí?
MOÇOS: E se quiser comer galinha
(CANTAM A CANÇÃO DAS DÁDIVAS DA NATUREZA) tem de todas pra farta.
Tem pomba de três côco e tem pato mergulhão,
9 Aracuá jaçanã e tem carão.
Juriti, cardigueira, e paturi.
TODOS: De toda forma e qualidade tem. Ôi tem
pindoba, imbiriba e sapucaia, tem titara, catulé, curicuri, (Um ator simula o ruído do paturi – os outros
tem sucupira, supucais, putumuju.. estranham).
tem pau de santo, tem pau d’arco, tem tatajubá,
sapucarama, canzenzé, maçaranduba, tem louro NICO – Mas e nessa abençoada região,
Paraíba, e tem pininga será que tem o que faz falta na verdade?

NICO – Pare meu irmão de falar em tanta mata TODOS: O que é, o que é, o que é?
Com tanta planta eu não sei o que fazer
Mas diga lá se tem bicho pra comer NICO – Me diga meu irmão, se nessa grande mata é
se tem bicho pra comer possível , é possível ter mulher?

10 (Depois de uma pausa).

TODOS: De toda forma e qualidade tem, TODOS: Aí está uma coisa que não. (tristes)
Onça pintada, sussuarana e maracajá.
Oi tem guará, jaguatirica e guarini. 16
E tem tatu, tatu peba, e tatu bola
Tem preguiça , tem quati, tamanduá. NICO – Pois sendo assim, eu prefiro o cativeiro.
E coelho que tem, tem, tem
Queixada que tem, tem, tem TODOS: Meu irmão está com toda razão.
Caititu, oi tem também, diz que tem, tem
E tem cotia, oi que tem, tem – Vai lá Carengue e toma as providências – 20 negras! –
E paca será que tem? 40! – Pra cada um!
Oi tem preá, e quandá, será que tem?
Oi diz que tem, tem SAMBA DO NEGRO VALENTE E DAS NEGRAS QUE
ESTÃO DE ACORDO
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NICO – Pára meu irmão de falar tanta fera
Com tanto bicho eu não sei o que fazer Negra compreende que não dá, que não vai dar pé,
um bichinho pra comer eu só quisera, Viver só de valentia, é preciso ter mulher que nos faça
com tanto assim eles vão é me comer. companhia.
ZAMBI: Ser livre não é encostar o corpo. Ser livre é
Negra não esperneie não, poder trabalhar e vigiar e poder continuar sendo senhor
que o negro sem sua nêga de si. Quem procura na vida só o que é doce, não vai ter
já não pode ser um homem nem doce e nem fel e sem rezina, homem perdido pra
pode não. vida, escravo no fato e na verdade.

Só o verde da mata num dá TODOS: Dunga tará, sinherê!


pra um homem ser feliz
é preciso ter mulher ZAMBI: Pois que Zambi é rei, Zambi: vai dar as ordens.
pra saber o que se diz. É no trabalho que um da gente pega o sol com a mão. É
no trabalho que se faz o mundo mais de jeito. Em cada
18 coisa que a mão livre do negro encostar, novas coisas
vão nascer. Não vamos viver só das coisas já nascidas,
19 das coisas que Deus deu. Vamos fazer o mundo mais
de nosso jeito.
Liberdade somente não dá, – não!
pra se ter um bem viver, NICO – Viva a lei de Zambi.
sem o carinho da minha nêga
é melhor morrer. TODOS: Dunga tará, sinherê!

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21 ZAMBI: Se a mão livre do negro tocar na argila, o que é


que vai nascer?
ELAS – Pois é, de sinhô em sinhô,
eu prefiro meu nêgo que é da minha cor. TODOS: Vai nascê pote pra gente beber.
Liberdade somente não dá, nasce panela pra gente comer,
pra gente ser feliz nasce vasilha, nasce parede.
é preciso de um nêgo... nasce estatuinha bonita de se ver.

ELES – É preciso de uma nêga... ZAMBI: Se a mão livre do negro tocar na onça, o que é
que vai nascer?
ELAS – É preciso de um nego
pra gente ser feliz. TODOS: Vai nascer pele pra cobrir nossas vergonha,
nasce tapete pra cobrir o nosso chão, nasce caminha
(TIROS DOS BRANCOS EM BUSCA DAS NEGRAS pra se ter nossa ialê e atabaque pra se ter onde bater.
ROUBADAS)
ZAMBI: Se a mão livre do negro tocar na palmeira, o
22 que é que vai nascer?

– Que foi? TODOS: Nasce choupana pra gente morar,


– É os brancos vingando o roubo das escravas. e nasce rede pra gente se embalar
– Tomaram as vontade de nós. nasce as esteira pra gente deitar
– Cadê Carengue? nasce os abano pra gente abaná.
– Morreu.
– Salé? 25
– Morreu.
– Que se faz, gente? ZAMBI: Essa riqueza tem fonte e essa mão livre tem
– Sou pela volta. Melhor enfrentar libambo que sofrer dono. Ajoelha quilombola que o dono mora nas estrelas.
assim nesse fim de mundo. O rei agradece e seu povo concorda.
– É na briga que se pode ganhar.
– Que liberdade é essa se é preciso trabalhar? AVE MARIA

ZAMBI: Para meu povo que quem fala agora é rei. ZAMBI: Ave Maria cheia de graça. Olorum é convosco.
Bendito é o fruto de vosso ventre
23 Bendita é a terra que plantamos
Bendito é o fruto que se colhe.
TODOS: Zambi.
CORO: Ave Maria, bendita seja
ZAMBI: Rei de vós, rei dos negros que procuram ser Ave Maria cheia de graça, Olorum.
livres. Quem quiser pôr a prova a força dos reis que
venha. ZAMBI: Bendito é o trabalho neste campo
Bendita é a água que se bebe
TODOS: Dunga tará, sinherê! Bendita é a mulher de quem se gosta
Bendito é o amor e nossos filhos
CORO: Ave Maria, cheia de graça – Senhor, os negros são cautos e suspicazes, meu
Ave Maria bendito seja, Olorum. senhor.

ZAMBI: Bendita é a palmeira, o rio, o canavial – Cada dia crescem mais em número.
Bendito é o peixe que se come
Bendito é o gado que se come – Roubam nossos escravos com suas mulheres e filhos.

CORO: Ave Maria cheia de graça – Roubam nossas negras, senhor.


Ave Maria, bendito seja Olorum.
– As negras do nosso prazer eles as roubam para a sua
ZAMBI: Bendita é a caça e a flexa devassidão.

CORO: Ave Maria, bendita seja – As negras cativas não foram aos Palmares senão
furtadas, que de vontade livre ficariam conosco.
ZAMBI: Bendita é a enxada e a semente
– As muitas os negros puzeram o punhal aos peitos.
CORO: Bendita seja, cheia de graça, Olorum
– Já tomaram tanto o barlavento aos seus senhores que
ZAMBI: Perdoai os nossos erros. falam e cantam a fundação de Angola Janga, Angola
Pequena.
CORO: Ave Maria cheia de graça
– Senhor, bem sabeis que cada negro que morre é ouro
ZAMBI: Perdoai, Ave Maria que se perde.

26 28

Perdoai a morte que matamos DOM PEDRO – A hora e a glória de SA, que Deus
O assalto, o roubo, guarde, exigem a recaptura desses negros foragidos.
Perdoai, Ave Maria, Olorum. Que se faça já a conta dos gastos e se divida a soma
por todas as cidades interessadas.
CORO: Ave Maria cheia de graça
Perdoai, Ave Maria, Olorum. 29

ZAMBI: Perdoai o nosso orgulho. TESOUREIRO – 300 soldados, 200 arcos e 100 armas
CORO: Perdoai, Ave Maria. de fogo, total 700 mil réis, e mais 100$000 por mês para
ZAMBI: Perdoai a fuga do cativeiro. os mantimentos. Porto Calvo dará 350$, Alagoas 150$,
CORO: Perdoai, Ave Maria. Penedo de São Francisco 25$000, para as despesas
ZAMBI: Perdoai a nossa rebeldia gerais Porto Calvo dará 50$, Alagoas 50$ e Penedo de
CORO: Perdoai, Ave Maria. São Francisco 50$. Por cada presa recapturada, seu
ZAMBI: Perdoai a nossa coragem legítimo proprietário de obrigará a pagar a quantia de
CORO: Perdoai, Ave Maria. 12$000 de tomadia a exceção das presas menores de
ZAMBI: Perdoai a fuga do cativeiro três anos pelas quais pagará o seu justo valor.
CORO: Perdoai, Ave Maria.
ZAMBI: Perdoai as nossas dívidas DOM PEDRO (Depois que saíram todos) – A honra e a
CORO: Perdoai, Ave Maria. glória de SA, que Deus Guarde e o equilíbrio
orçamentário da capitania magnanimamente concedem
ZAMBI: Perdoai-nos Ave Maria. Assim como nós o perdão a esses negros pecadores.
perdoamos os nossos senhores.
30
CORO: Perdoai, Ave Maria.
Ave Maria cheia de graça CANTADOR: E assim ficou provado pelo sim e pelo não
Olorum, Amém, Amém, Amém. Que fujão recuperado custava mais ao patrão,
e pelas contas já feitas quem fugiu teve perdão
27 mais negócio ficou sendo fazer mais importação.

PREÇO E PERDÃO CORO: Navio chegando, chegando de lá,


com escravo apanhando até se fartar.
– Os senhores do Brasil perdiam seus escravos dia a Escravo de monte de toda nação
dia, hora a hora, a cada instante. Cada peça em bom pra um que fugia chegava um montão.
estado de saúde custava vinte mil réis. Dois ou três
milhões de cruzeiros de hoje em dia, mais de mil dólares 31
na cotação de ontem. Os senhores foram pedir socorro
do governador da capitania de Pernambuco, Dom Pedro GERAÇÃO REAL
de Almeida, nomeado por sua Alteza, Deus Grande.
CANTADOR: Numa dessas má viagem pois deste abraço
vinha um bom carregamento, é um rei que nova vida
negro de real linhagem, vai trazer, você vai ver
num terrível sofrimento aí, você vai ver surgir
Ganga Zona aprisionado, de nós,
fala a alguém do seu tormento. (Coro canta a partir daqui).

(CENA DO NAVIO NEGREIRO) 33

VOZ – Três nós a barlavento. um rei que vai


(Coro – faz o eco). ser bem mais que nós
GANGA ZONA – E teu nome qual é? ser o que não pude ser.
GONGOBA – Gongoba, meu ganga.
GANGA ZONA – Num sou teu ganga só, hei de ser (CONSTRUÇÃO DE PALMARES)
mais. O que fica prá nóis fazer é de importância.
GONGOBA – Nada fica, meu ganga. Daqui pra lém só 34
pode ser de pior.
GANGA ZONA – Mesmo aqui nesse inferno de porão Trabalha, trabalha, trabalha irmão
nóis conseguiu bastante. Trabalha, trabalha, de coração.
GONGOBA – Um nada meu ganga. Coisa sem Palmares ta grande, Palmares cresceu,
prosseguimento. Gongoba foi mulher de Ganga Zona e com a força do braço do negro que sabe o que é seu.
agora? Nem ser de Ganga num vou mais. Em se
chegando, vai ser cada um pra branco diferente. Zambi que é rei sabe governar
GANGA ZONA – Que é isso? Ialê de Ganga Zona com e já fez coisas de espantar.
tal descrença? E os contos que se diz de Zambi? Zambi venha ver eu acabar
VOZ – Marinheiros a postos. mais uma casa pra gente morar.
(Coro – faz eco).
GONGOBA – Zambi é esperança! REFRÃO
GANGA ZONA – Zambi é pai do pai de eu. Zambi é avô
de Ganga Zona e Reis. Reis de valentia que nunca vai 35
ser bastante louvada, Zambi carregou negros de
coragem e fundou terra livre no meio da escravidão. – Salve Zambi.
GONGOBA – São contos meu ganga, cochicho de gente – Salve Reis.
que quer se enganar pra escapar do banzo.
GANGA ZONA – Verdade que eu tenho no sangue. Em TODOS – Dunga tará, sinherê.
lá chegando se procura Zambi.
GONGOBA – Sonho de meu Ganga, é sonho bonito. ZAMBI – Quilombola. Faz tempo que tudo nós pra cá
GANGA ZONA – Verdade pra minha ialê. veio. Foi vencida a dureza da mata e depois do primeiro
GONGOBA – Com sua licença eu choro. muitos quilombo cresceu, e os quilombos reunido
GANGA ZONA – Chora não Gongoba, chora não. Palmares formou. Meu irmão ganga de quiloange.
Mesmo sendo Ganga eu estou sendo de pouca valia, eu
sei. Mas de nós alguém vai vir. Raça não se acaba – Presente meu reis.
nessa escuridão. Enquanto um de nós pude se ver com ZAMBI – Quilombo de Arotirene.
o outro... raça não acaba. – Presente meu reis.
VOZ – Dois nós a barlavento! ZAMBI – De Dambrabanga.
(Coro – eco; movimento de ondas o tempo todo). – Presente meu reis.

(GONGOBA CHORA; CORO AUMENTA. CANÇÃO ZAMBI – Quilombola valente de Cerca do Amaro.
PARA GONGOBA)
– Presente meu reis, sinherê.
32 ZAMBI – Irmão de Andalaquituxe.
– Presente meu reis, sinherê.
Pra você que chora ZAMBI – Mocambo de Ataboca.
e sofre a tanto tempo amor – Presente meu reis.
vou contar baixinho, ZAMBI – Disse e vou dizer. Liberdade é o trabalho que
um sonho, que nasce de nós dois, dá e o trabalho só é livre quando se é dono dele.
Um sonho lindo de nós dois Fazendo ele pra nós e não nós pra ele como o branco
você vai ver, aí você vai ver quer.
Surgir de nós
alguém que vai REFRÃO
ser bem mais que nós
ser o que não posso ser 36

Enxuga os olhos É pro negro se defender


não chore mais meu triste amor do branco que vem pra invadir
uma paliçada eu vou fazer que cada floresce e se pode vender
e bem dura eu vou construir tem branco de monte querendo comprar
Fure um fosso bem fundo irmão; Liberdade do negro sabendo entender.
peque nos paus de penta em montão
espete no fosso de ponta pro ar 42
pra que fure quem queira chegar.
– A cidade branca de Porto Calvo quer comprar 300
37 feixes de cana, 100 partidas de argila trabalhada, uma
carroça de cestos.
REFRÃO
– A cidade branca de São Miguel 100 feixes de cana, 10
– Êi negro moto, vem cá me ajudar com essas estacas. partidas de argila trabalhada, azeite, milho e hortaliça.

– É gente trabalhando, e gente nascendo e gente – A cidade branca de Serinhaém cana, azeite, argila
batizando e gente desbatizando. trabalhada, milho, hortaliça e o que der mais na
produção.
– Meu nome de escravo era João Romão.
43
38
Branco comprando
– Em nome de Olorum pois fica sendo Ê-Bilai. negro vendendo,
– Meu nome de escravo era Pedro. branco trocando
– Em nome de Olorum pois fica sendo ÊTuriandú. negro se armando
– Meu nome de escravo era Zé Firi. Pra cada pote de argila
– Em nome de Olorum pois fica sendo Ê Firiri. pra cada cana vendida,
– Num mudou quase nada... se compra uma espingarda
pra defender nossa vida.
REFRÃO
44
– Tem gente trabalhando, tem gente nascendo, tem
gente crescendo e tem gente casando. Negro vende e branco compra
branco vende e negro compra,
(CASALZINHO SE NAMORANDO) branco dá e negro dá,
é um danado de trocar.
39
A BONDADE COMERCIAL
– Êi, Segé, tu num casou ainda antes de ontem com a
Milena? CANTADOR:

SEGÉ – Foi. E tanta riqueza Palmares produzia


que o branco começou a se comover
– Pois que faiz tu aqui com a desconhecida? e no vende que vende e troca
até mesmo amigo do negro quis ser
SEGÉ – Casei inda gorinha. Agora são a Milena, Micoti, E o branco comerciante
Rainha, Tariadá. E agora mais a Eforge. Dentro da lei e contava na cidade
com todas as benção. ter pelo negro quilombola
uma grande amizade.
– Êi Palmares crescendo.
45
SEGÉ – As quatro de antes já estão com cria no bucho.
Agora vou botar no buchinho desta aqui também. COMERCIANTES:

REFRÃO Nós os brancos comerciantes


sabemos ter muita amizade
40 pelo negro que trabalha
tão distante da cidade.
– Ai! Queremos paz, prosperidade,
– Que foi bantú? chega de raiva e de maldade,
– Martelei o dedo. de tudo um pouco nós compraremos
e muitas armas venderemos.
REFRÃO Pra que o negro não se sinta
tão sozinho no sertão
41 E quem é amigo sempre se entende
e bons preços conseguiremos,
Trabalha de fato na plantação e o negro nos compreende
e das armas tem precisão. de demonstrar misericórdia.

CANTADOR: COMERCIANTES E DONOS DAS SESMARIAS:

Mas pros donos das sesmarias – Nós os brancos, senhores da terra


essa paz já não servia – Nós os brancos comerciantes
e berravam na cidade Resolvemos sem santa união
que só a guerra é que resolvia. dar fim ao povo ao povo rebelde
exterminar a subversão.
46
CORO:
DONOS DAS SERMARIAS:
O negro destruiremos (3 X)
Nós os brancos senhores da terra
fiéis vassalos de Portugal 49
aqui chegamos, lutamos, vencemos DIÁRIO DE VIAGEM:
e desbravamos esse país.
O que aqui existe só a nós pertence, Atenção senhores: Diário de Viagem do Capitão João
aqui trabalhamos, nosso sangue correu Blaer que no dia 1º de março partiu de Salgados com
O negro trouxemos, o negro compramos toda a sua gente a fazer uma entrada aos Palmares, a
pagamos bom preço ao barão espanhol. fim de destruir e reduzir ao cativeiro os negros
A paz que se pede com o negro rebelde rebelados. Com a palavra, Capitão.
é paz enganosa, é pura traição.
Paz é quietude que trará sofrimento 50
é perda de ouro, da honra e de tempo.
Negro que foge é negro perdido CAPITÃO – Partimos no dia 1º. (I) No dia 2 topamos
dinheiro guardado é não devolvido com um monte chamoda Elinga. (II) Ali caminhamos
Negro que foge é negro rebelde duas milhas e topamos com o rio chamado Sebauma,
é o grito de guerra de um mero cativo onde nossos índios fisgaram muitos peixes chamados
A paz é a vitória, do subversivo. Tairairais.

– Viva a guerra! – No dia 3 topamos com o monte chamado Tamala onde


pernoitamos. (III)
COMERCIANTES:
– No dia 4 topamos com um antigo engenho por nome
Nós os brancos comerciantes São Miguel (IV) caminhamos uma milha pequena
nos guiamos pela bíblia, quando topamos com alguns mundéus (V) isto é,
o livro santo diz ser pecado armadilhas de pegar caça, as quais porém estavam
matar o negro trabalhador. vazias. Mandamos nossos índios examinar se por ali
Não deixaremos ser massacrado havia pegadas de negros.
o povo heróico e sofredor.
– No dia 5 topamos com um grande pássaro chamado
CORO DE NEGROS: Enijma, (VI) que em nossa língua quer dizer (VII)
Pássaro de Chifre (IX). O capitão dos nossos índios o
47 abateu com uma flexa e jantamos bem.

Trabalha, trabalha, trabalha irmão – No dia 6 continuamos em vão a caça dos negros.
que o branco vai nos defender,
contra o branco que nos que perder, – No dia 7 topamos com um monte chamado Taipou. (X)
mas armas não é preciso não
por isso chega de comprar, – No dia 8 topamos com o rio Segou. (XI)
agora vamos só vender,
os preços temos de aumentar – No dia 9 topamos com dois montes alcantilados aos
o branco vai nos entender. quais se dá o nome de Grasqua e continuamos a
procura dos negros.
COMERCIANTES:
– No dia 10 topamos com os rios Parangabo,
48 Parungabo e Paraíba.

Nós os brancos comerciantes, – No dia 11 topamos com o monte Itabaúma.


nos guiamos pela bíblia
o livro santo prevê este caso – No dia 12 topamos com os negros (PAUSA). Cada
no Evangelho de Ezequiel: negro!
– Com a rebeldia não há concórdia.
Punir com firmeza é uma forma 51
GANGA ZONA – Aruanda é bem mais longe, irmão.
Caminhamos toda a madrugada e no dia 13 estávamos NEGRO – Palmar é Aruanda, meu ganga, terra de negro
de volta ao nosso povoado. Derrotadas. livre, terra de Zambi, nossum reis.
GANGA ZONA – Palmar que se conta é aqui por perto?!
CACOS OFICIALIZADOS NEGRO – Pois bem ali pelos adentro...
GANGA ZONA – Ganhando a mata se tem esperança
I – Oh captain, my Captain de chegar no quilombo?
II – J’adore les tropiques NEGRO – Nos postos avançado, menos de dia se
III – Foi lá que se deu o crime da mala? chega.
IV – Pour nous les français, c’est Saint Michel GANGA ZONA – Como é que tu sabe tanto?
V – Q’est que c’est bundéus? NEGRO – Sou homem de Palmar... Zambi tem miles de
– Eu disse mundéus, com M de... nóis espalhado. Nossa honra é trabalhar pelas
– Mon Dieu! grandezas dos quilombo. Zambi já soube da vinda de
VI – Quer parar? (Afrescalha de vez porque todos falam seu neto e mandou que lhe servisse eu de guia até a
e não prestam atenção: bicha mesmo). estrada de Palmar... vontade de Zambi será feita mesmo
– Continuez s’il vous plait! que Ganga Zona não quizé.
VII – Não sei se deva. GANGA ZONA – Olorum didê, meu irmão. Tô as tuas
– Deva! Deva! ordem guerreiro valente.
IX – Comme Le diable: au oiseau avec Le corne! NEGRO – Tô com 15 homem avisado. Segura a
X – Escreve-se Taipou, mas lê-se Taipou (em inglês). corrente, meu ganga e passando junto ao feitor garre
XI – Sou cul! ele pelo pescoço com ela, vai ser sinal. Depois é ir com
nóis.
REFRÃO Trabalha GANGA ZONA – Seja.

52 53

CANTADOR: CANTADOR:

Enquanto tais sucessos E foi num de repente


infernizam o Continente que Ganga Zona aprisionado
o navio traz ao porto por chamado de Zambi
de Zambi nobre parente. conseguiu ser libertado
Ganga Zona escravidão pela força de irmãos negros
de Gongoba separado ganhou a mata esperançado.
segue junto de sua gente E lá vai Ganga Zona
pra senzala acorrentado Guerreiro neto de Zambi
sem saber que sua Gangoba em demanda dos quilombos
traz em si filho gerado apressado a sorrir.
pelo amor que o ganga sente. Seu guia vai ao seu lado
bem contente de servir
CAPATAZ – Adiante cambada, rijo nas pernas que tem e ganga tão afamado
caminho. Vocês até que tão com sorte cambada. Vão que lhe diz do seu sentir.
pras terras de D. Fernando que é homem de bom
coração e nem sempre dá o trato que vocês merece. ORAÇÃO:
Mas comigo é bom ficar de sobreaviso. Não há escravo
ladino que me passe a perna. E de riscar estas costas Por amor andei
pretas com bacalhau, tenho até gosto. Adiante Tanto chão e mar, senhor,
cambada, vá. já nem sei.
Se o amor não é mais
NEGRO – Meu ganga, Ganga Zona, meu Ganga. bastante pra vencer,
GANGA ZONA – Fala baixo, ninguém precisa saber que eu já sei o que vou fazer:
acorrentaram um Ganga. meu senhor uma oração
NEGRO – Essas terra são de tal lonjura que de lá vou cantar pra ver se vai valer
ninguém consegue sair, meu ganga. E essa bondade de Laia, ladaia, sabatana, ave Maria.
D. Fernando é mentirosa. Se atenção é escapar, só se
for a caminho. 54
GANGA ZONA – Ta pensando nos impossível irmão.
Não se conhece o terreno e os mosqueteiro que segue FESTA
nós são de número e bem armado.
NEGRO – Eles não esperam a fuga por hora. Melhor (AO TERMINAR A REZA ENTRA FLAUTIM COM
morrer de bala que enfrentar cativeiro de D. Fernando. MÚSICA SEISCENTISTA; SOBRE A SUAVIDADE DA
Conheço esse ofício, há 3 anos que vivo por esse MÚSICA ENTRA FIRME CANTADOR)
mundo, vendido e mais vendido, um senhor mais pior
que outro... Veja meu Ganga, praquelas bandas, Serra CANTADOR:
Barriga, por ali se estende Aruanda.
Enquanto Ganga Zona rezava cativeiro, que não o infelicita, mas ao contrário, o
pra Deus nosso Senhor humaniza – a escravidão dignifica o negro! Integrando-o
festança grossa havia na sociedade na posição que lhe compete. Eis a
no palácio do governador. ameaça que pesa sobre o Brasil.

55 – E veja Excelência. Esses negros, inferiores pela


própria natureza, ameaçam construir uma sociedade
– Menina fremosa bem mais aparelhada, produtiva e forte do que a nossa.
que nos meu solhos andais: É anti-histórico.
dizei, porque mos quebrais
– Permita-me Excelência uma sugestão. Porque não
– Criei-me com meus cuidados promulgar uma lei radical que impeça o contato dos
j’agora não saberia brancos com as negras? Será a única forma de acabar
andar noutra companhia. com essa imoralidade que é a mestiçagem.

– Olha, olha, quem vem. AYRES – Um momento, um momento. Não sejamos tão
– Quem é? Quem é? radicais. Afinal de contas somos portugueses.
– Dom Ayres Bezerra.
– Belo tipo. – Nossa obrigação é a de alertar todos os vassalos de
– Lutou contra os negros o ano passado. Portugal contra o perigo da infiltração negra.
– É ele mesmo. DOM PEDRO – Disseste bem, devemos preparar uma
– Coitado. Morreram todos os seus soldados, só ele verdadeira campanha de arregimentação contra o
escapou. Era o capitão. perigo iminente. Às mulheres cabe grande parte dessa
– Dom Ayres, permita-me cumprimentar um herói. tarefa.

AYRES – Não há heroísmo que se mantenha adiante de CONQUISTA DA OPINIÃO PÚBLICA


tanta fremosura.
58
– E sois vós que o dizeis? Vós que tantas vezes
enfrentasteis a morte? 59

56 Cuidado, cuidado,
não se deixe enganar.
AYRES – U’a morte hei de morrer, O perigo negro existe
que faz mais así, que así; o negro é um perigo para a nossa tradição
Isto não posso sofrer: Você que se comove
Haverem de se perder pensando que o negro só deseja a paz
os olhos com que vos vi. é um pobre enganado
pensando assim só ajuda Satanás.
– Já vai dar em cima do Ayres.
Cuidado, cuidado,
57 protejam suas filhas
que os negros estão aí
MORDOMO – Sua Excelência, o Governador Dom não as deixe sem cuidado
Pedro de Almeida. os negros são malvados
E, seviciam-nas, escandalizam-nas
– Oh, oh, oh! (Ajoelham-se todo) (Dom Pedro tem falta E, estupram, estupram, estupram.
de ar, custa a falar, interrompe as frases no meio,
dorme, é acordado – IMPROVISO). – Deus te ouça, papai.

DOM PEDRO – O valor das armas portuguesas foi CANTADOR:


suficiente para expulsar o invasor holandês. À glória de
Portugal nada é impossível. Conquistamos terras e Numa fazenda num longe da mesma capitania
derrotamos invasores na metrópole e no além-mar. Havia escrava sofredora que apanhava e não fugia.
Nossos guerreiros tem fama que corre mundo. Pois tudo Era mulher de um ganga
isso por que? Porque queremos a liberdade. o amor que Ganga Zumba queria,
Gongoba geradora
– Exatíssimo, Excelência. de um filho rei que crescia.
Ganga Zumba foi gerado
DOM PEDRO – Há algo melhor que a liberdade? Não em noite temporal.
há. A liberdade é a glória de uma coroa, a glória dos
bem nascidos (aqui ele erra e fala primeiro recém Gongoba saia do açoite,
nascidos, o ajudante corrige). Mas pobres valores da mas para espanto geral
nossa sociedade se se admite que o negro, deu a luz um filho grande
naturalmente inferior, por vontade de Deus destinado ao sem dores e nenhum mal.
Filho de um ganga nascia (DOMINAM GONGOBA – CORO BAIXINHO “O AÇOITE
mas disto ninguém sabia, BATEU)
pois a mãe fazia segredo de tal
CLOTILDE – O senhor vê, Padre, e eu tenho um
Ganga Zumba já crescido coração tão fraco, que apesar das ofensas ainda sinto
Só era chamado Antão pena.
era rei desconhecido PADRE – A bondade excessiva é um pecadilho, senhora
e de ser príncipe sabia não dona Clotilde. Afinal, uma reprimenda de vez em quando
esses escravos merecem.
Foi então num belo dia CLOTILDE – E estão cada vez piores. Antigamente
que Gongoba resolveu dava gosto de ver: cada negro robusto, grande, forte,
dizer ao espanto que ouvia com os peitos nus, os braços rijos... As negras a gente
da realeza sua razão. já comprava com cria na barriga e era um atrás do
outro. E como trabalhavam.
Contou a Antão espantado PADRE – Havia maior piedade cristã nos negócios D.
como nasceu num porão, Clotilde.
filho de Ganga afamado,
Ganga Zona seu patrão. – Vai me desculpá, mas a escrava de nome Gongoba
acaba de falecer.
Fez-se silencia gelado
durante toda a narração. CORO

GONGOBA – Assim foi, tu é filho de Ganga Zona, O açoite bateu, o açoite bateu
Zirimão dos reis cabaça de Aluda. Tu é Ganga também, bateu tantas vezes que o açoite matou.
filho. Num é aqui teu posto, já ta grandinho, meu ganga,
e deve ir pra Palmar. Lá procura Zambi e aprende as CLOTILDE – Não é do preço que eu me queixo...
arte das guerra e um dia todo esse povo tu vai governar, PADRE – O diabo é que essa negra morreu sem a
filho meu. extrema unção... Isso é que foi o diabo... Esse maldito
desse feitor podia ter me avisado... eu ia correndo lá
– Ganga Zumba tá cum nóis, Ganga Zumba, bisneto de embaixo e pelo menos a extrema unção...
Zambi. CLOTILDE – Sabe padre, meu coração é tão mole... Eu
sinto até uma pitadinha de remorsos...
TODOS – Dunga tará. Dunga tará sinherê. PADRE – Remorsos, senhora dona Clotilde? Remorsos
não se há de tê-los por muito zelo para com aqueles
– Gamga Zumba nasceu. que de nós dependem. Para a salvação das almas mais
aproveita o castigo em sendo mais que em sendo
– É príncipe. Bisneto de Zambi. menos. Em sendo mais, melhor pra eles que mais
facilmente ganham o reino dos céus.
– Já se foi moleque então. É Ganga Zumba que CLOTILDE – Mas morrer assim, sem religião...
cresceu. PADRE – Pode ficar tranqüila. Vou correndo dizer ao
bispo que a culpa foi toda daquele malvado do feitor. O
60 bispo é compreensivo...
CLOTILDE – E me faça um favor. Passando pelo
– Sinherê, meu pai. (TRECHO DE GANGA ZUMBA, mercado, dê uma olhada e veja se tem lá uma negra
ENTRADA DA SINHÁ). boa, de muitos que fazeres para o serviço da casa.
PADRE – Pois não, senhora dona. Eu mesmo careço de
CLOTILDE – Veja isso, feitor. A que se deve tanta uma que seja de serventia na casa paroquial.
malcriação e gritalhada.
FEITOR – Que foi, negrada? Que aconteceu pra tanta (CORO AUMENTA “O AÇOITE BATEU”)
mexida?
62
(CORO SURDO COM REFRÃO DE GANGA ZUMBA).
– E Ganga Zumba lá vai pela estrada...
CLOTILDE – Estão querendo castigo? Pois vão ter. É – Ganga Zumba olá! Vai alegre de peito estufado...
essa negra que não me dá sossego. Açoita essa negra – Psiu, num incomoda ele, é futuro Rei...
descarada. Açoita até o amanhecer. – Ganga Zumba tá sorrindo...
– Pensando em que?
– Proteja a mãe de ganga. – Sei lá, pode sê bem em Aruanda, pelo jeito tão
esperançado...
61 – É coisa nenhuma, é em Palmares, tão só
– Ganga Zumba, cuidado, cuidado...
GONGOBA – Peste de marafa. Mata eu que missão – O que é?
minha já cumpri.
GANGA ZUMBA – Êi, cafunge da minha esperança,
cresce logo fio, que a gente precisa e braço. Qual o que,
deixa está, que quando tu fô tão grande que possa ASSINARAM A PAZ
entendê as coisa, elas vão sê diferente dessa de hoje...
Assinaram a paz
Upa negrinho, na estrada será bom, será mau
Upa pra lá e pra cá só se sabe com certeza
Virge, que coisa mais linda que ninguém mais morrerá.
Upa, neguinho começando a andá
Começando andá, começando andá Chega de guerra e espanto,
E já começa apanhar vamos todos trabalhar,
Há muito o que fazer
63 Toca toca a comerciar.

Cresce negrinho, me abraça Viva o nosso governador


Cresce me ensina a cantá Pedro de Almeida meu bom senhor
Eu vim de tanta desgraça Salve Zambi da floresta
mas muito te posso ensiná que é bom negociador.
Capoeira, posso ensiná
Ziquizira, posso tirá Assinaram a paz
Valentia eu posso emprestá será bom, será mau
Mas liberdade, só posso esperá ninguém sabe o que será.

64 REALISMO POLÍTICO

MAGNANIMIDADE DO GOVERNO (RUFO, FLAUTA E VIOLÃO AGRESSIVOS


PRENUNCIANDO CANÇAÕ DE GUERRA)
(RUFAR DE CAIXA E FLAUTIM; DOM PEDRO DE
ALMEIDA ESTÁ NO CENTRO RECEBENDO ARAUTO – Em nome de sua Alteza real que Deus
INFORMES) Guarde e da Coroa Portuguesa, faço saber a todos os
moradores desta capitania que hoje, dia 1º de julho de
65 1788, hei por bem destruir a Dom Pedro de Almeida do
seu cargo de Governador, para o qual nomeio Dom
– Senhor meu, numa emboscada dos negros, nas Ayres de Souza de Castro, dono e senhor de atos
proximidades de Andalaquituxe, foram mortos 137 enérgicos e resolução.
brancos.
66
– Meu senhor, suplico a Vossa Magnanimidade, toda a
companhia sob o meu comando foi dizimada em luta CORO MEDROSO:
com os negros as margens do rio Segou.
Passaram Dom Pedro pra traz,
– Excelência, comunicamos que a cidade de Penedo de passaram Dom Pedro pra traz,
São Francisco está disposta a colaborar no combate será bom, será mal,
aos negros enviando ao Tesouro da Capitania a ninguém sabe o que será.
importância de 200$000.
ARAUTO – Sua Excelência, o novo Governador, Dom
– Senhor meu, cumpre-nos comunicar que notícias Ayres de Souza de Castro.
oficiais dão conta de que até hoje, em toda a capitania, – DOM AYRES – Senhores, da discussão nasce a
morreram em luta contra os quilombos dos sabedoria. Opiniões diversas devem ser proclamadas,
Palmares, ........ 27.638 soldados brancos. defendidas, protestadas. O dever do Governador dessa
Capitania é a todos ouvir, porém devem agir
– Mais de uma centenas de mulheres brancas foram exclusivamente segundo lhe ordena sua própria
raptadas... consciência individual. Sejamos magnânimos na
discussão, mas duros na ação. Plurais na opinião,
– Muitas foram engravidadas. singulares na obediência de minha ordem.
Descontentes haverá, e sempre. Um governo enérgico
DOM PEDRO – Eu Dom Pedro de Almeida, Governador toma medidas impopulares de proteção à coroa, não
desta capitania, pesando as circunstâncias e imbuído do aos insatisfeitos.
melhor espírito cristão, ao rei Zambi ofereço a paz, Meu governo será impopular, e assim, há de vencer,
terras para sua vivenda, comércio com o seu trabalho e passo a passo dentro da lei que eu mesmo hei de fazer.
mais suas mulheres e filhos em nosso poder. Qual a Senhores, vós guerreais como quem faz política. Eu
vossa resposta, embaixador de Palmares? farei política como quem guerreia. Vossas entradas são
NEGRO – Nosso unreis Zambi, pesando as circuntança derrotadas pela pluralidade de opiniões e partidos de
e nas benção de Olorum aceita a paz. Pode os morador pensamento. Minhas entradas serão vitoriosas pela
se dar por seguro, as fazenda por aumentada e os unicidade do ataque. A independência é necessária na
caminho por desempedido. teoria, na prática vigora a inter-dependência. Não é
aqui, neste Brasil, que as decisões políticas devem ser
tomadas: é na Metrópole, nossa Mãe Pátria, a quem
devemos lealdade, a quem devemos servir como CANTADOR 2:
vassalos fiéis. Nossos bravos soldados valentemente
lutaram contra o estrangeiro holandês. Nossos heróis No Palmares reinava a paz,
formavam um belo exército: já não necessitamos de e o trabalho era alegrado
exército. Necessitamos de uma força repressiva, por Ganga Zumba contente,
policial. Unamo-nos todos a serviço do rei de fora, tipo do Ganga humorado.
contra o inimigo e dentro. na cidade porém havia
um plano bem preparado
CANTADOR: de acabar com a alegria
desse negro desavisado.
Enquanto tudo muda
no mundo dos branco, CORO:
Ganga Zumba é aclamado
Em Palmares recém chegado. O nono Governador,
cheio de austeridade
67 fez nova proclamação
para a gente da cidade...
– Ganga Zumba!
– Assinaram a paz! 69

(CORO CANTA “VENHA SER FELIZ” QUE SE (RUFLOS E FLAUTIM)


INTERCALA COM CORO DOS BRANCOS)
DOM AYRES – Faço saber aos que esta carta patente
Venha, venha ser feliz, ai venha, virem que convém nomear um Capitão-Mor de Campo
largue o seu senhor e venha para, com gente armada, andar em seguimento aos
venha que o amor só nasce aqui. negros fugidos e levantados. E como convém que a
Venha que essa terra é nossa pessoa que houver de ocupar e resolução para – nas
e o trabalho é bom, sinherê! ocasiões que se oferecerem – prender, torturar, castigar
e matar estes negros fugidos e levantados. Todas estas
Tenha paz no coração, sorria enfim qualidades estão presentes em Fernão Carrilho,
Venha que esta terra é santa e melhor não há, sinherê! morador em São Miguel – que bem serviu sempre à Sua
Aruanda pode ser a paz, mas não é pra já Alteza, que Deus Guarde, já tendo aprisionado mais de
Paz na terra é um nunca se acabar cem escravos e morto trinta e sete entre machos,
do amor que a gente quer, ai venha fêmeas e crias menores de dez anos. Portanto, agora o
Vem meu bom irmão, vem ser feliz elejo e nomeio Capitão-Mor para que, com a gente que
Ganga Zumba é moço Ganga, é menino rei, Sinherê. lhe parecer, corra os lugares por onde houver notícia
andam os negros e os prenderá, e quando se lhes
CANTADOR: resistam poderá matá-los livremente, conforme dispõe
as leis.
É justo neste instante, instante de espanto e emoção ESCRIVÃO – E não diz mais a dita patente a qual eu,
que paramos nossa estória prá aliviar atenção Pero Bezerra escrivão da Câmara, bem e fielmente
Temos nós nosso direito de dar descanso à falação tresladei.
Tome café no barzinho que depois vem continuação.
Até já meu senhorzinho, se não gostou peço perdão, CORO:
Até já irmão, até já irmão.
70
FIM DO PRIMEIRO ATO
Nomearam um Capitão
Será bom, será mau
SEGUNDO ATO Ninguém sabe o que fazer.
(RITMO, ATABAQUE)
De onde é, que fará.
68 e sei lá, não é bom
já não sei o que pensar...
CANTADOR 1:
Ca pra mim eu bem sei
E chega pois o momento é mais sangue a derramar,
Por você tão esperado vai a guerra começar.
de ter prosseguimento CARRILHO – Capistrano! Reúne os quatrocentos
a estória em bom contato homens que Dom Ayres prometeu!
De Zumbi dos Palmares, CAPISTRANO – Senhor não!
E do branco alvoroçado CARRILHO – Como não?
Contra o quilombo negro CAPISTRANO – É impossível D. Carrilho.
em grande guerra devotado CARRILHO – Por que?
CAPISTRANO – Porque não existem. Temos só 185... NEGRO – Ganga Zumba, meu ganga... Perdoa irmão,
CARRILHO – E o resto onde está? os home do odiento, do tal do Capitão.
CAPISTRANO – Pois é meu Capitão... São os homens GANGA ZUMBA – Tão avançado?
de Serinhaem que não vieram... NEGRO – Tão nada. Foram pro lado de Serinhaem. Não
CARRILHO – E não vieram porque? deixaram nem todo pra contá a história... Cabaram com
CAPISTRANO – A cidade se recusa a mandar... tudo...
CARRILHO – Ah, é!? E os quatrocentos fuzis? GANGA ZUMBA – Como é que é? Branco contra
CAPISTRANO – Só cento e oitenta e cinco, senhor. branco?
CARRILHO – O resto Serinhaem... NEGRO – Sei lá. Deve ter sido por causa dos fuzil.
CAPISTRANO – Pois é, meu Capitão, se recusa a GANGA ZUMBA – Deve ser...
mandar. NEGRO – Tem mais. Pegaram Ganga Zona.
CARRILHO – Sei!
CAPISTRANO – Além disso, meu Capitão, há notícia (CORTE RÁPIDO DE LUZ)
que estão faltando. E o próprio Ganga Zona está lá
acertando o preço. 73
CARRILHO – Estupendo! Reúne a tropa que resta.
CAPISTRANO – Senhor sim, meu Capitão! CORO – Pega o nêgo
Companhia, sentido! Capitão-Mor D. Fernão Carrilho! Caça o nêgo
CARRILHO – Soldados! O número não dá nem tira o Mata o negro (4 vezes)
ânimo aos valorosos. Posto que a multidão dos inimigos
é grande, é também multidão de escravos e covardes, a NEGRO – Mataram Ganga Zona, meu Ganga.
quem a natureza criou mais para obedecer do que para GANGA ZUMBA – Já contou a Zambi.
resistir. Nossos inimigos vão pelejar como fugidos, nós NEGRO – Já.
os vamos buscar como senhores. Nenhum dos meus GANGA ZUMBA – Qual as ordens?
soldados defende o alheio, mas todos pelejam pelo NEGRO – Nenhuma meu Ganga.
próprio. Para o meu trabalho não quero outro prêmio GANGA ZUMBA – Num mandou vingança?
além do bom sucesso. Meu intento é buscar maior NEGRO – Até agora não. Melhor que meu Ganga fale
poder, pois quero acabar ou vencer. com nossum reis.
SOLDADOS – Abaixo Palmares! Morte aos negros! DANDARA – Zambi ta velho, meu Ganga. Só tu vai
CARRILHO – Dom Ayres, meu Governador, estamos podê dar as ordem.
prontos para a luta. Palmares será destruído! GANGA ZUMBA – Cala Dandara. Não fala assim de
DOM AYRES – A derrota de Palmares está próxima. No nossum reis. Nossum reis sabe o que fazê.
entanto, a primeira etapa desta luta definitiva para a DANDARA – Só tu vai podê lutá.
moralização da Capitania será dirigida contra a traição. GANGA ZUMBA – Si cala, já falei. Num si importa.
Nossa primeira campanha será contra a traidora cidade Morte de Ganga Zona vai tê vingança.
de Serinhaem! DANDARA – Vai falá com Zambi.
GANGA ZUMBA – E foi na hora que nóis estava mais
71 calado, no melhor viver da vida correndo. Pra nóis não
tem descanso.
CORO:
CORO – O açoite bateu
Branco contra branco o açoite bateu
o que há, o que é, como é? Bateu tantas vezes
Assaltar Serinhaem, que matou meu pai.
no é bom, isso é mau
por que é? Ai, sol que já ta pra nasce
Nada de novo vai dá
Que pretende D. Fernão, Meu sonho de vida acabou
será bom, será mau, Nem teu amor vai me valer.
ninguém sabe o que será!
REFRÃO – O açoite bateu...
DANDARA – Ganga Zumba! Não, não quero sei mais assim
GANGA ZUMBA – Oi! Viver tão dentro de mim
DANDARA – Vem vê só o peixe que apanhei... Vou, vou procurar um amor
GANGA ZUMBA – Maior que o meu não é... Feito de gente sem fim.
DANDARA – Maior sim, meu Ganga... Eu quero só viver assim.
GANGA ZUMBA – Vem deixa de pescaria. Vem prá cá
junto do seu ganga! Vontade de existir
DANDARA – Tô aqui... Ter modo de saber
o que a gente não tem
72 pra ser gente também.

(CANÇÃO DE AMOR SEM LETRA) CORO – O açoite bateu


o açoite bateu
bateu tantas vezes
que a gente cansou. Quem esquece a própria vontade,
quem aceita não ter seu desejo
74 é tido por todos um sábio.

Tanto cansou, entendeu É isso que eu sempre vejo


Que lutar afinal e é isso que eu digo Não!
É um modo de crer
É um modo de ter Eu sei que é preciso vencer
Razão de ser. Eu sei que é preciso brigar
Eu sei que é preciso morrer
CORO – O açoite bateu Eu sei que é preciso matar.
o açoite ensinou
bateu tantas vezes CORO:
que a gente cansou.
É um tempo de guerra, é um tempo sem sol.
75 Sem sol, sem sol, sem dó.

ZAMBI – Ei é Ganga Zumba, filho de Ganga que ZAMBI – Eu vivi nas cidades no tempo das desordem.
morreu. Com a morte de Ganga Zona tu é que nesse Eu vivi no meio da minha gente no tempo da revolta.
trono vai ser o próximo senhor. Tu e só tu, com tua força Assim passei os tempo que me deram pra vivê. Eu me
e tua coragem... Zambié veinho, veinho. De Zambi ta levantei com a minha gente, comi minha comida no
sobrando fama só, meu Ganga menino... meio da batalha. Amei, sem ter cuidado... Olhei tudo que
GANGA ZUMBA – Espero as ordens meu reis. via, sem tempo de bem ver... Assim passei os tempos
ZAMBI – Menino Zumba precisa subi nesse trono. Pra que me deram ora viver. A voz da minha gente se
isso carece reis velho cufá primeiro. Pra governá teu levantou e minha voz junto com a dela. Minha voz não
povo, menino, presta atenção nos de mais idade; pode muito mas gritá eu bem gritei. Tenho certeza que
mesmo as ânsia dos moço precisa sê ouvida. Escuta os donos dessas terra e Sesmaria ficaria mais contente
bem, presta deixá quizila esfriá não! Branco que tome se não ouvisse a minha voz... Assim passei os tempo
ferro nas tripa! Eles tem muito pra ensiná. Ensinaru pra que me deram pra viver.
num si falá com caridade pra inimigo nenhum; ensinaru
matá; matá mulhé, matá filho, tomá casa, terra, ouro... CORO:
Pega todo esse ensinado e faz dele um mote de
gunverno... Aqueles sacana, filho, tem seu gunverno, É um tempo de guerra, etc...
gunverno de safadage, mas tem seu gunverno! Chama
as criança dos Quilombo, todas elas. Das de peito às E você que me prossegue
maior de já entendimento. e vai ser feliz a terra,
lembre bem do nosso tempo,
76 deste tempo que é de guerra.

Eu vivo num tempo de guerra É um tempo...


Eu vivo num tempo sem sol
Só quem não sabe das coisas Veja bem que preparando
É um homem capaz de rir. c caminho da amizade.
Ai triste tempo presente Não podemos ser amigos
em que falar de amor e flor Ao mal vamos dar maldade
é esquecer que tanta gente
ta sofrendo de dor. É um tempo...

Todo mundo me diz Se você chegar a ver


que devo cume e bebê essa terra da amizade,
mas como é que eu posso comer onde o homem ajuda o homem,
mas como é que eu posso beber pense em nós só com bondade.
se eu sei que estou tirando
o que vou comer e beber É um tempo...
de um irmão que está com fome
de um irmão que está com sede 77
de um irmão.
ZAMBI – Essa terra eu não vou ver... (PAUSA LONGA)
Mas mesmo assim eu como e bebo. Ganga Zumba, segue os conselho do rei... Olorum Didê.
Mas mesmo assim, essa é a verdade.
(SACA DE UM PUNHAL E SE FERE; LENTAMENTE
Dizem crenças antigas CAI ENQUANTO A LUZ SAI EM RESISTÊNCIA;
que viver não é lutar. FLAURA DOCE; TODOS CANTAM A “MORTE DE
Que sábio é o que consegue ZAMBI”)
ao mal com o bem pagar.
Zambi meu pai, Zambi meu rei, (ENTRA DOMINGOS JORGE VELHO DESENVOLTO)
Última prece que rezou
Foi da beleza de viver, DOMINGOS – Salve, Governador... Ah, Eminência, há
Olorum didê. quanto tempo! Assim é que eu gosto, Estado e Igreja em
Longe, num tão longe além do mar perfeita harmonia! Só faltava o exército, heim?... Ha, ha,
Meu rei guerreiro diz adeus a quem vai ficar ha!
DOM AYRES – Fique a vontade, Capitão. Muito grato
78 em saber que tão prontamente atendeu ao meu
chamado. Gostaríamos de conhecer os planos da
Diz pra sua gente não desesperar campanha.
Zambi morreu, se foi, mas vai voltar DOMINGOS – Para os meus homens, quero os quintos
das presas – quero dizer vinte por cento, justo? – e
79 mais, sesmarias nas terras dos Palmares e quero oito
mil réis para cada negro que fugido de meus homens
em cada negrinho que chorar. volte com suas pernas aos seus senhores, e quero
poder prender qualquer morador da Capitania que
80 socorra os negros, seja pessoa de qualquer qualidade, e
quero que V. Excia. perdoe os crimes que os paulistas
81 que me seguem tenham porventura cometido, justo?
DOM AYRES – Razoável. Mas os planos de ataque?
GANGA ZUMBA – Quilombola! Nossum Reis Zambi DOMINGOS – Acalme-se... Quero ainda que V. Excia.
morreu abrindo as picadas para nossa liberdade. Os ordene que nenhum criminoso seja preso se estiver
branco quer nós de joelho. Nós vamo ajoelhá os branco. comigo combatendo enquanto durar a campanha...
Queremo terra onde o homem ajude o homem. E é DOM AYRES (já aborrecido) – Certo. Mas os planos?
preciso acabá com os Homem que esconde essa terra. DOMINGOS – Muitos moradores, meus patrícios, estão
Chamo todo meu povo prá lute, sem fim! Ganga Zona e vindo para o norte porque em São Paulo não há mais
Zambi serão vingado! onde se plante e onde se lavre. V. Excia. me dará um
TODOS – Ganga Zumba é Zumbi! (3 vezes) paralelogramo de terra onde fundarei uma cidade com
pelourinho e igreja onde se possa celebrar missa com
(CORTE NA LUZ: ABRE EM CENA DE DOM AYRES E decência; a alguma filha minha, ou a minha viúva, V.
MORDOMO) Excia. terá de conceder seis léguas e terra.
Evidentemente, com as cláusulas costumeiras do dízimo
82 a Deus.
BISPO – Neste particular, é certo que se tem dado mais
MORDOMO – Dom Ayres, Sua Eminência o Bispo de terras do que se tem descoberto. Os homens as pedem
Pernambuco... com largueza e o Governador as dá com liberalidade. E
DOM AYRES – Que entre. assim não duvido que nos Palmares estejam dadas
mais terras do que neles há...
(SAI O MORDOMO E ENTRA O BISPO) DOM AYRES – Sim, mas os planos?
DOMINGOS – Ah, os planos?... os planos da
BISPO – Que Deus o Guarde, meu Governador! campanha?
DOM AYRES – Sua benção, meu Bispo. DOM AYRES – Sim, Capitão.
BISPO – Soube que V. Excia. elegeu o paulista DOMINGOS – Bem, os planos são: conquistar a paz...
Domingos Jorge Velho para comandar as entradas por etapas... Que acha Eminência? (O Bispo faz um
definitivas contra Palmares. gesto ambíguo). Em primeiro lugar, como advertência,
DOM AYRES – É exato, Eminência. isolamos Palmares proibindo o comércio, o trânsito, a
BISPO – Este homem é um dos maiores selvagens com simples aproximação. Evidentemente, a pena imposta
que tenho topado. Quando se avistou comigo, trouxe aos contraventores será a pena de morte. Se assim não
consigo intérprete porque nem falar sabe; nem se conseguirmos a rendição desse... desse...
diferencia do mais bárbaro tapuia mais que em dizer-se DOM AYRES – Ganga Zumba.
que é cristão. E não obstante o haver-se casado de DOMINGOS (Depois de tentar repetir os nomes em vão)
pouco, lhe assistem sete índias concubinas e daqui se – Desse negro, evoluiremos para um novo tipo de
pode inferir como procede no mais; tenho sido a sua guerra! Procuram-se os negros atingidos por doenças
vida, desde que teve uso da razão, se é que a teve, contagiosas. Febres, tísica, peste, varíola –
porque se assim foi por certo a perdeu, e creio que não construiremos grupos e os tangeremos a procura da
a encontrará com facilidade, uma série de vilanias, e liberdade em Palmares... Se ainda assim houver
ainda hoje anda pelos matos à caça de índios e de sobreviventes que insistam em não se entregar, faremos
índias, essas para o exercício de suas torpezas e uma severa advertência, queimando e exterminando as
aqueles para os granjeiros de seus interesses; e os populações dos quilombos mais próximos. Velhos,
homens que com ele vão, são piores mesmo que os mulheres, crianças, todos... e se a estupidez chegar a
negros dos Quilombos. Em resumo Excia. esse é ponto de nem assim conseguirmos a rendição, então
exatamente o homem que necessitamos. será o extermínio total. Nenhum negro fugido ficará em
MORDOMO – Capitão-Mór Domingos Jorge Velho. vida. Teremos enfim, conquistado a paz!
DOM AYRES – Que entre.
83
Morte, doença e aflição,
DOM AYRES – Senhor Capitão, por várias vezes tenho era só o que se contava.
dito que os paulistas são a melhor ou a única defesa Num quilombo mais distante,
que tem os povos do Brasil contra os inimigos do sertão. negro pregador afirmava
Por esta causa se fazem de toda a honra e mercê... ser Ganga Zumba enviado
desse Deus que o povo amava.
84
CANTADOR 3:
BISPO – Aos negros devemos acabar, pois vivem com
tal liberdade, sem lembrança da outra vida e com tal A luta de morte e decisão
sltura como se não houvesse justiça, porque a de Deus que o rei Ganga ordenava
não a temem e a da terra não lhes chega. O hábito da era determinação
liberdade faz o homem perigoso. desse Deus que assim mandava.
DOM AYRES – Capitão-Mór, Domingos Jorge Velho, é-
nos uma honra contar com vossos préstimos. Que se dê GANGA ZUMBA – Quilombolas! Tivemos tempos de paz
início imediato ao plano de campanha. e fertilidade. Chegou a hora porém de mostrar na luta o
DOMINGOS – É meu dever, Excia. Mas partir não posso que nós quer e preza. Quilombola em arma, responde
se não tiver antes as bênçãos da igreja. Que se faça ao chamado do Reis, Meu irmão Ganga de Quiloange!
algum ato de religião para que patrocine o céu a
jornada... – Na luta meu reis!
BISPO – E para que se saiba em toda a parte que Deus – Quilombo de Arotirene!
apóia os portugueses! – Na luta, meu Reis!
– De Dambrabanga!
85 – Presente meu Reis!
– Quilombola castigado da Cerca do Amaro!
(O CORO VOCALIZA O INÍCIO DO RITUAL – Na luta, meu Reis!
LITÚRGICO EM HONRA DA PRIMEIRA INVESTIDA DE – Mocambo de Ataboca!
DOMINGOS JORGE VELHO CONTRA PALMARES) – Na luta, meu Reis!

CORO: Precisaru chamá gente de longe prá acabá com nós.


Veio um Capitão de experiência e corage, escolado na
Creio na vitória do bem maldade e sem nenhum ressentimento. Faz mal não! A
Que há de vencer a mldade. gente mostra que pode enfrentá os daqui e os de lá!
Creio na vitória do bem
Quando é em nome da verdade. CORO DO CULTO:
Verdade é acabar com o negro.
Açoitar o atrevimento A pureza da vitória
de contra Deus se insurgir. Será bem vinda afinal
Somos de Deus instrumento. Quando o sangue derramado
Desses demônios do mal
Pois a terra que floresce Haja a todos liquidado.
contra a lei contra a razão,
não tem bom florescimento 86
a não ser na nossa mão.
SOLDADO 1 – Euzébio, tem água aí?
Se creio em Deus, creio no açoite SOLDADO 2 – Para aí, não vamo desperdiçá.
pois castigar é ajudar. SOLDADO 3 – Trabalho de bosta! Quando me falaram
Creio que só castigado pra ser mosqueteiro, só disseram das beleza, não
o negro ao céu vai chegar. falaram nisso não.
SOLDADO 2 – Agüenta a mão e caminha...
CANTADOR 1: SOLDADO 1 – Essa negrada ai ta toda empestiada.
Isso pega!
E a sorte foi lançada, SOLDADO 2 – É só não chegá perto. Daqui a pouco os
o massacre ordenado. bexiguento vão sumi por esses aquilombo...
Ganga Zumba procurava SOLDADO 1 – Cada bexiga feia!... Pior é o fedor...
ter seu povo animado.
Mil e uma emboscada, 87
Escaramuça se travava.
Ganga Zumba com bravura CORO DO CULTO:
pessoalmente comandava.
Na guerra não damos quartel,
CANTADOR 2: não nos comove a crueldade,
ao mostrarmos o punhal,
Ódio tomou conta das mata. a Deus mostramos bondade.
Só grito e dor lá se encontrava.
CORO DOS NEGROS: – Irmão de Andalaquixute!
– Um homem presente, meu reis!
Ganga Zumba é Zumbi – Mocambo de Ataboca!
– ACORDE.
GANGA ZUMBA – Reforça as paliçada, cerca o
quilombo capital, cava os fosso e enche do que houve GANGA ZUMBA – Não responderu! Quisera ta nesse
de mais venenoso. Veneno nas lança e nas flexa. Que encontro em Aruanda. Mas me discurpe que ainda tem
as mulhé pegue as planta e que precisá. muito que fazê aqui. Aos que fica peguem nas arma e
NEGRO – Meu reis, meu reis! Tão soltando um magote agüente o cerco no centro até que chegue o grosso das
de negro empestiado nos quilombo das fronteira! Tem tropa deles. É ordem de Zumbi! Zumbi dos Palmar!
bexiguento de acabá com uma nação!
GANGA ZUMBA – Pega uns home decidido e manda 88
tudo de volta pros branco. Que se faça sacrifício pela
saúde de nós! CORO: Pega o negro
DOMINGOS – Comigo é no rápido. Domingos Jorge caça o negro
Velho nunca foi de amamentar campanha. Cadê a mata o negro
indiada? mata o negro
SOLDADO BRANCO – Trezentos índios dispostos, meu mata o negro
Capitão! mata o negro
DOMINGOS – Que é que eles querem?
SOLDADO BRANCO – Só fumo e cachaça. Com boa TODOS – Ta perdido, Ganga Zumba. Se entrega pro
porção eles vão até o inferno. cativeiro que é teu lugar!
DOMINGOS – Perfeito. Boa gente essa. Carrega na
maconha que são esses que vão morrer primeiro. 89
Ataque final: Cerco de Quiloange, seguindo os índios,
pões os criminosos, depois vamos nós, à cavalo. Em GANGA ZUMBA – Quantos semos? QUANTOS
seguida, na retaguarda: padre, boticário e os SEMOS?
tesoureiros. Vai ter muito trabalho para os tesoureiros.
No fim vão os comerciantes, para que possam (INÍCIO DO TEMA DO “VENHA SER FELIZ” NO
comerciar em paz. Entendido? VIOLÃO)
SOLDADO – Entendido, meu Capitão.
DOMINGOS – Alguma notícia das primeiras entradas? GANGA ZUMBA – Eu vivi nas cidades no tempo da
SOLDADO – Vitória completa, meu Capitão! desordem. Vivi no meio da gente minha no tempo da
DOMINGOS – Bom! revolta. Assim passei os tempo que me deru prá vivê.
Eu me levantei com a minha gente, comi minha comida
GANGA ZUMBA TUI TUI no meio das batalha. Amei sem tê cuidado... olhei tudo
que via sem tempo de bem ver... por querer liberdade. A
CORO DO CULTO: voz de minha gente se levantou. Por querer liberdade. E
minha voz junto com a dela. Minha voz não pode muito,
A guerra é uma ciência mas gritá eu bem gritei. Tenho certeza que os dono
onde não existe o bem nem o mal dessas terra e sesmaria ficaria mais contente se não
Frieza, força e inteligência ouvisse a minha voz... Assim passei o tempo que me
conquistaram a vitória final. deru prá vivê. Por querer liberdade.

TEMA DOS NEGROS: 90

Ganga Zumba é Zumbi (três vezes) TODOS – Por querer Liberdade!


GANGA ZUMBA (Gritando) – Tanto cansou...
GANGA ZUMBA – Quilombolas! Tudo estão fazendo prá
acabá com nóis e nóis resiste. Nossa esperança é lutá. TODOS – Entendeu que lutar afinal
Lutá sem descanso até não podê mais. Tão usando de é um modo de crer
tudo. Até mesmo a doença de nossa gente tão usando é um modo de ter
contra nóis. Mas nós resiste. É o que fica pra negro razão de ser.
escravizado. Quilombo em luta, faço chamada de apelo!
Meu irmão Ganga de Quiloange! O açoite bateu, o açoite ensinou
bateu tantas vezes que a gente cansou!!!
– SILÊNCIO.
– Irmão Ganga de Quiloange! ATOR – E assim, termina a estória que bem e fielmente
– ACORDE; tresladamos. Boa noite!
– Quilombo de Arotirene.
– ACORDE; FIM
– De Dambrabanga!
– ACORDE;
– Quilombola valente da Cerca do Amaro!
– ACORDE.

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