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A flauta e a lira

Carlos A. Martins de Jesus

A Flauta e a Lira
Estudos sobre Poesia Grega e Papirologia

Prefácio de
José Ribeiro Ferreira

Colecção
Fluir Perene - nº 3

3
Autor: Carlos A. Martins de Jesus
Título: A Flauta e a Lira. Estudos sobre poesia grega e papirologia
Editor: José Ribeiro Ferreira
Edição: 1ª / 2008
Design Gráfico: Fluir Perene
Ilustração da capa: Papiro de Oxirrinco 69. 4708
Tiragem: 100 exemplares

Obra produzida no âmbito das actividades da


UI&D Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos

Impressão:
Simões & Linhares, Lda.
Av. Fernando Namora, n.º 83 - Loja 4
3000 Coimbra

ISBN: 978-989-95751-3-4
Depósito Legal: 276772/08
A flauta e a lira

Índice

In limine 7

Prefácio: Géneros e Formas Poéticas na Época Arcaica,


por José Ribeiro Ferreira 9

Grécia e Egipto: dois afluentes de um mesmo rio poético 17

A tradição iâmbica 31
Dois alvos da invectiva iâmbica 33
Devassidão em prados de flores. O fr. 196a W. atribuído a
Arquíloco 47
As flechas da calúnia: Estêvão Rodrigues de Castro e a recepção
de Arquíloco no Renascimento 57

Baquílides de Ceos 69
Fama, a que tudo vê e tudo conta. Epinício 2 71
O Galo de Urânia. Epinício 4 75
Flores de canções doces como o mel. Fragmento 4 M 81

Novidades papirológicas 87
Poetas gregos nas areias do Egipto: algumas relíquias
papirológicas trazidas a público 89
Quando os Gregos sofreram terrível derrota.
O novo P. Oxy. 69. 4708 atribuído a Arquíloco 93
Musas de regaço violeta. Um novo texto de Safo 115
Narciso, o belo suicida. (Re)Leituras do mito a partir
de um novo papiro 119

Referências Bibliográficas 129


Apêndice Iconográfico 139

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A flauta e a lira

In Limine

O presente volume reúne um conjunto de onze ensaios so-


bre diferentes temas e autores da poesia grega, de Arquíloco (séc. VII
a.C.) a Parténio de Niceia (séc. I a.C.), passando por Baquílides e Safo,
entre outros, a todo o momento referidos. Além do primeiro texto e
dos referentes a Baquílides, inéditos à data, os restantes foram reco-
lhidos de publicações avulsas em revistas da especialidade. Eles são o
resultado de quatro anos de reflexões sobre poesia grega e papirolo-
gia. Houve necessidade de os aligeirar, despojando-os de citações em
grego e análises críticas mais complexas, úteis apenas a especialistas,
no intento de os tornar acessíveis a um público mais vasto, interessa-
do pelos temas da poesia grega.
O primeiro ensaio põe a par textos dos poetas gregos da época
arcaica com a lírica egípcia conservada, demonstrando como ambas
as culturas sentiram o amor, a vida e a morte de forma bastante simi-
lar. Segue-se um conjunto de três estudos sobre o iambo grego, em
especial dedicados a Arquíloco de Paros, mas também, por analogia
temática, a Hipónax de Éfeso (séc. VI a.C.). Apreciados lado a lado os
fragmentos de ambos os poetas, na intenção satírica e invectiva que
os une, no primeiro ensaio, parte-se para a tradução e análise literária
de um dos mais valiosos achados papirológicos do séc. XX – no que à
poesia grega diz respeito –, o conhecido Papiro de Colónia atribuído a
Arquíloco, que constitui o mais extenso exemplo de invectiva iâmbica
que conservamos, o mais acutilante e erótico poema desse género,
aceite que seja a sua atribuição. No estudo seguinte, procurámos re-
flectir sobre a fortuna da lenda de Arquíloco e dos Licâmbidas, para
chegar ao Renascimento e ver como, ainda nesse período, ela inspi-
rou, poetica e pictoricamente, diversos autores apostados no cultivo

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Carlos A. Martins de Jesus

da sátira, com destaque para Estêvão Rodrigues de Castro, médico e


poeta dos séculos XVI e XVII.
Avançamos para a poesia epinícia, tratando de três pequenos
textos conservados de Baquílides de Ceos (sécs. VI-V a.C.), de quem
a tradição diz ter sido sobrinho do grande poeta Simónides e um dos
rivais do famoso Píndaro de Tebas. Embora breves na sua extensão,
os poemas revelam bem a genialidade da arte alusiva e pictórica do
seu autor, uma poesia fluente e fina na metáfora e na descrição.
Num último momento, discorremos sobre as novas tecnolo-
gias de imagem aplicadas ao estudo de papiros tidos como irreme-
diavelmente perdidos, dando notícia dos principais achados, nesse
domínio, que nos últimos anos vieram a público. É nesse sentido que
nos ocupamos de mais um texto, desta feita elegíaco, atribuído a Ar-
quíloco (P. Oxy. 69. 4708), publicado apenas em 2005, bem como do
novo poema de Safo que pôde finalmente ser reconstruído. Para ter-
minar, entrecruzam-se mito e poesia, e eis que um outro achado (P.
Oxy. 69. 4711) vem trazer uma nova luz sobre a lenda do mais for-
moso dos heróis, Narciso, que Ovídio dizia ter-se deixado morrer em
contemplação da própria beleza, reclinado sobre um límpido regato.
A encabeçar estes textos, o Prof. José Ribeiro Ferreira aceitou
integrar um prefácio sobre as circunstâncias formais da poesia grega
arcaica, um texto rico e elucidativo do fenómeno poético grego, útil a
especialistas, estudantes e público em geral. Por isso, muito lhe agra-
decemos.
Quando abreviados, autores e obras antigas seguem as siglas
de H. G. Liddell - R. Scott, H. Stuart Jones, A Greek-English Lexicon
(para os gregos) e de P. G. W Glare, Oxford Latin Dictionary (para os la-
tinos). As publicações periódicas vêm identificadas segundo as siglas
de L’Année Philologique.

Coimbra, Maio de 2008


Carlos A. Martins de Jesus

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A flauta e a lira

Prefácio
Géneros e Formas Poéticas na Época Arcaica

Primeira forma de transmissão da cultura, a poesia gozou de


grande dignidade entre os Gregos. Basta recordar que surge da ins-
piração das Musas e que estas são filhas de Zeus e de Mnemósine
– a Memória. Por outro lado, os autores antigos, em especial Platão,
atribuíam, por um lado, aos poetas o papel de «pais e guias da sabe-
doria» (Lísis 214a) e consideravam que ser entendido em poesia era a
parte primacial da educação do homem (Protágoras 338e).
A poesia grega arcaica vai dar origem ao aparecimento de di-
versas novas formas poéticas e musicais e novos temas. De acordo
com o aspecto formal e com a métrica podemos dividi-la em três es-
pécies: poesia lírica, poesia elegíaca, poesia iâmbica.
Os Poemas Homéricos e as obras de Hesíodo haviam sido
compostos em hexâmetros, portanto uma sucessão do mesmo metro.
A poesia elegíaca constitui a primeira tentativa de quebrar essa mo-
notonia, já que a elegia, sob o ponto de vista formal, nos aparece como
uma variante do hexâmetro, em ritmo dactílico, com a introdução do
pentâmetro, e os dois, em alternância, formam o dístico elegíaco:

— ∪∪ — ∪∪ — ∪∪ — ∪∪ — ∪∪ —— hexâmetro
— ∪∪ — ∪∪ — // — ∪∪ — ∪∪ — pentâmetro

Como o pentâmetro — uma designação imprópria — é consti-


tuído por dois hemiepes, dois meios hexâmetros, com uma pausa a meio,
tem razão W. R. Hardie 1934: 49 ao afirmar que a elegia nos aparece como
uma variante do hexâmetro dactílico1. E essa será uma das razões por que
1
Sobre a constituição do pentâmetro como dois meios hexâmetros vide B.
Snell 41982: 16.

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Carlos A. Martins de Jesus

parece ser o dístico elegíaco o metro mais antigo de composição, a seguir


à epopeia2. Um metricista francês diz com graça e acertadamente que o
pentâmetro é um hexâmetro com um suspiro no meio e outro no fim.
Os autores antigos, sobretudo tardios e gramáticos, ao usarem ou
comentarem o termo elegia e afins — cuja possível etimologia omito, por
controversa3 —, tinham sobretudo em mente aspectos formais e métricos,
como está explícito neste escólio de Dionísio Trácio (p. 173.3 = 307.29):

Portanto, há dístico elegíaco, quando temos um verso (stichos) hexâmetro e


um pentâmetro, e elegia quando todo o poema apresenta, em alternância, hexâmet-
ros e pentâmetros.

Assim elegeion significa “um dístico elegíaco”4. Por outro lado,


o plural elegeia é de frequente uso no século V a. C. em diante para re-
ferir os dísticos elegíacos. Mas há entre os gramáticos a tendência em
usar elegeion para significar “pentâmetro”. O termo elegeia (subst. fem.)
aplicava-se aos poemas constituídos por dísticos elegíacos, atestado
pela primeira vez em Aristóteles (Consituição dos Atenienses 5. 2 e 3), ao
referir-se aos poemas de Sólon.
É raro o uso da palavra elegeion para significar o tom geral,
um sentido tardio que encontramos sobretudo entre os Romanos. Por
exemplo, em Plauto (Mercador 409) um ancião lamenta-se de que os
olhares de uma rapariga atraíam atenções indesejáveis, levando os
homens a acorrerem para recitar poemas à porta:

2
Duas regras marcam o pentâmetro: uma delas reside no facto de a diérese coin-
cidir sempre com o fim da palavra; a outra no facto de as breves da 2ª parte não poderem
ser substituídas.
3
Tem-se tentado tirar do termo uma etimologia (que elegeion era “dizer ai”). Mas
note-se, contudo, que o verbo lego, de início, significava “colher”. Outra teoria — que se tem
proposto, mas não tem tido aceitação — deriva-a de forma elegen, uma palavra de origem ar-
ménia que significa “tubo” ou “cano”. Trata-se de uma etimologia tentadora, pois designaria
o instrumento musical que acompanharia a elegia. Em resumo: em matéria de etimologia de
elegia, estamos hoje na mesma posição em que se encontrava Horácio, no século I: «Grammatici
certant et adhunc sub iudice his est».
4
No mesmo sentido vai uma referência de Diodoro (9. 20. 2) que, ao citar um dístico
de um poema mais longo de Sólon, refere-se a ele como «este elegeion», e que ao conjunto de seis
linhas do fragmento apelida elegeia.

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A flauta e a lira

...................occendent ostium,
impleantur elegeorum meae fores carbonibus.

Deste modo os antigos aplicavam o neutro elegeion, no singular


e no plural, e o feminino elegeia à poesia em dísticos elegíacos. O aspecto
formal da elegia adquire assim papel fundamental na designação. Tem
razão, pois, M. L. West 1974: 4 quando escreve: «Em geral pode dizer-se
que elegeion e o seu plural são usados sem restrição para designar todos
os versos em metro elegíaco, quer seja alegre ou triste, quer uma inscri-
ção em pedra, quer uma elegia literária».
Quanto ao conteúdo, o tom lamentoso, triste, melancólico
que já aparecia entre os Romanos — «flebilis elegeia» lhe chamou
Ovídio nos Amores — e que hoje está implícito no termo elegia, não
tinha relevo entre os Gregos, embora o sentido de lamento nos apa-
reça no termo élegos, com implicações métricas ou não, já no séc. V a.
C. em seis ocorrências entre 415-408 a. C.5 e numa citação de Pausâ-
nias 10. 7. 6 relativa e Equêmbroto (586 a. C.). O emprego de elegia
e relacionados baseava-se fundamentalmente em aspectos métricos
e formais. Não esqueço, todavia, o caso do fragmento 13 West de
Arquíloco que começa por uma lamentação inicial e tem sido o pon-
to de apoio de muitos críticos para atribuírem esta característica à
elegia desde o início.
Considero que H. Fränkel 1962: 170, autor de um dos melho-
res tratados de literatura grega arcaica, define com clareza elegia: «é
seu alvo específico a exortação, ensino e reflexão. Tem o carácter de
fala pública ou semi-pública e, mesmo que se dirija a uma pessoa só,
vale para todas as que se encontrarem na mesma situação». É efecti-
vamente isto que nós encontramos de comum quer na elegia guerrei-
ra, quer na erótica, quer na gnómica.
Na elegia cabiam praticamente todos os assuntos. A temática
guerreira— o que chegou até nós de mais antigo (Calino e Tirteu) é
5
Eurípides, Tro. 119, IT. 146, Hel. 185, Hypsip. 1. 3. 9, Or. 968; Aritófanes, Aves 217.

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Carlos A. Martins de Jesus

guerreiro— parece ser da sua total exclusividade. Tem um pendor


reflexivo. Tem por função a “exortação, ensino e reflexão”.
Observa F. Rodrígez Adrados que a elegia é, por antonomásia,
a poesia da exortação e reflexão sobre os temas mais diversos: milita-
res, políticos, morais, relativos ao sentido da vida, narrativos, mesmo
dados autobiográficos. M. L. West 1974: 14-18 divide-a em guerreira,
narrativa e gnómica — divisão que, apesar de ultimamente ter sido
posta em causa, continua em minha opinião a mais adequada. Outra
forma poética e musical que cedo aparece é a iâmbica, que com a elegia
disputa a glória de mais antiga6. Acompanhada à flauta como a elegia,
este tipo de poesia apresenta, em boa parte dos poemas e fragmentos
chegados até nós, um carácter trocista fundamental.
O iambo ( ∪ — ∪ —), que de certo modo estava ligado ao culto
de Elêusis7, suscita muitas dúvidas, embora pareça seguro que, além
desse carácter trocista fundamental, o termo iambos designa ao mes-
mo tempo o género e o verso. Por outro lado, não parece haver dú-
vidas quanto ao facto de ter sido Arquíloco a dar-lhe forma literária.
A palavra aparece-nos aliás já no próprio Arquíloco num fragmento
muito curto (fr. 215 West) e cujo sentido nos escapa:

Já não me agradam nem iambos nem deleites.

Aristóteles parece corroborar esta atribuição, ao referir com


esse termo poemas de Arquíloco na Retórica 1418b, embora com o
6
Discute-se se a precedência recai em Calino ou em Arquíloco. Do cruzamento das
referências dos fragmentos 19, 20 e 122 West podemos datar o último de meados do século VII
a. C. Assim é provável que Calino seja mais antigo do que o poeta de Paros.
7
Segundo o Hino Homérico a Deméter, a deusa chegou a Elêusis em busca da filha
raptada. Aproximaram-se dela as filhas do rei e, no meio da dor, a deusa riu-se com os ditos de
uma criada chamada Iambé. Se por um lado o nome parece indicar qualquer coisa, por outro,
os ditos causam riso. Ora o riso parece ser congénito à poesia iâmbica. Durante os Mistérios de
Elêusis, a procissão que se dirigia de Atenas a Elêusis, ao passar por uma ponte, parava para
proferir os gephyrismoi que eram ditos trocistas. Deviam ter um valor apotropaico e eram uma
maneira primitiva de conciliar as divindades da fertilidade. De novo encontramos o elemento
riso associado ao culto de Elêusis. É isto o que se julga saber em relação às origens da poesia
iâmbica.

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A flauta e a lira

nome de iambo designe tanto composições em metro iâmbico (os trí-


metros) como as escritas em tretrámetros trocaicos:

Trímetro iâmbico: x — ∪ — x — ∪ — x — ∪ —
Tetrâmetro trocaico: — ∪ — x — ∪ — x — ∪ — x — ∪ — x

Além de Arquíloco, vários outros poetas usaram esta forma


poética, entre eles Sólon, Hipónax, Simónides.
Aos dois tipos de poesia referidos anteriormente, um terceiro
se lhes vem juntar, quase pela mesma época — a poesia lírica que, com
formas e ritmos variados e embora com precedentes8, só toma forma
literária nesta época, no século VII a. C. Informa-nos o escoliasta a Aris-
tófanes (Nuvens 333) que os poetas líricos cantavam os seus poemas
acompanhados de coros, flautas e lira. É pelo facto de este ser o princi-
pal instrumento utilizado que recebeu no período helenístico o nome
de poesia lírica. Anteriormente tinha outras designações: os autores da
época clássica chamavam-lhe poesia mélica (de mêlos “melodia”) e dis-
tinguem esta poesia (que tem um grande número de ritmos) da poesia
elegíaca e da iâmbica, e estas três da épica — uma distinção que vem
sobretudo de Aristóteles. Platão, nas Leis 764d-e, chama chorodia à que
é entoada por um coro e monodia à cantada a solo.
A poesia lírica apresentava formas variadas (eide, como lhe cha-
mavam os gramáticos helenísticos), umas executadas em honra dos deu-
ses e outras em honra dos homens. São dirigidos aos deuses o hino que,
segundo a definição de Platão, era um cântico aos deuses; o péan, nomea-
do já em Homero (Ilíada 1. 472-474), que começa por ser um canto dirigido

8
Por exemplo, canções populares e vários passos dos Poemas Homéricos que fazem
referência a canto, quer a solo, quer em coro — formas preliterárias de poesia não épica: Ilíada
1. 472-474, os Aqueus entoam a Apolo péanes; Ilíada 9. 186, Aquiles canta os feitos gloriosos
acompanhados à lira; Ilíada 18. 493, refere epitalâmios; Ilíada 18. 569-572, são referidos dois tipos
de cantos (um jovem canta acompanhado da cítara e outros cantam e gritam enquanto pisam o
solo a compasso); Ilíada 23, entoa-se um treno em honra de Pátroclo; Ilíada 24, trenos em honra
de Heitor; Odisseia 5. 61-62; canto a acompanhar o trabalho — quando Calipso se encontrava
ao tear.

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Carlos A. Martins de Jesus

a Apolo, mas mais tarde pode ser entoado também a outros deuses; o
ditirambo que, já mencionado em Arquíloco (fr. 120 West), se entoava em
honra de Diónisos9; partenéion, um canto executado por um coro de don-
zelas (parthenos); prosódion, canto que acompanha uma procissão.
Ao lado dos poemas em honra dos deuses, havia as formas con-
sagradas aos homens que, segundo a tradição, teriam sido introduzi-
das por Simónides: o encómio (enkómion), elogio de um cidadão ilustre10;
o epinício que celebra uma vitória desportiva nos grandes Jogos; o treno,
um canto fúnebre; a “canção de mesa” ou skólion. De todas estas formas
líricas, só dos epinícios temos número significativo de composições
completas. Do resto apenas nos chegaram praticamente fragmentos,
mais ou menos extensos. Excepção para alguns escassos exemplares,
que podem ser considerados poemas completos11.
Embora seja característica conhecida, e já subjacente nas notas
anteriores, devemos chamar a atenção para a importância da música
na poesia grega arcaica, em especial na lírica. Todas as formas eram
acompanhadas por instrumentos musicais, como a lira e a flauta, e os
géneros distinguiam-se pelo ritmo. Um passo de Álcman, o fragmento
39 Page, garante que o acompanhamento era feito pelo próprio poeta
que também era músico, compositor e intérprete ao mesmo tempo12.

José Ribeiro Ferreira

9
Não é fácil seber o que é o ditirambo. Segundo Pickard-Cambridge, tem um
ritmo especial, acompanhamento à flauta e em modo frígio, um vocabulário rebuscado e
um conteúdo narrativo apreciável.
10
Há quem sustente que todo o canto em honra dos homens se chama assim e que a
partir dele se desenvolvem os outros.
11
É o caso, entre outros, do fr. 1 L-P de Safo, dos frs. 356a e b e 357 Campbell de
Anacreonte.
12
Através dos fragmentos conservados sabemos que o péan, o ditirambo e o
partenéion eram acompanhados à flauta. A elegia e o iambo, que estão fora da lírica, eram
também acompanhados à flauta. Autores tardios dizem-nos que o hino era acompanhado
à cítara, o prosódion era acompanhado à flauta e o hiporquema à flauta e à cítara. Quanto
ao epinício era acompanhado quer por instrumentos de sopro quer de corda (lyra, kithara,
fórminx, bárbiton, kitharis). Vide Pfeiffer, History of Classical Scholariship (Oxford, 1968),
pp.282-283.

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A flauta e a lira

A Flauta e a Lira
Estudos sobre Poesia Grega
e Papirologia

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A flauta e a lira

Grécia e Egipto
dois afluentes de um mesmo rio poético1

São de facto bastante antigos os contactos civilizacionais entre


a Grécia e o Egipto, sejam eles motivados por interesses comerciais,
políticos ou simplesmente pela curiosidade artística de determinado
intelectual. Conta a tradição que Tales e Pitágoras haviam visitado o
país do Nilo, mas foram sem dúvida Hecateu e Heródoto os primeiros
a beber por essas bandas a inspiração para as suas obras de carácter
histórico e geográfico. O período arcaico (séculos VII e VI a.C.), tendo
como partida a cronologia relativa da civilização grega, terá sido
igualmente rico em contactos entre os mundos grego e egípcio. Era a
época das colonizações gregas; o exótico e o desconhecido estavam
prestes a deixar de o ser2.
A memória universal de que fala G. Genette, na sua
concepção de um arquissistema de temas e motivos poéticos
comuns que são utilizados por diferentes autores em diferentes
contextos espaciais e temporais, serve de base teórica para a
procura de paralelos, essencialmente temáticos, entre a lírica
amorosa do Egipto do Império Novo e a lírica grega da Época
Arcaica. De outro modo, as aproximações que serão feitas não
assentam no pressuposto de que determinado autor grego lera
ou sequer conhecera os textos egípcios que, ao seu tempo, teriam
já diversos séculos. Falamos de um património comum, que
1
Este texto, ainda inédito, foi apresentado no II Congresso Internacional para Jovens
Egiptólogos (Lisboa, Museu da Farmácia, Outubro de 2006).
2
Sobre os contactos civilizacionais entre Grécia e Egipto, vejam-se os estudos de M.
Pulquério Futre 1995: 441-468, L. M. García Fleitas e G. Santana Henríquez 2002.

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Carlos A. Martins de Jesus

influencia artistas em tempos muito distantes sem que, muitas


vezes, dessa fonte tenham eles próprios consciência 3.
O surgimento da lírica, na Grécia do período arcaico (e
fixemo-nos no século VII a.C.) foi motivado por um factor que havia
já sido determinante para a eclosão do lirismo amoroso no país do
Nilo, durante a XVIII Dinastia e a era dos Ramsés (XIX-XX Dinastias),
algures entre os séculos XIV-XI a.C.: falamos do individualismo,
dessa afirmação da vontade e do sentir do eu individual e subjectivo
que passa a ser a marca central das composições poéticas. Já no
decurso dos Impérios Antigo e Médio as cortes faraónicas pareciam
dar grande relevo ao lazer, ao divertimento da alma com a música e
com a poesia. Chegados ao Império Novo, estão criadas as condições
para esse eclodir da lírica de amor profana, para o qual muito terá
contribuído ainda o elevado estatuto social da mulher no país do
Nilo. Quando o lirismo grego inicia o seu processo de afirmação, em
boa verdade, já a lírica egípcia (e oriental em geral) alcançara uma
maturidade dada por séculos e séculos de cultivo. Daí que os temas e
os motivos poéticos do Oriente estejam irremediavelmente presentes
nas cordas da lira dos maiores poetas gregos que, ainda que de forma
escassa, chegaram ao nosso conhecimento.
Face à poesia grega da época arcaica, a lírica o Império Novo
tem, à partida uma vantagem. Os próprios escribas do Nilo tiveram
consciência da sua importância e procederam à sua compilação, o que
facilita o trabalho dos estudiosos. Não que a lírica grega não tenha
sido compilada, essencialmente durante o período helenístico; mas
os tempos foram mais severos quanto à sua preservação, e tudo o que
temos são notícias de obras vastíssimas (como é o caso de Safo, de

3
Esta regra vale para outros géneros e para outras comparações. Veja-se o trabalho de
confronto estabelecido por J. N. Carreira 1987: 87-107, ou esse outro entre o “Conto do Náufra-
go” e a Odisseia, levado a cabo por A. M. Mendes Moreira 2004: 355-362.

18
A flauta e a lira

quem sabemos ter sido organizada uma colectânea em nove livros),


confrontadas com alguns textos maiores transmitidos e os largos
milhares de fragmentos de papiro que vão sendo encontrados, que
nem sempre permitem avaliar a qualidade da veia poética do seu autor.
Quanto à lírica egípcia que nos importa, ela encontra-se conservada
em dois extensos papiros (Pap. Chester Beatty I e Pap. Harris 500), aos
quais se acrescenta o mais pequeno e fragmentário Papiro de Turim
e os textos de um vaso guardado no Museu do Cairo. Também no
que toca às circunstâncias de execução poética ambas as culturas se
aproximam. Poesia e música são realidades indissociáveis; banquetes
e festas públicas tornam-se os espaços privilegiados para a exibição
dos dotes musicais e poéticos. Nestes espaços de divertimento, deve
a poesia servir um fim primordial: o deleite dos convivas.
Olharemos pois para o pouco extenso mas bastante rico
conjunto da lírica profana do Império Novo, que lemos apenas em
tradução4, a par do vasto mas por vezes confuso corpus da poesia grega
arcaica, com especial destaque para autores como Arquíloco (séc. VII
a.C.), Álcman (séc. VII a.C.), Mimnermo (séc. VII a. C.), Safo (séc. VII-
VI a.C.), Alceu (séc. VII-VI a.C.) e Anacreonte (séc. VI­-Va.C.).
O erotismo, em rigor, surge do culto divino, caminhando rumo
à autonomia poética. Como viria a suceder na Grécia, os deuses deixam
de ser, em si, o motivo e o objecto do canto, passando com frequência
a ser convocados tão só no que possam ser úteis ao desejo ou à doença
amorosa do sujeito da enunciação. Devem os deuses, no fundo, servir
os caprichos dos homens, atender as suas preces e escutar os seus
lamentos. A divindade deve ser propiciada com vista à obtenção do
favor do amado ou da amada, daí que lhe sejam compostos hinos.
Hathor, a Dourada, era a mais antiga divindade feminina do panteão

4
Seguimos, salvo casos pontuais, a tradução de L. M. Araújo 1995: 270-300.

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Carlos A. Martins de Jesus

egípcio, a deusa do amor e da fertilidade, por estas características só


comparável à Afrodite grega. Num texto do Papiro Chester Beatty I
(L. M. Araújo 1995: 272-273), vemos essa súplica à Dourada, para que
inspire na amada a paixão pelo sujeito poético:

Eu adoro a Dourada,
venero a sua majestade,
eu exalto a dama do céu.
Presto adoração a Hathor.
Laudações à minha senhora!
Chamei-a e ela ouviu o meu apelo,
enviou-me a minha dama,
e ela veio ver-me através dela.
(...)
Faço devoções à minha deusa,
para que ela me ofereça a minha amada.
Há três dias que invoco o seu nome,
pois há cinco dias que ela me deixou.

Semelhante invocação à deusa Afrodite vamos encontrar em


vários poetas gregos. O epíteto “Dourada” era-lhe também aplicado,
sabemo-lo desde logo por Homero (Il. 3. 64 e Od. 8. 337, entre outros) e
pelo frg. 1 W. de Mimnermo (vv. 1-2), poeta que canta acima de tudo o
tema da efemeridade da vida, sobre o qual nos demoraremos adiante:

o que é a vida? O que é o prazer, sem a dourada Afrodite?


Que eu morra, quando estas coisas já não me interessarem.5

Mas é sobretudo em Safo que vemos a mesma tendência


para a súplica interessada à deusa, com vista à obtenção dos favores
do ser amado. Falamos do frg. 1 L-P, conhecido entre os helenistas
precisamente como “Hino a Afrodite”, do qual citamos as estrofes
1 e 7:

5
As traduções da lírica grega, salvo indicação em contrário, são de F. Lourenço 2006.

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A flauta e a lira

Imortal Afrodite do trono variegado,


filha de Zeus, urdidora de enganos, suplico-te:
com sofrimentos e angústias não subjugues,
ó rainha, o meu coração
(...)

Vem até mim, agora também! Salva-me da aflitiva


ansiedade; e para mim faz cumprir tudo o que
meu coração deseja ver cumprido; e tu própria
combate a meu lado.

Também Anacreonte (sécs. VI-V a.C.), é motivado por um


amor de teor homossexual a compor um hino em tudo semelhante ao
que ainda agora ouvimos, no seu caso dirigido ao deus Diónisos (frg.
357 PMG), até porque é entre homens que se passa o caso de amor:

Soberano, com quem o Amor subjugador


e as ninfas de olhos azuis
e a purpúrea Afrodite
brincam, quando estás
nos altos píncaros das montanhas!
Suplico-te; e tu de espírito compassivo
vem até mim, para ouvires a minha grata prece.
Sê bom conselheiro de Cleobulo,
para que o meu amor,
ó Dioniso, ele aceite.

O vocabulário é bastante próximo do utilizado por Safo, e a


intenção de súplica e de prece à divindade aproxima estes poemas da
lírica egípcia. Com a deusa pretendem estes poetas estabelecer uma
espécie de troca de favores: a obtenção do amor do ser amado levará
à sua celebração em contexto festivo.
Profundamente apostada na captação do momento, visualista
e naturalista, a lírica egípcia do Império Novo concede grande relevo
à Natureza, espaço de eleição para o amor. Conservam-se conjuntos
de poemas ligados a um determinado cenário natural – como sejam

21
Carlos A. Martins de Jesus

as “cantigas de campina” (L. M. Araújo 1995: 281-284), as “cantigas


do rio e dos desejos de amar” (L. M. Araújo 1995: 289-­292) e a curiosa
colecção das “cantigas do pomar” (L. M. Araújo 1995: 285-288). Não é
de estranhar o relevo dado ao rio como espaço que ora separa ora une
os amantes, uma vez concluída a travessia, numa civilização que terá
surgido e florescido precisamente ligada ao Nilo. A Natureza funciona
então como alcova, mas também como universo rico em imagens
de um subtil erotismo, espaço prenhe de sensações sinestésicas
que alimentam todos os sentidos e se tornam metáforas da própria
relação amorosa. E é neste espaço que se movimentam animais que
servem de comparação ao sujeito poético (predador) que persegue a
sua amada (a presa). É o que se lê em duas estrofes das “cantigas de
campina” (L. M. Araújo 1995: 282):

Grita a voz do ganso bravo,


apanhado na sua armadilha.
Prende-me o meu amor por ti
e dele não me posso soltar.
Vou recolher as minhas redes,
mas o que direi a minha mãe,
a quem levo diariamente
as aves que apanho?
Hoje não armei as redes,
porque o teu amor me apanhou!
Acima e abaixo voa o ganso bravo,
e acaba por cair na rede.
Voam pássaros em redor
e tenho trabalho a fazer.
Estou presa pelo meu amor,
e só, o meu coração encontra o teu,
a tua beleza não deixarei!

O predador, curiosamente, é a amada, que prepara o mais


infalível dos iscos para o seu ganso bravo: o poder da sua sedução.
O tópico é o mesmo, no entanto, que encontramos em tantas outras

22
A flauta e a lira

literaturas, como seja o próprio Cântico dos Cânticos (II. 8-13)6. Na


literatura grega, a imagem mais comum é a do homem (identificado
com o poeta) que persegue a sua presa por campos verdejantes,
desejando tão só a consumação do amor. Ela foge, mas sabem ambos
que a própria fuga é um esquema para aumentar o desejo e dar mais
prazer ao encontro, que no fim se revelará inevitável. Num epodo
de Arquíloco, publicado apenas em 1973 (frg. 196a W.)7 o sujeito
seduz uma jovem, comparada a uma cerva, em campos verdejantes
e odoríferos, terminando por sossegá-la e quase consumar o acto
sexual (vv. 42-53):

Tais foram as minhas palavras. Tomei então a donzela


e num leito de flores
a estendi. Com sedoso manto
a cobri e o seu colo rodeei com meus braços,
acalmando o seu sobressalto,
tal como uma cerva ...
Os seus seios gentis com as mãos acariciei:
tenra brilhava a sua pele,
feitiço da sua juventude .
Todo o seu belo corpo percorri
e então libertei o branco vigor,
ao toque dos seus louros cabelos?

Mas um dos tratamentos mais curiosos e provocantes deste


tópico pertence uma vez mais a Anacreonte (frg. 417 PMG) quando,
de forma inevitavelmente misógina, compara a amada a uma poldra
da Trácia, irrequieta e relutante, que aguarda apenas por adequado
garanhão:

6
J. Tolentino Mendonça 21999: 12 refere já o paralelo com os textos do Papiro Harris
500 e do Papiro Chester Beatty I.
7
Vide adiante o estudo inteiramente dedicado a este texto (págs. 47-56). Todas as
traduções de Arquíloco apresentadas estão contidas na nossa edição completa dos fragmentos
do poeta de Paros: C. A. Martins de Jesus 2008.

23
Carlos A. Martins de Jesus

Poldra da Trácia, por que razão


me olhas de soslaio e teimosamente
foges de mim? Será que pensas
que eu não sei nada de jeito?
Fica sabendo que lindamente
eu te poria o freio;
e com as rédeas nas mãos
te faria virar no poste da corrida.
Mas agora pastas nas pradarias,
toda folgazã com teus coices levianos,
já que te falta o cavaleiro experiente
para te montar.

Papel edificante em toda a lírica do Império Novo desempenha


o olhar, o acto de contemplação do ser amado. Como bem refere J.
Nunes Carreira 2005: 209, ver ou ser visto traz consigo um prazer
sem medida, um prazer que dispensa não poucas vezes o contacto
com o próprio objecto de desejo. São os amantes que se contemplam
de ambas as extremidades do rio, logo se lançando à água para
alcançarem o outro por quem anseiam (qual Hero e Leandro), ou que
simplesmente partem para a descrição hiperbólica do ser supremo que
os seus olhos contemplam. A poesia torna-se fortemente descritiva
e pictórica; cada poema constrói autênticos quadros realistas do ser
amado ou de determinado cenário.
Mas a visão de quem se ama, tanto como a sua impossibilidade
ou proibição, trazem consigo consequências nem sempre positivas. É o
mal de amor, o padecer pela indiferença ou pelo simples apartamento
do objecto de desejo, numa confusão de sintomas estonteante que
rouba a razão ao sujeito. Ora porque vê o objecto da sua paixão (L. M.
Araújo 1995: 272),

o meu coração bate mais forte


quando penso no meu amor por ti,
torna-me diferente das outras pessoas,
põe-se aos saltos no seu lugar

24
A flauta e a lira

e nem me deixa pôr vestido


nem compor o xaile à minha volta.
Não pinto os meus olhos
e nem sequer estou perfumada.

ora porque ausente está há muito esse ser que acima de qualquer
outro se ama (L. M. Araújo 1995: 274):

Há sete dias que não vejo a minha amada,


e a doença abateu-se sobre mim,
sinto todos os meus membros pesados,
o meu corpo abandonou-me.
Os médicos vêm ver-me,
mas eu rejeito os seus remédios.
Os mágicos não sabem o que fazer,
não descobrem o meu mal.

O regresso da amada seria o único lenitivo, o único fármaco


eficaz para esta doença que consome corpo e espírito do sujeito
poético. A sintomatologia amorosa recorda-nos desde logo, ainda que
a um outro nível, dois pequenos fragmentos de Arquíloco de Paros
(frgs. 191 e 193 W.), para quem o amor (mais enquanto paixão e prazer
sexual desenfreados) tem consequências que roçam a alienação:

Tal foi o desejo de amor, que me cobriu o coração


e cerrada treva sobre meus olhos derramou,
arrebatando do meu peito as débeis forças.

Miserável, jazo atolado no desejo,


inânime, e penosas dores, por vontade dos deuses,
me percorrem os ossos.

Mas a comparação mais flagrante é mais uma vez com


a poetisa de Lesbos, Safo, num famoso poema (frg. 31 L-P) que
mereceria a imitação do latino Catulo. O mote para o poema é dado

25
Carlos A. Martins de Jesus

pela contemplação da amada junto de outro homem, o que despoleta


um conjunto de sintomas físicos em catadupa, em tudo semelhantes
aos do texto egípcio que atrás citámos:

Aquele parece ser igual dos deuses,


o homem que à tua frente
está sentado e escuta de perto
a tua voz tão suave

e o teu riso maravilhoso. Na verdade isto


põe-me o coração a palpitar no peito.
Pois quando te olho num relance, já não
consigo falar:

a língua se me quebrou e um subtil


fogo de imediato se pôs a correr debaixo da pele;
não vejo nada com os olhos, zunem-me
os ouvidos;

o suor escorre-me do corpo e o tremor


me toma toda. Fico mais verde do que a relva
e tenho a impressão de que por pouco
que não morro.

No poema de Safo os sintomas são em maior número, mais


diversificados e condensados, contemplando todos os sentidos do
sujeito. Nos textos egípcios, a doença é causada ora pela ausência
da visão do ser amado ora pela sua contemplação. A Safo dói tão
só a visão à distância do objecto do seu desejo; mais do que ciúme,
parece mesmo haver algum comprazimento na dor, porquanto só
ela é testemunha da evidência desse amor. A causa deste mal não é
apenas o apartamento dos amantes, senão também o seu encontro,
inesperado, que os deixa, ora a um ora a outro, sem saber como agir.
É riquíssima a espontaneidade de que estão embebidos estes textos,
a sinceridade indescritível das consequências, quase infantis, desse
sentimento amoroso levado ao extremo.

26
A flauta e a lira

Em períodos dominados pelo individualismo e pela afirmação


das capacidades humanas, como foram o Império Novo e a Época
Arcaica, é inevitável uma outra consciência, por vezes dolorosa
mas inexorável. Como na Natureza, tudo obedece a um ciclo de
vida e morte, não havendo lugar para o renascimento. Ao vigor da
juventude que tudo vence segue-se a negra velhice que entorpece os
membros, escala última antes da derradeira viagem para o reino dos
mortos. Também a lírica egípcia - por estranho que possa parecer a
leigos como nós, instruídos na imagem de uma civilização fortemente
apostada na glorificação da vida depois da morte - expressou esta
consciência da efemeridade da vida e da consequente necessidade de
colher os melhores frutos de um caminho que é breve e fugaz. Nas
inscrições do túmulo de Neferhotep em Tebas (J. N. Carreira 1999:
apêndice 2) podem ler-se estes versos:

Os que aos milhões de milhões nascerão


todos a ela [terra da Eternidade] vão dar;
na terra do Egipto não ficará nem um,
ninguém que a ela não chegue.
Quanto ao tempo dos actos terrenos,
é a passagem de um sonho

Curiosa a concepção da vida humana como um sonho, período


breve que mais não é do que uma sucessão de imagens e impressões
enganadoras8. Mas é no conjunto de poemas intitulados “Cantos de
harpista” (J. N. Carreira 1999: apêndice 1) que esta consciência de
brevidade da vida é mais flagrante:

É feliz este bom príncipe!


A morte é um destino afável!
Passa uma geração,
outra fica,
8
Afirmação semelhante surge em Píndaro, Píticas 8, 95-96.

27
Carlos A. Martins de Jesus

desde o tempo dos maiores.


Os deuses que houve outrora
repousam em seus túmulos.
Nobres bem-aventurados
de igual sepultos em suas tumbas.

Entre os Gregos, foi Mimnermo quem, glosando um símile da


Ilíada (6. 146-­149), melhor exprimiu este devir inexorável dos anos
para o homem (frg. 2 W., vv. 1­-10):

Nós somos como as folhas que cria a florida estação


da Primavera, quando crescem depressa sob os raios do sol.
Como elas nos deleitamos num braço de tempo com as flores
da juventude, sem sabermos o que de mau ou de bom
nos virá dos deuses. Mas as negras Desgraças estão
ao nosso lado: uma delas segura o desfecho da áspera velhice;
a outra, o da morte. O fruto da juventude é tão breve
quanto é o tempo de o sol se espalhar sobre a terra.
Porém quando passa este fim de estação,
melhor do que ficar vivo é morrer logo.

Também Safo, num texto possível de ler apenas no ano de


2004, graças à conjugação do lacunar frg. 58 L-P da poetisa com
dois fragmentos de papiro nesse ano decifrados9, se queixa das
consequências da velhice, facto que contudo aceita resignada:

Pois o meu outrora delicado] corpo, já a velhice


me arrebatou, e brancos] se tornaram os cabelos, negros que eram.
Pesado o meu coração se tornou, não me suportam já as pernas,
em tempos ligeiras na dança, como pequenas corças.
Isso lamento a toda a hora; mas que fazer?
alguém que não envelhece é algo que não pode existir.

Face a esta inevitabilidade da morte expressa por egípcios e


gregos (que, seja um bem ou um mal, não deixa de ser um termo), a

9
Vide o nosso estudo dedicado a este texto nas págs. 115-118.

28
A flauta e a lira

solução única reservada aos homens é a fruição do momento – que


Horácio haveria de formular magistralmente na máxima do carpe
diem –, seja pelo envolvimento amoroso, pelo degustar de um bom
vinho ou mesmo pelo prazer de uma borracheira menos contida. É o
que se lê num outro “Canto do harpista” (Papiro Barris 500 = J. Nunes
Carreira 1999: apêndice 1):

Por isto, exulta em teu coração!


Faz-te bem o teu esquecimento.
Segue o teu coração
todo o tempo que viveres!
Põe mirra em tua cabeça,
veste-te de linho fino,
unge-te com óleos próprios de um deus.
Amontoa as alegrias,
não deixes cair o coração!
Segue o teu coração e a tua felicidade,
despacha os teus negócios ao sabor do coração.
Quando a ti chegar esse dia de lamento,
O-de-coração-lasso não ouvirá seus ais,
o choro não salva ninguém do poço.

Nada se consegue com lamentos contínuos, pois que a hora de


todos os lamentos há-de por fim chegar, sem aviso e sem hipótese de
recusa. É precisamente isso que diz Arquíloco no frg. 11 W.,

Nada, em verdade, com o choro hei-de curar,


e nada pior tornarei se deleites e festas buscar.

ou na ode ao seu coração (frg. 128 W.), verdadeira cartilha da fruição


do momento própria do individualismo da Época Arcaica:

Coração, ó coração, por males sem remédio derrubado,


ergue-te! Defende-te dos inimigos, opondo-lhes um peito
adverso, firme suportando as ciladas dos que te são hostis!
Se venceres, em demasia não rejubiles,
nem, vencido, em casa te deites em pranto.
Alegra-te antes com as alegrias, dói-te com as tristezas,
sem exagero. Aprende bem o ritmo que domina os homens.

29
Carlos A. Martins de Jesus

Uma só preocupação parece distinguir, neste aspecto, a filoso-


fia de vida de gregos e egípcios: é que os primeiros demonstram a toda
a hora uma preocupação em evitar a insolência, todo e qualquer tipo
de acções desmedidas. Serve de exemplo o vinho, também ele um bál-
samo contra a certeza de uma vida que se escapa por entre os dedos; o
vinho que, bebido sem mistura de água, é sinal de exagero e acto pouco
louvável, como se percebe pelo frg. 346 L-P de Alceu:

Bebamos. Porque esperamos as luzes? É um átimo o dia.


Pega, amigo, nas grandes e delicadas taças ornamentadas:
o vinho, lenitivo dos males, doou-o o filho de Zeus e Sémele
aos homens. Mistura uma parte para duas no cratêr,
enche as taças até às bordas e que um cálice empurre o outro10.

Não parece este cuidado com a moderação assistir aos textos da


lírica do Império Novo que acima citámos, onde a sensualidade e a fruição
do momento são bastante mais espontâneas, sem medida mesmo. Não faz
sentido para os homens do Nilo a noção de terminus dado pela morte, a
avaliar desde logo pelas riquezas com que recheavam os túmulos dos seus
mortos, esperançosos numa vida futura que devia ser agradável.
Gregos e Egípcios partilharam afinal, tudo leva a crer, de um
mesmo conjunto de tópicos edificadores de poesia. Seja a forma de
amar e de sentir a paixão, seja enfim a consciência da velhice e da
morte que se aproximam galopantes, face ao que é necessário viver
em felicidade, estas duas culturas - aqui tomadas pela poesia que nos
legaram em períodos cronologicamente afastados mas marcados por
um mesmo individualismo - provam como é intemporal o sentir, o
amar e o sofrer, faces de uma mesma moeda que é a vida. E se é desse
sentir, a mais íntima expressão da humanidade, que surge o género
lírico, como poderiam Gregos e Egípcios, ocidentais e orientais em
geral, não ser substancialmente iguais no que cantaram?

10
Tradução de J. Ribeiro Ferreira 2006: 42.

30
A flauta e a lira

A tradição iâmbica

31
Carlos A. Martins de Jesus

32
A flauta e a lira

dois alvos da invectiva iâmbica 1

... mas uma grande sabedoria eu possuo:


a quem me faz mal, responder com terríveis injúrias.

(Archil. fr. 126 West)

Esta declaração programática de Arquíloco pode servir-nos


de mote para o tema a tratar nas páginas seguintes: a utilização poé-
tica de figuras reais, no âmbito da poesia iâmbica arcaica, com vista
à desmoralização e construção do seu psogos (desonra pública), de
acordo com uma série de convenções que passaremos a explorar.
A utilização de linguagem licenciosa em poesia, obscena
mesmo, parece ter origem religiosa. Falamos dos cultos a Demé-
ter e a Diónisos, em cujos rituais – na sua maioria para nós des-
conhecidos, dado o secretismo em que eram mantidos – o iam-
bo desempenhava um papel central, no sentido apotropaico que
era já conferido à linguagem. No Hino Homérico a Deméter, onde
encontramos a origem etiológica destas festividades, uma figura
designada de Iambe provoca o riso na deusa, servindo-se para tal
de linguagem obscena (aischrologia).2 Mas este texto contém outro
dado para nós fundamental: refere-se a Paros, próximo do final (v.
491), como uma das ilhas mais importantes deste culto, depois de
Elêusis. E são muitos os testimonia que nos falam da ligação entre
a família de Arquíloco e a introdução do culto na ilha de Tassos

1
Versão original publicada no Boletim de Estudos Clássicos 44 (2005) 22-42. A primeira
secção deste texto, dedicada a Arquíloco, segue de perto uma parte da comunicação por nós
apresentada a 13 de Outubro de 2005 no Colóquio de Estudos Clássicos “Antiguidade Clássica
e Nós: Herança e Identidade Cultural”, organizado pela APEC e realizado nesse ano na Univer-
sidade do Minho. Daqui partimos para o alargamento do estudo ao poeta Hipónax, resultado
que agora se publica.
2
Vide supra, “Prefácio”, nota 7.

33
Carlos A. Martins de Jesus

(e.g. Paus. 10. 28. 3.). Quanto ao culto dionisíaco, é mais conhecida
a sua relação com ritos selváticos e sexuais, inspirados pelo vinho
que desceu sobre o espírito dos participantes, o contexto do co-
nhecido fr. 120 W.3
Também Aristóteles é um testemunho neste momento incon-
tornável. O autorizado autor atribui a origem da comédia aos cantos
fálicos entoados com vista ao pedido da fertilidade, incluídos no culto
de Diónisos (Poet. 1149a. 10-13) e de Deméter; mais adiante, refere-se
ao costume dos poetas iâmbicos de atacar directamente uma dada
figura conhecida, identificada no texto da invectiva (Poet. 1451b. 14
sqq.). Este ataque aos vícios e deformidades morais tem por trás,
curiosamente, um princípio de protecção da moral colectiva, um pou-
co como viria a acontecer com as comédias plautinas.
Com Arquíloco, tudo leva a crer, estamos nos inícios desta tra-
dição poética. Datado o seu floruit da primeira metade do século VII
a.C., não lhe são conhecidos quaisquer precedentes na elevação do
iambo a género literário. Daí que os seus versos detenham uma au-
tenticidade e uma fluência que entendemos ausente dos de Hipónax,
do qual não tarde falaremos.
Conta a lenda que Licambas e Telésicles, este último pai do
poeta, teriam arranjado o casamento entre os filhos quando juntos se
deslocaram a Delfos e o oráculo previra que o primogénito de Telési-
cles teria fama imortal.4 Mais tarde, por razões que desconhecemos,
Licambas terá recusado a mão da filha, Neobule, dando assim moti-
vação para o projecto poético de desonra da sua família por Arquí-
loco, que se teria sentido traído. Os versos produzidos teriam sido

3
Para as citações dos fragmentos de Arquíloco e Hipónax servir-nos-emos da edição
de M. L. West 21998.
4
Sobre o oráculo de Apolo em relação a Arquíloco falam-nos Dio Chrys. 33. 11-12
(=Archil. test. 16 Gerber) e Oenomanus ap. Euseb., praep. ev. 5. 32. 2-33.9 (=Archil. test. 18 Ger-
ber), muito provavelmente no seguimento da tradição presente na Mnesiepis Inscriptio (SEG 15.
517. col. ii. 50 = Archil. test. 3. col. ii. Gerber), datada do século III a.C. e parte de um recinto
dedicado ao poeta em Paros, para sua glorificação

34
A flauta e a lira

tão duros que toda a família cometeu suicídio por enforcamento.5


Lidamos portanto com uma lenda assente no valor da palavra que,
eficazmente manipulada, fere mais do que espadas e mata mais do
que os venenos mais mortíferos.
No corpus de Arquíloco não são muitas as marcas textuais
desta tradição, sendo que em parte alguma se faz referência ao
suicídio. O nome de Licambas surge apenas em cinco fragmentos
(38, 54.8, 60.2, 71.1 e 172.1 W.), e em dois deles é fruto de recons-
tituição das lacunas presentes no papiro: fr. 60 W. (= P. Oxy. 2312
frr. 9 et 10) e fr. 71 W. (= P. Oxy. 2312 fr. 17). No fr. 172 W. o poeta
apenas lamenta a perda de siso desse homem, nada acrescentando
em relação à complexa intriga amorosa:

Pai Licambas, o que foste tu dizer?


Quem te fez abalar a razão
em que antes te apoiavas? Agora, para muitos
cidadãos, és alvo de chacota.

O termo pater do primeiro verso podia designar, em rigor,


qualquer homem mais velho, mas parece claro que o poeta o usa
numa acepção irónica, como que referindo-se àquele que quase foi
seu pai (sogro). Podemos argumentar que tudo o que temos é uma
parte reduzida de um poema maior, que poderia de facto levar a
cabo a desonra de uma ou de ambas as filhas de Licambas. No en-
tanto, o que conservamos serve-nos tão só para iluminar um pou-
co a eleição desta figura para alvo do poeta. Quanto a Neobule,
sua filha e, segundo a lenda, principal alvo das narrativas poéticas
de Arquíloco, a sua presença textual é ainda mais escassa: os frr.
118 e 196a W., este último apenas editado em 1974.6
Não é pois seguro nem correcto ver estas figuras como os al-

5
Os testimonia desta tradição estão recolhidos em Archil. test. 19-32 Gerber. Uma só
ressalva: por aqui vemos como, nas fontes mais antigas, apenas as duas jovens teriam cometido
suicídio, e não toda a família.
6
Vide, adiante, o nosso estudo sobre este texto (págs. 47-56).

35
Carlos A. Martins de Jesus

vos de todos os fragmentos de longas narrativas sexuais onde donze-


las de família são alvo de chacota pública. Não deixa de ser tentador,
por outro lado, fazer esta associação. Curioso é o fragmento 197 W.,
talvez o vestígio textual mais próximo da tradição:

Zeus pai, minhas bodas não cheguei a celebrar.

Num só verso parece confirmada toda a lenda, toda a tradição.


Não obstante as cautelas a ter com afirmações deste género, temos
também que aceitar que nenhuma tradição nasce do nada. Os autores
que para nós são seus testemunhos terão escrito a partir de um co-
nhecimento mais alargado da obra do iambógrafo, na posse de textos
para nós, até ao momento, perdidos.
Tanto quanto sabemos, os topoi principais destes longos poemas
seriam a perda da virgindade, a descrição da mulher madura e sem
encanto, a notícia da lascívia pública, o quadro da violação e a sugestão
da infertilidade. Neobule e a irmã, a acreditar na tradição, teriam sido
recorrentemente equiparadas a prostitutas, mulheres de má vida que
trocam os seus favores sexuais por dinheiro e não põem qualquer limi-
te ao seu desejo. Mulheres muito do agrado do poeta, que faz questão
de passar de si próprio uma imagem de homem rude. A acrescentar
ainda, de importância extrema nos iambos de Arquíloco, o recurso fre-
quente à narrativa fabular.7 A comparação do homem ao animal visa,
logo à partida, a redução do primeiro às características instintivas deste
último. O homem deixa de ter sentimentos, honra ou palavra (Licam-
bas) e passa a guiar-se tão só pelo interesse e pelos instintos, ganhando
fortes traços de irracionalidade.
Como a raposa incendiou o ninho da águia, depois que esta,
passando-se por sua amiga, lhe comeu as crias (Aesop. fab. I. 1 Haus-
rath e Archil., frr. 172-181 W.), do mesmo modo o poeta há-de fazer

7
Sabemos, através de Filóstrato (Imag. 1. 3) que Arquíloco se serviu de fábulas ani-
mais para atacar Licambas.

36
A flauta e a lira

pagar as crias de Licambas pela traição de seu pai. Tudo indica que os
frr. 172-181 W. são parcelas de um único epodo dedicado a este indi-
víduo.8 A aceitar esta inclusão dos fragmentos num mesmo poema,
o fr. 173 W. (cit. Orig. c. Celsum 2. 21) traz novos dados, fundamentais
para a lenda, pois desenvolve a ideia da quebra de uma promessa
pela imagem dos convivas sentados a uma mesma mesa. Temos assim
prova de uma traição, não especificada, que depois vai ser ilustrada
pela introdução da fábula da águia e da raposa, entre os frr. 174-181
W. Uma falta à palavra que tem que ser punida, servindo a fábula de
modelo a esse castigo.
Não cabendo aqui um inventário destes aspectos nos frag-
mentos preservados, tarefa difícil e nunca segura dada a natureza
lacunar da maior parte dos textos, cumpre sim dizer como todos
eles se acomodam no fr. 196a W., um famoso Epodo encontrado em
Colónia e publicado em 1974, sobre o qual nos debruçaremos de
seguida. No entanto, e para o que aqui nos importa, adiantamos
como nos 53 versos do poema (35 linhas no papiro) se pode ler a
sedução de uma suposta irmã mais nova de Neobule, tarefa len-
ta e feita com todo o cuidado com vista ao sucesso final, a quase
violação da jovem, já que o coito não chega a ocorrer. O estilo é si-
multaneamente obsceno e cuidado, servindo-se mesmo o poeta de
alusões à linguagem homérica no que é, no fundo, uma narrativa
sexual. Neobule é trazida ao texto pelo narrador, que a pretere em
proveito da jovem que tem diante de si.
Temos a indicação da idade avançada (v. 26) – querendo tão
só dizer que não teria já, digamos, 15 ou 16 anos – e da perda da vir-
gindade (vv. 27-28), magistralmente conotada com a flor, imagem
que perdurou em toda a cultura ocidental posterior. Ora, essa flor,
malogradamente para a sua detentora, murchou, e flores murchas
não interessam a ninguém.

8
F. Rodríguez Adrados 1955: 12-24 faz uma tentativa de reconstrução deste epodo e
nele inclui 20 fragmentos do corpus.

37
Carlos A. Martins de Jesus

A lascívia pública é a acusação dos versos 33-34 e 37-38, tan-


to que fazer-se acompanhar de tal criatura é motivo de vergonha. E
finalmente temos a sugestão da geração de uma prole indigna e dis-
forme, acompanhada pela introdução da narrativa fabular (vv. 39-
41): como a cadela da fábula (Aesop. fab. II. 251 Hausrath), também
Neobule virá a gerar filhos cegos e prematuros, tal a vida lasciva e de
libertinagem que leva. Falta só o quadro da violação (vv. 42-53) que,
como já se disse, não chega a concretizar-se, o que nada abona em
favor da honra da jovem envolvida.
Muito se escreveu já sobre a existência real ou meramente
ficcional dos Licâmbidas, em especial a partir dos trabalhos de M.
L. West 1974: 27 sqq., que lançou a hipótese de estas serem perso-
nagens da tradição local, por razões que não cabe aqui apresen-
tar. C. Carey 1986: 63-65 reflecte sobre estes argumentos e conclui
uma série de dados a favor da historicidade da família, entre os
quais o seu surgimento na Inscrição de Mnesiepses9 (SEG 15. 517.
45), monumento datado do século III a.C. que parece demonstrar
que, mesmo em Paros, a sua existência real era um dado adqui-
rido. A isto acrescenta todo um conjunto de questões linguísticas
e estilísticas que, segundo o autor, levam a supor real e sentida a
invectiva arquiloquiana. R. Rosen 1988: 29-33, quanto a nós cor-
rectamente, sugere a possibilidade de criação de nomes com forte
carga semântica no contexto iâmbico, bem como de histórias fic-
cionais, para indivíduos e histórias bem reais. Assim, teria havido
de facto um homem que insultara o poeta ao negar-lhe o casamen-
to prometido com a sua filha, mas não se chamariam estes, neces-
sariamente, Licambas e Neobule. Outra hipótese reside na escolha
propositada dos alvos poéticos pela coincidência dos seus nomes,
o que os torna, como se percebe, vítimas fáceis. No caso de Licam-
bas, significando literalmente “lobo andante”,10 a escolha ou apro-

9
Sobre este assunto vide C. Miralles 1981: 29-46.
10
A sugestão é de A. P. Burnett 1983: 6-7.

38
A flauta e a lira

veitamento do nome tem tudo que ver com a narrativa fabular de


que o poeta se serve com frequência, como vimos acima.
As coordenadas da desonra que vimos referidas pelos testimo-
nia ficaram de tal forma enraizadas que influenciaram autores tardios.
Na Antologia Palatina encontramos três epitáfios ficcionais dedicados
às jovens filhas de Licambas. Um em especial, atribuído a Dioscórides
(7. 351), apresenta-as falando directamente da tumba aos leitores das
suas lápides,11 numa atitude de defesa:

Por este solene marco dos defuntos, nós, as filhas de Licambas,


juramos não ter merecido tão terrível reputação,
nem ter desonrado a nossa virgindade, nossos pais
ou sequer Paros, a mais escarpada das ilhas sagradas.
Foi antes Arquíloco que contra a nossa família
lançou uma odiosa reputação e igualmente terrível desonra.
Arquíloco, são testemunhas deuses e divindades, nem nas ruas
o vimos, nem no sublime santuário de Hera.
Pois a termos sido lascivas ou despudoradas, nem esse homem
lograria do nosso ventre gerar filhos legítimos.

Com Hipónax, poeta tradicionalmente ligado a Éfeso, damos


um salto temporal e literário de mais de um século, o que supõe um
conjunto de premissas distintas daquelas que orientaram o estudo
de Arquíloco. Os poucos testemunhos que estabelecem a datação do
poeta parecem colocar o seu floruit algures entre as décadas de 30 e
40 do século VI.12
O iambógrafo de Éfeso vai pois evidenciar uma maior cons-
ciência de género, sendo clara a influência de Arquíloco nos seus
versos. Face ao poeta de Paros, acusa uma redução dos temas, já
que todos os fragmentos preservados são de temática erótica ou de
paródia literária (da épica, sobretudo). Os temas da brevidade da
vida, do carpe diem e do poder dos deuses e da moira, bem presentes

11
Este parece ser já o contexto do P. Dublin inv. 193a (=Archil. test. 19 Gerber), datado
do século III a.C.
12
Cf. Hippon. test. 1-2 Gerber.

39
Carlos A. Martins de Jesus

em Arquíloco e aprofundados depois por Semónides, deixam de ser


da eleição do Efésio, que se concentra praticamente em exclusivo no
sexo mais vulgar e grotesco e nas suas virtualidades poéticas.
Os testemunhos antigos parecem ter procurado aproximar –
ou terão simplesmente confundido? – as vidas e as histórias dos dois
poetas. Num escólio ao epodo 6 de Horácio,13 o autor conta-nos o
seguinte:

Quer ele dizer que Hipónax pediu em casamento a filha de Búpalo e


que este, graças à sua deformidade física, foi ignorado. Mas querem crer as gen-
tes que o seguinte é o mais verdadeiro: que houve um pintor chamado Búpalo,
em Clazomena, uma cidade da Ásia. Este pintou um retrato do poeta Hipónax,
disforme, para provocar o riso: movido pela raiva contra ele, compôs então tais
poemas que ele se enforcou.

Em nenhum outro local encontramos informação semelhante


relativa a um pedido de casamento negado, sendo óbvia a confusão
com a lenda de Arquíloco e os Licâmbidas. No final, surge o tópico
do enforcamento de Búpalo, mais uma clara confusão entre as lendas
dos dois poetas. Mas as incongruências deste comentário não ficam
por aqui. Búpalo, pintor, é algo que também não conhecemos por
nenhum outro testemunho. Hipónax refere-se de facto a um outro
pintor, Memnes (fr. 28 W.), por ter pintado duas serpentes num barco
com a cabeça voltada para a popa, pormenor à primeira vista insigni-
ficante para motivar o ataque. Segundo a lenda, como a conta Plínio
(Plin. NH. 36. 4. 11-12 = Hippon. test. 1 e 4 Gerber), Búpalo e Aténis
eram escultores e, por razões que não nos são dadas a conhecer, fize-
ram do poeta uma estátua que o mostrava ainda mais feio do que já
seria, com isso o envergonhando publicamente. Como cada qual se
serve das armas que possui, este empreende então o projecto de cons-
trução poética do psogos dos dois indivíduos que o haviam desonra-
do. O sexo, vício sem limites, vai ser o principal tema dessa desonra,
um pouco como acontecera com Arquíloco e as filhas de Licambas.
13
Pseudacronis schol. (i. 404 Keller) ad Hor. epod. 6. 14 (= Hippon. test. 11 Gerber).

40
A flauta e a lira

A presença de Búpalo nos fragmentos preservados de Hipónax


é claramente mais extensa, quando comparada à de Licambas e suas
filhas nas relíquias do poeta de Paros. Podemos ler o seu nome, com
alguns esforços de reconstituição, em nove fragmentos. Já Aténis, seu
irmão, surge apenas no fr. 70 W., não estando mesmo esta ocorrência
ausente de contestação. Voltando à discussão que acima nos ocupou
sobre a existência real dos Licâmbidas, comecemos por referir como,
em Hipónax, ela se reveste, inevitavelmente, de outros moldes. Plínio
refere-nos que os dois escultores eram filhos de Arquemo, cujo nome
estaria gravado na base de uma escultura de Delos, agora perdida,
datada de c. 550 a.C. Também Pausânias alude a uma escultura da au-
toria de Búpalo em Esmirna (4. 30. 6) e outra em Pérgamo (9. 35. 6).
Apesar de aparentemente provada a existência real da vítima
de Hipónax – e centremos a nossa atenção, daqui em diante, apenas
em Búpalo – não podemos ignorar a hipótese de também o seu nome
ser semanticamente significativo no contexto iâmbico: palos pode mui-
to bem provir de phallos, querendo o seu nome significar algo como
“pénis de boi” ou, simplesmente, “o grande pénis”. A hipótese ganha
seriedade se considerarmos que o escultor surge quase sempre envol-
vido em narrativas sexuais e que é esta a forma escolhida pelo poe-
ta para construir o seu psogos.14 As alternativas que temos são então
duas: a) aceitar que este era um nome real, feliz coincidência, o que
tornava o escultor um alvo mais fácil da invectiva, ou b) que o nome
é criação do poeta para uma figura real, e que foi esta designação que
perdurou nos autores posteriores. Não nos parece que esta questão,
pertinente para ambos, Arquíloco e Hipónax, possa resolver-se no
actual estado dos conhecimentos sobre as circunstâncias da poesia
iâmbica. Não obstante, a criação de nomes falantes e sexualmente sig-
nificativos encontra outros exemplos no corpus de Hipónax. No fr. 118
W., Sanos é apresentado como um glutão. Se relacionarmos o nome
14
Para a análise pormenorizada das virtualidades semânticas do nome Búpalo no
corpus de Arquíloco, bem assim sobre a polissemia onomástica no contexto iâmbico, vide R. M.
Rosen 1988: 29-41.

41
Carlos A. Martins de Jesus

próprio (com ocorrência na Antiguidade, é certo) com sannion (‘pé-


nis’), ele pode então querer designar um qualquer homem (porque
não Búpalo?) e alargar o campo semântico do termo para o apetite
sexual desmedido.
Um problema que se nos oferece com o Efésio, e que já co-
mentávamos face a Arquíloco, prende-se com a inclusão ou não de
determinados fragmentos na invectiva contra Búpalo, limitação im-
posta pela natureza fragmentária dos textos que possuímos. O escul-
tor é-nos descrito em pleno acto sexual em diversas ocasiões, junta-
mente com uma figura feminina, Arete, ao que tudo indica sua mãe,
que encontramos em cinco fragmentos. A noção do incesto entre mãe
e filho terá surgido das interpretações do fr. 12 W.:

... com estas artimanhas Búpalo, o amásio da própria mãe, de gorra com
Arete, ia engrampando a prole de Éritras, a quem excitava o torpe despelado.15

O fragmento é complexo e tem despoletado muita discussão


entre os estudiosos. W. Medeiros 1961: 48, na sua primeira edição dos
iambos de Hipónax, recusara-se a considerar pertinente a interpre-
tação que vê Búpalo e Arete em pleno acto sexual. Para o helenista,
“interessa apenas observar que Búpalo e Arete se dedicavam ao ofício
de explorar a incauta lubricidade dos forasteiros” .
Como Arquíloco atacara Licambas pela desonra das suas fi-
lhas, o Efésio vai relatar, podemos admiti-lo, o envolvimento sexual
consentido com Arete, mãe e amante do seu alvo principal. No fr. 15
W. pergunta-se a alguém porque coabita com Búpalo, provavelmente a
Arete, a mesma mulher dos frr. 16 e 17 W., com quem se parece relatar
o envolvimento de um eu (supostamente o poeta). E este poderá ser
o contexto de muitos outros textos, nos quais desconhecemos o nome
dos intervenientes. Aqui começam as dúvidas insolúveis, habituais
para quem trabalha com a poesia arcaica.

15
Tradução de W. Medeiros 1961: 48.

42
A flauta e a lira

Vários textos de origem papirológica são, ao que tudo indica,


parcelas de longas narrativas sexuais, semelhantes às que já compu-
sera Arquíloco. Os frr. 70-73, 78, 79, 84 e 104 W. são apenas alguns
exemplos, possíveis relatos de encontros sexuais entre Arete e o poe-
ta, à socapa de Búpalo, ou mesmo na sua presença. Textos com uma
linguagem forte e extremamente obscena, como prova o fr. 73. 1 W.:
mijava sangue e obrava bílis. O fr. 104 W. (= P. Oxy. 18. 2175. frr. 3+4),
muito embora extremamente lacunar, é o vestígio mais longo que
possuímos dessas narrativas, desempenhando para Hipónax papel
semelhante ao Epodo de Colónia (fr. 196a W.) no corpus de Arquíloco.
No Efésio, as narrativas eróticas são cheias de movimento e agitação,
vivendo o par romântico o terror constante de ser apanhado. Nos frr.
78 e 92 W. podemos ver vestígios do que se crê serem procedimentos
mágicos para a cura da impotência, sendo que, no último, é clara a
identificação do poeta como o paciente. Um mundo de sensações des-
medidas, de vícios e desmesuras sexuais, do qual o próprio sujeito
poético não consegue deixar de fazer parte.
Uma série de fragmentos de curta extensão têm sido associa-
dos ao ritual arcaico do pharmakos.16 De origens agrárias, inclui-se
no conjunto dos ritos de purificação mais selváticos da religião gre-
ga, cuja etiologia pode estar no sacrifício primeiro de um indivíduo
chamado Pharmakos que, surpreendido a roubar as taças de Apolo,
foi apedrejado até à morte pelos companheiros de Aquiles (cf. Is-
tros, 334 FGrH fr. 50). Celebrava-se no primeiro dia das Targélias
ou em qualquer momento de calamidade pública. Era escolhido um
homem, uma mulher ou mesmo um casal, dos mais disformes da
cidade, nos quais era simbolicamente depositada toda a responsa-
bilidade da doença de que padecia a comunidade. Aos eleitos eram
oferecidos figos, um bolo de cevada e uma ração de queijo, depois
do que eram obrigados a atravessar as ruas da cidade, ao longo das
quais a multidão os açoitava com ramos de figueira, em especial na
16
Sobre este ritual e a sua presença na religião grega vide W. Burkert 1993: 176-179.

43
Carlos A. Martins de Jesus

zona genital. De seguida podia ainda ocorrer a sua lapidação e mor-


te, sendo o cadáver (ou as cinzas) do condenado atirado ao mar.
Estamos, no fundo, diante de um ritual de purificação que
procura a responsabilidade de um mal colectivo num ser indivi-
dual, que não tem necessariamente que ser o seu causador. Ga-
nha assim contornos óbvios de sacrifício humano para aplacar a
ira divina. Este conceito de expiação de um erro individual com
consequências comunitárias está na base da noção de miasma de
bastantes tragédias áticas. Basta pensarmos em Édipo e na sua ce-
gueira trágica que insiste em não ver que é ele, antigo salvador e
actual monarca, a poluição da cidade.17
Tzetzes (Chil. 5. 728 sqq.) é a principal fonte para os frag-
mentos de transmissão indirecta do Efésio relacionados com esta
prática (frr. 5-12 W.). No fr. 5 W. referem-se os ramos de figueira e
a finalidade de purificação da cidade, o mesmo que podemos ler no
fr. 6 W.:

que em pleno Inverno o varejavam e zurziam


com galhos de figueira e albarrãs, qual bode expiatório.18

O fr. 8 W. refere o bolo de cevada (maza) e o queijo (tyros), o fr.


9 W. a multidão que espera o condenado para o açoitar e o fr. 10 W.
o varejamento do desgraçado. No fr. 65 W. pode ler-se, sem grande
esforço de interpretação, o lançamento dos restos mortais do eleito ao
mar. Alguns textos papiráceos dão-nos ainda conta do recurso a este
ritual. Citamos tão só o fr. 95 W. (= P. Oxy. 22. 2323 + 18. 2174. fr. 27)

17
O ritual vai também marcar presença na literatura latina, em especial no romance
O Burro de Oiro de Apuleio, no Satyricon de Petrónio e nos Retratos dos Césares de Suetónio, que
nos dão alguns exemplos claros da permanência da personagem do “bode expiatório”. Vide C.
Miralles 1985: 89-103, J. Pòrtulas 1985: 121-139, R. B. Harlow 1974: 377 e P. Veyne 1983: 3-30. Se
alargarmos a noção para a expiação individual de um erro colectivo, para além da tragédia grega,
também no Novo Testamento encontramos várias ocorrências. A própria figura de Cristo, como o
filho de Deus que carrega em si as culpas de toda a humanidade e é, até ao calvário, alvo de humi-
lhação, tudo para a redenção dos pecados da colectividade, tem sido um exemplo apontado.
18
Trad. W. Medeiros 1961: 56.

44
A flauta e a lira

que, embora muito fragmentário, é a este respeito precioso, pois pa-


rece provar como o ritual foi poeticamente usado por Hipónax para
atacar Búpalo (e outros) fazendo dele o próprio bode expiatório:

…………………..........
3) … a Búpalo…
4) … Búpalo …
6) … cada qual de sua banda …
7) … ao chegarem …
9) … andavam aos tropeções …
12) … derrubou (?) …
13) … logo …
14) … à beira de …
15) … assim eles praguejavam contra o maldito Búpalo …19
……………………………….

Os versos 3-6 parecem descrever o ataque a Búpalo de ambos


os lados, o que pode ser interpretado como as vergastadas que sofre o
pharmakos ao longo das ruas da cidade. O nome do seu inimigo surge
três vezes no fragmento, o que não deve ser inocente, e o plural da
linha 9 sugere que eram dois os bodes expiatórios, provavelmente
Búpalo e Aténis, se nos é permitida a conjectura.
Todo este aproveitamento de um ritual arcaico de purificação
e expurgação do mal vem no sentido de atribuir à narrativa iâmbica
de Hipónax, como de resto vimos já em Arquíloco, um carácter tra-
dicionalista e moralista, apostado na preservação dos bons costumes.
A obscenidade linguística é assim capa para uma mensagem que não
pode ser lida de forma superficial. Intenções cívicas, se vistas sob a
capa que as reveste, comuns à sátira literária de todos os tempos.
Sendo verdade que Hipónax apostou essencialmente nas
narrativas sexuais (que terá aprendido de Arquíloco) e no tratamen-
to poético do ritual expiatório do pharmakos para a construção da
sua invectiva, a imagem do poeta e da força da sua obra, no Período
Helenístico, é outra. Teócrito (Epig. 19 Gow = HE 3430-33 = AP13. 3)

19
Trad. W. Medeiros 1961: 140.

45
Carlos A. Martins de Jesus

dedica-lhe um epigrama que vem confirmar as intenções moralistas


dos seus versos:

O cultor das musas, Hipónax, aqui repousa.


se és ardiloso, não te aproximes da tumba;
se ao invés és honesto e de boas famílias,
senta-te e adormece, confiante, se o desejares.

Noutros três epitáfios da Antologia Palatina dedicados ao poeta


a imagem cultivada é a da vespa que adormeceu, na morte, a raiva
do seu aguilhão que a todos feria. Razão mais que suficiente para que
não seja acordada. Traduzimos o epitáfio 7. 405 da dita colectânea:

Estrangeiro, evita a tumba caiada de versos


e terrível de Hipónax, cujas cinzas não deixam
de lançar injúrias sobre Búpalo que tanto odeia;
de modo algum despertes a vespa adormecida
que nem agora no Hades adormece a sua raiva,
ele que em versos coxos lançava certeiras palavras.

O imaginário e a linguagem são exactamente os mesmos que


encontramos em outros dois epitáfios, em especial 7. 408, poema atri-
buído a Leónidas de Tarento.
Já a tumba de Arquíloco possuía vespas adormecidas (Anth.
Pal. 7. 71. 6), numa imagem riquíssima: o veneno poderoso que atin-
ge a vítima de uma mordedura. A vespa é o poeta. O veneno, esse, a
poesia; a mesma que tantas vezes foi considerada bálsamo ou água
de rosas para corpos doces e impolutos, e que aqui tem a vitalidade
suficiente para arrastar para a morte homens e mulheres, autores de
uma qualquer falta particularmente desagradável ao iambógrafo.

46
A flauta e a lira

devassidão em prados de flores


O fr. 196a W. atribuído a Arquíloco1

Nos finais de 1973 começam a ouvir-se entre os helenistas


notícias difusas de um novo fragmento de Arquíloco encontrado
em Colónia (Alemanha), um epodo de temática erótica que em
breve se tornaria a jóia dos estudiosos do poeta de Paros. O papiro
(“Apêndice Iconográfico”, fig. 1), materialmente datado entre os
séculos II e I a.C., tinha servido até então de cartonagem envol-
vente de uma múmia. Nele se descortinaram dois textos conside-
rados autónomos: um mais longo, verdadeira peça narrativa (P.
Colon. 58. 1-35 = fr. 196a West), de cuja tradução e comentário
aqui nos ocuparemos, e um outro, nas restantes cinco linhas do
papiro (P. Colon. 58. 36-40 = fr. 188 West). Estes versos, de resto
à semelhança dos primeiros, levam também a cabo a desonra de
uma mulher (supostamente filha de Licambas) por ter já perdido
a sua juventude.2
Coube a Merkelbach-West 1974: 97-112 a primeira publi-
cação do achado, acendendo-se o rastilho de uma polémica lite-
rária sem fim à vista. Afastados da discussão da autenticidade,
limitamo-nos a apresentar o texto em tradução 3, terminando
com um comentário, onde procuramos realçar a imensa riqueza
formal, temática e imagética do achado.

1
A versão original e alargada deste estudo, que inclui o texto grego, foi publicada no
Boletim de Estudos Clássicos 42 (2004) 15-33.
2
O mesmo assunto que encontramos em Horácio, Epodos 1 e Odes 1. 25 e 4. 13. O
mesmo tipo de velha fogosa que Aristófanes pintaria nas suas comédias, e que nos viriam a dar,
séculos mais tarde, os Epigramas de Marcial.
3
Optámos por uma versão em verso branco, que segue a divisão do grego em tríme-
tros iâmbicos (53 versos), e não pelas linhas do papiro (35 linhas).

47
Carlos A. Martins de Jesus


por completo te abstendo.
Mas mostra igual coragem,
se te inquietas e o desejo te impele.
Temos em nossa casa
quem agora sente grande desejo... 5
bela e delicada donzela; parece-me
perfeito o corpo que possui.
Faz dela tua amante!”
Assim falou ela. Respondi-lhe então:
“ó filha de Anfimedeu, 10
nobre e sensata mulher
que a terra sombria agora detém!
São os deleites da deusa
sem conta para os jovens varões,
além da coisa divina; um deles me bastará. 15
Mas isso, com calma,
logo que anoiteça,
eu e tu, se ao deus assim aprouver, havemos de decidir.
Farei como me pedes.
Intenso (desejo me despertas). 20
E de transpor esses portais, sob o teu arco,
não me impeças tu, meu amor!
Deter-me-ei ao chegar ao teu jardim
onde a erva cresce – fica a sabê-lo! Neobule,
que outro homem a tome para si. 25
Ai! Como está madura! O dobro da tua idade!
Murchou a flor da sua virgindade
e o encanto que tinha outrora.
Não tem limites o seu desejo
e revelou a medida da sua infâmia, louca criatura! 30
É lançá-la aos corvos!
Isso não…
que na companhia de tal mulher
para os vizinhos seria motivo de troça.
Muito mais te quero a ti, 35
pois não és desleal nem tens duas caras;
ela é muito mais fogosa
e muitos amantes arranja!
Receio que filhos cegos e prematuros
no ardor impaciente possa gerar, 40
como fez a mítica cadela.”
Tais foram as minhas palavras. Tomei então a donzela
e num leito de flores
a estendi. Com sedoso manto

48
A flauta e a lira

a cobri e o seu colo rodeei com meus braços, 45


acalmando o seu sobressalto,
tal como uma cerva...
Os seus seios gentis com as mãos acariciei:
tenra brilhava a sua pele,
feitiço da juventude. 50
Todo o seu belo corpo percorri
e então libertei o branco vigor,
ao toque dos seus louros cabelos.

O epodo desenvolve um discurso de tipo dramático, onde se


identificam dois intervenientes – um masculino e um feminino – e
uma terceira figura, apenas referida, que constitui o assunto predilec-
to da segunda parte do texto – essa sim, com segurança, Neobule (v.
24), a filha de Licambas. Em termos formais, é de realçar a frequência
de elementos próprios da linguagem homérica, algo que, de resto,
caracteriza grande parte da poesia de Arquíloco, nas diversas modali-
dades métricas. Ele que tinha recuperado e dado um novo sentido aos
grandes conceitos e símbolos homéricos – como sejam o escudo (fr. 5
W.), a coragem e a aretê guerreira (e.g. frr. 1-3 W.) – denota a influên-
cia da épica também na forma. Repare-se, tão só, nas formas de intro-
dução e conclusão do discurso (vv. 9, 42), mas também nos epítetos e
nos símiles, matéria linguística sobre a qual adiante nos deteremos.
Não nos chegou a abertura do fragmento, que, para alguns
críticos, e a avaliar pelas suas imitações helenísticas, seria consti-
tuída por um monólogo pastoral4, algo como um pequeno quadro
da jovem colhendo flores – topos estruturante de todo o código bu-
cólico posterior – para, depois sim, entrar em cena aquele que será
o seu atacante, qual leão que procura capturar a sua cerva, segun-
do símile atestado nos próprios versos do papiro (v. 47). No fundo,
estamos perante o quadro inicial do Hino Homérico a Deméter, um
dos mais antigos do seu conjunto. Também o cenário do despertar
de Ulisses entre os Feaces e a figura de Nausícaa que brinca en-
4
Terá sido neste sentido que houve quem considerasse o texto do papiro, na genera-
lidade atribuído a Arquíloco, uma das várias imitações helenísticas conhecidas.

49
Carlos A. Martins de Jesus

quanto aguarda que seque a sua roupa, ou ainda o mito do rapto


de Europa pelo touro branco de Zeus, todos eles são paralelos que
se podem estabelecer.
O que primeiro temos de seguro é uma cena de sedução. O su-
jeito masculino procura a aproximação lenta e compassada da figura
feminina que com ele dialoga, e esta defende-se das suas investidas,
demonstrando contudo uma clara compreensão pelo que julga ser a
desilusão amorosa deste homem: o verso 2 mais não é do que um
incentivo à perseverança na adversidade, resultante por certo das pa-
lavras de desafogo inicialmente proferidas, mas que desconhecemos
quase por completo.5 Apercebendo-se do desejo que domina o ho-
mem que tem diante de si (v. 3), aconselha-o a virar as atenções para
outra com quem possa casar. Outra mulher ou donzela que não pode
porém ser Neobule, já que é ela a responsável pela desilusão e pelo
desejo em que arde este indivíduo. Isto é, não descartamos a hipótese
amplamente defendida de Neobule ser irmã da jovem interveniente
no poema, mas recusamos admitir que seja ela quem ansiosamente es-
pera pelo casamento (v. 5).6 E falamos de casamento para o referente do
discurso desta moça – seguindo a proposta de reconstrução textual de
West – de modo a acentuar o contraste com as verdadeiras intenções
do seu companheiro.
Logo depois, entre os versos 13-15, o indivíduo refere-se às
muitas delícias de Afrodite reservadas aos varões, além da coisa divi-
na. Esta expressão, para a qual diversas traduções foram sugeridas,
tende a ser vista pelos críticos como sinónimo de relação sexual.7
E fica prometida uma outra conversa, sobre este mesmo assunto,
5
Dizemos quase pois partilhamos da conjectura dos que consideram o fr. 196 W.
parte da abertura da narrativa deste epodo, mais propriamente os versos 2/3: “mas vence-me,
minha amiga, um desejo que deslaça os membros”.
6
Curiosa a opinião de J. C. Kamerbeek 1976: 121, ao sugerir que a jovem se oferece a
ela própria em casamento, atrevida, servindo-se para tal de uma engenhosa – porém reveladora
– terceira pessoa verbal.
7
cf. Alcm. fr. 8 Page; Sapph. fr. 44 A; Pi. P. 9. 84sqq.; Alc. frs. 308 e 327 Voigt. Para
uma discussão mais ampla sobre as possíveis traduções desta expressão, vide D. E. Gerber 1999:
215 e C. Calame 1999: 35-36.

50
A flauta e a lira

para quando cair a noite (vv. 16-18). Insinuam-se já as verdadeiras


intenções do diálogo, que serão concretizadas na parte final, isto é –
e como veremos – o gozo dos prazeres eróticos com a companheira,
sem contudo se chegar a concretizar o coitus. Uma espécie de preli-
minares, digamos assim, considerando a consumação sexual a refe-
rida coisa divina, ainda fora dos interesses imediatos do atacante.
Depois do verso 20, lamentavelmente muito imperceptível,
onde contudo podemos supor a referência ao desejo que a jovem nele
desperta, temos as primeiras imagens obscenas do poema; “arco” e
“portais” (v. 21:), a par de “herbosas margens” (vv. 23-24) são clara-
mente metáforas da zona genital feminina, sugestivas da presença do
macro-elemento bucólico no próprio corpo da jovem. O que se pro-
mete, quase com ar ameaçador de quem faz algo contra a vontade do
parceiro (v. 24), é o que encontraremos no final do poema: a cena de
estupro (que ousamos considerar consentido), aí sugerida pela me-
táfora náutica. Tudo isto ganha um sentido especial se recordarmos
que, no início do seu discurso, o poeta fizera referência à mãe da sua
vítima, Anfimedeu, realçando bem ao estilo da épica que o Hades a
tinha já engolido (vv. 11-12). A moça estava portanto moralmente des-
protegida, sem ninguém que a aconselhasse e a advertisse dos peri-
gos resultantes da sua ignorância sexual, completamente à mercê dos
desejos deste homem.8
Segue-se a referência desdenhosa a Neobule, por antítese (si-
mulada) com a donzela que agora tem na sua presença. O acusativo
Neobule[n (v. 24), em início de frase, remete para a categoria sintác-
tica da relação, isto é, supõe um assunto já aflorado anteriormente,
ao que tudo indica na abertura do texto, para nós perdida. Podemos
perceber nestes versos, ainda longos (vv. 24-41), o típico enamorado
abandonado que, por isso mesmo, fala da antiga prometida como a
mais leviana das mulheres. Começa por desejar que ela seja de outro
8
Este é um papel que a tradição, desde os tempos mais remotos, atribuiu à mãe.
Veja-se o caso de Nausícaa (Od. 6. 25), figura por diversas ocasiões comparada com a perso-
nagem feminina do nosso epodo.

51
Carlos A. Martins de Jesus

homem (v. 25); refere-se-lhe como sendo velha (v. 26), comparando-a
a uma fruta que cai de madura9; e desenvolve em seguida a rica metá-
fora da flor da virgindade que, uma vez murcha, desprovida da bele-
za das suas pétalas, significa uma pureza já perdida (v. 27). Por tudo
isto, é lançá-la aos corvos! Andar na companhia de tal mulher é motivo
de vergonha e de repúdio por parte dos vizinhos (vv. 32-34). Daí que
a preferência recaia nesta outra jovem, por ser tudo o que Neobule
não era – sincera, honrada. Mas volta sem demora à mulher que ainda
agora caracterizou como a mais reles das prostitutas, para acentuar
essa mesma imagem. Até que ponto não significa esta obsessão em
dizer mal de alguém a incapacidade de superar a sua ausência? Não
estaremos perante a génese da antítese catuliana do odi et amo?
Nos versos subsequentes, a mulher que lhe fora negada é
comparada a uma mítica cadela (v. 41). Tudo leva a supôr a refe-
rência a uma fábula, posteriormente cristalizada por Esopo (Fab.
251 Hausrath), onde uma cadela e uma porca discutem a ferti-
lidade de ambas, e esta acusa a primeira de gerar filhos cegos.
Arquíloco recuperaria então a história no sentido de apontar a
prostituta como responsável pela deformação moral e física da
sociedade, uma degeneração que tem início na sua ninhada. Ela
é um monstro de impudor e lascívia, que consigo traz apenas o
mal. O envolvimento sexual com um ser deste tipo é então um
acto imundo e que deixa sequelas nas crias geradas. Fica assim
mais uma vez provado que Neobule, a quem se referiram os últi-
mos versos, não é a mesma donzela dos versos 5-6. Se no início do
fragmento se falava de parthenos (“rapariga” ou, no limite, “vir-
gem”), fala-se agora (vv. 30 e 33) de gyne (“mulher”).
Neobule e os seus estão já, chegados a este ponto do poema,
completamente desmoralizados. Licambas teria visto os vícios sexuais
das filhas enxovalhados na praça pública. Mas o poeta não está ainda

9
Repare-se no tratamento dado a este tema por Safo (fr. 105 Lobel-Page), referindo-se
a uma noiva já pouco jovem.

52
A flauta e a lira

satisfeito. Falta a descrição, que se quer realista e perfeita, da violação


da jovem (que, admitamos mais uma vez, em prol de uma censura
mais completa, é também filha de Licambas). Nesta cena final (vv. 42-
53) abandona-se o discurso directo. O narrador, participante – note-se
a primeira pessoa que domina os seus comentários – descreve o acto
violento do estupro, mas fá-lo num registo lento e pausado, o que nos
leva a considerar que se cruzam aqui dois vectores: um cenário bu-
cólico, quase propício ao encontro idílico dos apaixonados (que é, em
simultâneo, categoria narrativa e código metafórico) e o acto obsceno
do homem que prende a sua vítima pelo pescoço, para depois ter uma
ejaculação precoce. A jovem é levada para o campo e estendida “num
leito de flores” (vv. 42-43), o cenário de um coito nunca concretizado.
Eis um dado revelador de ironia e genialidade: é entre flores frescas
– símbolo de virgindade – que a vítima quase é desflorada. E falamos
do mesmo elemento, da mesma flor que, desprovida das suas pétalas,
tinha antes caracterizado a devassidão de Neobule (v. 27).
Se já o verso 43 sugere violência, o agarrar pela força, a pri-
meira marca flagrante de brutalidade surge-nos no verso 45: o sujei-
to prende a parceira pelo pescoço, impedindo-a assim de escapar às
suas intenções. Um cenário bucólico para uma cena violenta, portan-
to, já que a jovem parece oferecer, de início, alguma resistência. Os
versos 46-47 poderão significar que a donzela suplica ao atacante que
a largue, agitando-se freneticamente, até que se acalma, e é então que
quase é possuída. De qualquer modo, faz todo o sentido a inclusão do
símile curto “como uma cerva” (v.47), comparando a vítima ao animal
que, começando por fugir e resistir ao predador, não tarde desiste de
lutar e se rende à força quase titânica de quem o quer dominar. Nos
versos homéricos, estes animais, seres de poucas forças e indefesos,
são já colocados em pastos verdejantes e temem os leões (e.g. Il. 4. 23;
22. 1; 8. 248; 22. 189; 21. 29; 15. 579 e Od. 4. 336; 17. 127; 19. 230). Com
este aspecto de pureza e sensibilidade contrasta o sujeito masculino,
o leão que persegue a sua presa. E também o cenário bucólico vem

53
Carlos A. Martins de Jesus

no seguimento da imagem da cerva, projectando a virgindade ainda


inviolada dessa jovem. A tónica é posta na tranquilidade, no corpo
fresco e sensual de uma virgem brutalmente tocado pelas mãos áspe-
ras e selvagens de um guerreiro. Um corpo cândido que é vítima de
ultraje; a branca tez de um peito profanada pelas mãos imundas do
seu atacante impiedoso. O verso 50 pode sugerir a fase da puberdade
– numa acepção de tipo fisiológico –, mas pode também ler-se à luz de
outras concepções exóticas e místicas, do campo semântico da magia.
As duas noções não são, contudo, inconciliáveis: é um corpo jovem
que, talvez por isso mesmo, exerce uma espécie de encantamento so-
bre quem o contempla; a virgindade de uma rapariga, troféu por mui-
tos desejado mas acessível a um único homem, afortunado.
O orgasmo (vv. 51-53) dá-se precocemente, pelo simples to-
car dos cabelos da parceira. O “vigor” do verso 52 concordaria com
um adjectivo para nós ilegível (à excepção da sua terminação) que R.
Merkelbach considerou ser leuk[on (“branco”) e M. West, seu com-
panheiro na editio princeps do papiro, veio a defender tratar-se de
therm[on (“quente”). Qualquer que seja a solução pela qual se opte,
a referência ao esperma é óbvia, bem como a precipitação da ejacula-
ção.
A imagem final dos cabelos louros (v. 53), qual divindade ho-
mérica, encerra o poema com a sensualidade feminina, de uma pu-
reza bastante agradável à vista do autor do estupro. No entanto, o
termo pode também referir-se à zona púbica que, de clara tonalidade,
reforça ainda mais a juventude da vítima, a sua frescura e inocência.
Finalmente, podemos conceber, sem grande ousadia, que seria o sim-
ples toque entre ambos os órgãos sexuais o causador do prazer sexual
precipitado, antes de haver lugar à penetração – o coitus ante portas.
Ou seja, a violação não chega a ser consumada. O atacante, revelando
uma evidente simpatia pela sua vítima, limita-se a introduzi-la no
mundo das delícias de Afrodite, como que reservando para outra opor-
tunidade o prazer máximo da sua desfloração.

54
A flauta e a lira

Qual o contexto poético em que devemos ler os versos que


analisámos? Tudo leva a crer que a utilização de linguagem erótica
ou obscena em poesia remonte aos cânticos orais de um qualquer ri-
tual religioso, talvez em honra de Deméter, de onde surgiu também
o metro iâmbico, claramente mais próximo da linguagem quotidiana.
Era este um excelente meio de vingança, pois o sexo, como o canta
Arquíloco, reduz o indivíduo à condição animalesca, completamen-
te desprovido de razão e de sentimentos. A obscenidade de que se
serve é propositada e intencional. Visa transformar a mais delicada
donzela de família na perfeita scortum scorteum das míticas terras da
Tessália, partindo do princípio muito próprio da Antiguidade de que
Eros sempre foi uma força terrível, um nósos que afecta a humanidade
e a corrompe, inundando-a de impudor. Mas nem o impudor deixa, a
dado momento, de agradar ao poeta.
Cultor também da mais apolínea sensualidade feminina, ex-
pressa em fragmentos como 30, 31 e 118 W., Arquíloco envereda pela
construção de um autêntico código sexual obsceno, referindo-se, em
ricas imagens, ao envolvimento sexual, normalmente violento (cf. frs.
119 e 125 W.) ou ao acto da felattio (frs. 42, 43 e 46 W.). Noutros ver-
sos preservados mostra-se num estado de alienação dado pelo desejo
sexual extremado, que o faz perder o controlo de si e sentir-se atolado
numa libido inebriante e contraproducente (frs. 191, 193 e 196 W.). O
presente fragmento pode pois integrar-se numa categoria da poesia
iâmbica de dialecto iónico, conhecida pelas suas narrativas eróticas
na primeira pessoa, com representantes como Arquíloco, Íbico, Semó-
nides e Hipónax, entre outros. Textos com uma linguagem acutilante,
ora explícita ora poeticamente dissimulada.
Podendo ou não tratar-se de uma fonte, foi por diversas vezes
apontado o paralelo entre o fragmento que estudámos e o episódio da
Dios apate da Ilíada (14. 312 sqq.)10. Ambos os poemas retratam uma
10
A semelhança estrutural entre os dois textos é tal que há mesmo diversas coincidências lin-
guísticas que levam a supor, não sem razão, que Arquíloco poderia ter em mente a realização de uma
espécie de paródia ao passo épico. Vide J. Henderson 1976: 166-167 e J. Van Stickle 1975/76: 1-15.

55
Carlos A. Martins de Jesus

cena de sedução e a realização do encontro sexual, descrito de forma


simbólica. Essencialmente na parte final (vv. 346-351), são muitas as
semelhanças. As divindades em causa deitam-se num campo onde
crescem erva, açafrão e jacinto – note-se a sinestésica descrição – e
os amantes são cobertos por uma nuvem (quando no papiro se usa
um manto). Arquíloco poderá muito bem ter adaptado este modelo
ao género iâmbico, resultando o produto final numa clara redução
do decoro que animava o passo épico, onde se moviam deuses como
protagonistas.
Eis a pequena história, a pequena narrativa de recorte dramá-
tico que nos conta o Papiro de Colónia. Não nos é muito difícil, de facto,
imaginar a cena como é descrita, graças à riqueza plástica e semântica
dos versos preservados. Um visualismo que contempla, num mesmo
texto, tópicos de bucolismo a par de outros que sugerem a violação.
Uma descrição simultaneamente subtil e grotesca, obscena e genial-
mente dissimulada pelos recursos poéticos de que se serve, que faz de
uma mesma figura menina e devassa, inocente e promíscua, ignorante
mas animada por uma imensa curiosidade pelos assuntos de Eros.
Um texto que não pode deixar de se impor como modelo primordial
de todo o género satírico.

56
A flauta e a lira

As flechas da calúnia
Estêvão Rodrigues de Castro e a recepção de Arquíloco
no Renascimento1

Perdidos, na sua maioria, os textos em que o poeta de Pa-


ros teria levado a cabo a desmoralização de Licambas e das suas
filhas, esta tradição percorreu no entanto os séculos, sobretudo a
partir dos autores que a referiram. Já Píndaro (P. 2.52-56 = Archil.
test. 35 Gerber) se serve do modelo poético de Arquíloco, con-
denando o uso mal orientado do seu talento. Ou seja, ao psogos
(desonra poética), prefere o poeta tebano o epainos (elogio). E o
ateniense Cratino, comediógrafo de quem mais não conservamos
do que fragmentos, escreveu mesmo uma comédia intitulada Ar-
chilochoi (frs. 1-16 K-A).2 Num dos fragmentos mais discutidos,
comodamente intitulado “salsa de Tasos” (fr. 6 K-A), teria Cratino
desenvolvido a imagem de um assado onde a própria família de
Licambas é a carne que grelha, vítima dos virulentos ataques do
iambógrafo.3 A introdução de um coro de Arquílocos, segundo R.
M. Rosen 1988: 154, é sintomática das novas orientações invecti-
vas que ganhara, com Cratino, a comédia ateniense.
Merecem ainda destaque, para os nossos propósitos, esses
outros passos em que autores latinos se lhe referem. Horácio trata
a lenda em diversos momentos. No epodo 6. 11-14 (= Archil. test. 25
Gerber) ameaça o seu interlocutor de lhe fazer como fez Arquíloco a
Licambas, isto é, de o desonrar publicamente através da sua poesia, a
mais eficaz e mortífera das armas que possui:
1
Texto inicialmente publicado, com acrescentos aqui suprimidos, na revista Huma-
nitas 2007: 241-256.
2
Os fragmentos da comédia são citados por R. Kassel e C. Austin 1983.
3
Em específico sobre este texto vide R. Prestagostini 1982: 43-52.

57
Carlos A. Martins de Jesus

Cuidado! Cuidado! É que contra os malvados me eriço


com os cornos sempre prontos,
tal qual o genro enganado pelo infiel Licambas
ou o azedo inimigo de Búpalo.

O scholium ad loc (= Archil. test. 26 Gerber) funciona também


como uma boa síntese do entendimento que, ao tempo, seria fei-
to da lenda, transmitindo precisamente todos os dados que acima
referimos. É ainda o vate de Mecenas quem, em epist. 1.19.23-31
(=Archil. test. 27 Gerber), orgulhoso por ter transportado para a
língua latina o metro iâmbico, diz não ter sido seu projecto artísti-
co usá-lo para desonrar ninguém. Mas terá talvez sido o verso 79
da Epistola ad Pisones (Archilochum proprio rabies armauit iambo) o
que mais andou na boca e na pena dos intelectuais do Renascimen-
to, como adiante confirmaremos. Ovídio (Ibis 53-54 = Archil. test.
30 Gerber) procede como Horácio, desta feita contra Íbis, a quem
ameaça dirigir os seus iambos virulentos caso este seu destinatário
não mude de atitude:4

E mais te digo: se insistes, contra ti o meu indomável iambo


embebidos no sangue de Licambas há-de lançar os seus dardos.

E Marcial (7. 12. 5-8 = Archil. test. 32 Gerber), ele próprio cultor
do género invectivo, serve-se do exemplo de Licambas para designar
todos esses versos viperinos que muitos lhe atribuem e que diz não
serem da sua autoria:

Que me aproveita que alguns desejem fazer passar por meus


os dardos embebidos em sangue de Licambas
e que, sob o meu nome, se vomite o viperino veneno
que os raios de Febo e a luz diurna se negam a suportar?5

4
Também nos versos 521-524 da mesma obra volta Ovídio a referir-se à lenda,
acompanhada da de Hipónax. O passo é valioso pela afirmação ovidiana – impossível de
confirmar –, de que Arquíloco foi o inventor (repertor) do género iâmbico.
5
Tradução de Delfim Leão (2001), Marcial. Epigramas. Vol. III, Coimbra, p. 19.

58
A flauta e a lira

Pelos testemunhos que até agora apontámos percebe-se cla-


ramente como a figura do poeta Arquíloco, já então convertida em
lenda, funcionava para os autores latinos simultaneamente como pa-
radigma poético e da raiva que pode ser desferida por uns versos
aguçados, quando dirigidos contra este ou aquele indivíduo que, de
algum modo, prejudicou o autor. Mas eles provam também como à
palavra poética invectiva era já reconhecido um notável valor literá-
rio, que a enquandrava num género bem definido e em nada menos
meritório. Antes de nos centrarmos nos textos de Estêvão Rodrigues
de Castro, cumpre averiguar qual o tratamento de que foi alvo a len-
da durante o Renascimento Europeu. Só assim poderemos, em segui-
da, ousar identificar as fontes mais directas de que se terá servido o
médico e poeta português dos séculos XVI e XVII, cuja leitura deu o
mote para este estudo.
A primeira edição moderna de poesia grega a incluir frag-
mentos de Arquíloco, ao que pudemos confirmar, data de 1566, uma
edição de Henri Étienne – de que conservamos na Biblioteca Geral
da Universidade de Coimbra uma 5a edição6; mas nenhum texto do
poeta aí contido estava directa e explicitamente relacionado com a
lenda dos Licâmbidas. É que a tradição, como vimos acima, parece
ter chegado ao Renascimento por via indirecta, ou seja, em especial
pelas citações e comentários de autores latinos aos textos arquiloquia-
nos, por esses outros passos em que o exemplo do iambógrafo tinha
sido retomado, ou mesmo pelo conjunto das obras de carácter enci-
clopédico que, desde a Idade Média até ao Renascimento, prolifera-
ram pela Europa. Um bom exemplo destas últimas é A. Alciato que,
no seu livro de Emblemata,7 vai colher inspiração ao epigrama 7. 71
6
Pindari Olympia, Pythia, Nemea, Isthmia caeterorum octo lyricorum carmina, Alcaei,
Sapphus, Stesichori, Ibyci, Anacreontis, Bacchylidis, Simonidis, Alcmanis, nonnulla etiam aliorum.
Editio V graecolatina H. Stepha. recognitione quorundam interpretationis locorum, & accessione lyri-
corum carminum locupletata. Genevae, Oliva, Pauli Stephani, 1626. [Cota: UC-BG (B. Joanina)
1-2-9-81]
7
A editio princeps dos Emblemata de Alciato data de 1531. No entanto, a obra foi sendo
reeditada até ao século XVIII, com a inclusão sucessiva de novos emblemas e comentários cada

59
Carlos A. Martins de Jesus

da Antologia Palatina (= Archil. test. 22 Gerber) para a elaboração do


emblema 51 (s.v. “maledicentia”) ao qual faz seguir o seguinte dístico
elegíaco:

No túmulo de Arquíloco, esculpidas em mármore, vespas


tinham sido feitas, da sua língua terrível pequeno símbolo.

Quanto ao emblema em si, ele conheceu três versões distin-


tas, nas diversas reedições da obra, duas das quais reproduzimos no
“Apêndice Iconográfico” (figs. 2-3). Frederico Moreli, o comentador
da edição que seguimos, das mais tardias e completas (1621)8 é bas-
tante claro ao justificar porque considera mais adequada a última ver-
são do emblema (“Apêndice Iconográfico”, fig. 3): “foi construído um
túmulo de mármore, à volta do qual estão vespas, insectos de génio
malvado, por todos os lados. Apesar de certas edições as mostrarem
a voar contra [o túmulo] ou saídas do túmulo, esta representação é a
mais coerente, por mostrar as vespas esculpidas (de que fala o epi-
grama) em vez de vivas.” Mas, pelo texto do epigrama 7.71, qualquer
uma das versões faz sentido:

Este túmulo, junto ao mar, é de Arquíloco, que em tempos a azeda


Musa foi o primeiro a armar da cólera de Equidna,
manchando de sangue a quietude do Hélicon. Bem o sabe Licambas,
que deplora o enforcamento das três filhas.
Ao de leve, passa ao lado, caminhante, e jamais
atices as vespas que rodeiam o seu túmulo.

Muito embora a Antologia Palatina não fosse muito divul-


gada até 1606, data em que Claude de Saumaise a terá descoberto

vez mais vastos, até àquela que é considerada a última edição relevante, impressa em Madrid,
em 1749.
8
Andrea Alciati Emblemata / cum commentariis Claudii Minois... Francisci Sanctii... et no-
tis Laurentii Pignorii, novissima hac editione in continuam unius commentarii seriem congestis... et
plusquam dimidia parte auctis, opera et vigiliis Joannis Thuilli; accesserunt in fine Federici Morelli, ...
corollaria et monita. Patauii, apud Petrum Paulum Tozzium, ex Typographia Laurentii Pasquati,
1621. Existe um exemplar desta edição na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (Cota:
UCBG-R-30-21).

60
A flauta e a lira

num códice do séc. XI, a relação de Arquíloco com a imagem da


vespa9 parece denunciar que o epigrama a que acima aludimos se-
ria já do conhecimento de A. Alciato. O próprio comentador da edi-
ção dos Emblemata que seguimos identifica já o paralelo com este
texto (“Conserva-se um epitáfio de Arquíloco, onde se vê o emble-
ma que escolhemos, no livro terceiro dos Epigramas Gregos”),10 mas
não é completamente seguro afirmar que Alciato o tivesse presente
aquando da composição deste emblema. O texto poderia de facto
ser conhecido – e tudo leva a supô-lo –, mas tal conclusão não é con-
dição sine qua non para explicar a inspiração clássica deste emblema,
muito embora, repetimos, a proximidade seja quase inegável. É que
a associação de Arquíloco à imagem da vespa remonta já a um passo
de Calímaco (fr. 380 Pf. = Archil. test. 36 Gerber), que se refere à arte
do iambógrafo nestes termos:

prolongou a mordaz cólera de um cão e o aguçado aguilhão


de uma vespa, e de ambos tem o veneno em sua boca.

De resto, Calímaco incluíra a edição Aldina de Píndaro (Ve-


neza, 1513),11 se bem que o autor helenístico tivesse já sido editado
por Lascaris (Florença, 1494). Qualquer que seja a fonte que tome-
mos como mais influente sobre Alciato, o que parece certo é que a
imagem seria comum no Renascimento. Prova mais do que suficien-

9
Também Hipónax, iambógrafo do séc. VI a.C., foi associado à imagem vespa, pela
acutilância dos seus versos contra Búpalo e Aténis (vide supra, págs. 39-46). No século V a.C., a
caracterização do coro de Vespas de Aristófanes tem por base o génio irritadiço desses animais,
metáfora do temperamento em tudo semelhante dos Atenienses.
10
A que edição da Antologia se refere o comentador? Muito embora a primeira edição
(ainda parcial) date de 1754 (Anthologiae graecae a Constantino Cephala conditae libri tres, Leipzig),
e a primeira completa de 1772-1776 (Analecta veterum poetarum graecorum, Strasbourg), sabemos
que, desde a descoberta do códice do séc. XI (1606), Saumaise copiara os epigramas que falta-
vam à já conhecida Antologia de Planudes, não levando a bom porto, no entanto, o projecto de
edição completa. Daí que, esporadicamente, alguns textos pudessem de facto ser conhecidos e
ter incluído uma edição, em três livros, que contivesse essencialmente a Antologia de Planudes e
alguns textos já da Antologia Palatina.
11
Pindari Olympia, Pythia, Nemea, Isthmia. Callimachi hymni qui inveniuntur. Dionysii de
situ orbis. Lycophronis Alexandra. Venice, Aldus-Asulanus, 1513.

61
Carlos A. Martins de Jesus

te disso mesmo são os quatro adagia que Desidério Erasmo contem-


plou e se referem, de algum modo, a Arquíloco e à lenda dos Licâm-
bidas. Publicados pela primeira vez em Paris, no ano de 1500,12 em
pleno dealbar do século XVI, e pese embora o esforço de censura da
Inquisição, esta obra seria do conhecimento de qualquer intelectual
do Renascimento. Os números 57, 58 e 80 correspondem, respectiva-
mente, aos provérbios Archilochia edicta, Archilochi patria e Archilochi
melos, sendo que os dois primeiros se referem à poesia invectiva e
à sua força de maledicência.13 Mais importante é o número 90; o
pisar ou tropeçar em Arquíloco parece ser uma adaptação do texto de
Eust. in Hom, Od. 11.277 (= Archil. test. 24 Gerber), para além de
recordar o epitáfio da Antologia Palatina que temos vindo a discutir.
Como uma cobra ou um escorpião que se não deve pisar, também
pela tumba desse poeta deve passar-se ao longe, não vá despertar a
vespa adormecida.
Pelos casos analisados, parece-nos pois coerente depreender
que os grandes responsáveis pela recepção da lenda arquiloquia-
na terão sido os latinos Horácio, Ovídio e Marcial (em especial os
dois primeiros), além dos epigramas da Antologia Palatina, apesar
de, como vimos, o conhecimento explícito destes últimos não ser
ausente de questionação. A. Alciato e Erasmo parecem igualmente
ser marcos importantíssimos neste percurso de transmissão, funcio-
nando como cristalizadores da lenda na sua versão renascentista.

12
O exemplar mais antigo conservado entre nós, na Biblioteca Geral da Universida-
de de Coimbra, é de uma edição de 1528: Adagiorum opus Des. Erasmi Roterodami per eundem
exquisitiore quam antehac unquam cura recognitu[m], nec parum copioso locupletatu[m] auctario...,
Basileae, ex Officina Frobeniana, 1528 (Cota: UCBG-4-10-17). Um outro exemplar conservado
na mesma Biblioteca, datado de 1572, apresenta marcas de ter sido expurgado pela Inquisição
(Cota: UCBG- S.P.-Ad-17-9).
13
O caso de Archilochi melos (“o canto de Arquíloco”) refere-se a um hino de vitória (fr.
324 W.), dedicado a Héracles, que foi em tempos atribuído a Arquíloco. A ele alude Píndaro (Ol.
9.1), entre outros autores. M. L. West 21998 considera o texto de atribuição duvidosa, preferindo
encará-lo como um canto de circunstância, de origens orais, não da autoria do iambógrafo de
Paros.

62
A flauta e a lira

Estêvão Rodrigues de Castro e o aguilhão arquiloquiano

Médico e poeta, nasce em Portugal por volta de 1559-1560 e


vem a morrer em Itália, a 30 Junho de 1638.14 É bacharel em Artes em
1585, obtendo o grau de licenciatura no ano seguinte. Matricula-se
em Medicina nesse mesmo ano, concluindo a sua formatura em 1588.
Exerce ainda medicina em Lisboa durante praticamente duas décadas
mas, talvez pela sua sempre precária situação de judeu convertido ao
Cristianismo – uma conversão que poucos aceitam como sincera –
abandona Portugal já quase com cinquenta anos, em 1608. À pátria,
como tantos outros do seu tempo, não mais havia de regressar, antes
de a terra pender sobre os seus ossos. Permanece algum tempo em
Espanha e em França, mas é em Itália que acaba por fixar-se, em Flo-
rença, a partir de 1610/1611. Aqui se destaca como médico brilhante
e de renome, o que o leva a ser nomeado Catedrático de Medicina
Teórica na Universidade de Pisa, lugar que ocupa até ao ano lectivo
de 1635/1636.
Tendo alguns dos seus poemas sido publicados ainda em vida
de seu autor, sobretudo em apêndice a obras técnicas e científicas do
campo da medicina, o grosso da sua produção literária (em Portu-
guês, Castelhano, Italiano e Latim) apenas seria reunido e publicado
pelo seu primogénito Francisco Rodrigues de Castro. Interessa-nos
particularmente o conjunto de epigramas em Latim que seguem em
apêndice ao seu comentário do tratado De Alimento de Hipócrates
(Florença, 1635). Em grande parte deles, volta-se o autor para a polé-
mica científica e literária, defendendo-se de acusações que lhe tinham
sido feitas e atacando, ele próprio, os seus inimigos. E é justamente
para este fim que concorrem as alusões feitas à lenda de Arquíloco e
dos Licâmbidas.
14
Estas e outras datas relativas ao percurso biográfico de Estêvão Rodrigues de Cas-
tro são discutidas em pormenor por G. Manuppella 1967: 47 sqq. Vide ainda, do mesmo autor,
a entrada na Enciclopédia Verbo, s.v. ‘Castro, Estêvão Rodrigues’ e o mais recente artigo de M. T.
Geraldes Freire 1991: 27-47.

63
Carlos A. Martins de Jesus

G. Manuppella 1967: 75-80 desenvolve de forma sistemática


a grave polémica que se terá instaurado entre Estêvão Rodrigues de
Castro e um outro médico, professor da Universidade de Bolonha,
de nome Fortúnio Liceti. Tudo terá começado quando, em 1631, Li-
ceti publicou uma crítica acérrima ao ensaio De Asitia de Rodigues
de Castro (Florença, 1630). Este último vai então responder no pri-
meiro volume do seu De Alimento (Florena 1635). Com os textos que
trataremos de seguida, como parece claro, estamos no início das de-
savenças.
Logo no epigrama que abre a colecção anexa ao primeiro vo-
lume do De Alimento vemos, em epígrafe, a dedicatória in triobolum
maledicorum Persius Trevius, alias Petrus Servius, remetendo para o mé-
dico Pietro Servi, natural de Spoleto, que tinha escrito, também ele,
um livro contra o De Sero Lactis de Estêvão Rodrigues de Castro. No
decurso do poema, é referido Liceti (v. 10). Para estes injuriadores, a
ameaça do autor desonrado é clara: o enforcamento (vv. 14-15), que
pode já encaminhar-nos no caminho da recepção da lenda de Arquí-
loco. Mas é três epigramas adiante que tal modelo se torna de todo
evidente. Falamos dos dois textos com o número 87, com a epígrafe
“Epigrama sobre o nosso Licambas”, o primeiro dos quais tece mes-
mo um resumo da lenda que nos ocupa:

Em tempos Arquíloco, vazio de esperança mas cheio de raiva,


com quem o sogro havia brincado em face de terrível mentira,
as Musas, as Musas vingadoras num clamor invocava;
logo com o sangue de Licambas temperam as suas armas.
Contra a noiva, contra o sogro a feroz Musa armou seus iambos, 5
com os quais lhe lança a rede, castigo da traição,
[de todos os lados.
Surge agora, no tempo que é o nosso, um pior Licambas,
a quem lançam a rede as mentiras e a má língua.
Ó coisa digna de riso e lágrimas! Buscar honraria
e pelo mísero amor da honra à forca ser arrastado. 10
O que quer que faça, o que quer que escreva ou o que quer que diga,
tudo há-de ser devolvido ao seu pescoço.

64
A flauta e a lira

Não é completamente segura a identificação do alvo da invec-


tiva como sendo qualquer um dos acima mencionados Fortúnio Liceti
ou Pietro Servi, pese embora o facto de a publicação destes textos ser,
como vimos, o primeiro momento de resposta de Estêvão de Castro
à polémica que com o primeiro desses médicos se havia instaurado.
Particularmente interessantes são de qualquer modo as duas expres-
sões que destacámos, prova suficiente do conhecimento textual da
tradição, em especial a partir dos textos latinos que acima referimos.
De facto, o verso 4 recorda esse outro de Mart. 7.12.6 (Si qua Lycambeo
sanguine tela madent), bem como o dístico de Ov. Ibis 53-54, que de
novo transcrevemos:

E mais te digo: se insistes, contra ti o meu indomável iambo


embebidos no sangue de Licambas há-de lançar os seus dardos.

O sangue de Licambas, símbolo da sua morte, é motivo com


frequência convocado para exemplificar as consequências da ma-
ledicência. Assim era já entre os autores latinos, e assim continua
a ser a partir do Renascimento. Evocativo da recepção latina da
lenda é o sintagma armare iambos (v. 5), ao que tudo leva a crer
colhido em Hor. Ars. 79 (Archilochum proprio rabies armauit iambos).
Bastante próximo é também, no verso 4, a adaptação do sintagma
temperare Musam (Hor. epist. 1. 19. 88), que não excluímos ser do
conhecimento do autor. Tendo em conta a profícua divulgação da
obra horaciana no Renascimento, não é difícil aceitar esta inspira-
ção clássica para o passo que estamos a tratar.
Licambas é uma vez mais o exemplo usado no segundo epigra-
ma com o número 87, texto que não revela, contudo, grande mestria
poética:
Perguntas porque contra ti se renovam os antigos iambos?
Porque te toma a nossa idade por Licambas?
Estes hábitos te assentam bem: mentiras, traições,
rudeza de engenho e moleza de génio.

65
Carlos A. Martins de Jesus

Temos a identificação do iambo como género literário da in-


vectiva, designação ligada mais à semântica dos seus versos do que,
propriamente, às questões métricas que originalmente o definiam.
Era isso que se via já nos epigramas da Antologia Palatina, mas tam-
bém os latinos – de que Horácio e Marcial são o melhor testemunho
– se orgulhavam de ter vertido para a língua do Lácio o metro iâmbi-
co, tão habilmente cultivado por Arquíloco, um orgulho que, no caso
destes últimos, aludia essencialmente à forma desse género poético.
As acusações feitas versam o mau carácter do alvo da invectiva (v. 3),
mas também a fraqueza de génio poético e a precária técnica literária
desse autor, segundo o binómio horaciano engenho e arte.
Terminamos com a referência ao epigrama 91, outro caso de
invectiva contra Fortúnio Liceti, médico e professor natural de Ra-
pallo, que neste texto é erroneamente considerado de Recco:15

Contra ti armaria a minha Musa ferozes iambos,


soubesses tu o dano que podem causar-te.
Porque te impressiona o crime, se não te envergonha ser criminoso?
Se não tens cara, uma bofetada que mal te fará?

Volta a ocorrer o sintagma armare iambos, que já acima comen-


támos, mas é pelos trocadilhos de difícil versão do último dístico (sce-
lus /scelestum e facies / faciet) que o poema ganha maior expressividade
e valor literário.
Outros exemplos menores poderiam abonar a tese de que Estê-
vão Rodrigues de Castro, que escreveu já na terceira década do século
XVII, se fez receptor de uma tradição antiga que identificava o iambó-
grafo de Paros com a poesia invectiva. Uma tradição que, chegados ao
Renascimento, é recuperada de forma tópica e superficial, assente so-
bretudo nos testemunhos latinos sobre a lenda – ou nos poetas do Lácio
que nela se inspiraram –, para além dos textos da Antologia Palatina que
a transmitiram e, de algum modo, a ajudaram a construir.

15
Assim o esclarece G. Manuppella 1967: 424.

66
A flauta e a lira

Pretendemos com isto afirmar que, pese embora as origens


tardias desta lenda, na sua génese fruto de interpretações demasiado
biografistas dos textos do poeta, terá sido a partir do Período Hele-
nístico que ela se configurou nos principais traços com que a vamos
reencontrar a partir do século XVI.

67
Carlos A. Martins de Jesus

68
A flauta e a lira

Baquílides de Ceos

69
Carlos A. Martins de Jesus

70
A flauta e a lira

Fama, a que tudo vê e tudo conta


Epinício 2

Dedicada, à semelhança da Ode 1, a Argeu de Ceos, por


ocasião da sua vitória no Istmo, ao que tudo indica na prova
de pugilato para rapazes, 1 a segunda ode epinícia do corpus de
Baquílides, dos textos mais curtos nele contidos, não deixa de
revelar, nos breves catorze versos que a compôem – uma tría-
de completa –, algumas das marcas mais expressivas do estilo
do seu autor. E isto num poema epinício que não contempla,
desde logo, a narrativa mítica, o que leva a crer tratar-se de um
canto de circunstância.
Avia-te, ó Fama que dás glória imensa, estrofe
para Ceos, a sagrada, e leva
a nova de gracioso renome,
que na luta de audazes punhos
Argeu obteve vitória; [5]

e recordou os êxitos que no afamado antístrofe


estreito do Istmo, ao deixar
a divina ilha de Euxanto,
patenteámos com as nossas
setenta coroas. [10]

E a musa do lugar invoca epodo


o doce ressoar das flautas,
para honrar com cantos epinícios
o filho amado de Pântides.

1
Nem sequer a natureza da prova foi imune a polémica. De facto, perdeu-se a epígrafe do
epinício 1, e o texto de ambas as odes dedicadas à mesma vitrória no Istmo admite duas hipóteses: o
pancreácio e o pugilato. Inclinamo-nos, como a maioria dos estudiosos, para esta segunda hipótese, até
porque é o próprio Baquílides quem dá conta da propensão dos habitantes de Ceos para essa modalidade
(Odes 6. 7).

71
Carlos A. Martins de Jesus

Do seu destinatário, conterrâneo do poeta, informa-nos uma


inscrição de Iulis (Inscriptiones Graecae 12. 5. 608) que venceu duas
vezes nos Jogos Ístmicos, ainda jovem, tendo também alcançado o
triunfo nos Jogos Nemeus e em Olímpia, vitória esta celebrada por
Baquílides nos epinícos 6 e 7. Sendo que podemos datar esta última
do ano de 452 a.C., os críticos tendem a aceitar, para as vitórias no
Istmo, o lapso temporal situado entre os anos 460 e 452.
Teria sido o epinício 1 a composição oficial a celebrar o triun-
fo, cuja execução deveria assinalar o regresso à pátria do atleta. Já a
curiosa ode que estamos a comentar, incomparavelmente mais breve,
teria como propósito ser apresentada no local da vitória, logo após
a obtenção do feito desportivo. O poema assume-se pois como um
canto de ocasião – que não deixa por isso de revelar um cuidado es-
forço poético –, um canto que, no entanto, promete em si mesmo um
outro mais elevado, mais digno, quem sabe, do vencedor que se está
a elogiar.
O poema segue uma ordem lógica, harmoniosamente dis-
tribuída pelas três estrofes que o enformam. Para começar, são-nos
apresentados o vencedor e a vitória obtida, cujo anúncio é no entanto
precedido pela invocação não à Musa, mas à Fama, entidade fantás-
tica da mitologia que adquire, no poema, a função de arauto da boa
nova, a notícia da vitória que é qualificada de charitonymon (‘de gra-
cioso renome’, vv. 2-3), ou seja, que às Graças vai buscar inspiração.
E é esse mesmo canto que a Fama deve fazer chegar até Ceos, onde
nova e mais canora homenagem é de esperar que tenha lugar.
A Fama, filha da Terra, foi por sua mãe gerada como forma
de vingança contra os deuses olímpicos, na altura em que estes ful-
minaram os Titãs e os Gigantes que contra eles se tinham insurgido.
A ela se referia já Hesíodo (Trabalhos e Dias, 760-764) – e é de crer que
Baquílides conhecesse estes versos –, mas a mais completa descrição
que desta figura nos chegou, bastante posterior, pertence a Virgílio

72
A flauta e a lira

(Eneida 4. 173-188),2 que dela diz ter tantos olhos quantas são as suas
penas, e em mesmo número as bocas, as línguas e os ouvidos. Mons-
tro horrendo – assim se lhe refere o poeta latino – a Fama é a figura
que tudo vê, tudo ouve e tudo conta, a perfeita personificação do Ru-
mor ou do Boato, a quem notícia alguma escapa. Ainda invocada por
Baquílides no começo, bastante fragmentado, do epinício 10 (vv. 1-7),
e sem a carga de monstruosidade que lhe atribui Virgílio, é pelo poeta
tratada, à semelhança das Musas ou das Graças, como uma divindade
que “concede glória imensa” (semnodoteira, v. 1).
Glória que pertence ao atleta, em primeiro lugar, mas que se
estende, nas asas da Fama que cortam os ventos, à pátria que viu nas-
cer a ambos, vencedor e poeta que o canta. Disso dão conta os versos
da antístrofe. É que uma vitória nos jogos não é algo de singular e
autónomo, antes o culminar de uma herança étnica e genética que,
no Istmo, teria já resulado em “setenta coroas”, isto é, setenta outras
vitórias das gentes de Euxanto. Não é contudo forçoso admitir, como
se procurou já demonstrar, que uma ilha tão pequena tivesse obtido
setenta vitórias nos Jogos Ístmicos. Mais correcto é talvez entender
este número como símbolo de uma grande quantidade de triunfos,
motivo sobremaneira enaltecedor dessa terra que, uma vez mais, viu
um filho seu superar a própria condição de mortal. Disso se encar-
regarão ambos, poeta e Fama, para além da “Musa local”, a tríplice
equipa capaz de evitar que tão importante feito caia no esquecimento
dos séculos.
É de resto a Mous’ authigenes (v. 11) quem convoca “o doce
ressoar das flautas” (v. 12), numa alusão ao canto exigido para o re-
gresso do herói à pátria. Estão de facto bem presentes, nesta última
estrofe, noções étnicas e genéticas. Se aceitarmos, como parece cor-
recto, que o adjectivo authigenes se refere à Musa da terra pátria do
vencedor – e não à do Istmo – é ela quem reclama cantos de vitória
2
Influenciadas por Virgílio foram as descrições poéticas da Fama empreendidas por Horácio,
Odes 2. 2. 7, Ovídio, Metamorfoses 12. 39-63, Valério Flaco, Argonáuticas 2. 117 sqq. e Estácio, Tebaida
425-431.

73
Carlos A. Martins de Jesus

(epinikiois, v. 13) para o “filho amado de Pântides” (v. 14), o ainda


jovem atleta Argeu.
Uma Musa que é sujeito sintáctico, no poema, e se evidencia
no papel de agente principal da acção de glorificação do atleta, da sua
família e da sua pátria. No intermeio de tudo isto estão duas entida-
des: uma divina, a Fama de milhares de olhos, milhares de ouvidos
e milhares de bocas, e uma outra, que pelo canto aspira a semelhante
divindade - o poeta.

74
A flauta e a lira

O galo de Urânia
Epinício 4

Ainda ama a cidade de Siracusa estrofe 1


Apolo de dourada cabeleira,
e honra Hierão, seu justo governante;
pois pela terceira vez, junto do umbigo da Terra escarpada,
como vencedor Pítico ele é celebrado, [5]
graças ao valor dos cavalos de pés velozes.
Cantou já o galo de doce voz
de Urânia, senhora da lira;
mas agora, de espírito propício,
novos hinos lhe arremessou. [10]

E uma quarta vez, se em equilíbrio estrofe 2


algum deus sustivesse a balança da Justiça,
louvaríamos o filho de Deinómenes.
É portanto lícito que o único entre os mortais
que nos vales de Cirra, que o mar cerca, [15]
conseguiu tal feito, o cubramos de coroas
e duas vitórias olímpicas
lhe celebremos. Que há de melhor, a quem
é amdo pelos deuses, do que de todas as partes
receber da Sorte a sua porção? [20]

Hierão de Siracusa, famoso tirano a quem Píndaro dedicou


a Ode Olímpica a que os alexandrinos concederam o privilégio de
encabeçar o livro dos seus epinícios, é também ele o destinatário de
mais esta breve composição de Baquílides, com bastante segurança
datada de 470 a.C. À semelhança da ode 2, também este poema teria
sido executado no local da vitória, imediatamente após o triunfo de
Hierão em Delfos, na corrida de carros. Para o actual estado material
do texto muito contribuiu, em 1938, a publicação de um fragmento
disperso do grande Papiro de Londres por M. Norsa, que o adquiriu

75
Carlos A. Martins de Jesus

a um comerciante do Cairo.1 Assim se reconstituiu o que com grande


grau de certeza é uma ode completa, composta apenas por duas es-
trofes de dez versos cada.
O facto de a extensa Pítica 1 de Píndaro, com os seus 100 ver-
sos, celebrar exactamente a mesma vitória, levou os críticos a consi-
derar que Hierão tivesse encomendado cantos epinícios a ambos os
poetas, sendo que teria sido Píndaro o eleito para compor a ode ofi-
cial, com fins políticos mais marcados. A diferente conclusão chegou
H. Maehler 2004: 101, ao considerar sintomática dos propósitos polí-
ticos do poema pindárico escolha do adjectivo Aitnaios para Hierão,
ao que tudo leva a crer alusivo ao poder que o monarca exerceria já
sobre toda a zona do Etna. Por seu turno, Baquílides refere-se-lhe com
o tradicional Syrakosios,2 aludindo a Siracusa, sua terra natal. Como
tal, considera o autor que estamos a seguir que a ode do tebano teria
mesmo sido encomendada para ser executada no Etna – um autêntico
jogo de propaganda –, enquanto que a de Baquílides poderia bem ter
sido enviada pelo próprio poeta, antes do concurso, prevendo já a vi-
tória de Hierão. Para cotejo deve ainda entrar o fr. 20 C de Baquílides,
um encómio que se julga ter sido composto e enviado pelo poeta para
apresentação num festim organizado por Hierão no Etna.
Porque de uma vitória em Delfos se trata, a ode principia com
a alusão ao deus que nesse local tem o seu templo, Apolo, que recebe
o tradicional epíteto chrysokomas (v. 2), comum na épica, na poesia
de Hesíodo e na lírica arcaica.3 Referido o deus, é ao atleta que se
dirigem as palavras seguintes, no fundo a maior parte da ode (vv.
3-18). No texto de Baquílides, a afeição de Apolo por Siracusa não se

1
M. Norsa 1941: 155-163. O conhecimento da obra de Baquílides sofreu uma revolução im-
pressionante quando, na década de noventa do século XIX, se descobriu um papiro que continha, segundo
a editio princeps de F. G. Kenyon 1897, catorze epinícios, seis ditirambos e uma série de fragmentos
noutros géneros poéticos.
2
O Papiro Oxirrinco 2222, um catálogo de vencedores, refere-se a Hierão precisamente com
o qualificativo Syrakosios.
3
Alguns exemplos da recorrência com que este epíteto é aplicado a Apolo: Ilíada, 4. 2; Hesío-
do, Teogonia 947; Alcman, fr. 1 PMG; Píndaro, Olímpicas 6. 41, 7. 32, Píticas 2. 16.

76
A flauta e a lira

justifica pelo facto de esta ser uma cidade onde o culto ao deus é par-
ticularmente significativo, antes e só porque dela é natural o vencedor
que se está a elogiar. A razão dessa honra, que ambos, deus e poeta,
prestam a Hierão e à sua cidade, é em seguida explicada: uma vitória
em Delfos, o “umbigo da terra escarpada”4 (v. 4) que, para mais, não
é a primeira. O poeta é claro ao apontar o triunfo presente como o ter-
ceiro deste atleta5 (v. 4), e considera mesmo que poderia esta vitória
ser já a quarta, não fosse um desarranjo da justiça ter negado ao tirano
um merecido primeiro prémio (vv. 11-13).
Numa dessas ocasiões, pelo menos, teria já o poeta procedido
à celebração do triunfo de Hierão. No contexto de uma das mais ri-
cas metáforas animais de todo o corpus conservado de Baquílides, o
poeta é assimilado ao “galo de Urânia”6 (v. 8), o animal que desperta
quem o escuta para a luz do dia, marcando deste modo uma fronteira
entre as trevas da noite – metáfora do esquecimento – e a luz do sol
– imagem da glória e da imortalidade pela poesia. A melhor prova
de que o galo é metáfora do próprio poeta reside no adjectivo que o
qualifica, adyepes (v. 7), o “de voz doce”, para além de ser habitual, em
Baquílides, o recurso a outras imagens animais para o mesmo efeito:
ele é uma abelha na ode 10 (v. 10), um rouxinol na ode 3 (v. 97) e uma
águia, mensageira de Zeus, na ode 5 (vv. 19 sqq.). O galo, que não
tem já para nós a carga poética de um rouxinol ou de uma abelha,
conservava no entanto, para os Gregos, um profundo lirismo. Anun-
ciador da manhã, arauto dos primeiros raios de sol, além de sugerir
a glória poética de que a luz do dia é símbolo, era também o animal
combatente por natureza, pelo que, no contexto da ode epinícia, pode
funcionar como nuntius uitoriae.
É o galo (poeta) ainda o sujeito do poema, pelo menos até ao
verso 10, passo em que Baquílides dá mostra do valor da sua técni-
4
Pausânias 10. 16. 3 informa que a pedra colocada no centro do templo de Apolo em Delfos
era considerada um marco do centro do mundo. A isso alude também Píndaro, Pean 6. 17.
5
Hierão tinha de facto sido triunfante, na mesma prova, nas 26ª e 27ª Píticas (482 e 478 a.C.).
6
É o próprio Baquílides quem se assume servo de Urânia, a sua Musa de eleição (Odes 5. 13 sqq.).

77
Carlos A. Martins de Jesus

ca descritiva, fortemente impressionista e pictórica. A dedicatória de


cantos epinícios a Hierão vem referida com a forma verbal epeseisen
(v. 10), que à letra signfica “agitar”, muito provavelmente no cumpri-
mento ainda do quadro metafórico de um galo que pavoneia, orgu-
lhoso, as suas penas, imagem da palavra poética.
Não falta o elogio da ascendência do vencedor, na pessoa de
Deinómenes, seu pai (v. 13). Mas num ápice se regressa ao elogio do
atleta, que em tom hiperbólico é apresentado como o único dos mor-
tais (mounon epichthonion, v. 15) que conseguiu tal feito naquelas para-
gens de Delfos, essa terra tão cara a Apolo, cujos vales, cercados pelo
mar, recebem por isso o epíteto anchialoisi (v. 14), de sabor homérico.
A ele, Hierão, é lícito que todos os seus súbditos, chegado que seja à
pátria, o cubram de coroas, em celebração não apenas dessa vitória,
mas de todas as outras, entre as quais se contam duas em Olímpia.
Não deixa de parecer estranha a alusão, neste ponto, aos triunfos con-
seguidos nos Jogos Olímpicos, em 476 e 472 a.C. (dya t’ olympionikias,
v. 17),7 o que levou mesmo alguns autores a entenderem que o verso
era corrupto e a reconstruí-lo de forma a evitar a referência a Olímpia.
No entanto, não nos é difícil conceber um poeta que, ávido de crédi-
to – e em que patrono melhor buscá-lo do que Hierão? – se esforçou
por incluir, num mesmo poema, todo o curriculum deste vencedor.
Virando-se para a corte de Siracusa, como fizeram Píndaro e Simóni-
des, tem Baquílides consciência da oportunidade que isso representa
para a sua carreira de músico profissional itinerante.
Para terminar como começou o poema, aproveita Baquílides
o exemplo do atleta celebrado e constrói os últimos três versos com a
gnome, parte fundamental do género epinício que busca a universali-
zação de determinada regra de conduta moral. Numa ode sem mito, a
mensagem final não decorre do exemplo de um herói lendário, antes
foca, uma vez mais, o valor da poesia. Porque é querido aos deuses
7
O triunfo de 476 a.C. foi imortalizado quer por Píndaro (Olímpicas 1) quer pelo próprio
Baquílides (Odes 5). Quanto à vitória de 472 a.C., estranhamente, dela não conservamos qualquer com-
posição poética.

78
A flauta e a lira

(theoisin / philon, vv. 18-19), agradará a Hierão receber toda a espécie


de graças, toda a espécie de favores que provenham da Sorte (apo
Moiran, v. 20); como tal, há-de agradar-lhe o canto presente, sinal, no
limite, do amor que a ele e à sua cidade devota esse Apolo de cabelos
loiros, que a todos os poetas fornece inspiração. Essa é, pelo menos, a
esperança deste poeta que busca mecenas.
Toda a ode 4 se apresenta como um canto sobre o próprio can-
to, uma composição que encontra, na mais recente vitória pítica de
Hierão, um pretexto para algo que resulta claro da sua leitura: a busca
de patrocínio. Mesmo ocultando este objectivo, por ventura menos
nobre, a capa que o esconde faz ressoar bem alto, qual galo de Urânia
que anuncia o dia que desponta, o valor poético da arte de Baquílides,
mestre exímio de uma narrativa plástica, impressiva e imagética.

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Carlos A. Martins de Jesus

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A flauta e a lira

Flores de canções doces como o mel


fragmento 4 M.

Certamente dos textos mais interessantes e comentados de


Baquílides, o fragmento 4 M. ficou famoso em especial pelos versos
61-80, um emocionado e expressivo hino à Paz que aproxima o poeta
lírico do ideário partilhado pelos mais significativos representantes
da literatura grega do século V a.C. Não parece haver dúvidas de que
o texto é um péan, género originalmente ligado ao culto de Apolo.
...
E gera a Paz para os mortais
riqueza, portadora de grande fama,
e flores de canções doces como o mel;
faz com que nos bem torneados altares
a loira chama queime coxas [65] estrofe 3
de bois e ovelhas de rica lã,
que os jovens em exercícios gímnicos,
flautas e cortejos se entretenham.
Nas esculpidas pegas de ferro dos escudos,
das escuras aranhas se notam as teias, [70]

as lanças pontiagudas e as espadas antístrofe 3


de dois gumes, destrói-as a ferrugem.
(faltam duas linhas)
das brônzeas trompetes não se ouve o estrépito, [75]
nem o sono, da doçura do mel,
das pálpebras é arrebatado
à manhã que conforta o coração.
De amáveis banquetes se enchem as ruas
e os cantos para rapazes alastram como labaredas. [80]
(faltam dez linhas)

Depois de vinte linhas iniciais, para nós totalmente perdidas,


os primeiros versos que nos é possível ler – e que aqui não traduzi-

81
Carlos A. Martins de Jesus

mos – referem-se, como já notaram na Antiguidade Ateneu (178 b) e


Zenóbio (2. 19), à estada de Héracles na casa de Ceíx, em Tráquis. O
que está em causa, nos sessenta versos inicias – dos quais perdemos,
na totalidade, pelo menos trinta e oito (vv. 1-20 e 25-39) – é a narração
da etiologia do templo dedicado a Apolo Piteu em Ásine, a cerca de
10 km da Nauplia, na Argólida, recinto sobejamente conhecido na
Antiguidade, a avaliar desde logo pelo testemunho de Pausânias (2.
36. 4-5).1
Conta o mito, uma vez mais segundo Pausânias (4. 34. 9), que
o povo que viria a habitar Ásine, os então desigandos Dríopes, habi-
tavam no Parnasso. Contra eles lutou Héracles, por razões que não
são isentas de discussão, levando-os depois para Delfos para aí os
consagrar a Apolo, que lhe vaticinou que os levasse para o Pelopone-
so, mais propriamente para Ásine, na Argólida (vv. 41-43). Aí devia
esse povo fixar-se, e cabia ao filho de Alcmena demarcar os limites do
novo território com oliveiras vergadas até ao solo (vv. 44-48). Só mais
tarde Melampo, um adivinho, fundaria nesse local um altar e um re-
cinto consagrados a Apolo (vv. 48-53), que Baquílides diz claramente
ter sido “a raíz deste [recinto” (kein]as apo rizas tode chr[esmoidion, v.
54). Fica pois confessada, ao concluir a narração do mito, a intenção
etiológica que presidiu à sua inclusão no texto.
Não é clara a forma como o texto original faria a transposição
deste mito para o hino de louvor aos benefícios da Paz. Os versos 55
sqq. parecem descrever as graças que o deus, agradado pelo recinto
que lhe foi erigido, derramou sobre esse local, e a referência à pros-
peridade (ol[bon, v. 59) denuncia que seria esse o elo a unir o final do
epodo 2 à estrofe 3.
Eirene (paz) e ploutos (riqueza) são os dois conceitos – também
divindades – em jogo entre os versos 61-80, o trecho que já Estobeu (4.
14. 3) nos transmitiu isoladamente, citando a autoria de Baquílides,
1
Informa o autor que, muito embora a cidade tenha sido destruída pelos Argivos no século
VIII a.C., o santuário foi poupado e terá continuado a ser o centro religioso da região. Daí que seja possí-
vel que a composição de Baquílides tenha sido executada in loco.

82
A flauta e a lira

como se de um verdadeiro hino à Paz se tratasse. Eirene (vv. 61.62)


ocupa o lugar destacado de sujeito durante os primeiros sete versos
deste passo (vv. 61-68); dela provêm todas as benesses que aos mor-
tais é dado obter, das quais a primeira e a mais concreta é a riqueza,
granjeadora de grande fama (megalanora plouton, v. 62), uma riqueza
que se mede em todos os níveis da vida humana. Desde os Poemas
Homéricos que a riqueza é a consequência mais imediata da paz (e.g.
Odisseia 24. 486); em Ésquilo (Suplicantes 555) e num fragmento de
Eurípides (fr. 453 Nauck) – só para dar dois exemplos da tragediogra-
fia do século V a.C. – a paz recebe mesmo, à semelhança do texto de
Baquílides, o epíteto bathyploutos (“imensamente rica”).
Prossegue Baquílides a concretização simbólica dessa relação,
pintando por palavras dois dos mais ricos e sinestésicos quadros de
toda a sua produção conservada. Só em períodos de paz florescem
canções da doçura do mel (v. 63)2 e, em homenagem à divindade,
ardem nos altares as vítimas sacrificiais, consumidas pela “loira cha-
ma” (v. 65). É notável o pormenor visualista que atinge a narração,
quando se classificam os altares de “bem torneados” (daidaleon, v. 64)
e, das vítimas que sobre eles são imoladas, se refere a nobreza da sua
lã (eumalon, v. 66). Ao mármore dos altares (implícito), ao suave tacto
da pelugem dos animais e ao dourado da chama que os consome,
acrescenta o poeta, neste quadro inicial de intenso sabor sinestésico,
a agitação e o barulho próprios da juventude eufórica, ocupada em
exercícios, música e cerimónias religiosas (vv. 67-68).
Num derradeiro momento (vv. 69-72 e 75-80) o cenário é guer-
reiro, de um belicismo no entanto apagado e adiado, como que sere-
namente adormecido na quietude escura e fria de uma sala de armas
onde há muito ninguém entra. Assim o permite a paz e a prosperi-
dade que se fazem sentir. Delicadas e precisas são as pinceladas que
retratam por palavras as “esculpidas pegas de ferro dos escudos”,
2
Já Hesíodo dizia que a Paz fazia florir as cidades e os seus habitantes (Trabalhos e Dias,
227-229). Na Teogonia (902), quando se refere ao nascimento da deusa – ela que é uma das Horas, filhas
de Témis e Zeus – esta recebe o epíteto tethaluia (‘florescente’).

83
Carlos A. Martins de Jesus

tomadas pelas teias de pequenas aranhas escuras (vv. 69-70), quais


pontos negros bem visíveis numa tela que da côr do ferro está pin-
tada. E de armas postas de lado, porque inúteis, vai ainda falando o
poeta, que nelas nota, com satisfação, a acção perniciosa do tempo e
da ferrugem (vv. 71-72).
Grande fama teve, na Antiguidade, o motivo das armas aban-
donadas. Se Arquíloco afirmara abertamente ter deixado para trás o
escudo como forma de escapar à morte (fr. 105 W.) – mas dizia, por-
menor tantas vezes ignorado, que o fizera contrariado –, o que está
em causa no texto de Baquílides não é uma moral anti-épica, antes
a total inutilidade das armas em período de paz. É que até o mais
valente Ájax ou Heitor preferiria a paz às agruras da negra guerra. O
quadro da armaria esquecida em frios cantos da casa, de que a humi-
dade tomou já conta, traz de imediato à memória o fragmento 357 L-P
atribuído a Alceu (sécs. VII-VI a.C.):

A enorme casa resplandece de bronze. O tecto está todo adornado


com elmos brilhantes, ondeiam os brancos penachos das crinas de cavalo,
adorno das cabeças dos guerreiros. As cnémides resplandecentes,
defesa contra o dardo potente, ocultam os cabides donde pendem.
As couraças de linho novo e os escudos côncavos amontoam-se no chão.
Ao lado jazem espadas da Calcídica, cinturões inúmeros e túnicas.
Disto tudo não nos esqueçamos, desde que empreendemos esta tarefa.3

Também ele um quadro profundamente pictórico, onde se


misturam o brilho dos elmos e o branco dos penachos, remete para
a mesma sensação de abandono que nos é transmitida pelo texto do
poeta de Ceos, e seria também um elogio da paz, não fosse o incenti-
vo, de sabor bélico, do verso 6. Pelo menos três epigramas votivos da
Antologia Palatina actualizam o mesmo tema. Ânite de Tégea (6. 123)
dedica a uma lança, abandonada na quietude do templo de Atena,
dois dísticos carregados de côr e sentimento; e Mnesalcas, em outros
dois epigramas (7. 125 e 7. 128), refere-se a um escudo abandonado,
3
Tradução de M. H. Rocha Pereira 92005: 130.

84
A flauta e a lira

saudoso no entanto dos heróicos tempos em que sentia sobre si, a


toda a hora, o vigor das flechas dos inimigos.4
Mas porque não há, no texto baquilidiano, qualquer guerra
para prosseguir na manhã seguinte, não se ouve com a Aurora que
desponta o altivo som das trombetas; da doçura do mel (meliphron),
como o canto, é também o sono (v. 77), que não mais tem que ser
interrompido ao raiar do sol para deletério combate.5 Recuperando
o cenário de festa que Héracles, na narrativa mitológica do início
do poema, encontrara na sua visita a Ceíx (v. 22) – seria também
esse, afinal, um cenário de paz e prosperidade, capaz de convocar o
hino final? – novamente se alude às ruas animadas de banquetes e
pelos cantos a rapazes, de assunto homoerótico (paidikoi th’ hymnoi,
v. 80).6
O cenário final é de euforia e descontracção; numa palavra,
felicidade. O caso do hino à paz assume-se como um texto sem
paralelo possível na literatura do tempo, pelo menos até que os
anos da Guerra do Peloponeso, na segunda metade do século V
a.C., levassem outros poetas como Eurípides e Aristófanes a lou-
var os benefícios da paz. Do primeiro, não cabendo neste espaço
qualquer abordagem ao tratamento do tema em peças como Hé-
cuba (424-423 a.C.), Suplicantes (422 a.C.?), Troianas (415 a.C.) ou
Helena (412 a.C.), recordamos em especial, pelas similitudes com o
texto de Baquílides, o fr. 453 Nauck, da tragédia Cresfonte (ao que
tudo indica de data anterior a 425 a.C.), quando da Paz se diz que
é “dispenseira de riquezas e a mais bela entre os imortais.”7 O
caso do poeta cómico é especial, pois que à dialéctica paz / riqueza
4
O tema chegaria aos autores latinos. Entre os líricos, o caso de Tibulo 1. 10. 49-50 é, talvez,
o melhor exemplo.
5
Imagem semelhante encontramos em Píndaro, Píticas 9. 23-25.
6
Duas são as interpretações possíveis para paidikoi hymnoi: ora canções entoadas por ra-
pazes, ora canções de amor em honra de rapazes, de temática, portanto, homoerótica. H. Maehler 2004:
234 prefere esta segunda opção – que também nós seguimos –, em especial pela forma verbal usada
nesse verso, phlegontai, que alude à imagem do fogo e da paixão como uma chama cujas labaredas se
propagam no ar.
7
Tradução de J. Ribeiro Ferreira 21993: 372.

85
Carlos A. Martins de Jesus

dedicou duas comédias, inituladas precisamente Eirene (421 a.C.)


e Ploutos (388 a.C).8
O século IV, também ele um período negativamente rico em
conflitos militares, seria o mais propício à defesa do valor da koinê Ei-
renê, uma paz universal para o mundo grego, de que o Discurso sobre a
Paz de Andócides, proferido em pleno contexto da Guerra de Corinto,
em Atenas, no ano de 491 a.C., é um marco incontornável. O culto ofi-
cial à deusa Eirene seria introduzido na cidade por volta de 374 a.C. A
iconografia desta deusa – pois que da personificação de um conceito
abstracto estamos a falar – desde cedo conciliou as noções de paz e
riqueza, prosperidade e abundância. São disso símbolos, em especial,
a cornucópia e o próprio deus Pluto (a Riqueza), filho de Eirene e, por
norma, representado como uma criança ao colo da mãe, que para ele
olha com ternura. Uma ânfora datada de 360 / 359 a.C. mostra bem
essa associação entre as duas divindades, mãe e filho, sendo que é
o último quem segura na mão a cornucópia da abundância. Mas a
peça mais significativa da Antiguidade terá sido o imponente grupo
escultórico intitulado Eirene, da autoria de Cefisódoto – do qual não
conservamos senão uma série de cópias – que se crê que, por volta de
370 a.C., estivesse exposto na ágora de Atenas (Apêndice Iconográfi-
co, fig. 4).9
Paz, riqueza, prosperidade e abundância. Tudo isso concorre
para o desenhar dos quadros de paz – literários e iconográficos – que
proliferam em especial nos anos de guerra, estejam em conflito Gre-
gos contra bárbaros ou Gregos contra Gregos. Elogiar a paz é, nesses
períodos, uma necessidade compensatória. No tempo de Baquílides,
no entanto, a ausência de outros textos semelhantes permite-nos, uma
vez mais, atribuir-lhe a palma dourada da inovação.

8
Sobre o tratamento aristofânico do tema, em especial em Paz, vide J. Ribeiro Ferreira
2
1993: 423-442.
9
Vide LIMC 3, s.v. ‘Eirene’ (especialmente as figuras 6, 7 e 8).

86
A flauta e a lira

Novidades papirológicas

87
Carlos A. Martins de Jesus

88
A flauta e a lira

Poetas gregos nas areias do Egipto


Algumas relíquias papirológicas trazidas a público1

O ano de 2005 ficará por certo na memória dos classi-


cistas pelas inúmeras relíquias que, paulatinamente, vieram à
luz, saídas de fragmentos de papiros até então perdidos ou sim-
plesmente impossíveis de decifrar. Textos que continuamente
colocam em cheque todas as opiniões que aspiravam à certeza,
verdadeiros documentos com o poder de iluminar velhas dúvi-
das, suscitar outras ou mesmo abalar todo um sistema cultural
ou religioso.
Em Oxirrinco, 2 antiga cidade grega do Egipto, duran-
te os séculos III a.C. e VIII d.C. os habitantes depositavam os
manuscritos que já não utilizavam numa vasta área, uma es-
pécie de lixeira papirológica, local que começou a ser explo-
rado em 1897 por Bernard Grenfell e Arthur Hunt. Esta dupla
de arqueólogos viria a dar origem à actual Egipt Exploration
Society (EES), até à data a responsável pela edição dos papi-
ros decifrados. Todo o material recolhido nos finais do século
XIX foi armazenado na Sacker Library (Oxford), onde gerações
de estudiosos têm feito o seu tratamento, leitura e publicação.
A colecção, a mesma que em 1992 deu a conhecer ao mundo
a famosa Elegia de Plateias de Simónides, conta com cerca de
500.000 papiros de diferentes dimensões, a maior parte deles

1
Publicado no Boletim de Estudos Clássicos 44 (2005: 11-15).
2
O site oficial de Oxirrinco, onde podem ver-se a história da cidade, os índices, as
imagens dos papiros publicados e ainda a explicação das novas técnicas de tratamento de ima-
gem utilizadas, é o seguinte: www.papyrology.ox.ac.uk. No site da sociedade pode ainda obter-
se um pequeno curso on-line de papirologia, com a oferta de exercícios práticos de decifração
de papiros (www.lib.umich.edu/pap/k12/k12.html).

89
Carlos A. Martins de Jesus

em língua grega, 3 sendo que apenas cerca de 5000 estão deci-


frados (1% da totalidade).
Dirk Obbink, professor da Universidade de Oxford e um dos
responsáveis pela edição dos papiros, falou em entrevista à National
Public Radio de Inglaterra (20 de Abril de 2005) sobre o manancial de
papiros ainda ilegíveis, o que começa a ser superado pela aplicação
de novas técnicas multi-espectrais de imagem, desenvolvidas pela
NASA. Estas técnicas tinham já sido aplicadas na vila romana de
Hercullanum, em 1999, para ler papiros carbonizados aquando da
erupção do Vesúvio (79 d.C.). Consistem, muito brevemente, na
aplicação de filtros sucessivos que vão isolando diversas frequências
de luz. Para cada papiro é utilizada uma frequência específica (de
infravermelhos ou mesmo, em alguns casos, ultravioletas) que permite
ir destacando o preto da tinta do fundo escurecido do papiro. Este
procedimento começou a ser utilizado em Oxirrinco a partir de 2002,
e só agora começam a vir a público os primeiros grandes resultados
do seu uso. Estalou a polémica no segundo trimestre deste ano.4
No volume 69 dos papiros, o destaque pertence ao papiro
atribuído a Arquíloco (P. Oxy. 69. 4708 = “Apêndice Iconográfico”, fig.
5) que em seguida comentaremos. Podem no entanto ler-se textos de
Hermas, textos poéticos adéspotas, de Lísias e Isócrates (o autor mais
representado no volume, com 21 fragmentos) e uma pequena relíquia
do Dialogi deorum de Luciano (P. Oxy. 69. 4738). A acrescentar a estes,
há uma série de textos não literários, já habituais nestas colecções.5
Os próximos volumes da EES, segundo as notícias que têm vindo
a público, prometem textos inéditos de Hesíodo, Sófocles6 (um

3
O grego passou a ser a língua oficial do Egipto a partir de Alexandre o Grande (séc.
IV a.C.), pelo que é natural que a maioria dos papiros esteja em grego, a par de uma minoria de
textos em latim, copta, hebraico, persa e outras línguas.
4
Vide: D. Keys, N. Pyke 2005: 1, 3; J. Owen 2005.
5
Sabe-se que é prática corrente em Oxford atribuir o estudo destes fragmentos não
literários a estudantes, jovens investigadores que assim se iniciam nos domínios sempre impre-
visíveis da papirologia.
6
Vide A. Altichieri 2005 e U. Kulke 2005.

90
A flauta e a lira

fragmento da tragédia perdida, Epigonoi = P. Oxy. 71. 4807; “Apêndice


Iconográfico”, fig. 6), Eurípides (fragmentos do Telephos), Menandro
e Luciano. De Parténio, poeta do século I a.C., foi publicado um texto
que atesta um novo fim para a história mitológica de Narciso (P. Oxy.
69. 4711 = “Apêndice Iconográfico”, figs. 7-8)7, além de atestar outros
mitos de heróis que sofreram metamorfoses. O volume 70 publicou
já uma série de textos de Demóstenes, não todos inéditos, além de
textos bíblicos e de evangelhos apócrifos. No número 71 abundam os
escólios a Homero, os textos de evangelhos e esses outros de natureza
não literária.
Especial atenção parece estar a despertar um papiro já
publicado onde as novas tecnologias de imagem permitiram agora
ler o que se crê ser uma passagem do evangelho gnóstico de Maria
Madalena (P. Oxy. LV. 3814).8 Não deixa de ser curioso que o texto
tenha vindo a público num momento em que a polémica se instalou à
volta da verdadeira relação entre Jesus e Maria Madalena, em especial
depois da publicação do Código Da Vinci de Dan Brown. E isto porque
o texto, ao qual tivemos acesso apenas em tradução inglesa, refere
algo só identificável como uma lua-de-mel do casal, que viaja de barco
pelo mar Egeu. Dividido entre a missão de filho de Deus e a natureza
de homem, Jesus quer cumprir a missão do pai; Maria não pára de se
queixar, lamentando estarem a ser defraudadas as suas expectativas
em relação àquele casamento.
Foi em 1945 que um camponês árabe fez aquela que muitos
consideram a descoberta arqueológica mais valiosa do século XX,
em Nag Hammadi, a 500 Km do Cairo: 13 papiros escritos em copta,
datados do século III, contendo cópias do que se crêem ter sido
originais gregos de evangelhos não contemplados na tradição da
exegese bíblica. Maioritariamente de índole cristã, os manuscritos
incluem ainda textos da tradição pagã e judaica.9 O Evangelho
7
Vide o nosso estudo adiante (págs. 119-127) e o artigo de D. Keys 2004.
8
O texto foi anunciado e comentado, brevemente, por J. Sheen 2005.
9
Entre nós, foi recentemente publicado um artigo sobre estes textos: H. Barbas 2005.

91
Carlos A. Martins de Jesus

segundo Maria Madalena integrava já, no entanto, um códice papiráceo


conservado no Departamento de Egiptologia do Museu Nacional de
Berlim (BG 8502). Durante o século passado foram ainda decifrados
dois papiros provenientes de Oxirrinco, rapidamente identificados
com este evangelho apócrifo: P. Oxy. 41. 2949 e P. Oxy. 50. 3525. O
texto em grego que contêm não coincide por completo com a versão
copta. Crê-se que o original grego remonte ao século II d.C.10
Estes e outros achados, que aqui não coube comentar, são
uma boa amostra de doce ameaça que, cada vez mais, pende sobre os
estudiosos de literatura antiga: uma ameaça constante de novidade.
Em alguns anos, tudo leva a supô-lo, poderemos estar em posse
de textos que contrariam ideias e princípios há séculos tidos como
certos. Essa é, no fundo, a maior magia da Antiguidade: a sua perene
presença e capacidade de actualização.

10
Sobre o Evangelho segundo Maria Madalena, em particular, vide A. Piñero et alii 2005.

92
A flauta e a lira

Quando os Gregos sofreram terrível derrota


O novo P. Oxy. 69. 4708 atribuído a Arquíloco1

Depois de uma versão experimental, em rede durante vários


meses, Dirk Obbink presenteou o mundo com a sua edição crítica do
papiro, que atribuiu a Arquíloco, publicada no tão aguardado volu-
me 69 da colecção dos Oxyrhynchus Papyri, disponível apenas em Ou-
tubro de 2005. Sob a classificação de P. Oxy. 69. 4708 contam-se oito
fragmentos, sendo que é o fr. 1 aquele que pode ser lido enquanto
peça com unidade literária (30 linhas, 24 das quais maioritariamente
legíveis). A descoberta é tão mais importante se, a aceitar a atribui-
ção, pensarmos que é o maior fragmento elegíaco do poeta de Paros,
apesar das lacunas e do esforço de reconstituição necessário para a
sua leitura. É essa reconstituição, da autoria de Dirk Obbink (The
Oxyrrynchus Papyri 69 (Oxford 2005) 18-20, que aqui traduzimos e
comentamos, procurando aduzir alguns subsídios que julgamos per-
tinentes para a discussão da atribuição do texto. Discutiremos ainda
o seu enquadramento possível no actual corpus arquiloquiano, bem
como a sua importância em termos da versão do mito que atesta.
...
Se de facto é… pela invencível força de um deus,
fraqueza ou cobardia não cumpre chamar-lhe.
Virámos as costas para rápida fuga, que de fugir era a hora.
Também em tempos, sozinho, Télefo da Arcádia 5
dos Argivos pôs em fuga o numeroso exército. E bem fugiam
os valentes, a tanto o destino dado pelos deuses os impelia,
mesmo de lanças munidos. O Caíco de belas correntes
de destroços dos que tombavam transbordava, e a planície
da Mísia, enquanto ao longo da praia do mar marulhante, 10
aniquilados às mãos de um implacável mortal,

1
Artigo publicado, com texto grego e aparato crítico, na revista Biblos 2006: 399-422.

93
Carlos A. Martins de Jesus

em atropelo debandavam os Aqueus de belas cnémides.


Com alegria, nas naus velozes embarcavam
os filhos e os irmãos dos imortais, que Agamémnon
à sagrada Ílion levava para combaterem. 15
Desviados então da rota que seguiam, deram à costa.
Na bela cidade de Teutrante desembarcaram
e aí, recuperando o fôlego, eles e os cavalos,
por irreflexão gravemente o coração se aflige.
Pensavam a cidade de altas portas dos troianos invadir, 20
mas pisavam o solo da Mísia fértil em colheitas.
Héracles então os enfrentou, gritando ao magnânimo filho,
cruel e implacável nas agruras da guerra,
Télefo, que aos Dânaos funesta fuga provocando,
suportou na frente da batalha, por agrado ao pai … 25

W. B. Henry 1996: 26 reparou que o P. Oxy. 6. 854 (= fr. 4 W.) e


o P. Oxy. 30. 2507 (Adesp. Eleg. 61 W.) tinham sido escritos pela mes-
ma mão, daí a atribuição inicial do fragmento ao iambógrafo de Pa-
ros. O crítico baseou-se ainda, para a defesa da atribuição, no facto de
a linha 10 do texto ser também actualizada, admitindo variações, no
fr. 1 W. (cit. Ath. 627c). A descodificação do P. Oxy. 69. 4718 permitiu
então concluir que os três fragmentos pertenceriam a um único rolo
de poemas de Arquíloco, compostos no metro elegíaco.
Tudo o que vemos, na abertura do texto, é a referência à “in-
vencível força de um deus” (v. 2), face ao que não cumpre chamar
cobardia ou fraqueza à acção humana por ela determinada (v. 3). A
reconstituição do verso 4 parece confirmar que até aqui se vinham
narrando as agruras de uma batalha real (mais real pelo menos do
que a que se seguirá, do campo do mito), até ao momento em que a
fuga foi o último remédio. A desinência passiva de primeira pessoa
do plural (v. 4), ocorre exclusivamente neste ponto do texto, o que, a
par da mudança do tempo verbal do presente para o aoristo, nos ver-
sos seguintes, prova de forma suficiente a mudança de cenário e de
contexto. De facto, a partir do verso 5, tem início a narrativa mitoló-
gica, exemplo de um colectivo de heróis que, mais forte que qualquer
outro, foi também obrigado a desertar do campo de batalha: o embate

94
A flauta e a lira

entre Gregos e Mísios na terra destes últimos, com prejuízo para os


primeiros.
Que ambas as histórias, a real e a fantástica, se aproximam,
parece claro, apesar das lacunas das primeiras linhas. É clara a con-
cepção de um exército que, massacrado, evita a todo o custo uma
fuga que se tornará irreversível. Do mesmo modo fogem os Aqueus
face ao poder dos Mísios e, em especial, de Télefo, que o poeta in-
siste em dizer que tudo enfrentou sozinho (m]ounos). Tem aqui um
papel central o jogo óbvio entre os verbos phobeo e phebomai (vv. 6-7),
sendo que Télefo e a sua facção “põe em fuga” os Aqueus “que fo-
gem”, mesmo sendo valentes (v. 7) e homens munidos de lanças (v.
8). A linguagem utilizada não é estranha em Arquíloco. Várias relí-
quias de narrativas marciais atestam o termo stratos (frr. 88 e 112.3
W.), mas é pelo conhecido fr. 114 W. que podemos ver as mesmas
intenções irónicas de condenação da ideologia épica, já canónica no
iambógrafo. Igualmente comum nas narrativas marciais parcelar-
mente preservadas do poeta é o adjectivo aichmetes, especialmente
significativo para o que nos importa em 91. 5 W. e 324. 13 W.2, am-
bos exemplos do uso da expressão como aposto, semelhante ao que
encontramos no novo papiro (v. 8).
Começam a esboçar-se as intenções partidárias do poeta:
claramente a defesa do valor individual de Télefo (mais do que do
exército que comandava) em prejuízo da armada grega, na tradição
homérica exaltada até ao extremo. Podemos também olhar para a
questão de outra forma. Pelo epíteto que o caracteriza, Télefo é, na
verdade, um grego. O valor exaltado é pois, nesta ordem de pensa-
mento, o do indivíduo contra o colectivo; do eu contra o grupo, esse
eu que parece querer tomar o centro do mundo nos poetas do perí-
odo arcaico, o mesmo indivíduo que vale por ser corajoso e não por
ter um porte heróico, canonicamente heróico, como os heróis de Ho-
mero (fr. 114 W.). Um eu que, contudo – e porque tal é inerente a ser
2
Este fragmento é considerado espúrio por M. L. West 21998: 104.

95
Carlos A. Martins de Jesus

mortal – sofrerá também as agruras da moira e dos deuses; um único


homem que, à imagem só possível de Aquiles, eleva o seu valor aci-
ma do grupo que chefia (os Mirmidões num, os Mísios no outro) e
do que lhe é adverso (os Gregos e, em particular, Agamémnon, em
ambos os casos). A designação polyn straton (“poderosa armada”)
acaba então por soar irónica – da fina ironia a que o poeta nos habi-
tuou – quando vemos este exército ser repelido por um só homem.3
O curioso é que é em tom épico e mesmo homérico que esta inversão
de papéis ocorre no texto, todo ele cravejado de fórmulas e epítetos
cujas ocorrências fundamentais são os dois poemas épicos maiores
que preservamos.
Por outro lado, é transversal a todo o fragmento a noção de
que os gregos (convocados para exemplificar a retirada necessária da
armada real, perceptível nos primeiros versos) não podem ser conde-
nados pela fuga que encetaram. O que o texto de facto parece querer
dizer é que vitória e derrota, coragem e cobardia são, mediante as
circunstâncias, próprias de todo e qualquer indivíduo ou colectivo
de homens. E, neste sentido, estão bem patentes os princípios do tão
apregoado individualismo da Época Arcaica, de que Arquíloco, na
esteira de Hesíodo, foi considerado precursor.
O verso 8 é portador de uma imagem bastante forte: o rio
Caíco, da Mísia,4 transborda com os cadáveres e destroços para ele
lançados naquela batalha. A fórmula eurreites K[aikos é um dos exem-
plos da linguagem homérica presente em todo o texto (cf. Il. 6. 508),
estrategicamente colocada em final de verso. Encontraremos a mesma
imagem de morte e destruição, séculos mais tarde, em Filóstrato (Her.
23), vulto da segunda sofística que alude ao mesmo episódio:
… diz-se que de tantos Mísios que morreram na dita [batalha] ruboresceu
de sangue o rio Caíco.

3
Talvez seja nesta linha de pensamento que D. Obbink 2006b se refira ao novo texto
como passível de leituras de índole pós-colonial, o que, no caso, quererá dizer pós-homérica.
4
Da existência deste rio nos dá testemunho Hdt. 7. 42. 1.

96
A flauta e a lira

A imagem é muito próxima, mudando apenas as vítimas, que


na versão do sofista são os Mísios. Se não tinha em mente o texto do
papiro (e isso nunca o saberemos) teria ao certo um outro da mesma
tradição épica.5 Mas disso falaremos adiante.
O verso 10 é talvez aquele que mais imediatamente remete
para Homero. Os Gregos comportam-se na praia do mesmo modo
que o sacerdote Crises quando regressa do acampamento aqueu, de-
pois de negada por Agamémnon a devolução da sua filha (Il. 1. 34).6
Recordemos que na conhecida elegia a Péricles (fr. 13 W.), a que ainda
nos voltaremos a referir, a fórmula polyphloisboio thalasses marca pre-
sença (v. 3). Esta ocorrência tão genérica, por si só, nada prova acer-
ca da atribuição do novo papiro a Arquíloco, num contexto literário
marcado precisamente pela utilização de fórmulas homéricas.
Mais uma vez, o poderoso exército que à partida tudo vence
sofre uma caracterização disfórica; o verso 11, na reconstituição que
vimos seguindo, traz consigo a marca concreta da derrota – e uma der-
rota violenta – no que era suposto ser uma força militar invencível, a
caminho de Tróia para a destruir. Ela é completamente aniquilada por
um “cruel mortal” (v. 11) e forçada a recuar desastradamente, fugindo
de uma batalha que sabe não poder ganhar. Temos de seguida outra
fórmula homérica à qual é impossível ser indiferente: embarcam os Ar-
givos nas “naus velozes” (v. 13) e preparam a fuga. Mais do que em
Homero, ela marca presença, com ligeiras variações, num outro frag-
mento do poeta (fr. 89. 21 W.), retirado da Inscrição de Mnesiepes7.

5
Note-se como também Eur. Supl. 687-693 nos dá uma imagem semelhante, pela
boca do mensageiro, que conta a disputa entre Atenienses e Cadmeus pelos cadáveres Argivos
perecidos no famoso cerco às sete portas de Tebas: “… a poeira que em todo o céu / se propaga – que
a havia em grande quantidade – / ou os corpos arrastados para cima e para baixo / pelas correias e os rios
de sangue derramado, / quer dos que tombavam, quer dos que dos bancos em destroços / contra o solo, de
cabeça, se precepitavam com violência / e entre as estrilhas dos carros abandonavam a vida.” (Trad. José
Ribeiro Ferreira). A recuperação desta imagem por Eurípides, numa tragédia do ciclo tebano,
pode muito bem sugerir que ela era recorrente nos poemas do Ciclo Épico, como a Tebaida.
6
A fórmula ocorre ainda em Hes. Op. 648.
7
Sobre a Mnesiepis Inscriptio, monumento construído em honra de Arquíloco, vide o
recente estudo de P. C. Corrêa 1998: 193-207.

97
Carlos A. Martins de Jesus

Os Gregos são designados como “filhos e irmãos dos imortais”


(v. 14), perífrase sem paralelo na literatura grega conhecida. Daí
avançarmos com a hipótese de se tratar de mais uma marca irónica,
pretendendo referir que até os mais aparentados com os imortais
(como eram e, acima de tudo, se julgavam os Aqueus) podem sofrer
a mais vergonhosa das derrotas, se assim o entender um deus ou a
moira. E só neste sentido é lícito olhar para o fragmento como uma
narrativa mítica ilustrativa do poder desta entidade suprema, segundo
hipótese que desenvolveremos adiante. A frota grega dirigia-se de
facto a Tróia, sob o comando de Agamémnon, para a destruir (vv. 14-
15). Parece contudo que estamos perante uma atitude que racionaliza
já a empresa helénica, nunca referindo a vingança da honra e da
confiança, antes pondo a tónica na crueldade desmedida (porque
injustificada) de uma campanha militar vã.
O verso 16 vai introduzir uma analepse dentro do que, no fundo,
era já uma alargada analepse mitológica. Tróia, bem ao tom da épica,
é referida como “a cidade de altas torres” (v. 20). A tese defendida é a
de que os Gregos se perderam e, quando atracaram na Mísia (v. 21),
julgavam estar a pisar solo troiano. Um acidente ditado pela moira,
ou um simples erro de cálculo, que trouxe a morte a esse exército,
fazendo-o recuar e, cobarde, fugir do inimigo. A noção de paragem
premeditada com fins estratégicos (evitar uma possível aliança entre
mísios e troianos), como veremos, é muito posterior ao Ciclo Épico.
É de supor, no verso 22, uma epifania,8 no caso de Héracles,
o herói mais popular de toda a mitologia clássica, a quem o texto
confere já, em termos práticos, o papel de deus. É ele quem incita
Télefo, seu “magnânimo filho” (v. 20), a enfrentar, sozinho, os gregos.
O adjectivo mo]unos (v. 25), já presente no verso 5, volta a surgir neste
momento, como que reforçando o esforço individual desse que é, no
poema, o verdadeiro herói.9
8
Para um melhor entendimento sobre o sentido das experiências epifânicas entre os
gregos vide H. S. Versnel 1987: 42-55, B. Dieterich 1983: 53-79 e S. Hornblower 2001: 135-147.
9
De referir como a presença de deuses em narrativas guerreiras está atestada em vários

98
A flauta e a lira

Os versos 23-25 continuam a descrição dessa batalha mitológica


onde se evidencia Télefo, que tem neste momento uma verdadeira
aristeia breve. Nada é possível ler do verso 26 em diante, a não ser
uma possível desinência de primeira pessoa do plural (v. 28) que, em
confronto com a mesma categoria gramatical do verso 4, pode indiciar
o regresso do poema à narrativa real, para inequivocamente concluir
as semelhanças entre ambas as histórias. De outro modo, a aceitar que
a narrativa mitológica continuava com o ferimento de Télefo às mãos
de Aquiles, também este herói serviria para ilustrar a teoria do poder
supremo e indiscriminado da moira. Mas não mais nos permitiram ler
as areias do Egipto que durante séculos ocultaram este achado.
O mito de Télefo apresenta-nos um homem com origem di-
vina, como tantos outros, cujo destino se cruza com o da destruição
de Tróia. Filho de Héracles e de Auge, a filha de Aleu, rei de Tégea
é portanto, quanto à sua origem, um ser da Arcádia (grego) como o
fragmento bem confirma (v. 5). Para a chegada do herói à Mísia são
difusas as explicações. A mãe Auge, nascido o seu filho, teria sido
abandonada por Aleu, avô da criança, num cofre lançado ao mar alto
que depois teria aportado à Mísia. Noutra versão, teria sido abando-
nada no mar e o filho na montanha da Arcádia, logo após o parto. O
pequeno terá sido alimentado por uma cerva,10 e depois recolhido por
pastores do rei Córito, que o entregaram a este monarca. É quando
interroga o oráculo em busca da mãe que este lhe ordena que parta
para a Mísia, onde de facto a encontra, na corte do rei Teutras.
A lenda contém lugares comuns da mitologia, como sejam a
exposição do recém-nascido e a sua recolha por pastores que depois o
entregam para ser criado numa casta superior, ou mesmo a separação
dos pais, pré-requisitos, no fundo, de qualquer herói. O abandono da
mãe numa arca lançada ao mar remete-nos ainda para o mito de Dâ-
nae, narrado em dois fragmentos de Simónides (frr. 543 e 553 Page).11
fragmentos de Arquíloco; para o seu levantamento e estudo, veja-se P. Corrêa, 1998: 253-269.
10
Télefo tem na sua etimologia, de resto, o termo elephos (“cervo”).
11
Para o texto e comentário a estes fragmentos líricos vide L. N. Ferreira 2005: 298-307.

99
Carlos A. Martins de Jesus

Teria por engano morto Hipótoo e Pereu, dois irmãos da sua mãe,
pelos vistos o assunto dos Aléades de Sófocles.12 Nos Mísios,13 o mesmo
tragediógrafo terá desenvolvido o reconhecimento entre mãe e filho,
história que também conhecemos por Higino (fab. 100), mitógrafo
latino do período imperial. A tragédia ática mais conhecida sobre o
assunto, embora fragmentária, é o Télefo de Eurípides, onde se pinta
a imagem do homem solitário com uma ferida que não sara, a não
ser em contacto com a arma que a provocara. É isso que leva o herói
a Áulide onde, oito anos passados sobre o recontro bélico na Mísia,
os Gregos estão mais uma vez parados, desta feita à espera de ven-
tos favoráveis para zarpar para Tróia. Vestido de mendigo, oferece-se
aos Argivos para lhes indicar o caminho para a cidadela, porquanto
Aquiles aceite curá-lo, e ameaça degolar o pequeno Orestes se não lhe
for concedido o que pretende.14
Não obstante a fama que a tragédia granjeia, por nature-
za, a determinada versão mitológica, a versão da lenda que se
segue no fragmento que nos importa é outra, de origens épicas
anteriores ao tempo dos tragediógrafos. Falamos de uma tradi-
ção veiculada pelo chamado Ciclo Épico, uma série de grandes
poemas maioritariamente perdidos sobre os quais temos sobre-
tudo testemunhos e alguns (poucos) fragmentos preservados.
Quanto a Télefo e à escala do exército grego na Mísia a caminho
de Tróia – paragem não premeditada à qual se seguiria, anos
depois, a estagnação por falta de ventos em Áulide – são dois
os poemas que o referem: um deles ficou conhecido por Kypria
(Cantos Cíprios) 15 e trata das aventuras anteriores à chegada a
12
Soph. frr. 74-91 Radt.
13
Soph. frr. 409-418 Radt.
14
Eur. frr. 696-727 Nauck. Os principais dados para o nosso conhecimento da tragédia
euripidiana homónima do herói são fornecidos por Higino (fab. 101) e por Aristófanes, quando
a parodia ora em Acarnenses ora em Mulheres que Celebram as Tesmofórias. O pormenor do dis-
farce do herói de mendigo, ausente da história de Higino, parece ser uma criação de Eurípides,
motivo suficiente para a paródia aristofânica de que falámos. Para uma análise desta paródia à
tragédia vide M. F. Silva 1987: 112-131.
15
Para a discussão da datação, atribuição e resumo, vide M. Davies 1989: 33-52. Sobre

100
A flauta e a lira

Tróia. Conhecemos a acção deste texto indirectamente, através


do testemunho de Proclo, que na Chrestomathia fez o resumo
deste e de outros poemas que considerava importantes. No sé-
culo XIX a descoberta da Epítome de Apolodoro veio trazer nova
luz a este texto. Também Apolodoro resumira os Kypria e, face
a Proclo, introduzia dados novos. Traduzimos de seguida parte
do resumo do canto 7, segundo estes dois autores, como na edi-
ção dos fragmentos épicos gregos de M. L. West 2003: 73, sendo
que as inclusões do segundo são apresentadas entre parênteses
rectos:
Depois que se lançaram ao mar, aportaram na Teutrânia e atacaram-na,
julgando tratar-se de Ílion. Veio depois Télefo para a defender, matou Tersandro e
Polinices e ele próprio foi ferido por Aquiles. [Comandando os Mísios, fez regressar
às naus os Helenos e matou muitos deles, entre os quais Tersandro e Polinices, que o
tinham enfrentado. Mas quando Aquiles o atacou ele não o enfrentou: antes, na fuga,
ficou preso numa videira e foi ferido no tornozelo.]

As coordenadas da tradição épica para este encontro bélico


entre Gregos e Mísios são então a) a paragem na Mísia e o ataque à
ilha, julgando estarem a atacar Tróia; b) o poder de Télefo que chefia
os Mísios; c) o ferimento de Télefo por Aquiles. Apolodoro vem trazer
uma novidade: d) o tropeçar do herói numa videira, que se crê epifani-
camente causado por Diónisos, como motivo do seu ferimento.16
Uma tradição da qual não possuímos, durante séculos, qual-
quer prova textual, até que Grenfell e Hunt publicaram um outro
papiro de Oxirrinco atribuído ao Catálogo das Mulheres de Hesío-
do, em 1968 incluído na edição dos Fragmenta Hesiodea a cargo de
Merkelbach-West (P. Oxy. 1359 = fr. 165 M-W), onde a acção de Té-
lefo contra os Gregos, sendo embora um assunto secundário, parece
já fatal:

o Ciclo Épico, o mesmo estudo e M. L. West 2003. No primeiro explica-se resumidamente em


que consiste o ciclo e que poemas o integram e, no segundo, reúnem-se os fragmentos e teste-
munhos com ele relacionados, acompanhados de tradução em inglês.
16
Sobre a tradição vide também schol. (D) Il. 1. 59.

101
Carlos A. Martins de Jesus

… (?)
… (?)
] e muito deleitou os imortais”[
assim falou; ele] tremia e suava ao ouvir o discurso
dos imor]tais que, resplandecentes, surgiram à sua frente. 5
A rapariga], que dignamente recebera no palácio, criou-a
e cuidou] dela, honrando-a como às suas próprias filhas.
Ela gerou] Télefo da Arcádia, rei dos Mísios,
ao envolver]-se com Héracles nas teias do amor,
quando ele] perseguia os cavalos do ilustre Laomedonte 10
que, ]excelentes, tinham sido criados na terra da Ásia;
a raça dos magnânimos Dárdanos[
]de toda esta terra expulsou.
Entretanto Télefo] pôs em fuga dos Aqueus de brônzeas túnicas
[os guerreiros, e estes embarcaram] nas negras n[aus 15
]aproximou-se da terra bem fornecida de heróis
]e violência e massacre[
]por trás[
]e chegaram[
]famoso[ 20
]pela sua glória[
… (?)
… (?)
… (?)

O tema central deste texto é a história mítica de Auge, mãe de


Télefo, e a sua relação com Héracles, herói cujo estatuto de divinda-
de, muito discutido pelos críticos,17 é aceite, como vimos, no papiro
que estamos a comentar. Tudo se passa, no fragmento de Hesíodo,
quando este perseguia os cavalos de Laomedonte no cumprimento
de mais um dos seus trabalhos. A relação com Héracles é apresentada
como voluntária, ditada pela força do amor (v. 9), pelo que parece
claro que a noção de violação é uma criação da tragédia do século V.
A figura de Télefo, fruto desta relação, surge a partir do verso 8, onde
está atestada, em acusativo, a fórmula que ocorre no novo papiro atri-
buído a Arquíloco: Telephon Arkasiden. É retomada a história do herói
no verso 14, para, pelo que é possível depreender por entre as lacunas
17
Para a discussão do estatuto divino de Héracles entre os Gregos vide J. Ribeiro
Ferreira 21993: 130-134.

102
A flauta e a lira

textuais, tratar do recontro bélico entre Gregos e Mísios, na ilha des-


tes últimos. O cenário de guerra, agitado, é o mesmo, e diversas são
também as coincidências textuaios: uma série de termos que sugerem
o massacre, a morte e a coragem (vv. 14 e 17). Também a referência
ao embarque dos argivos nas negras naus (v. 15) revela uma estreita
relação com o texto do novo papiro. O estilo formular, o tom épico e
o verso em hexâmetro provam a antiguidade do texto, e denunciam
tratar-se da versão mais antiga do mito, a mesma que poderá ter ser-
vido de base aos Poemas Cíprios, como vimos, e ao P. Oxy. 69. 4708 que
estamos a ter em conta.
Este último é então precioso por constituir o primeiro exem-
plo textual de uma longa narrativa mitológica, em metro elegíaco,
inspirada na tradição do Ciclo Épico. Recupera alguns dos aspectos
que vimos serem centrais tanto no enredo dos Kypria como no frag-
mento de Hesíodo, como sejam: a) os Gregos desviaram-se acidental-
mente da rota e julgavam estar em território troiano, pelo que enceta-
ram o ataque (vv. 16-21); b) encontram um contra-ataque fortíssimo,
em especial pela acção individual de Télefo, que os empurra para as
naus numa atitude de fuga (vv. 5-12). Ausentes estão: c) a epifania
de Diónisos e o embriagamento de Télefo, por acção directa do deus
que o faz tropeçar num ramo de videira; d) o ferimento do herói pela
lança de Aquiles; e) a perda do escudo de Télefo e f) a sua disputa
pelos heróis gregos. A suposição da perda e disputa do escudo no
novo fragmento não parte então de qualquer dado textual presente
no papiro, antes de uma série de conjecturas, possíveis mas sempre
incertas, que procuram relacionar o texto com o corpus das elegias de
Arquíloco. Não nos parece este esforço contudo necessário para pro-
var a atribuição ao poeta de Paros.
Pausânias, que partilha ainda da posição do engano e do des-
vio acidental no caminho para Tróia, ao referir-se a este recontro bé-
lico na Mísia como “a corajosa acção de Télefo contra Agamémnon e
os seus, quando os Helenos, enganando-se na rota para Ílion, devas-

103
Carlos A. Martins de Jesus

taram a planície da Mísia tomando-a como Tróia.” A mesma teoria


quanto ao motivo da paragem, mas algo novo: a acção dos gregos é
tomada como violenta e poderosa, claramente contra a versão épica
do mito. Uma preocupação que não está já na mente de Filóstrato.
Heroikos, diálogo dramaticamente passado em Elaio, uma
cidade da Trácia, conta com apenas dois intervenientes: o homem
que guarda as vinhas e os jardins perto do túmulo de Protesilau,
mercador fenício e primeiro herói a cair morto em Tróia. O cria-
do revela que o fantasma de Protesilau não só o ajuda nas tarefas
como também discute com ele assuntos relacionados com a guer-
ra de Tróia e com os Poemas Homéricos. Todo o diálogo é então,
programaticamente, uma reflexão sobre as características heróicas,
buscando a desmistificação de determinadas falsidades da tradição.
No capítulo 23 o jardineiro começa por demitir-se de referir como
os Aqueus saquearam a Mísia, sendo Télefo rei, e de como este foi
ferido por Aquiles, remetendo para os muitos poetas que trataram o
assunto.18 Logo de seguida recusa-se a aceitar que tal paragem tenha
sido um engano, argumentando em todas as direcções: navegavam
orientados pela adivinhação (que não falharia, à partida); ao aporta-
rem naquela terra, em plena Arcádia, encontrariam de certo muitos
pastores e uma paisagem distinta de Tróia; ou ainda, Ulisses e Me-
nelau tinham já estado em Tróia como embaixadores, daí que cedo
reparassem no engano. Posto isto, diz claramente que os gregos ata-
caram a Mísia intencionalmente, para evitar que a ilha se aliasse
aos troianos. Refere-se ainda à cuidada acção militar liderada por
Télefo, considerando (e esta é, note-se, a opinião de Protesilau, com-
batente na Mísia pelos Helenos) que aquela foi a pior guerra que
os gregos tiveram que travar. Ou seja, muito embora nesta versão a
vitória pertença aos argivos, ela não é uma vitória fácil, encontrando
uma oposição à altura.

18
O assunto está completamente ausente dos Poemas Homéricos. Assim, os poetas a
que o texto se refere seriam ao certo os do Ciclo Épico.

104
A flauta e a lira

As novidades do texto de Filóstrato prendem-se com a perda e


disputa do escudo de Télefo. Na versão do sofista, foi o próprio Protesilau
quem imobilizou Télefo e lhe arrancou o escudo, dados que tudo leva a
crer serem oriundos da tragédia ática. O pormenor da epifania de Dióni-
sos e da queda do herói por embriagamento, provocado directamente pelo
deus, são completamente ignorados. Filóstrato conheceria a tradição – de
resto, ele próprio se referiu aos poemas que a trataram – mas não cabem
essas considerações fantásticas na sua narrativa, que ao jeito da sofística se
quer dialéctica, racional e coerente na argumentação. Termina esta ques-
tão com a pretensão de Aquiles em obter de Protesilau o escudo do herói,
sendo-lhe este negado pelo conselho dos Argivos (o iudicium armorum),
logo depois da poderosa imagem do rio Caíco rubro do sangue dos Mísios
mortos em combate. Não nos parece, pelas linhas legíveis no novo papiro,
que estes aspectos fossem contemplados nas partes perdidas do poema.

Hipóteses de inclusão do papiro no corpus de Arquíloco


Do poeta conhecemos, segundo a edição de M. L. West 21998:
1-108, apenas 17 fragmentos de poemas elegíacos (frr. 1-17), o metro
em que o novo papiro se nos apresenta. Afinal, qual o contexto de
uma narrativa mítica como esta nas elegias de Arquíloco?
Mesmo em textos não escritos no metro elegíaco Arquíloco de-
monstra um aturado tratamento dos temas relacionados com a guerra:
o lamento pelas desgraças dos Magnésios (fr. 20 W.) e dos Tássios (frr.
102, 103 e 228 W.), bem assim a narração de uma vitória sobre os Náxios
(fr. 94 W.) e o quadro da defesa de uma muralha (frr. 98 e 99 W.) são só
alguns exemplos. Note-se que os três últimos fragmentos que referimos
integram a Inscrição de Sóstenes, parte de um monumento erigido em Pa-
ros para louvar o poeta (séc. I a.C.). Por estes textos – de que, até ao mo-
mento, possuíamos apenas escassas parcelas –, terá Arquíloco merecido
tal honra.
M. L. West 1974: 14-18 refere-nos oito possíveis contextos de
execução elegíaca. Criticando-o, o já clássico estudo de E. L. Bowie

105
Carlos A. Martins de Jesus

1986: 13-35 não vê razões para um tão elevado número, considerando,


no global, apenas dois: as elegias que seriam recitadas em ambiente
simposíaco e aquelas mais adequadas aos festivais públicos. Quan-
to à presença dos versos de Arquíloco nos festivais, integrando o re-
pertório dos rapsodos, ela está suficientemente atestada por diversas
fontes. Platão (Ion 531a, 532a) refere-nos, pela boca de Sócrates, como
o poeta, que a história se habituou ler como iambógrafo, compôs tam-
bém poesia heróica:

Sócrates: Pois bem, hei-de arranjar tempo para te ouvir, mas agora
responde-me só a uma pequena pergunta: és especialista exclusivamente de
Homero ou também de Hesíodo e de Arquíloco?19

Sócrates: Assim, segundo dizes, Homero e os outros poetas, entre os quais


estão não só Hesíodo mas também Arquíloco, falam das mesmas coisas, mas não do
mesmo modo, isto é, um fala bem e os outros menos bem?

Pelas perguntas de Sócrates, sempre conduzidas com vista


a uma única resposta possível, depreendemos a fama de Arquí-
loco na Antiguidade, enquanto poeta que tratava temas épicos,
muito embora inferior a Homero, o único que Platão permite no
seu Estado ideal. Mas temos testemunhos internos bastante rele-
vantes.20 O próprio Arquíloco se confessa poeta e músico, em dois
fragmentos bastante conhecidos (frr. 1 e 120 W.) , pelo que faz
sentido integrá-lo no grupo desses artistas que se deslocavam de
cidade em cidade para participar em concursos poéticos.21
Que participara nos festivais em honra de Deméter e Diónisos,
tão importantes na sua ilha e, de resto, frequentemente associados à
sua família, é fácil de conceber pela leitura de alguns versos preser-
vados, em especial pela sua poesia iâmbica. Depois, morto o poeta, a

19
Citamos, para o Íon de Platão, as traduções de V. Jabouille 1999, Lisboa.
20
Cf. Archil. frr. 131, 134, 219-221 W., Archil. test. 16, 34, 41 e 63 Gerber e ainda AP.
7. 674 e 11. 20.
21
O mais completo estudo sobre a mobilidade poética na Grécia antiga encontra-se
em L. N. Ferreira 2005.

106
A flauta e a lira

sua obra não terá deixado de percorrer o mundo grego na voz e no


instrumento dos rapsodos.
É o que nos permite concluir Platão, como vimos, mas também
Heraclito (Archil. test. 34 Gerber), Ateneu (14. 620c) e Pseudo-Plutarco
(De Mus. 1134d). A leitura destes textos não pode deixar de sugerir,
por outro lado, a composição arquiloquiana de poesia heróica, decer-
to a mais afamada nestes festivais públicos. Poesia heróica que não ti-
nha que ser necessariamente em hexâmetro,22 mas tão só de tom épico
e marcial, em metros variados, com especial destaque para o dístico
elegíaco. E disso temos vários vestígios textuais, vários fragmentos
(na sua maioria papiráceos ou epigráficos) que descrevem situações
de guerra,23 entre os quais a adesão à causa de Tassos contra os Náxios
e o elogio dos chefes de Eubeia são só dois exemplos. Provam estes
versos, isso sim, a continuidade do tratamento dos motivos da épica,
animados agora pelas novidades temáticas e formais desse afamado
individualismo nascente da Época Arcaica.
Pode, de tudo isto, depreender-se que Arquíloco compôs ele-
gias guerreiras ou de tema nacional, como o fizeram, por exemplo,
Calino e Tirteu? Ou mesmo elegias históricas? Para discutir esta ques-
tão temos que partir de um pressuposto: as designações que ainda
agora utilizámos não existiam ao tempo, pelo que os temas podiam
facilmente fundir-se num só poema. Um poema de banquete, ainda
que elegíaco, é acima de tudo um poema de circunstância, não es-
partilhado por um único tema, assunto ou registo. Mais curioso é o
testemunho de Píndaro (O. 9. 1-5):

A melodia de Arquíloco
ecoando em Olímpia,
canto de vitória três vezes repetido,
suficiente para no sopé do monte Cronos guiar o cortejo
a Efarmosto, celebrando com os companheiros.24

22
J. A. Notopoulos 1966: 311-315 sugere que Arquíloco compôs poesia em hexâmetro.
23
Para o seu elenco completo e análise vide P. C. Corrêa 1998.
24
Tradução de Frederico Lourenço 2006: 129.

107
Carlos A. Martins de Jesus

Aceitam os críticos, com alguma passividade, que o texto a


que Píndaro se referia era o fr. 324 W., repetido três vezes em hon-
ra do vencedor quando não havia um epinício especificamente com-
posto para a ocasião. Talvez por isso M. L. West 21998: 104 se tenha
recusado a considerá-lo autêntico, incluindo-o nos textos espúrios.
De qualquer modo, não nos parece prova suficiente para afirmar que
Arquíloco compusera já epinícios. Os três versos do fr. 324 W. seriam,
quanto muito, excerto de um poema sobre Héracles, ou pelo menos
um texto onde o herói era interveniente.
E assim chegamos a um ponto fulcral. Já E. L. Bowie 1986: 34
se interrogava acerca da presença do mito de Héracles, entre outros,
em Arquíloco (frr. 286-289 W.), quando os exemplos mais frequentes
do corpus são as fábulas de animais, usadas em contexto de invectiva
iâmbica. Lamentava o autor não possuirmos qualquer prova textual
da presença de uma longa narrativa mitológica num poema seu. Ora,
é precisamente essa a importância do novo fragmento, a concluir-se a
sua atribuição ao poeta: demonstrar cabalmente que foi também um
receptáculo (intranquilo e insatisfeito) das mais puras influências da
épica, assimiladas e tratadas com intenções e formas novas.
E. L. Bowie 1986: 34 dá mais importância ao simpósio como
espaço de recitação elegíaca, considerando-o mesmo o antecedente
da circunstância de festival. E é neste contexto que entende a grande
maioria dos fragmentos elegíacos preservados. Além de composições
em metro lírico, destinadas à apresentação nestes eventos, todas as
variantes da elegia são passíveis de marcar presença num banque-
te, normalmente reuniões colectivas patrocinadas por poderosos se-
nhores de uma cidade. Nele cabem os versos preservados de reflexão
sobre a vida, a moira e o poder dos deuses (como o fr. 13 W.), todas
as gnomai e todas as descrições bélicas. Mas também os versos mais
licenciosos, tão frequentes em Arquíloco, como forma de animação e
prossecução do valor apotropaico do riso, que jocosamente imagina-
mos na parte final de um banquete, quando os convivas estivessem,

108
A flauta e a lira

também eles, inspirados por Diónisos. O banquete que Alcínoo ofe-


rece a Ulisses no canto 8 da Odisseia é um exemplo incontornável, do
qual Arquíloco não estaria temporal e esteticamente muito distante.
O canto de Demódoco é essencialmente heróico, acedendo ao pedido
de Ulisses para cantar a destruição da cidadela de Tróia pelo cavalo
de madeira (Od. 8. 487-520). Mas visa sobretudo deleitar os convivas,
daí que, com o tempo, nos banquetes entrassem novos temas e novas
formas: o vinho, o amor (bem assim o sexo), mas também a história, o
mito, a guerra, as reflexões sobre a vida e sobre a morte, um ou outro
acontecimento pontual de importância colectiva, todos eles caros às
opções estéticas da Época Arcaica.
No que a Arquíloco diz respeito, Bowie refere-se ao fr. 4 W.:

vede(?)[
estrangeiros(?)[
um jantar[
mas não para mim[ 5
Vem daí, traz uma taça por entre os bancos da nau veloz,
avança e as tampas arranca das côncavas vasilhas,
colhe o vinho rubro até às borras. Nenhum de nós,
nesta vigília, vai conseguir manter-se sóbrio.

O que tradicionalmente tem sido visto como a fuga a uma


situação de vigília nocturna para saborear os prazeres de um bom
vinho, à socapa, entende-o o helenista como um poema simpósico,
onde o poeta torna presente um cenário ausente, ou mesmo algo que
se preferia não ter vivido. As primeiras três linhas preservadas do
fragmento conteriam a situação real, enquanto que toda a reflexão
sobre os prazeres de um bom vinho o são em termos ficcionais.25
A pertença do P. Oxy. 69. 4708 ao mesmo rolo que continha o
o fragmento que ainda agora transcrevemos foi, como vimos acima,
um dos critérios materiais da sua atribuição. A aceitar essa hipótese,

25
Também o fr. 2 W. se refere ao vinho e à lança (ou barco?) em que o poeta
bebe reclinado.

109
Carlos A. Martins de Jesus

faria todo o sentido considerá-lo parte do mesmo grande poema sim-


pósico, no momento em que o poeta recorre a um exemplum mítico
para atestar uma história que vinha sendo contada. Bastaria conside-
rarmos o fr. 4 W. como pertencente à abertura do poema, a viagem de
barco da armada real, em que o poeta teria participado; um cenário de
júbilo que a moira veio perturbar, prova de que tudo pode mudar pela
vontade dos deuses e pelo destino, que à felicidade de um momento
pode seguir-se um outro de profundo infortúnio. Mais ainda, o fr.
4 W. refere mesmo a fórmula da nau veloz (v. 9), também presente,
com outro adjectivo, no achado que vimos comentando (v. 13). Esta
relação não passa, claro está, de uma conjectura, apoiada na corres-
pondência temática e no cenário náutico que está por trás de ambos
os textos. A supremacia da moira, entidade quase sempre funesta, é de
resto algo já canónico em Arquíloco, expresso em poemas como o fr.
16 W. ou a ode ao seu coração (fr. 130 W.). Textos preferencialmente es-
critos no metro elegíaco, se bem que não há, como vimos, uma relação
exclusiva entre o metro e os temas, cabendo estas reflexões mesmo em
textos escritos na medida iâmbica.
Para o que nos importa, transcrevemos a conhecida elegia a
Péricles (fr. 13 W.),26 poema a que acima já nos referimos pelas coinci-
dências formais e temáticas com o papiro que estamos a comentar:

Os nossos lutos plangentes, Péricles,27 cidadão algum


os repreende ao deleitar-se em festins, nem cidade alguma.
Esses homens, a espuma do mar marulhante
os engoliu, e entumecidos pela dor temos agora
os pulmões. Os deuses, porém, para males incuráveis, 5
meu amigo, a aturada resignação concederam
como remédio. A uns e outros este mal sobrevém. Agora para nós
se voltou, e choramos esta chaga cruenta.
Em breve para outros se mudará. Vamos, sem demora!
Tem coragem! Deixa de parte os lamentos de mulher. 10

26
Sobre este texto vide: F. Rodríguez Adrados 1953/54: 225-238, A. Gamero 1961/63:
35-44 e J. H. Barkhuizen 1989: 97-99.
27
Um companheiro de luta de Arquíloco (possivelmente um general), que não pode
confundir-se com o estadista ateniense do séc. V a.C.

110
A flauta e a lira

Muda-se a toda a hora e sem prévio aviso a sorte dos homens,


como se mudou a da armada grega ou a de Télefo, no mito. Actuan-
do no novo texto nos bastidores, a presença inegável destas forças
supra-humanas, bem como a sua forma de actuação, podem então
constituir mais dados a favor da sua atribuição a Arquíloco.
Uma das hipóteses de inclusão avançadas para o novo pa-
piro quer acreditar que o texto continuava com a narração do feri-
mento de Télefo pela lança de Aquiles, quando Diónisos, irritado
com o herói por não lhe ter prestado as honras devidas, epifanica-
mente o embriagou e fez com que tombasse em combate (cf. Apoll.
Ep. 3. 17). Deste modo, a convocação da história de Télefo poderia
também servir como exemplo do poder do vinho e de Diónisos
sobre os homens, o mesmo assunto que marcava já presença no fr.
4 W., e bem assim no fr. 120 W., onde o vinho actua sobre o poeta,
pela ordem do deus, como um raio, em termos práticos um ou-
tro exemplo de epifania. Mas não é necessário este esforço de re-
constituição para integrar o fragmento numa elegia de banquete.
Seja ele uma reflexão sobre o poder da moira, interprete-se como
a ilustração mítica dos horrores de uma batalha real ou das vicis-
situdes do próprio poeta, tudo isto cabe (e não pode dissociar-se)
no contexto de execução a que nos vimos referindo, sempre como
um paralelo mítico de algo, parte integrante de um poema maior
que teria sido composto para recitação num banquete. A narrativa
mítica não faz pois sentido por si só, isolada de qualquer contexto
real que a convoque, e temos marcas textuais suficientes – ainda
que lacunares – de que há outro cenário, distinto do horizonte mi-
tológico da maior parte das linhas legíveis no papiro. Do mesmo
modo, não nos faltam textos, que temos vindo apontando, que
poderiam ter motivado essa convocatória.
Também o fr. 3 W. (cit. Plut. Theseus 5. 2-3) nos merece um
comentário especial neste momento.

111
Carlos A. Martins de Jesus

Não muitos arcos hão-de bramir-se, nem muitas


fundas, sempre que a luta Ares reunir
na planície; de espadas será o trabalho, pleno de gemidos;
é que nesta guerra são peritos esses
chefes de Eubeia, afamados lanceiros. 5

Vários comentadores associam este fragmento à Guerra Le-
lantina, um dado com frequência usado para a datação de Arquíloco.
Segundo Estrabão (10. 1. 12), Cálcis e Erétria teriam celebrado um
pacto que proibia o uso de armas de longo alcance em batalhas na
planície de Lelanto. Considera P. C. Cunha 1998: 169 que a referência
à planície enquanto local do embate nada prova quanto à relação com
aquele conflito, afirmando mesmo que todas as batalhas do tipo a
que o poeta alude são travadas em terreno plano. Quanto a nós, esta
coincidência espacial no local da batalha parece não abonar grande-
mente em favor da atribuição do texto ao poeta de Paros. Mais ainda,
o poeta demonstra, no texto do novo papiro, igual preocupação com
as consequências humanas da actividade bélica, desde logo pela rica
imagem do rio e da planície do Caíco que acolhem os corpos dos que
tombam mortos (vv. 8-9). Na realidade, trata-se em ambos os casos de
uma luta corpo a corpo, causa de maior destruição.
Relações mais íntimas parece haver entre o P. Oxy. 69. 4708 e
o fr. 7 W., que poucas vezes colheu a atenção merecida:

… avance cada um contra os inimigos…


de coração valente e implacável coragem no peito
… e]vitando.

Sendo uma vez mais impossível, no actual estado dos conhe-


cimentos, afirmar a pertença desta parcela textual ao mesmo poema
elegíaco do novo papiro, algumas coincidências têm que ser realça-
das. O assunto é o mesmo que já foi identificado: a coragem guerreira.
O poeta pretende justificar que não é covardia o abandonar da batalha
em determinadas circunstâncias, quando até os gregos recuaram face

112
A flauta e a lira

aos mísios, relativizando deste modo um princípio intocável para a


moral épica.
Não deixamos de nos referir a um outro breve fragmento do
corpus, que no mínimo legitima a aceitação do texto do novo papiro
em termos temáticos. Falamos do fr. 6 W. (Schol. Soph. El. 96), apenas
com um verso, que alude também a um embate guerreiro:

agradando aos inimigos com lúgubres presentes.

Estão claramente em cheque duas facções, uma das quais


saiu derrotada e oferece à vencedora presentes, que facilmente ima-
ginamos serem a própria vida em combate. Curioso é o particípio
charizomenoi, também presente no v. 25 do novo papiro, referente a
Télefo e ao agrado que, com a chacina da armada grega, fez a seu
pai Héracles.
Deixámos para o final, propositadamente, uma hipótese já su-
gerida, a que agora damos atenção. A admitir que o texto do papiro
continuava com a perda do escudo, nos versos para nós ilegíveis, ele
poderia ainda ser a ilustração mítica para a perda do escudo do pró-
prio poeta, atestada no famoso fr. 5 W. (cit. Plut. Lacon. inst. 34 et Sext.
Emp. Pyrrhon. hypot. 3, 216):28

Com o meu escudo um dos Saios alguém se envaidece, o que num arbusto,
arma singular, deixei ficar contra minha vontade.
Mas salvei o coiro. Que me importa aquele escudo?
É deixá-lo! Outro hei-de comprar em nada inferior.

Também neste texto, dos mais canónicos quando se fala do


poeta de Paros, o sujeito é obrigado a abandonar as armas. Ele pró-
prio diz, antes de desvalorizar o escudo perdido, que o deixou para
trás “contra vontade” (v. 2), um pouco o que também terá acontecido

28
Para um comentário ao texto e à sua fortuna temática e crítica na literatura grega
vide P. C. Corrêa 1998: 110-133.

113
Carlos A. Martins de Jesus

a Télefo.29 Ambos procuram salvar a vida e é fácil de conceber, tam-


bém aqui, a situação de fuga e queda.
Há contudo um forte argumento contra esta hipótese de inclu-
são: como vimos, o tema da perda do escudo de Télefo está ausente
dos argumentos dos Cantos Cíprios fornecidos tanto por Proclo como
por Apolodoro, o que nos leva a colocar fortes reservas ao facto de ser
este o motivo da sua convocação para o texto, ou mesmo de esse ser já
um elemento da tradição épica do mito. Nem de resto parece aceitável
que um poema épico do século VIII-VII, como os Kypria, ignorassem
intencionalmente o pormenor da perda e do iudicium armorum de Té-
lefo, que encontramos pela primeira vez formulado em Filóstrato (Her.
23). Ele poderá ter surgido pela mão dos tragediógrafos do século V
a.C.,30 o que o afasta terminantemente da tradição do Ciclo Épico.
Por todos os motivos apontados, julgamos sensato considerar
o texto parte de uma elegia de banquete, um paralelo mítico alargado
para uma batalha real ou histórica, onde o tema das agruras imprevi-
síveis da moira (como em tantos outros fragmentos do poeta) marca
presença. Um texto de tom épico onde, sob a capa do mito, vivem
os princípios mais centrais do individualismo arquiloquiano, o que
afasta a possibilidade de autoria de poetas como Calino ou Tirteu,
mestres reconhecidos na elegia guerreira. A favor da atribuição ao
poeta apresentámos argumentos temáticos, linguísticos e mesmo da
ordem da pragmática poética. No entanto, querer relacionar o achado
com um fragmento já conhecido parece-nos, no actual estado dos co-
nhecimentos, perfeitamente especulativo.

29
O tema do escudo abandonado na batalha parece ocorrer também no fr. 139 W.
Sobre o assunto vide A. Kerkhecker 1996: 26.
30
Cf. o assunto do Filoctetes de Sófocles. O tema das armas do guerreiro,
mais importantes para a colectividade do que o próprio herói (desumanização) pare-
ce ter colhido o interesse dos tragediógrafos e a emoção do público na Antiguidade.
O assunto é também nuclear em Hyg. fab. 101.

114
A flauta e a lira

Musas de regaço violeta


Um novo texto de Safo1

Longe quanto baste de Oxirrinco, na velha Europa, um outro


achado está a despertar o interesse de estudiosos um pouco por todo o
mundo. Em Colónia, guarda-se uma valiosíssima colecção de papiros
também provenientes das areias do Egipto, documentos escritos
entre os séculos III a.C. e VII d.C.2 Albergando cerca de 6000 restos
de papiro, este espólio presenteou em 2004 os críticos com dois novos
fragmentos (P. Colon. inv. 21351 + 21376r = “Apêndice Iconográfico”,
fig. 9) que permitem a reconstituição de doze linhas de um poema,
identificado como pertencente ao livro IV da edição alexandrina de
Safo (séc. VI a.C.).
O poema foi anunciado em 2004, ano em que teve a sua editio
princeps.3 M. L. West (Times Literary Supplement 5334, de 24/06/2005)
publicou o texto, acompanhado de tradução e comentário, que
reconstituiu com a ajuda do fr. 58 L-P da poetisa (P. Oxy. 1787 fr. 1.
4-25, fr. 2. 1). Afirma o helenista que, com o novo achado, estamos na
presença do quarto poema sáfico “com extensão suficiente para ser
apreciado enquanto estrutura literária”. Avançamos com a tradução
do texto:

Vós,] donzelas, com os belos dons [das Musas] de regaço violeta


sêde zelosas, bem assim com a] lira melodiosa, dos poetas amante.
Pois o meu outrora delicado] corpo, já a velhice
me arrebatou, e brancos] se tornaram os cabelos, negros que eram.
Pesado o meu coração se tornou, não me suportam já as pernas,
1
Boletim de Estudos Clássicos 44 (2005: 15-19)..
2
O site oficial da colecção: www.uni-koeln.de/phil-fak/ifa/NRwakademie/papyro-
logie/index.html.
3
M. Gronewald, R. W. Daniel 2004: 1-4. Sobre o novo texto vide ainda: V. di Benedet-
to 2004: 5-6, W. Luppe 2004: 7-9, H. Bernsdorf 2004: 27-35 e M. L. West 2005: 1-9.

115
Carlos A. Martins de Jesus

em tempos ágeis para a dança, como pequenas corças.


Isso lamento a toda a hora; mas que fazer?
alguém que não envelhece é algo que não pode existir.
Também em tempos Titono, diziam, a Aurora de róseos braços,
levada pelo amor, consigo arrastou para o fim do mundo,
sendo este belo e jovem; mas até dele se apoderou,
com o tempo, a [grisalha] velhice, dele que tinha imortal esposa.

Aristóteles (Rhet. 1398b 29-30) transmite-nos a ideia de que,


para Safo, a morte era vista como um mal terrível (Sapph., fr. 201 L-P):
Safo diz que morrer é um mal: “assim deliberaram os deuses, ou eles
próprios morreriam também.”

O novo poema reflecte no entanto, num tom dorido de quem


sente já o avançado dos anos, sobre a velhice e os efeitos desta no
corpo e no espírito, sempre habituados ao amor, à paixão, à beleza e
à jovialidade. Numa poetisa em que abunda a frescura e o colorido,
por um lado, a par da desmesura das sensações, por outro, uma tão
amargurada expressão da dor pela idade avançada não pode deixar
de soar estranha. No conhecido fr. 105 L-P, a noiva já fora da idade é,
muito embora, apresentada ainda como uma peça de fruta apetecí-
vel, amadurecida pelo sol. Este tema da transitoriedade da vida é,
de resto, elemento central da poética arcaica, comum a todos os seus
cultores, desde Arquíloco. Quando à linguagem, as marcas do eólico
e do próprio dialecto lésbio são bem visíveis.
O texto que agora podemos ler pode ainda ser valioso enquan-
to documento para a discussão do tão polémico círculo sáfico, ao que
tudo indica uma escola de iniciação poética (e sexual, para alguns)
de jovens filhas de grandes senhores. A poetisa começa por dirigir
conselhos às “donzelas” (paides) para que continuamente se exercitem
na música e na poesia. A tónica é colocada no estudo e na arte, ao
contrário de outros fragmentos onde a temática homo-erótica ocupa
um lugar central. O adjectivo i]ok[o]lpon traz contudo para o texto o
visualismo da cor violeta, tão frequentemente associado, na poesia de

116
A flauta e a lira

Safo, ao erotismo. Assim é descrita uma noiva no fr. 30 e Afrodite nos


fr. 21 (aparentemente) e 103 L-P.
Mas o destinatário muda no verso 3; lamenta o sujeito poético as
consequências da “[grisalha] velhice” no corpo e no espírito, um cora-
ção que endurece e fica menos sensível ao amor – o mesmo coração que
tantas vezes ardera de paixão e se consumira com o ciúme –, bem assim
as pernas que fraquejam. Sintomas só comparáveis aos que atingem o
sujeito apaixonado no famoso fragmento sobre o ciúme (fr. 31 L-P).
Introduz-se depois um mito sobre a eterna juventude que não
há, sobre a beleza imutável que não é aos mortais permitida. Titono,
delícias da deusa Aurora, não morreria de facto, segundo o pedido
da amante toda poderosa. Mas esquecera-se esta de para ele pedir a
eterna beleza, e ele envelhecia, de dia para dia, ao lado de uma deusa
sempre bela.4 Nas restantes quatro linhas do papiro de Oxirrinco,
não possíveis de reconstruir pelo novo achado, tudo indica que esta-
ria o final do poema. Depois da reflexão sobre a sua velhice, num tom,
como vimos, algo pessimista, a poetisa parecia encontrar, esforço de
autognose, o fármaco para o seu mal. Uma solução que, em boa ver-
dade, cultivou ao longo de toda a vida:

mas eu amo a delicadeza (...) e esse amor


o brilho do sol e a beleza me granjeou.

O Amor e a arte, na vida como na obra nunca dissociados,


são esse fármaco; o alívio para todas as dores impostas pela velhice
a quem, no fundo, nunca seria velha, porque, mais do que Titono, há
muito ganhara não só a imortalidade mas também a eterna beleza,
sensação estética partilhada por quantos a haviam de ler, pelos
séculos dos séculos.

4
Sobre o mito vide: Il. 11. 1 sq; Od. 5. 1; Hes. Theog. 984; Apollod. Bibl. 3. 12.
3: Hyg. Fab. 270; Diod. Sic. 3. 67 e IV. 75; Virg. Georg. 1. 447 e 3. 48, 328; El. Nat. An. 5.
1; Hymn. Hom. 4. 218 sq; Tzetz. ad. Lyc. 18.

117
Carlos A. Martins de Jesus

118
A flauta e a lira

Narciso, o belo suicida


(Re)leituras do mito a partir de um novo papiro1

Deve ser o cristal que viu Narciso:


água de um poço de ilusões pequenas
onde morra e renasça o Paraíso.

Miguel Torga, Mergulho


(Diário 6, 1953: 36)

Nas águas se contempla Narciso, nas águas límpidas que, cris-


talinas, lhe revelam uma beleza que pode não ser a sua. Até que um
dia, maldição divina ou de um amante preterido, não são tão lím-
pidas as águas, e a imagem que do homem dá esse espelho natural
não é já pintada com os tons de perfeição de outrora. Afinal, o retrato
era mais belo (falsamente belo) do que a essência desse homem. E no
momento da morte, retrato e essência são uma e a mesma realidade,
em tudo coincidentes. O desespero assim o determina. A beleza de
Narciso era, afinal, resultado da ausência de visão. Conhecida a rea-
lidade, pela sua representação, ela não é mais agradável à vista. E o
herói tomba, para o lago, ou para o fundo de si. Só a morte é lenitivo
para a desilusão decorrente da visão do eu, um esforço cognitivo que
seguiu o caminho da aparência e não o da essência, e que por isso se
revelou trágico.
Um dos textos recentemente encontrados em Oxirrinco (P.
Oxy. 69. 4711 = “Apêndice Iconográfico”, figs. 7-8) permite ler três
mitos à partida distintos, mas que o editor W. B. Henry considerou
pertencerem a um conjunto de Metamorfoses, por exclusão de hipóte-

1
Artigo originalmente publicado no Boletim de Estudos Clássicos 45 (2006: 11-18).

119
Carlos A. Martins de Jesus

ses atribuídas a Parténio de Niceia, poeta do século I. a.C. de quem


preservamos um conjunto de histórias de amor, em prosa, baseadas
na poesia grega, além de alguns fragmentos poéticos. O papiro apre-
senta-nos, na frente (↑fr. 1), parte da narrativa de Adónis (ll. 1-6) e,
aparentemente sem qualquer relação, o mito de Astéria (ll. 7 sq.), que
sofreu também uma metamorfose. Filha do titã Ceu e de Febe, irmã
de Leto, transformou-se em codorniz para escapar às perseguições de
Zeus, que por ela se apaixonara, e lançou-se ao mar, onde se transfor-
mou na ilha Ortígia (literalmente, “a ilha das codornizes”), mais tarde
conhecida pelo nome de Delos.
No verso do papiro (→ fr. 1) encontramos o que parece ser a
parte final da narrativa do mito de Narciso, que nos ocupará a partir
deste momento. Nada parece confirmar que Parténio tenha tratado
este mito, mas possuímos relíquias que acusam o tratamento da fi-
gura de Adónis (SH. 641, = fr. 23 e SH. 654 = fr. 37), e daí também a
atribuição do achado a este autor.2
Vejamos agora o texto, que traduzimos a partir da edição de
W. H. Henry no volume 69 dos Oxyrhunchus Papyri (págs. 46-53),
para logo de seguida estabelecer um conjunto de reflexões sobre o
mito, as suas diferentes versões e o seu aproveitamento em diferen-
tes registos semióticos.

(faltam 5 versos)
………………………(julgando que) é um imortal[

………………… de aparência semelhante aos deuses.

um inquebrantável] coração ele tinha, odiado por todos, 10
(Narciso então) se apaixonou pela sua própria figura
……………...] mas lamentava o prazer de um longo sonho
…………………………...] chorou pela sua beleza
(e então) derramou (o seu sangue) sobre a terra
………………………………] suportar 15

2
Para as referências a Parténio, seguimos a edição de J. M. Edmonds e S. Gaselee 1978.

120
A flauta e a lira

A principal fonte para o mito de Narciso, que ao longo dos


tempos se impôs quase como única, é como para muitos outros ca-
sos Ovídio (Metamorfoses, 3. 339-510), um longo passo que demonstra
o interesse do poeta latino pela história. Muito brevemente, aqui se
conta que Narciso era filho de Cefiso, rei da Beócia, e da ninfa Le-
ríope. Ao nascer, um oráculo predissera-lhe que viveria bem até ao
momento em que se visse a ele próprio (v. 348). Ao atingir a juventu-
de, a beleza do herói granjeava-lhe a paixão de um sem número de
donzelas e mancebos, entre as quais a ninfa Eco que, impedida de
estabelecer diálogo com alguém – pois que apenas repetia os finais do
que ouvia – foi também por ele preterida, retirando-se para morrer
solitária. Quantos havia desprezado, unidos pelo mesmo abandono,
lhe lançaram uma maldição: que enfim pudesse amar alguém e não
possuir o objecto do seu amor. Havia de ser por si próprio que nasce-
ria a paixão, nesse coração onde paixão alguma havia já nascido. Um
dia, cansado de uma caçada, acerca-se de um lago para matar a sede
e, ao ver o seu reflexo, apaixona-se pela sua figura, não mais saindo
desse local, até morrer. No fundo, o ser que amava estava mesmo
ali, perto de si, do outro lado do espelho (a água cristalina), mas não
podia de forma alguma atingi-lo. Pior do que a distância, para Narci-
so, era a proximidade intransponível daquele regato de água. Conta
ainda Ovídio que, no momento em que as Dríades preparavam o seu
funeral, em vez do corpo encontraram uma flor amarela, que em sua
homenagem passou a chamar-se Narciso.
A metamorfose não é, por conseguinte, explicada em Ovídio.
A transformação de homem em flor é algo que ocorre como que por
magia, pela substituição de um cadáver (homem morto) por uma flor
(um ser vivo), no fundo um ressurgir do herói dos mortos que, sob
outra forma, regressa à vida. Os deuses, ao certo, não permitiram que
um homem tão belo desaparecesse por completo, transformando-o
em flor, para que toda a humanidade, até ao fim dos tempos, pudesse
contemplá-lo.

121
Carlos A. Martins de Jesus

Ora, no que concerne à parte final do mito, a metamorfose de


Narciso em flor, parece claro que não é esta a versão que Parténio
segue, no texto que acima transcrevemos e traduzimos (a admitir a
atribuição do papiro). Na versão de Ovídio, como se viu, a morte é
também voluntária, não infligida por outrem, mas este suicídio é
lento, decorrente da inanição. Narciso, simplesmente, deixa-se ficar,
preso à contemplação de si mesmo, até que lhe falecem as forças e
acaba por morrer. A visão do seu reflexo exerce sobre ele um efeito
mágico, um encantamento que o faz esquecer as mais vitais necessi-
dades humanas.
No texto preservado do papiro que vimos comentando, até
ao verso 11, nada de diferente nos é permitido ler. Temos a expres-
são da beleza do herói, semelhante na aparência aos próprios imor-
tais (vv. 7-8), o preterir de todos os pretendentes, motivo do ódio
por parte destes (v. 10) e o enamoramento pela própria figura (v.
11). O verso 12, contudo, merece já mais atenção. O sonho a que se
alude pode muito bem ser entendido como a ilusão (da beleza) que
foi toda a vida de Narciso, algo que agora se lamenta amargamente,
contemplada que foi a verdade (a fealdade) nas águas do lago. Esta
hipótese parece confirmar-se no verso 13: a beleza chorada seria, no
fundo, uma beleza que não há, e que, em boa verdade, se percebe
nunca ter existido de facto. Talvez consequência dessa amarga des-
coberta, o acto de dar a morte (v. 14) é extremamente violento e ime-
diato. Se aceitarmos, como parece credível, que o sujeito do verso é
o próprio Narciso, e que o objecto directo é o sangue, estamos então
a falar de um suicídio consciente e cruel. As coordenadas do final do
mito estão então, e tendo como referência Ovídio, completamente
subvertidas. Narciso ter-se-á suicidado ao perceber ser uma ilusão
a beleza que sempre julgou possuir. Precisamos assim, como parece
claro, de encontrar uma outra versão do mito que tenha eventual-
mente servido de modelo à composição de Parténio.

122
A flauta e a lira

Dos demais autores que trataram o mito de Narciso,3 o tes-


temunho que nos parece mais semelhante é o de Cónon (FGrHist. 26.
24), numa versão originária da Beócia, miticamente a terra do pró-
prio herói. O que nos refere o autor é, a início, o mesmo que pode-
mos ler em Ovídio: Narciso, jovem, preterindo todos os seus preten-
dentes. Depois, contudo, a situação muda. Um dos jovens negados,
ao suicidar-se, pede aos deuses que amaldiçoem Narciso, que há-de
pôr termo à vida de forma violenta, trespassando o peito com um
punhal. Do sangue derramado sobre a terra explica Cónon (FGrHist.
26. 24. 3) o surgimento do narciso, pelo que não se trata, em boa ver-
dade, de uma metamorfose, antes de um fenómeno telúrico, da terra
que absorve o sangue derramado e reage com a criação de um novo
ser, fenómeno em tudo semelhante à origem das erínias:

Pensam os autóctones que a primeira flor de narciso nasceu daquela terra,


derramado sobre ela o sangue de Narciso.

Estamos então, com o texto do papiro e com a versão de Có-


non, no âmbito de uma versão mais pessimista do mito. O espelho,
no momento final da vida do herói, resulta na desilusão e no desen-
gano, na constatação da não existência de uma beleza em que toda
uma vida tinha assentado. Daí que a morte não seja calma, fruto de
um apagamento sucessivo das forças vitais pela inanição, antes dada
pelo mais violento dos suicídios. Ela vem pelo sentimento de solidão,
causado pelo afastamento do convívio social e amoroso, ciente de que
só em si próprio existe o belo, um belo que torna indigna a aproxima-
ção de qualquer outra pessoa. É este, no fundo, o aproveitamento que
deste mito fez a moderna psicologia, bem como, a outro nível, o senso
comum, que não raro confunde as noções de narcisismo e egoísmo.
Ao longo dos tempos, e já desde a Antiguidade, muitos fo-
ram os que interpretaram o mito de Narciso, baseados essencialmente
3
As fontes principais para o mito, por ordem cronológica, parecem ser a) Hino Homéri-
co a Deméter (v. 6 sq.), Cónon (FGrHist. 26. 24), Pausânias (9, 31, 7-9) e Ovídio (Met. 3. 339-510).

123
Carlos A. Martins de Jesus

numa recepção nem sempre rigorosa do Platonismo. Já Luciano, vul-


to da segunda sofística (c. 120-190 d.C) o relacionara com a vaidade,
crítica que seria aproveitada pelo Cristianismo. Clemente de Alexan-
dria (Paedagogus 2. 8. 71. 3), por exemplo, estabelecia a ligação entre
a vaidade narcísica e o culto da imagem exterior, que devia ser, pelo
contrário, desprezada em prol da beleza espiritual. Do mesmo modo
Plotino (Enneades 1. 6. 8) olhava para Narciso como o mais perfeito
exemplo do herói que havia ignorado que o seu corpo (o que vira
reflectido) não era ele próprio mais do que um reflexo (imperfeito e
limitado) da sua alma, e que, desejando o que não merecia ser deseja-
do, com isso se afundara nas águas, metáfora tanto para a negra noite
do Hades como para o Inferno cristão. É isto prova suficiente de que o
mito era já lido em termos simbólicos, dele se retirando ensinamentos
filosóficos e morais. Para Plotino, de resto, é o processo de reflexão
de um espelho que explica a criação de todo o mundo sensível, o que
torna o caso de Narciso ainda mais paradigmático. E neste sentido
seguiram, regra geral, os restantes neoplatonistas. O próprio Marsílio
Ficcino, no seu comentário ao Banquete de Platão, entende ainda o epi-
sódio de Narciso como uma confusão do eu (essência, verdade) com a
imagem reflectida (aparência, ilusão).
Muitos foram também, entre nós, os poetas contemporâneos a
tratar o mito de Narciso, tantos e de forma tão rica que aqui não cum-
pre mencioná-los.4 Preferimos, por isso, enveredar por um outro re-
gisto semiótico, a pintura, analisando, com base nas reflexões suscita-
das pelo texto do papiro, de que forma elas terão estado presente na
mente do artista. Já Filóstrato (Imagines 1. 23) nos dava a descrição de
um quadro onde se podia ver um verdadeiro jogo de espelhos. O ros-
to de Narciso que se reflecte na fonte, a fonte que se reflecte nos seus
olhos, os olhos que se reflectem no quadro e, por fim (para completar
o ciclo) o próprio quadro que se reflecte nos olhos de quem o vê. Um

4
Tanto mais que este assunto foi já tratado por A. Veloso 1975-1976: 167-190 e José
Ribeiro Ferreira 2000: 95- 124.

124
A flauta e a lira

jogo de espelhos onde, por entre reflexos e reflexos de reflexos, muita


essência se pode perder.
Na pintura, Caravaggio (Narciso. Óleo sobre tela, 110x92 cm:
Galeria nacional de Arte Antiga, Roma) pintou de forma admirável a
expressão de desespero no rosto de Narciso, no momento em que se
curva sobre as águas e vê o seu reflexo. E é este reflexo, precisamente,
que se mostra revelador. Ele é um rosto feio, disforme, em nada simi-
lar ao do indivíduo que o contempla. A dicotomia que o artista bem
exprime é a da realidade / aparência ou, de outro modo, essência / su-
plemento. O reflexo do eu (suplemento) é, no fundo, a visão que esse
eu tem da sua própria essência, no momento da morte, precisamente
o inverso da que cultivara ao longo de toda a vida. Daí que, entendido
este curvar sobre o lago como um exercício de auto-conhecimento,
este esforço tenha seguido os trilhos errados.

125
Carlos A. Martins de Jesus

Como diria Platão, Narciso procurou a verdade onde não


cabia alcançá-la; buscou a essência no mundo das aparências (sim-
bolizado no lago), e não poderia de forma alguma contentar-se
com o resultado, fosse ele belo ou feio. De outro modo, podem
a disformidade e a fealdade ser, elas próprias, a essência desse
Narciso homem, só percebidas quando se curvou sobre as águas,
quando olhou para o fundo do lago, o fundo de si próprio, para aí
ver a verdade. E, assim sendo, só pelo suplemento, pela imagem
reflectida, pode o homem conhecer, ainda que imperfeitamente,
a sua essência, que é deste modo relegada para o campo do in-
cognoscível. Seja o reflexo verdadeiro ou enganador, não pode de
facto o indivíduo olhar-se senão através dele. Estas as limitações
mais básicas da autognose.
Belo ou feio – essencialmente belo ou essencialmente
feio – qualquer que seja a leitura do mito ou a versão antiga
por que optemos, Narciso traz-nos o mistério do outro lado do
espelho. Do outro lado, todo o mundo que imagina Alice antes
de entrar no país das maravilhas; do outro lado do espelho, por
vezes, um ser em tudo igual a nós que estende a mão quando
nós próprios a estendemos, de uma aparente similaridade des-
concertante; do outro lado do espelho a verdade, a que se não
quer aceder, por medo (Narciso disforme), ou a mais doce das
mentiras (Narciso belo). A avaliar pelo texto do novo papiro,
do outro lado do espelho vem a causa imediata para a morte: a
desilusão, seja pela realidade, seja pela ilusão de uma imagem
enganadora. Na versão de Ovídio, o encantamento provocado
pelo reflexo fora a única causa de morte: um ser que se apaixo-
na por uma imagem (que não é ele próprio) e que desse modo
se esquece de si.
Do outro lado do espelho, no fundo das águas, não pode en-
fim estar o verdadeiro Narciso. O Narciso que lá mora é um eidolon,
uma ilusão de óptica, ou simplesmente um reflexo individualizado

126
A flauta e a lira

do sujeito aí reflectido. Do outro lado do espelho mora o medo, o ter-


ror que representa a descida ao fundo de si, o pavor de aí encontrar
a mentira, ou a pior das verdades. Narciso tombou. Resta só saber o
que viu ele, do outro lado.

127
Carlos A. Martins de Jesus

128
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(P. Colon. inv. 7511)
Figura 2: Emblema de A. Alciato, s.v. “Maledicentia”

Figura 3: Emblema de A. Alciato, s.v. “Maledicentia”


(edição de 1621)
Figura 4: Eirene. Grupo escultórico em mármore atribuído a Cefisódoto
(reconstrução)
Figura 5: P. Oxy. 69. 4708, atribuído a Arquíloco
Figura 6: Fragmento da tragédia perdida Epigonoi de Sófocles
(P. Oxy. 71. 4807)
Figuras 7-8: P. Oxy. 69. 4711
Figura 9: P. Colon. inv. 21351 + 21376r

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