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VI SEMEAD ENSAIO

RECURSOS HUMANOS

A SOLIDARIEDADE NO TRABALHO E NAS INTERAÇÕES HUMANAS


COOPERATIVAS: ESTUDO DAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO

Autor:
Rodrigo Bombonatti
Título: Mestrando (stricto sensu) em Administração de Empresas – FEA/USP; instituição:
Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo;
endereço: R. Padre Agostinho Mendecuti, 51, ap. 54 – cep. 01257-090; e-mail:
bombonati@hotmail.com; tel.: 3672-2716.

1
A SOLIDARIEDADE NO TRABALHO E NAS INTERAÇÕES HUMANAS
COOPERATIVAS: ESTUDO DAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO.

Resumo: Analisar o tipo de relação humana que se estabelece em uma sociedade, mais
especificamente, no ambiente de trabalho, envolve tanto os aspectos psicossociais quanto os
econômico-culturais. Os impactos sofridos pelos indivíduos nas interações sociais competitivas
fazem com que o outro seja visto não como uma potencialidade para si mesmo, mas como uma
ameaça às suas pretensões pessoais. Por outro lado, as relações cooperativas permitem, além da
aceitação das diferenças e da auto-reflexão, o desenvolvimento de uma cultura mais associativa,
portanto, mais solidária. No primeiro caso, a dominação de um homem pelo outro, reduzindo este
a um meio para a consecução dos fins daquele, marca as relações de trabalho. Inversamente, a
adoção do trabalho cooperativo é a assunção da igualdade intrínseca entre os homens. Este artigo
pretende, de maneira crítica, abordar as atuais relações de trabalho capitalistas – apontando as
suas contradições e limites para a emancipação do homem – e as interações de trabalho
cooperativas – indicando as suas potencialidades para a individuação e maior socialização do
trabalhador. Para contrastar essas formas, além da revisão teórica, analisaremos o depoimento de
um cooperado.

Artigo:

Introdução

Tem-se utilizado a palavra solidariedade, atualmente, indiscriminadamente, seja pelas


campanhas publicitárias, para promover um produto ou serviço, seja pelas governamentais, para
destacar as ações do Governo Federal, que mobiliza, inconseqüentemente, uma restrita parte da
população brasileira para participar de programas notoriamente assistencialistas.
Contagiados e apoiadores de algumas dessas ações estão outros agentes que propalam tal
discurso: as instituições privadas. A fim de colocar em evidência a sua marca para os
stakeholders1, abarcar novos consumidores e, conseqüentemente, ampliar o seu market share2,
envolvem-se em causas sociais, tais como campanhas de alfabetização de adultos e crianças,
ações contra a fome, entre outras, e vão à mídia divulgar os seus feitos.
A primeira indagação que vem é: será que essas práticas são, de fato, ações solidárias? Se
conseguirmos superar essa primeira questão, a seguinte se coloca: é possível a ação solidária de
empresas que possuem práticas não solidárias, ou ainda, opressoras, em suas atividades internas?
Finalmente, e tanto mais intrigante, vem a dúvida: é possível a convivência entre práxis tão
distintas como solidariedade e capitalismo?
Esta última questão evidencia um oxímoro entre duas formas de relacionamento humano:
a primeira tem na cooperação um instrumento para a consecução de fins particulares e comuns,
sem que haja anulação de um ou de outro; e a outra se vale da competição para se atingir
objetivos particulares, sem maiores considerações aos impactos gerados nos diversos agentes
envolvidos.
Logo, as ações nomeadas solidárias, sejam aquelas praticadas pelo Governo Federal sejam
as realizadas pelas instituições privadas, parecem seguir essa mesma lógica do sistema capitalista.
1
Funcionários, clientes, fornecedores, acionistas, comunidades, entre outros agentes que possuem contato direto e
indireto com a empresa;
2
Proporção de vendas comparativamente aos concorrentes.

2
Ou seja, uma maneira de evidenciar uma imagem construída, não pelas ações a partir da cultura,
mas pela manipulação de discurso solidário engajado, fazendo dos movimentos socialmente
carentes uma estratégia mercadológica, seja para votos seja para produtos, o que, para Joseph A.
Schumpeter, pertence à mesma fôrma.
Outras tantas questões poder-se-iam levantar e tantos outros encaminhamentos poderiam
ser formulados. Entretanto, neste artigo, ater-me-ei à observação de o que se vem fazendo nas
relações internas de trabalho, a partir de uma discussão mais histórica dessas relações e de suas
transformações, procurando explorar um pouco mais a segunda indagação explicitada acima.
Para tanto, iniciarei a discussão resgatando as formas de trabalho artesanais e industriais,
destacando as relações entre os trabalhadores, os proprietários dos meios de produção e as
máquinas. Farei, ainda, uma discussão com diversos autores que trazem formas opressivas e
alternativas de trabalho, ilustrando, esta última, com a prática das cooperativas solidárias, através
de depoimentos de um cooperado, e as hipóteses desenvolvidas por Paul Singer, da FEA-USP.
Finalizarei a minha discussão, pretendendo estimular o leitor uma reflexão acerca do que
se entende por solidariedade em suas diversas práticas e como se torna difícil aceitar tal definição
ao que vem sendo feito no setor, principalmente, privado.
Vale dizer que o artigo aqui apresentado não tem um caráter maniqueísta, muito menos
unidimensional. Isso porque as contradições internas analisadas trazem um cenário multifacetado
e complexo, não possuindo resposta única, nem mesmo com o auxílio de diversas ferramentas de
análise estatística.

Trabalho, Tipos de Produção e Poder

O trabalho artesanal, da maneira como descreveremos a seguir, surgiu após diversas


mudanças, tanto social quanto moral, da definição de trabalho. Se nos voltarmos às definições
clássicas do termo, aparecendo após o nascimento da propriedade fixa, o trabalho, ou melhor
definido, o labor era uma atividade praticada somente pelos escravos.
Isso porque, segundo Arendt (1981), “os antigos (...) achavam necessário ter escravos em
virtude da natureza servil de todas as ocupações que servissem às necessidades da manutenção da
vida”. E continua afirmando que “laborar significava ser escravizado pela necessidade,
escravidão esta inerente às condições da vida humana”.
Em seguida, Arendt (1981) traz outros argumentos à afirmação dizendo que “é típico de
todo labor nada deixar atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido quase tão depressa
quanto o esforço é despendido”.
Ora, se laborar relaciona-se com as necessidades e consumo imediatos, como o produto
final de um processo produtivo poderia gerar lucro na modernidade?
É daí que surge a diferença, explícita em Arendt e implícita em Karl Marx, entre labor e
trabalho. Marx entende o trabalho com sendo “o metabolismo do homem com a natureza” em
cujo processo, “o material da natureza é adaptado, por uma mudança de forma, às necessidades
humanas”. (Arendt, 1981)
Mills (1951), citando Marx, afirma que a essência do ser humano está no seu trabalho,
sendo que aquilo que os indivíduos são coincide com o que produzem e com a maneira de
produzir.
Apropriando-nos destas definições, podemos iniciar a nossa análise da produção
artesanal, que se caracteriza pela produção autônoma do homem, em diversos aspectos:
instrumentos de produção, tempo de produção, relações com outros produtores, relação com o
produto final da produção, entre outros.
3
Marx, em Maquinaria e Indústria Moderna, traz a idéia de artesanato como o homem
possuindo os meios de produção e sendo a força motriz do processo produtivo. A relação do
homem com o instrumento de fabricação era de tal proximidade que o mesmo poderia,
caricaturalmente, ser uma extensão dos membros humanos.
Obviamente, analisando o movimento “ludista” de quebra de máquinas pelos proletários,
torna-se evidente a separação do homem de seu instrumento de produção quando do surgimento
das indústrias modernas, às quais discutirei ao longo deste artigo.
Mills (1951) concorda que o “trabalho do artesão é, portanto, um meio de desenvolver a
sua habilidade e, ao mesmo tempo, um meio de desenvolver a si próprio como homem”.
A utilização dos instrumentos de produção para desenvolver a si pelo trabalho realizado
vai além de apertos de parafusos, porcas e botões sistemática e ordinariamente cadenciados dos
movimentos, que reduz a significação do trabalho “a um sacrifício de tempo, necessário para
construir uma vida exterior a ele”. (Mills, 1951)
Diferentemente, o trabalho “do artesão é a base de sua vida; ele não procura no lazer a
evasão para um domínio separado do trabalho; traz para seus momentos de descanso os valores e
as qualidades desenvolvidos e empregados nas horas de trabalho”. (Mills, 1951)
Podemos aqui aproximar o conceito de lazer de Mills ao de Friedmann (1960):

“Quem diz lazer, diz, essencialmente, escolha, liberdade. O lazer corresponde às


disposições, aos gostos individuais, a um complexo de tendências abrigadas no próprio coração
da personalidade”.

Mas, se, para Mills (1951), até “a personalidade e o caráter do indivíduo se tornam parte
do meio de produção”, como trazer, na indústria moderna, o lazer para o trabalho, se possível for,
para que esse se torne prazeroso?
Já em relação à liberdade, o trabalhador artesanal é “livre para começar o trabalho de
acordo com os seus planos, e durante a atividade há liberdade para modificar sua forma e técnica
de criação”. (Mills, 1951)
A indústria moderna expropriou tal liberdade do homem. Além de a maquinaria, segundo
Marx (1987) ser “o meio mais potente para prolongar a jornada de trabalho além de todos os
limites estabelecidos pela natureza humana”. E continua afirmando que “antes de tudo, o
movimento e a atividade do instrumental de trabalho se tornam, com a maquinaria, independentes
do trabalhador”.
Adorno e Horkheimer (1969), aludindo à separação do homem de seus instrumentos de
produção e ao surgimento da indústria moderna, afirmam que “a divisão do trabalho, em que
culmina o processo social de dominação, serve à autoconservação do todo dominado”. E
continuam destacando que “dessa maneira, porém o todo enquanto todo, a ativação da razão a ele
imanente, converte-se necessariamente na execução do particular”.
Esses autores imediatamente supracitados trazem outra perspectiva às idéias de Marx,
porém com duas reflexões muito marcantes. A primeira refere-se ao conceito de divisão de
trabalho como uma maneira de fragmentação da força produtiva do indivíduo, que se torna meio
para a consecução de objetivos, ou fins, particulares dos detentores dos meios de produção. A
segunda, mediada pela primeira, é que, ao o indivíduo perder sua autonomia produtiva, conforme
consideramos anteriormente, e passar a pertencer a um fragmento do processo, ele promove uma
autoconservação da dominação sobre si e sobre os outros trabalhadores.
Neste ponto, encontramos uma outra característica fundamental do modo capitalista de
produção, além da competitividade, que é a existência desigual de poder, distribuído ao longo das
4
atividades produtivas. Marx, classicamente, personifica tal desproporção nos detentores da força
de trabalho e nos proprietários dos meios de produção. Ou, mais comumente, os primeiros
compõem a classe proletária e os últimos, a burguesia.
Finalmente, para Mills (1951), “o trabalho implica também diferentes tipos de poder
sobre as matérias, os instrumentos e as máquinas e, mais importante hoje, sobre as pessoas”.

Trabalho e cooperação

Conforme se viu anteriormente, o homem não só foi expropriado de seus meios de


produção, como também do significado de seu trabalho e, finalmente, submetido a condições de
não autonomia e de dependência dos proprietários dos meios de produção.
Cabe, nesta etapa, tecer algumas ressalvas. Primeiramente, sabe-se que a passagem da
produção artesanal para a industrial não ocorreu de maneira estanque, mas processual,
coexistindo, ainda hoje, embora preponderantemente esta última, os dois tipos de modo de
produção.
Por outro lado, faz-se necessário esclarecer, para maior abrangência deste artigo e para
evitar romantismos, que o modo de produção artesanal trazia também suas contradições internas
e que não foram superadas para a sua larga manutenção: pequena capacidade produtiva (em
volume), trabalho intenso e desgastante (fisicamente), altos custos de produção, lenta e restrita
transferência de conhecimento do mestre-artesão ao aprendiz e centralização de decisão e ação na
figura do primeiro.
Entretanto, esse poder nas mãos do mestre-artesão não se compara ao relato de Weil
(1941), quando diz que “o operário, embora indispensável para a fabricação, não conta quase
nada nessa produção; por isso”, continua, “cada sofrimento físico inutilmente imposto, cada falta
de consideração, cada brutalidade, cada humilhação, ainda que leve, parece-lhe um lembrete de
que ele não é nada e não está em sua casa”.
Ora, no trabalho artesanal a casa e o local de trabalho fundiam-se. Em Weil (1960),
percebe-se que chega a existir um antagonismo entre essas duas esferas. Na fábrica, continua
Weil (1960), “nenhuma intimidade liga os operários aos lugares e aos objetos entre os quais a sua
vida se esgota, e a fábrica faz deles, e em sua própria terra, estrangeiros ou exilados,
desenraizados”.
Claro está que qualquer forma diferente da competição fica excluída das relações de
trabalho entre os proletários. Contrariamente, no artesanato, a cooperação interna ao sistema de
produção torna-se essencial para o desenvolvimento efetivo do trabalho.
E, por cooperação entendemos, a partir de leituras de Candido (1960), como sendo a
obrigação bilateral como “elemento integrante da sociabilidade do grupo, que desta forma
adquire consciência de unidade e funcionamento”.3
A cooperação, desta forma, deve prescindir o poder, pois a mútua intervenção individual
deve ter um caráter livre e autônomo, não induzindo ao pensamento de ser uma forma de
“organização desorganizada”. Ao contrário, nos festejos caipiras 4, “toda esta gente5 se recruta no

3
Antonio Cândido, neste excerto de As formas de Solidariedade, refere-se ao trabalho cooperativo como algo
pertencente a um bairro, onde os mutirões são presentes e necessários à socialização e manutenção do modo de vida
caipira. Reinterpretando o autor, contextualizei tal definição às relações de trabalho internas a uma organização;
4
Palavra empregada para caracterizar as cidades do interior de São Paulo, estudadas por Antonio Cândido em sua
tese de doutorado;
5
“voluntários que se apresentam em cumprimento de promessas”. Cândido (1960)
(*) Francisco de Assis Ramalho de Souza – Cooperativa do Sabor.

5
bairro, cuja população é levada, deste modo, não apenas a convergir para a capela
periodicamente, participando das rezas, dos leilões e das relações correntes, mas, ainda, a assumir
encargos no interesse da coletividade dispersa, e unida por semelhantes práticas”. Candido (1960)
Aproximando-se do artesanato, as formas cooperativas de organização buscam resgatar, a
partir da coletividade, o significado e a consciência do trabalho, excluídos no modo de produção
capitalista.
Surge, portanto, um novo modo de organização do trabalho, que resgata as antigas formas
da relação artesanal, e vai além, superando as regressivas interações de poder capitalista e
possibilitando a socialização, autonomia e individuação do sujeito: as formas autogeridas de
trabalho.

Cultura, Autogestão e Solidariedade

Não posso, antes de dar continuidade a este artigo, deixar de explorar a dificuldade
existente na transição, ou ainda transformação, cultural da perspectiva capitalista ou explorador
das relações humanas no trabalho e do olhar cooperativo ou socialista das mesmas.
Isso porque, desde os nossos primeiros contatos sociais, principalmente nas escolas ou
ambientes culturais distintos da família, ou mesmo nessa, a lógica da competição e do sucesso
permeia as relações sociais da criança. Haja vista, as brincadeiras ou mesmo diversões a que
somos expostos: competições em jogos, em tarefas escolares, nos brinquedos eletrônicos, nos
grupos de colegas etc.
Uma vez que, segundo Lewin (1978) “as diferenças de conduta, tal como existem hoje
entre os homens brancos, pretos ou amarelos, não são inatas”, mas adquiridas, as “divergências
da norma social também” as são. Nesse mesmo contexto, Mead (1935), analisando os
comportamentos masculinos e femininos de diferentes povos - os Arapesh, os Mudugumor e os
Tchambuli – constata que “se aquelas atitudes temperamentais que tradicionalmente reputamos
femininas – tais como passividade, suscetibilidade e disposição de acalentar crianças – podem tão
facilmente ser erigidas como padrão masculino numa tribo (...) não nos resta mais a menor base
para considerar tais aspectos de comportamento ligados ao sexo”. Em seguida, a Mead (1935)
enfatiza que as diferenças culturais existentes entre indivíduos da mesma e de diferentes culturas
“devem ser atribuídas quase inteiramente às diferenças de condicionamento, em particular
durante a primeira infância, e a forma deste condicionamento é culturalmente determinada”. Ou
seja, o que os autores trazem é que os grupos de referência do indivíduo influenciar-lhe-ão as
condutas atuais e futuras, com efeito, enquanto tais constrangimentos se mantiverem
inconscientes.
Para ilustrar tal excerto, inicio a análise de uma exposição feita por um cooperado,
chamado Assis*, trabalhador de uma cooperativa solidária situada em São Paulo, que passou pela
transição entre a empresa capitalista para a autogestão, no momento em que os funcionários a
assumiram após diversas contendas com a antiga proprietária.
Inicialmente, afirma Assis, havia ausência de cooperação entre os funcionários, que eram
mal tratados pela proprietária, não lhes dando voz nem espaço para atuar. A relação entre eles era
competitiva e sem muita aproximação pessoal, a não ser por raras cenas de solidariedade, quando
ele, Assis, era alimentado, fora das vistas da proprietária, pela cozinheira, pois não lhe era
permitido ter refeições no local de trabalho, a fim de conter despesas.
Analisando esse primeiro depoimento, podemos aproximar a forma individualista e
competitiva do ambiente dessa empresa, com o que expusemos acima. Ou seja, o espaço de
trabalho era dominado pela proprietária, que não se preocupava com as necessidades do grupo,
6
mas com as suas. A busca pelo lucro fazia com que os funcionários não se integrassem, muito
menos se conhecessem, cabendo a eles cumprirem as suas tarefas e, ao final, afastarem-se do
local de trabalho.
Dentro desse sistema de crenças, valores e hábitos, onde a cooperação é prescindida, atos
como a da cozinheira acentuam a necessidade de ajuda mútua, uma vez que era flagrante o
descaso e as péssimas relações no local de trabalho. Entretanto, como que se anulando, os
funcionários aceitavam, formalmente, tal situação, a ponto de não as alterar ou mesmo
reproduzindo-as, mantendo, assim, os seus empregos e as precárias condições de trabalho
assegurados.
Por outro lado, os próprios pensamentos conformistas, tais como, “é assim mesmo...”, “as
coisas poderiam ser piores...”, “não há nada para ser feito...”, fecham as lacunas, sendo fácil
“compreender a razão pela qual a aceitação geral de um fato ou uma crença poderia constituir a
própria causa que impede tal crença ou fato de jamais ser posto em dúvida” (Lewin, 1978).
Portanto, a fim de superar as práticas competitivas e romper as crenças nesse
determinismo social, faz-se necessário, entre outras considerações, uma mudança cultural do
grupo. Ou seja, para se chegar a relações de trabalho que não sejam mediadas pela anulação de
um indivíduo pelo outro, os sujeitos sociais devem adquirir, segundo o mesmo autor, um novo
sistema de hábitos, padrões e valores, que se traduz em um processo de reeducação.
Tal abordagem pressupõe a aquisição de valores e conjuntos de fatos que mais tarde irão
governar o pensamento e a conduto do indivíduo, segundo Lewin. Contudo, não se pode imaginar
que esse novo aprendizado seja algo imediato ou infalível. De certo, há uma constelação de
fatores, tanto internos ao indivíduo quanto determinados pelo meio, a ser considerados, para que
a mudança cultural se efetive ou não.
O autor cita três dimensões psicológicas do indivíduo que devem ser vistas na tentativa de
tal reeducação: “a estrutura cognitiva – maneira de ver o mundo físico e o social abrangendo-lhe
todos os fatos, conceitos, crenças e expectativas”; as valências e valores – atrações e aversões a
grupos e a padrões grupais; e a ação motora – grau de controle do indivíduo sobre os seus
movimentos.
Voltando ao nosso objeto de análise, a maneira como Assis e seus colegas de trabalho
6
viam o mundo do trabalho era de agressividade e não de aprendizado, que é, este, uma das
características do artesanato.
Para Assis, os funcionários sentiam-se responsáveis pelas suas obrigações e não pelo
negócio como um todo, muito menos pelo bem-estar de seus colegas. Essa despreocupação
refletia no trato com o cliente, que era visto como mais um empecilho à condução de suas tarefas
diárias.
Com o passar dos dias, a situação da empresa foi tornando-se cada vez mais delicada,
tanto financeiramente quanto com os clientes e funcionários, pois a proprietária intensificou as
condutas antiéticas no trato com a empresa. Abruptamente, os funcionários, por motivos que não
convém citar neste artigo, tiveram que assumir o controle da empresa e autogeri-la, iniciando
uma profunda mudança cultural.
Sem experiência e com muito medo do que poderia acontecer em suas vidas, os
funcionários, com apoio do movimento estudantil da USP e da incubadora de cooperativas dessa
mesma universidade, começaram a aprender como gerir uma empresa e como conviver em um

6
Após a apresentação e análise do depoimento de Assis, veremos que a utilização do pretérito se mostra mais
próximo à atual dinâmica de trabalho da cooperativa.

7
ambiente onde a cooperação seria o arcabouço de todas as futuras relações que se construiriam.
Tal ajuda, para Paul Singer, é fundamental no início das atividades de cooperativas isoladas.
Em princípio, relata Assis, as pessoas não davam muita importância às sistemáticas
reuniões de grupo que deveriam ser feitas para solução dos problemas diários da empresa, talvez
por ainda terem a visão do poder que tudo decide. Com o tempo, entretanto, foram aprendendo,
por dinâmicas de grupo, discussão no dia-a-ainda entre os funcionários, apoio e suporte externos,
a ter um relacionamento de igualdade e mais humano, segundo Assis.
Nessa transição, da competição para a cooperação, os funcionários se viam, muitas vezes,
em grandes conflitos internos a cada um e ao grupo, desde problemas com a administração da
empresa até a superação de dificuldades pessoais em conviver solidariamente. Assis afirma que
muitas vezes, não só ele como outros funcionários (aproximadamente 20 pessoas), pensaram em
desistir, fechando as portas e buscando o retorno ao sistema de trabalho tradicional capitalista.
Entretanto, perceberam que poderiam superar tais adversidades e construir, de fato, uma
cultura solidária. A cooperativa, então, conseguiu transformar as pessoas, tanto dentro quanto
fora do ambiente de trabalho. Assis relata que o grupo ajudava-lhe olhar para os seus conteúdos
internos, ainda embebidos em competição e destaque dos demais, fato que lhe ajudou interiorizar-
se e refletir sobre si mesmo.
Essa auto-reflexão fez com que mudasse a sua conduta tanto na cooperativa como com
seus familiares, que passou a tratá-los também de maneira mais humana e com mais igualdade.
Dentre outras mudanças, Assis afirma que a sua forma de se expressar, de se vestir (com
mais asseio), de tratar os colegas, de encarar os clientes (não mais como empecilhos, mas como,
em muitos casos, colegas ou amigos), de resolver os problemas para o bem do grupo e de confiar
nas pessoas, mudou. Ou seja, houve transformação na maneira de pensar e conduzir a sua vida.
Singer (1998), também fazendo referências ao aprendizado, afirma que o
desenvolvimento da autogestão “tem de se dar por um processo de livre aprendizado, em que
cada autogestor tenha a possibilidade de abandonar a experiência e se inserir em outro modo de
produção”, respeitando a individualidade e autonomia de cada um.
Outro paralelo que podemos estabelecer com as formas artesanais de produção é a visão
do processo. Assis relata que, diferentemente do modo capitalista existente à época de seu
ingresso na empresa, cada funcionário realiza várias funções, em um processo de rotatividade. Ou
seja, a pessoa que atende clientes no balcão em um dia, pode ser destacada a cozinhar no
posterior e a ficar no caixa em seguida.
Isso, para ele, faz com que cada um possa: desenvolver diferentes habilidades, conforme
trouxe Marx, quando alude ao trabalho como uma maneira de desenvolver diferentes aptidões;
tornar o dia-a-dia de trabalho dinâmico e sem rotina; entender as dificuldades que possam existir
nas diversas tarefas no trabalho; buscar soluções conjuntas aos problemas que surgirem; ser
responsável pelo negócio e pela manutenção do grupo como um todo.
Em relação à remuneração7, Assis afirma que o valor do salário de todos é o mesmo, até o
da antiga gerente, agora cooperada, que teve uma redução de mais de 50% quando da transição
da empresa capitalista para a cooperativa. Sua permanência na empresa deveu-se, entre outros
motivos, por acreditar que os seus ganhos, pessoais e profissionais, além dos financeiros, seriam
maiores do que se voltasse a trabalhar em um ambiente competitivo, pois teria maior participação
7
A remuneração é um dos grandes desafios enfrentados na transição da empresa de relações capitalistas
(competitivas) para as cooperativas. Logo, quando se compara o ganho dos cooperados com outros profissionais,
deve-se ir além dos retornos salariais, ou seja, os retornos intangíveis (qualidade das relações pessoais, participação
nas decisões da cooperativa, autonomia nas atividades executadas, extinção das hierarquias formais etc.) são
igualmente importantes nessa analogia.

8
nas decisões tanto da empresa quanto do modo de execução de suas atividades produtivas. Após
alguns meses de trabalho, os cooperados deram-se um reajuste salarial eqüitativo, para todos.
Logo, ocorreu, nesse processo, o rompimento da estrutura formal hierarquizada em prol da
adoção de uma estrutura horizontal participativa.
A partir do depoimento de Assis e pela análise desenvolvida, podemos, portanto, entender
que a solidariedade ou a cultura solidária deve permear as relações de trabalho cooperativas, de
modo a resgatar a cidadania e a individuação, trazendo um novo sentido ao trabalho 8, que não
mais se encontra apenas na tarefa executada, como também nas diferentes experiências
individuais dos trabalhadores. Tal cultura, conforme aponta Singer e Lewin, deve ser construída
pelo e no grupo, de maneira livre e democrática, respeitando as limitações e contribuições de
cada indivíduo.

Considerações Finais

Os desafios encontrados para que haja uma mudança social no modo de encarar a
solidariedade e praticá-la são por demais complexos e exigem, daqueles que se dispõem a
conviver de maneira cooperada e sem as formas de dominação e controle do indivíduo, um
grande esforço de superação das contradições externas e internas a si.
O modo de produção capitalista que, conforme vimos anteriormente, pressupõe a
competição e diversas formas de dominação do indivíduo, distancia-se, portanto, daquilo que se
depreende por viver solidariamente.
Portanto, pode-se inferir que o que as empresas e o Governo Federal vêm tratando como
formas solidárias de interação social não traduz, em seu conteúdo, algo que se possa chamar de
solidariedade. Por um lado, porque não é algo construído internamente ao grupo e pelo grupo.
Por outro, porque não rompe a lógica competitiva e manipuladora do sistema capitalista. Ainda,
não consegue integrar as liberdades de cada agente e estimular a individuação. Finalmente,
parece apenas traduzir uma maneira, como dissemos na introdução, assistencialista e de expiação
por parte do poder público ou das empresas, pelo simples contato com os desfavorecidos dos
meios de produção e das oportunidades de ascensão social.
Contrariamente, os modos de produção e de interação cooperativos buscam, permeados
por democracia, crítica, liberdade e auto-reflexão, a construção de uma nova determinação social,
pautada pelo fim da alienação e pela busca da autodeterminação dos indivíduos, que encontrarão,
no outro, não uma ameaça a ser vencida, mas uma outra possibilidade para constituição de seu
próprio eu.
O caso utilizado para ilustrar as mudanças necessárias para a construção de tal
transformação traz inúmeros conteúdos que podem ser analisados de diferentes formas.
Escolhemos o depoimento individual para exemplificar as diversas mudanças culturais, sociais,
individuais, administrativas, entre outras, por entender que o objeto estudo forma-se por uma
constelação de fatores inter-relacionados.
De fato, há grandes dificuldades encontradas na cooperativa, mas o que se procura é
manter a autonomia e a liberdade dos cooperados, tendo em vista a igualdade e a solidariedade
entre os mesmos, de modo que cada um possa defender os direitos uns dos outros para construir
relações de trabalho mais humanas.

8
Notas da aula “Cultura Solidária em Perspectiva: dimensões lúdicas das interações sociais”, ministrada pelo Prof.
Dr. Paulo de Salles Oliveira, no curso de pós-graduação do Instituto de Psicologia da USP.

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Bibliografia

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