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A Flauta e a Lira
Estudos sobre Poesia Grega e Papirologia
Prefácio de
José Ribeiro Ferreira
Colecção
Fluir Perene - nº 3
3
Autor: Carlos A. Martins de Jesus
Título: A Flauta e a Lira. Estudos sobre poesia grega e papirologia
Editor: José Ribeiro Ferreira
Edição: 1ª / 2008
Design Gráfico: Fluir Perene
Ilustração da capa: Papiro de Oxirrinco 69. 4708
Tiragem: 100 exemplares
Impressão:
Simões & Linhares, Lda.
Av. Fernando Namora, n.º 83 - Loja 4
3000 Coimbra
ISBN: 978-989-95751-3-4
Depósito Legal: 276772/08
A flauta e a lira
Índice
In limine 7
A tradição iâmbica 31
Dois alvos da invectiva iâmbica 33
Devassidão em prados de flores. O fr. 196a W. atribuído a
Arquíloco 47
As flechas da calúnia: Estêvão Rodrigues de Castro e a recepção
de Arquíloco no Renascimento 57
Baquílides de Ceos 69
Fama, a que tudo vê e tudo conta. Epinício 2 71
O Galo de Urânia. Epinício 4 75
Flores de canções doces como o mel. Fragmento 4 M 81
Novidades papirológicas 87
Poetas gregos nas areias do Egipto: algumas relíquias
papirológicas trazidas a público 89
Quando os Gregos sofreram terrível derrota.
O novo P. Oxy. 69. 4708 atribuído a Arquíloco 93
Musas de regaço violeta. Um novo texto de Safo 115
Narciso, o belo suicida. (Re)Leituras do mito a partir
de um novo papiro 119
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In Limine
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A flauta e a lira
Prefácio
Géneros e Formas Poéticas na Época Arcaica
— ∪∪ — ∪∪ — ∪∪ — ∪∪ — ∪∪ —— hexâmetro
— ∪∪ — ∪∪ — // — ∪∪ — ∪∪ — pentâmetro
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Duas regras marcam o pentâmetro: uma delas reside no facto de a diérese coin-
cidir sempre com o fim da palavra; a outra no facto de as breves da 2ª parte não poderem
ser substituídas.
3
Tem-se tentado tirar do termo uma etimologia (que elegeion era “dizer ai”). Mas
note-se, contudo, que o verbo lego, de início, significava “colher”. Outra teoria — que se tem
proposto, mas não tem tido aceitação — deriva-a de forma elegen, uma palavra de origem ar-
ménia que significa “tubo” ou “cano”. Trata-se de uma etimologia tentadora, pois designaria
o instrumento musical que acompanharia a elegia. Em resumo: em matéria de etimologia de
elegia, estamos hoje na mesma posição em que se encontrava Horácio, no século I: «Grammatici
certant et adhunc sub iudice his est».
4
No mesmo sentido vai uma referência de Diodoro (9. 20. 2) que, ao citar um dístico
de um poema mais longo de Sólon, refere-se a ele como «este elegeion», e que ao conjunto de seis
linhas do fragmento apelida elegeia.
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...................occendent ostium,
impleantur elegeorum meae fores carbonibus.
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A flauta e a lira
Trímetro iâmbico: x — ∪ — x — ∪ — x — ∪ —
Tetrâmetro trocaico: — ∪ — x — ∪ — x — ∪ — x — ∪ — x
8
Por exemplo, canções populares e vários passos dos Poemas Homéricos que fazem
referência a canto, quer a solo, quer em coro — formas preliterárias de poesia não épica: Ilíada
1. 472-474, os Aqueus entoam a Apolo péanes; Ilíada 9. 186, Aquiles canta os feitos gloriosos
acompanhados à lira; Ilíada 18. 493, refere epitalâmios; Ilíada 18. 569-572, são referidos dois tipos
de cantos (um jovem canta acompanhado da cítara e outros cantam e gritam enquanto pisam o
solo a compasso); Ilíada 23, entoa-se um treno em honra de Pátroclo; Ilíada 24, trenos em honra
de Heitor; Odisseia 5. 61-62; canto a acompanhar o trabalho — quando Calipso se encontrava
ao tear.
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a Apolo, mas mais tarde pode ser entoado também a outros deuses; o
ditirambo que, já mencionado em Arquíloco (fr. 120 West), se entoava em
honra de Diónisos9; partenéion, um canto executado por um coro de don-
zelas (parthenos); prosódion, canto que acompanha uma procissão.
Ao lado dos poemas em honra dos deuses, havia as formas con-
sagradas aos homens que, segundo a tradição, teriam sido introduzi-
das por Simónides: o encómio (enkómion), elogio de um cidadão ilustre10;
o epinício que celebra uma vitória desportiva nos grandes Jogos; o treno,
um canto fúnebre; a “canção de mesa” ou skólion. De todas estas formas
líricas, só dos epinícios temos número significativo de composições
completas. Do resto apenas nos chegaram praticamente fragmentos,
mais ou menos extensos. Excepção para alguns escassos exemplares,
que podem ser considerados poemas completos11.
Embora seja característica conhecida, e já subjacente nas notas
anteriores, devemos chamar a atenção para a importância da música
na poesia grega arcaica, em especial na lírica. Todas as formas eram
acompanhadas por instrumentos musicais, como a lira e a flauta, e os
géneros distinguiam-se pelo ritmo. Um passo de Álcman, o fragmento
39 Page, garante que o acompanhamento era feito pelo próprio poeta
que também era músico, compositor e intérprete ao mesmo tempo12.
9
Não é fácil seber o que é o ditirambo. Segundo Pickard-Cambridge, tem um
ritmo especial, acompanhamento à flauta e em modo frígio, um vocabulário rebuscado e
um conteúdo narrativo apreciável.
10
Há quem sustente que todo o canto em honra dos homens se chama assim e que a
partir dele se desenvolvem os outros.
11
É o caso, entre outros, do fr. 1 L-P de Safo, dos frs. 356a e b e 357 Campbell de
Anacreonte.
12
Através dos fragmentos conservados sabemos que o péan, o ditirambo e o
partenéion eram acompanhados à flauta. A elegia e o iambo, que estão fora da lírica, eram
também acompanhados à flauta. Autores tardios dizem-nos que o hino era acompanhado
à cítara, o prosódion era acompanhado à flauta e o hiporquema à flauta e à cítara. Quanto
ao epinício era acompanhado quer por instrumentos de sopro quer de corda (lyra, kithara,
fórminx, bárbiton, kitharis). Vide Pfeiffer, History of Classical Scholariship (Oxford, 1968),
pp.282-283.
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A Flauta e a Lira
Estudos sobre Poesia Grega
e Papirologia
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Grécia e Egipto
dois afluentes de um mesmo rio poético1
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Esta regra vale para outros géneros e para outras comparações. Veja-se o trabalho de
confronto estabelecido por J. N. Carreira 1987: 87-107, ou esse outro entre o “Conto do Náufra-
go” e a Odisseia, levado a cabo por A. M. Mendes Moreira 2004: 355-362.
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Seguimos, salvo casos pontuais, a tradução de L. M. Araújo 1995: 270-300.
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Eu adoro a Dourada,
venero a sua majestade,
eu exalto a dama do céu.
Presto adoração a Hathor.
Laudações à minha senhora!
Chamei-a e ela ouviu o meu apelo,
enviou-me a minha dama,
e ela veio ver-me através dela.
(...)
Faço devoções à minha deusa,
para que ela me ofereça a minha amada.
Há três dias que invoco o seu nome,
pois há cinco dias que ela me deixou.
5
As traduções da lírica grega, salvo indicação em contrário, são de F. Lourenço 2006.
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J. Tolentino Mendonça 21999: 12 refere já o paralelo com os textos do Papiro Harris
500 e do Papiro Chester Beatty I.
7
Vide adiante o estudo inteiramente dedicado a este texto (págs. 47-56). Todas as
traduções de Arquíloco apresentadas estão contidas na nossa edição completa dos fragmentos
do poeta de Paros: C. A. Martins de Jesus 2008.
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ora porque ausente está há muito esse ser que acima de qualquer
outro se ama (L. M. Araújo 1995: 274):
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Vide o nosso estudo dedicado a este texto nas págs. 115-118.
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Tradução de J. Ribeiro Ferreira 2006: 42.
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A tradição iâmbica
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1
Versão original publicada no Boletim de Estudos Clássicos 44 (2005) 22-42. A primeira
secção deste texto, dedicada a Arquíloco, segue de perto uma parte da comunicação por nós
apresentada a 13 de Outubro de 2005 no Colóquio de Estudos Clássicos “Antiguidade Clássica
e Nós: Herança e Identidade Cultural”, organizado pela APEC e realizado nesse ano na Univer-
sidade do Minho. Daqui partimos para o alargamento do estudo ao poeta Hipónax, resultado
que agora se publica.
2
Vide supra, “Prefácio”, nota 7.
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(e.g. Paus. 10. 28. 3.). Quanto ao culto dionisíaco, é mais conhecida
a sua relação com ritos selváticos e sexuais, inspirados pelo vinho
que desceu sobre o espírito dos participantes, o contexto do co-
nhecido fr. 120 W.3
Também Aristóteles é um testemunho neste momento incon-
tornável. O autorizado autor atribui a origem da comédia aos cantos
fálicos entoados com vista ao pedido da fertilidade, incluídos no culto
de Diónisos (Poet. 1149a. 10-13) e de Deméter; mais adiante, refere-se
ao costume dos poetas iâmbicos de atacar directamente uma dada
figura conhecida, identificada no texto da invectiva (Poet. 1451b. 14
sqq.). Este ataque aos vícios e deformidades morais tem por trás,
curiosamente, um princípio de protecção da moral colectiva, um pou-
co como viria a acontecer com as comédias plautinas.
Com Arquíloco, tudo leva a crer, estamos nos inícios desta tra-
dição poética. Datado o seu floruit da primeira metade do século VII
a.C., não lhe são conhecidos quaisquer precedentes na elevação do
iambo a género literário. Daí que os seus versos detenham uma au-
tenticidade e uma fluência que entendemos ausente dos de Hipónax,
do qual não tarde falaremos.
Conta a lenda que Licambas e Telésicles, este último pai do
poeta, teriam arranjado o casamento entre os filhos quando juntos se
deslocaram a Delfos e o oráculo previra que o primogénito de Telési-
cles teria fama imortal.4 Mais tarde, por razões que desconhecemos,
Licambas terá recusado a mão da filha, Neobule, dando assim moti-
vação para o projecto poético de desonra da sua família por Arquí-
loco, que se teria sentido traído. Os versos produzidos teriam sido
3
Para as citações dos fragmentos de Arquíloco e Hipónax servir-nos-emos da edição
de M. L. West 21998.
4
Sobre o oráculo de Apolo em relação a Arquíloco falam-nos Dio Chrys. 33. 11-12
(=Archil. test. 16 Gerber) e Oenomanus ap. Euseb., praep. ev. 5. 32. 2-33.9 (=Archil. test. 18 Ger-
ber), muito provavelmente no seguimento da tradição presente na Mnesiepis Inscriptio (SEG 15.
517. col. ii. 50 = Archil. test. 3. col. ii. Gerber), datada do século III a.C. e parte de um recinto
dedicado ao poeta em Paros, para sua glorificação
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Os testimonia desta tradição estão recolhidos em Archil. test. 19-32 Gerber. Uma só
ressalva: por aqui vemos como, nas fontes mais antigas, apenas as duas jovens teriam cometido
suicídio, e não toda a família.
6
Vide, adiante, o nosso estudo sobre este texto (págs. 47-56).
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Sabemos, através de Filóstrato (Imag. 1. 3) que Arquíloco se serviu de fábulas ani-
mais para atacar Licambas.
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pagar as crias de Licambas pela traição de seu pai. Tudo indica que os
frr. 172-181 W. são parcelas de um único epodo dedicado a este indi-
víduo.8 A aceitar esta inclusão dos fragmentos num mesmo poema,
o fr. 173 W. (cit. Orig. c. Celsum 2. 21) traz novos dados, fundamentais
para a lenda, pois desenvolve a ideia da quebra de uma promessa
pela imagem dos convivas sentados a uma mesma mesa. Temos assim
prova de uma traição, não especificada, que depois vai ser ilustrada
pela introdução da fábula da águia e da raposa, entre os frr. 174-181
W. Uma falta à palavra que tem que ser punida, servindo a fábula de
modelo a esse castigo.
Não cabendo aqui um inventário destes aspectos nos frag-
mentos preservados, tarefa difícil e nunca segura dada a natureza
lacunar da maior parte dos textos, cumpre sim dizer como todos
eles se acomodam no fr. 196a W., um famoso Epodo encontrado em
Colónia e publicado em 1974, sobre o qual nos debruçaremos de
seguida. No entanto, e para o que aqui nos importa, adiantamos
como nos 53 versos do poema (35 linhas no papiro) se pode ler a
sedução de uma suposta irmã mais nova de Neobule, tarefa len-
ta e feita com todo o cuidado com vista ao sucesso final, a quase
violação da jovem, já que o coito não chega a ocorrer. O estilo é si-
multaneamente obsceno e cuidado, servindo-se mesmo o poeta de
alusões à linguagem homérica no que é, no fundo, uma narrativa
sexual. Neobule é trazida ao texto pelo narrador, que a pretere em
proveito da jovem que tem diante de si.
Temos a indicação da idade avançada (v. 26) – querendo tão
só dizer que não teria já, digamos, 15 ou 16 anos – e da perda da vir-
gindade (vv. 27-28), magistralmente conotada com a flor, imagem
que perdurou em toda a cultura ocidental posterior. Ora, essa flor,
malogradamente para a sua detentora, murchou, e flores murchas
não interessam a ninguém.
8
F. Rodríguez Adrados 1955: 12-24 faz uma tentativa de reconstrução deste epodo e
nele inclui 20 fragmentos do corpus.
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Sobre este assunto vide C. Miralles 1981: 29-46.
10
A sugestão é de A. P. Burnett 1983: 6-7.
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11
Este parece ser já o contexto do P. Dublin inv. 193a (=Archil. test. 19 Gerber), datado
do século III a.C.
12
Cf. Hippon. test. 1-2 Gerber.
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... com estas artimanhas Búpalo, o amásio da própria mãe, de gorra com
Arete, ia engrampando a prole de Éritras, a quem excitava o torpe despelado.15
15
Tradução de W. Medeiros 1961: 48.
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O ritual vai também marcar presença na literatura latina, em especial no romance
O Burro de Oiro de Apuleio, no Satyricon de Petrónio e nos Retratos dos Césares de Suetónio, que
nos dão alguns exemplos claros da permanência da personagem do “bode expiatório”. Vide C.
Miralles 1985: 89-103, J. Pòrtulas 1985: 121-139, R. B. Harlow 1974: 377 e P. Veyne 1983: 3-30. Se
alargarmos a noção para a expiação individual de um erro colectivo, para além da tragédia grega,
também no Novo Testamento encontramos várias ocorrências. A própria figura de Cristo, como o
filho de Deus que carrega em si as culpas de toda a humanidade e é, até ao calvário, alvo de humi-
lhação, tudo para a redenção dos pecados da colectividade, tem sido um exemplo apontado.
18
Trad. W. Medeiros 1961: 56.
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…………………..........
3) … a Búpalo…
4) … Búpalo …
6) … cada qual de sua banda …
7) … ao chegarem …
9) … andavam aos tropeções …
12) … derrubou (?) …
13) … logo …
14) … à beira de …
15) … assim eles praguejavam contra o maldito Búpalo …19
……………………………….
19
Trad. W. Medeiros 1961: 140.
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1
A versão original e alargada deste estudo, que inclui o texto grego, foi publicada no
Boletim de Estudos Clássicos 42 (2004) 15-33.
2
O mesmo assunto que encontramos em Horácio, Epodos 1 e Odes 1. 25 e 4. 13. O
mesmo tipo de velha fogosa que Aristófanes pintaria nas suas comédias, e que nos viriam a dar,
séculos mais tarde, os Epigramas de Marcial.
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Optámos por uma versão em verso branco, que segue a divisão do grego em tríme-
tros iâmbicos (53 versos), e não pelas linhas do papiro (35 linhas).
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…
por completo te abstendo.
Mas mostra igual coragem,
se te inquietas e o desejo te impele.
Temos em nossa casa
quem agora sente grande desejo... 5
bela e delicada donzela; parece-me
perfeito o corpo que possui.
Faz dela tua amante!”
Assim falou ela. Respondi-lhe então:
“ó filha de Anfimedeu, 10
nobre e sensata mulher
que a terra sombria agora detém!
São os deleites da deusa
sem conta para os jovens varões,
além da coisa divina; um deles me bastará. 15
Mas isso, com calma,
logo que anoiteça,
eu e tu, se ao deus assim aprouver, havemos de decidir.
Farei como me pedes.
Intenso (desejo me despertas). 20
E de transpor esses portais, sob o teu arco,
não me impeças tu, meu amor!
Deter-me-ei ao chegar ao teu jardim
onde a erva cresce – fica a sabê-lo! Neobule,
que outro homem a tome para si. 25
Ai! Como está madura! O dobro da tua idade!
Murchou a flor da sua virgindade
e o encanto que tinha outrora.
Não tem limites o seu desejo
e revelou a medida da sua infâmia, louca criatura! 30
É lançá-la aos corvos!
Isso não…
que na companhia de tal mulher
para os vizinhos seria motivo de troça.
Muito mais te quero a ti, 35
pois não és desleal nem tens duas caras;
ela é muito mais fogosa
e muitos amantes arranja!
Receio que filhos cegos e prematuros
no ardor impaciente possa gerar, 40
como fez a mítica cadela.”
Tais foram as minhas palavras. Tomei então a donzela
e num leito de flores
a estendi. Com sedoso manto
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homem (v. 25); refere-se-lhe como sendo velha (v. 26), comparando-a
a uma fruta que cai de madura9; e desenvolve em seguida a rica metá-
fora da flor da virgindade que, uma vez murcha, desprovida da bele-
za das suas pétalas, significa uma pureza já perdida (v. 27). Por tudo
isto, é lançá-la aos corvos! Andar na companhia de tal mulher é motivo
de vergonha e de repúdio por parte dos vizinhos (vv. 32-34). Daí que
a preferência recaia nesta outra jovem, por ser tudo o que Neobule
não era – sincera, honrada. Mas volta sem demora à mulher que ainda
agora caracterizou como a mais reles das prostitutas, para acentuar
essa mesma imagem. Até que ponto não significa esta obsessão em
dizer mal de alguém a incapacidade de superar a sua ausência? Não
estaremos perante a génese da antítese catuliana do odi et amo?
Nos versos subsequentes, a mulher que lhe fora negada é
comparada a uma mítica cadela (v. 41). Tudo leva a supôr a refe-
rência a uma fábula, posteriormente cristalizada por Esopo (Fab.
251 Hausrath), onde uma cadela e uma porca discutem a ferti-
lidade de ambas, e esta acusa a primeira de gerar filhos cegos.
Arquíloco recuperaria então a história no sentido de apontar a
prostituta como responsável pela deformação moral e física da
sociedade, uma degeneração que tem início na sua ninhada. Ela
é um monstro de impudor e lascívia, que consigo traz apenas o
mal. O envolvimento sexual com um ser deste tipo é então um
acto imundo e que deixa sequelas nas crias geradas. Fica assim
mais uma vez provado que Neobule, a quem se referiram os últi-
mos versos, não é a mesma donzela dos versos 5-6. Se no início do
fragmento se falava de parthenos (“rapariga” ou, no limite, “vir-
gem”), fala-se agora (vv. 30 e 33) de gyne (“mulher”).
Neobule e os seus estão já, chegados a este ponto do poema,
completamente desmoralizados. Licambas teria visto os vícios sexuais
das filhas enxovalhados na praça pública. Mas o poeta não está ainda
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Repare-se no tratamento dado a este tema por Safo (fr. 105 Lobel-Page), referindo-se
a uma noiva já pouco jovem.
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Estêvão Rodrigues de Castro e a recepção de Arquíloco
no Renascimento1
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E Marcial (7. 12. 5-8 = Archil. test. 32 Gerber), ele próprio cultor
do género invectivo, serve-se do exemplo de Licambas para designar
todos esses versos viperinos que muitos lhe atribuem e que diz não
serem da sua autoria:
4
Também nos versos 521-524 da mesma obra volta Ovídio a referir-se à lenda,
acompanhada da de Hipónax. O passo é valioso pela afirmação ovidiana – impossível de
confirmar –, de que Arquíloco foi o inventor (repertor) do género iâmbico.
5
Tradução de Delfim Leão (2001), Marcial. Epigramas. Vol. III, Coimbra, p. 19.
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vez mais vastos, até àquela que é considerada a última edição relevante, impressa em Madrid,
em 1749.
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Andrea Alciati Emblemata / cum commentariis Claudii Minois... Francisci Sanctii... et no-
tis Laurentii Pignorii, novissima hac editione in continuam unius commentarii seriem congestis... et
plusquam dimidia parte auctis, opera et vigiliis Joannis Thuilli; accesserunt in fine Federici Morelli, ...
corollaria et monita. Patauii, apud Petrum Paulum Tozzium, ex Typographia Laurentii Pasquati,
1621. Existe um exemplar desta edição na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (Cota:
UCBG-R-30-21).
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Também Hipónax, iambógrafo do séc. VI a.C., foi associado à imagem vespa, pela
acutilância dos seus versos contra Búpalo e Aténis (vide supra, págs. 39-46). No século V a.C., a
caracterização do coro de Vespas de Aristófanes tem por base o génio irritadiço desses animais,
metáfora do temperamento em tudo semelhante dos Atenienses.
10
A que edição da Antologia se refere o comentador? Muito embora a primeira edição
(ainda parcial) date de 1754 (Anthologiae graecae a Constantino Cephala conditae libri tres, Leipzig),
e a primeira completa de 1772-1776 (Analecta veterum poetarum graecorum, Strasbourg), sabemos
que, desde a descoberta do códice do séc. XI (1606), Saumaise copiara os epigramas que falta-
vam à já conhecida Antologia de Planudes, não levando a bom porto, no entanto, o projecto de
edição completa. Daí que, esporadicamente, alguns textos pudessem de facto ser conhecidos e
ter incluído uma edição, em três livros, que contivesse essencialmente a Antologia de Planudes e
alguns textos já da Antologia Palatina.
11
Pindari Olympia, Pythia, Nemea, Isthmia. Callimachi hymni qui inveniuntur. Dionysii de
situ orbis. Lycophronis Alexandra. Venice, Aldus-Asulanus, 1513.
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O exemplar mais antigo conservado entre nós, na Biblioteca Geral da Universida-
de de Coimbra, é de uma edição de 1528: Adagiorum opus Des. Erasmi Roterodami per eundem
exquisitiore quam antehac unquam cura recognitu[m], nec parum copioso locupletatu[m] auctario...,
Basileae, ex Officina Frobeniana, 1528 (Cota: UCBG-4-10-17). Um outro exemplar conservado
na mesma Biblioteca, datado de 1572, apresenta marcas de ter sido expurgado pela Inquisição
(Cota: UCBG- S.P.-Ad-17-9).
13
O caso de Archilochi melos (“o canto de Arquíloco”) refere-se a um hino de vitória (fr.
324 W.), dedicado a Héracles, que foi em tempos atribuído a Arquíloco. A ele alude Píndaro (Ol.
9.1), entre outros autores. M. L. West 21998 considera o texto de atribuição duvidosa, preferindo
encará-lo como um canto de circunstância, de origens orais, não da autoria do iambógrafo de
Paros.
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Assim o esclarece G. Manuppella 1967: 424.
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Baquílides de Ceos
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Nem sequer a natureza da prova foi imune a polémica. De facto, perdeu-se a epígrafe do
epinício 1, e o texto de ambas as odes dedicadas à mesma vitrória no Istmo admite duas hipóteses: o
pancreácio e o pugilato. Inclinamo-nos, como a maioria dos estudiosos, para esta segunda hipótese, até
porque é o próprio Baquílides quem dá conta da propensão dos habitantes de Ceos para essa modalidade
(Odes 6. 7).
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(Eneida 4. 173-188),2 que dela diz ter tantos olhos quantas são as suas
penas, e em mesmo número as bocas, as línguas e os ouvidos. Mons-
tro horrendo – assim se lhe refere o poeta latino – a Fama é a figura
que tudo vê, tudo ouve e tudo conta, a perfeita personificação do Ru-
mor ou do Boato, a quem notícia alguma escapa. Ainda invocada por
Baquílides no começo, bastante fragmentado, do epinício 10 (vv. 1-7),
e sem a carga de monstruosidade que lhe atribui Virgílio, é pelo poeta
tratada, à semelhança das Musas ou das Graças, como uma divindade
que “concede glória imensa” (semnodoteira, v. 1).
Glória que pertence ao atleta, em primeiro lugar, mas que se
estende, nas asas da Fama que cortam os ventos, à pátria que viu nas-
cer a ambos, vencedor e poeta que o canta. Disso dão conta os versos
da antístrofe. É que uma vitória nos jogos não é algo de singular e
autónomo, antes o culminar de uma herança étnica e genética que,
no Istmo, teria já resulado em “setenta coroas”, isto é, setenta outras
vitórias das gentes de Euxanto. Não é contudo forçoso admitir, como
se procurou já demonstrar, que uma ilha tão pequena tivesse obtido
setenta vitórias nos Jogos Ístmicos. Mais correcto é talvez entender
este número como símbolo de uma grande quantidade de triunfos,
motivo sobremaneira enaltecedor dessa terra que, uma vez mais, viu
um filho seu superar a própria condição de mortal. Disso se encar-
regarão ambos, poeta e Fama, para além da “Musa local”, a tríplice
equipa capaz de evitar que tão importante feito caia no esquecimento
dos séculos.
É de resto a Mous’ authigenes (v. 11) quem convoca “o doce
ressoar das flautas” (v. 12), numa alusão ao canto exigido para o re-
gresso do herói à pátria. Estão de facto bem presentes, nesta última
estrofe, noções étnicas e genéticas. Se aceitarmos, como parece cor-
recto, que o adjectivo authigenes se refere à Musa da terra pátria do
vencedor – e não à do Istmo – é ela quem reclama cantos de vitória
2
Influenciadas por Virgílio foram as descrições poéticas da Fama empreendidas por Horácio,
Odes 2. 2. 7, Ovídio, Metamorfoses 12. 39-63, Valério Flaco, Argonáuticas 2. 117 sqq. e Estácio, Tebaida
425-431.
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O galo de Urânia
Epinício 4
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1
M. Norsa 1941: 155-163. O conhecimento da obra de Baquílides sofreu uma revolução im-
pressionante quando, na década de noventa do século XIX, se descobriu um papiro que continha, segundo
a editio princeps de F. G. Kenyon 1897, catorze epinícios, seis ditirambos e uma série de fragmentos
noutros géneros poéticos.
2
O Papiro Oxirrinco 2222, um catálogo de vencedores, refere-se a Hierão precisamente com
o qualificativo Syrakosios.
3
Alguns exemplos da recorrência com que este epíteto é aplicado a Apolo: Ilíada, 4. 2; Hesío-
do, Teogonia 947; Alcman, fr. 1 PMG; Píndaro, Olímpicas 6. 41, 7. 32, Píticas 2. 16.
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justifica pelo facto de esta ser uma cidade onde o culto ao deus é par-
ticularmente significativo, antes e só porque dela é natural o vencedor
que se está a elogiar. A razão dessa honra, que ambos, deus e poeta,
prestam a Hierão e à sua cidade, é em seguida explicada: uma vitória
em Delfos, o “umbigo da terra escarpada”4 (v. 4) que, para mais, não
é a primeira. O poeta é claro ao apontar o triunfo presente como o ter-
ceiro deste atleta5 (v. 4), e considera mesmo que poderia esta vitória
ser já a quarta, não fosse um desarranjo da justiça ter negado ao tirano
um merecido primeiro prémio (vv. 11-13).
Numa dessas ocasiões, pelo menos, teria já o poeta procedido
à celebração do triunfo de Hierão. No contexto de uma das mais ri-
cas metáforas animais de todo o corpus conservado de Baquílides, o
poeta é assimilado ao “galo de Urânia”6 (v. 8), o animal que desperta
quem o escuta para a luz do dia, marcando deste modo uma fronteira
entre as trevas da noite – metáfora do esquecimento – e a luz do sol
– imagem da glória e da imortalidade pela poesia. A melhor prova
de que o galo é metáfora do próprio poeta reside no adjectivo que o
qualifica, adyepes (v. 7), o “de voz doce”, para além de ser habitual, em
Baquílides, o recurso a outras imagens animais para o mesmo efeito:
ele é uma abelha na ode 10 (v. 10), um rouxinol na ode 3 (v. 97) e uma
águia, mensageira de Zeus, na ode 5 (vv. 19 sqq.). O galo, que não
tem já para nós a carga poética de um rouxinol ou de uma abelha,
conservava no entanto, para os Gregos, um profundo lirismo. Anun-
ciador da manhã, arauto dos primeiros raios de sol, além de sugerir
a glória poética de que a luz do dia é símbolo, era também o animal
combatente por natureza, pelo que, no contexto da ode epinícia, pode
funcionar como nuntius uitoriae.
É o galo (poeta) ainda o sujeito do poema, pelo menos até ao
verso 10, passo em que Baquílides dá mostra do valor da sua técni-
4
Pausânias 10. 16. 3 informa que a pedra colocada no centro do templo de Apolo em Delfos
era considerada um marco do centro do mundo. A isso alude também Píndaro, Pean 6. 17.
5
Hierão tinha de facto sido triunfante, na mesma prova, nas 26ª e 27ª Píticas (482 e 478 a.C.).
6
É o próprio Baquílides quem se assume servo de Urânia, a sua Musa de eleição (Odes 5. 13 sqq.).
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8
Sobre o tratamento aristofânico do tema, em especial em Paz, vide J. Ribeiro Ferreira
2
1993: 423-442.
9
Vide LIMC 3, s.v. ‘Eirene’ (especialmente as figuras 6, 7 e 8).
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Novidades papirológicas
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1
Publicado no Boletim de Estudos Clássicos 44 (2005: 11-15).
2
O site oficial de Oxirrinco, onde podem ver-se a história da cidade, os índices, as
imagens dos papiros publicados e ainda a explicação das novas técnicas de tratamento de ima-
gem utilizadas, é o seguinte: www.papyrology.ox.ac.uk. No site da sociedade pode ainda obter-
se um pequeno curso on-line de papirologia, com a oferta de exercícios práticos de decifração
de papiros (www.lib.umich.edu/pap/k12/k12.html).
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3
O grego passou a ser a língua oficial do Egipto a partir de Alexandre o Grande (séc.
IV a.C.), pelo que é natural que a maioria dos papiros esteja em grego, a par de uma minoria de
textos em latim, copta, hebraico, persa e outras línguas.
4
Vide: D. Keys, N. Pyke 2005: 1, 3; J. Owen 2005.
5
Sabe-se que é prática corrente em Oxford atribuir o estudo destes fragmentos não
literários a estudantes, jovens investigadores que assim se iniciam nos domínios sempre impre-
visíveis da papirologia.
6
Vide A. Altichieri 2005 e U. Kulke 2005.
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10
Sobre o Evangelho segundo Maria Madalena, em particular, vide A. Piñero et alii 2005.
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Artigo publicado, com texto grego e aparato crítico, na revista Biblos 2006: 399-422.
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3
Talvez seja nesta linha de pensamento que D. Obbink 2006b se refira ao novo texto
como passível de leituras de índole pós-colonial, o que, no caso, quererá dizer pós-homérica.
4
Da existência deste rio nos dá testemunho Hdt. 7. 42. 1.
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5
Note-se como também Eur. Supl. 687-693 nos dá uma imagem semelhante, pela
boca do mensageiro, que conta a disputa entre Atenienses e Cadmeus pelos cadáveres Argivos
perecidos no famoso cerco às sete portas de Tebas: “… a poeira que em todo o céu / se propaga – que
a havia em grande quantidade – / ou os corpos arrastados para cima e para baixo / pelas correias e os rios
de sangue derramado, / quer dos que tombavam, quer dos que dos bancos em destroços / contra o solo, de
cabeça, se precepitavam com violência / e entre as estrilhas dos carros abandonavam a vida.” (Trad. José
Ribeiro Ferreira). A recuperação desta imagem por Eurípides, numa tragédia do ciclo tebano,
pode muito bem sugerir que ela era recorrente nos poemas do Ciclo Épico, como a Tebaida.
6
A fórmula ocorre ainda em Hes. Op. 648.
7
Sobre a Mnesiepis Inscriptio, monumento construído em honra de Arquíloco, vide o
recente estudo de P. C. Corrêa 1998: 193-207.
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Teria por engano morto Hipótoo e Pereu, dois irmãos da sua mãe,
pelos vistos o assunto dos Aléades de Sófocles.12 Nos Mísios,13 o mesmo
tragediógrafo terá desenvolvido o reconhecimento entre mãe e filho,
história que também conhecemos por Higino (fab. 100), mitógrafo
latino do período imperial. A tragédia ática mais conhecida sobre o
assunto, embora fragmentária, é o Télefo de Eurípides, onde se pinta
a imagem do homem solitário com uma ferida que não sara, a não
ser em contacto com a arma que a provocara. É isso que leva o herói
a Áulide onde, oito anos passados sobre o recontro bélico na Mísia,
os Gregos estão mais uma vez parados, desta feita à espera de ven-
tos favoráveis para zarpar para Tróia. Vestido de mendigo, oferece-se
aos Argivos para lhes indicar o caminho para a cidadela, porquanto
Aquiles aceite curá-lo, e ameaça degolar o pequeno Orestes se não lhe
for concedido o que pretende.14
Não obstante a fama que a tragédia granjeia, por nature-
za, a determinada versão mitológica, a versão da lenda que se
segue no fragmento que nos importa é outra, de origens épicas
anteriores ao tempo dos tragediógrafos. Falamos de uma tradi-
ção veiculada pelo chamado Ciclo Épico, uma série de grandes
poemas maioritariamente perdidos sobre os quais temos sobre-
tudo testemunhos e alguns (poucos) fragmentos preservados.
Quanto a Télefo e à escala do exército grego na Mísia a caminho
de Tróia – paragem não premeditada à qual se seguiria, anos
depois, a estagnação por falta de ventos em Áulide – são dois
os poemas que o referem: um deles ficou conhecido por Kypria
(Cantos Cíprios) 15 e trata das aventuras anteriores à chegada a
12
Soph. frr. 74-91 Radt.
13
Soph. frr. 409-418 Radt.
14
Eur. frr. 696-727 Nauck. Os principais dados para o nosso conhecimento da tragédia
euripidiana homónima do herói são fornecidos por Higino (fab. 101) e por Aristófanes, quando
a parodia ora em Acarnenses ora em Mulheres que Celebram as Tesmofórias. O pormenor do dis-
farce do herói de mendigo, ausente da história de Higino, parece ser uma criação de Eurípides,
motivo suficiente para a paródia aristofânica de que falámos. Para uma análise desta paródia à
tragédia vide M. F. Silva 1987: 112-131.
15
Para a discussão da datação, atribuição e resumo, vide M. Davies 1989: 33-52. Sobre
100
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… (?)
… (?)
] e muito deleitou os imortais”[
assim falou; ele] tremia e suava ao ouvir o discurso
dos imor]tais que, resplandecentes, surgiram à sua frente. 5
A rapariga], que dignamente recebera no palácio, criou-a
e cuidou] dela, honrando-a como às suas próprias filhas.
Ela gerou] Télefo da Arcádia, rei dos Mísios,
ao envolver]-se com Héracles nas teias do amor,
quando ele] perseguia os cavalos do ilustre Laomedonte 10
que, ]excelentes, tinham sido criados na terra da Ásia;
a raça dos magnânimos Dárdanos[
]de toda esta terra expulsou.
Entretanto Télefo] pôs em fuga dos Aqueus de brônzeas túnicas
[os guerreiros, e estes embarcaram] nas negras n[aus 15
]aproximou-se da terra bem fornecida de heróis
]e violência e massacre[
]por trás[
]e chegaram[
]famoso[ 20
]pela sua glória[
… (?)
… (?)
… (?)
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O assunto está completamente ausente dos Poemas Homéricos. Assim, os poetas a
que o texto se refere seriam ao certo os do Ciclo Épico.
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Sócrates: Pois bem, hei-de arranjar tempo para te ouvir, mas agora
responde-me só a uma pequena pergunta: és especialista exclusivamente de
Homero ou também de Hesíodo e de Arquíloco?19
19
Citamos, para o Íon de Platão, as traduções de V. Jabouille 1999, Lisboa.
20
Cf. Archil. frr. 131, 134, 219-221 W., Archil. test. 16, 34, 41 e 63 Gerber e ainda AP.
7. 674 e 11. 20.
21
O mais completo estudo sobre a mobilidade poética na Grécia antiga encontra-se
em L. N. Ferreira 2005.
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A melodia de Arquíloco
ecoando em Olímpia,
canto de vitória três vezes repetido,
suficiente para no sopé do monte Cronos guiar o cortejo
a Efarmosto, celebrando com os companheiros.24
22
J. A. Notopoulos 1966: 311-315 sugere que Arquíloco compôs poesia em hexâmetro.
23
Para o seu elenco completo e análise vide P. C. Corrêa 1998.
24
Tradução de Frederico Lourenço 2006: 129.
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vede(?)[
estrangeiros(?)[
um jantar[
mas não para mim[ 5
Vem daí, traz uma taça por entre os bancos da nau veloz,
avança e as tampas arranca das côncavas vasilhas,
colhe o vinho rubro até às borras. Nenhum de nós,
nesta vigília, vai conseguir manter-se sóbrio.
25
Também o fr. 2 W. se refere ao vinho e à lança (ou barco?) em que o poeta
bebe reclinado.
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26
Sobre este texto vide: F. Rodríguez Adrados 1953/54: 225-238, A. Gamero 1961/63:
35-44 e J. H. Barkhuizen 1989: 97-99.
27
Um companheiro de luta de Arquíloco (possivelmente um general), que não pode
confundir-se com o estadista ateniense do séc. V a.C.
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Com o meu escudo um dos Saios alguém se envaidece, o que num arbusto,
arma singular, deixei ficar contra minha vontade.
Mas salvei o coiro. Que me importa aquele escudo?
É deixá-lo! Outro hei-de comprar em nada inferior.
28
Para um comentário ao texto e à sua fortuna temática e crítica na literatura grega
vide P. C. Corrêa 1998: 110-133.
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O tema do escudo abandonado na batalha parece ocorrer também no fr. 139 W.
Sobre o assunto vide A. Kerkhecker 1996: 26.
30
Cf. o assunto do Filoctetes de Sófocles. O tema das armas do guerreiro,
mais importantes para a colectividade do que o próprio herói (desumanização) pare-
ce ter colhido o interesse dos tragediógrafos e a emoção do público na Antiguidade.
O assunto é também nuclear em Hyg. fab. 101.
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4
Sobre o mito vide: Il. 11. 1 sq; Od. 5. 1; Hes. Theog. 984; Apollod. Bibl. 3. 12.
3: Hyg. Fab. 270; Diod. Sic. 3. 67 e IV. 75; Virg. Georg. 1. 447 e 3. 48, 328; El. Nat. An. 5.
1; Hymn. Hom. 4. 218 sq; Tzetz. ad. Lyc. 18.
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Artigo originalmente publicado no Boletim de Estudos Clássicos 45 (2006: 11-18).
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(faltam 5 versos)
………………………(julgando que) é um imortal[
…
………………… de aparência semelhante aos deuses.
…
um inquebrantável] coração ele tinha, odiado por todos, 10
(Narciso então) se apaixonou pela sua própria figura
……………...] mas lamentava o prazer de um longo sonho
…………………………...] chorou pela sua beleza
(e então) derramou (o seu sangue) sobre a terra
………………………………] suportar 15
…
2
Para as referências a Parténio, seguimos a edição de J. M. Edmonds e S. Gaselee 1978.
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4
Tanto mais que este assunto foi já tratado por A. Veloso 1975-1976: 167-190 e José
Ribeiro Ferreira 2000: 95- 124.
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Referências
Bibliográficas
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Estudos
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M. L. West 1975, “Archilochus ludens. Epilogue of the other editor”, ZPE 16,
217-219.
M. L. West 2005, “The new Sappho”, ZPE 151, 1–9.
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Apêndice Iconográfico
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Figura 1: O Epodo de Colónia atribuído a Arquíloco
(P. Colon. inv. 7511)
Figura 2: Emblema de A. Alciato, s.v. “Maledicentia”