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Principios do conflito aparente de normas

penais
Sumário: 1. Direito positivo e evolução das normas na sociedade – 2. A questão da
antinomia e anomia jurídicas – 3. Conflito aparente de normas penais: 3.1. Princípio da
especialidade; 3.2. Princípio da alternatividade; 3.3. Princípio da subsidiariedade; 3.4.
Princípio da consunção – 4. Conclusão – 5. Bibliografia

1) Direito positivo e evolução das normas na sociedade

O ser humano deve se agregar a determinadas regras de conduta a fim de que possa conviver
harmoniosamente em sociedade. O Estado Democrático de Direito, cujos princípios basilares
se voltam para a soberania popular e a distribuição eqüitativa do poder, confere aos
indivíduos o dever de atuar sempre conforme os ditames legais.

A sociedade organizada, assim, estabeleceu suas bases em um ordenamento jurídico, criado


a partir dos conceitos axiológicos evidenciados nas relações entre as pessoas e comunidades.
Portanto, diante dos fatos e valores manifestados pela sociedade, as normas passaram a ser
positivadas e, com isso, tornadas efetivas e garantidoras do equilíbrio entre as relações
humanas.

Com efeito, o surgimento do direito positivo deu azo a um sistema de normas, voltado
especialmente à proteção das relações políticas, contratuais, criminais, enfim, de toda e
qualquer matéria ligada ao melhor disciplinamento do comportamento humano.

2) A Questão da Antinomia e anomia Jurídicas

Diante das mais diversas condutas humanas o legislador se viu na obrigação de introduzir no
ordenamento jurídico imposições legais hábeis a suprimir toda e qualquer atitude
malferidora das relações pacíficas de convivência. Nesse sentido, as normas penais surgiram
e, mediante a aplicação de sanções, passaram a combater procedimentos nocivos ao meio
social.

Entretanto, tendo em vista o vasto rol de relações humanas, a constante aprovação de leis
passou a fazer com que o mesmo comportamento fosse regido por mais de uma disposição
legal, o que vinha tornando o trabalho do aplicador do direito sobremaneira espinhoso.

Foi a partir disso que surgiu o conceito de antinomia jurídica, a qual foi denominada,
segundo as brilhantes lições de Noberto Bobbio (1982, p. 88), como "a situação que se
verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico e
tendo o mesmo âmbito de validade."
Ante a concepção traçada, tem-se que o conceito de antinomia jurídica surgiu justamente
com o fim de revelar a intensa dificuldade sentida pelo intérprete quando da tentativa de
subsunção das situações fáticas às normas colidentes. Em vista disso é que vários preceitos
foram propostos.

Nesse particular, Bobbio (1982, p. 88), no afã de solucionar tais conflitos, encetou no mundo
jurídico os seguintes critérios:

1) critério cronológico;

2) critério hierárquico;

3) critério da especialidade.

De acordo com o critério cronológico, a norma editada em data posterior passaria a ter
validade, em face da revogação da mais antiga.

Diante do critério hierárquico, cuja aplicabilidade se dá de acordo com o sistema piramidal


de normas, as disposições constitucionais ficariam situadas no cume da pirâmide, enquanto
que as demais (por exemplo, leis ordinárias) deveriam ser relegadas quando em conflito com
aquelas.

No entanto, tais critérios não serviam de subsídio para sanar os conflitos eventualmente
existentes entre duas ou mais normas penais editadas concomitantemente e possuidoras de
mesma hierarquia. Foi instituído, então, como terceiro critério, o princípio da especialidade,
por meio do qual a norma que regesse a conduta de maneira mais específica passaria a ser
aplicada em detrimento da norma de caráter geral.

Portanto, como se vê, os critérios dispostos foram tão úteis aos aplicadores do direito, que,
atualmente é nesse parâmetro que os conflitos existentes entre as normas vêm sendo
dirimidos.

Assim como a antinomia, existe também o que se chama de anomia jurídica, que consiste na
ausência de norma acerca de determinada conduta, ou então, a existência de duas ou mais
normas relativamente ao mesmo comportamento humano. Geralmente, a anomia é utilizada
para definir a ausência de leis ou a situação em que, mesmo havendo normas a respeito de
determinada matéria, as pessoas permanecem agindo como se elas fossem inexistentes.

De acordo com o conceito de anomia, verifica-se que no Direito Penal existem regras de
conduta que são relegadas pela sociedade e, em face dessa repulsa, passa-se a observar um
grave enfraquecimento do poder coercitivo do comando normativo.

Nesse sentido é o escólio de René Ariel Dotti (2001, p. 37-38):


"(...) a primeira das propostas fundamentais para reverter esse quadro de anomia que envolve
o sistema criminal consiste na necessidade de se levar à frente um amplo movimento de
descriminalização e despenalização. Somente por esse caminho será possível resgatar o
prestígio do magistério penal que ficou profundamente abalado nas últimas décadas diante
da massificação dos processos de incriminação e da conseqüente ineficácia das reações
penais contra o delito."

Portanto, a despeito de algumas normas permanecerem com sua validade formal, percebe-se
que, em face da anomia legal, não são cumpridas devido à grande resistência que encontram
por parte da sociedade.

Tanto o conceito de antinomia quanto o de anomia é importante para uma melhor


compreensão dos problemas acerca dos conflitos normativos, especialmente no que tange
aos comandos penais, posto que é por meio destes que o Estado faz valer seu poder-dever de
punir.

3) Conflito Aparente de Normas Penais

Inicialmente, importa ressaltar que a colisão existente entre as normas penais é tratada
erroneamente por alguns juristas, quando mencionam que os preceitos normativos penais
concorrentes entre si consubstanciam um "conflito de normas". Não é nada disso. O que
existe, em verdade, é um conflito "aparente" entre duas ou mais normas penais, e não um
confronto real entre elas.

Nesse particular, para que o conflito aparente de normas seja reconhecido, deve-se partir de
alguns elementos essenciais, sem os quais tal embate normativo inexiste:

1) a unidade do fato

2) pluralidade de normas

3) aparente aplicação de todas as normas

4) efetiva aplicação de apenas uma delas

A unidade de fato significa que a conduta do agente tenha implicado em apenas uma
infração penal. No tocante à pluralidade de normas, como se depreende da própria expressão,
é imprescindível que exista mais de um dispositivo legal tipificando a mesma conduta. Por
derradeiro, a incidência de todas as normas a uma conduta deve ser apenas aparente,
porquanto só uma delas é que será efetivamente aplicada.

Na verdade, o legislador, quando introduz no ordenamento jurídico determinado tipo penal,


o faz direcionado a uma conduta específica. Então mesmo que esta norma venha a colidir
com outra mais antiga, ou mais genérica com ela nunca se confundirá, justamente em razão
da existência de princípios, que, em sendo aplicados ao caso concreto, suprimirão por
completo qualquer dúvida quando do enquadramento da norma ao fato. São eles os seguintes
princípios:

1) princípio da especialidade

2) princípio da alternatividade

3) princípio da subsidiariedade

4) princípio da consunção

3.1) Princípio da Especialidade

De acordo com o brocardo jurídico lex specialis derrogat generali [1], a lei de natureza geral,
por abranger ou compreender um todo, é aplicada tão-somente quando uma norma de caráter
mais específico sobre determinada matéria não se verificar no ordenamento jurídico. Em
outras palavras, a lei de índole específica sempre será aplicada em prejuízo daquela que foi
editada para reger condutas de ordem geral.

Rogério Greco (2003, p. 30-31), explanando sobre o assunto, aduz que:

"Em determinados tipos penais incriminadores há elementos que os tornam especiais em


relação a outros, fazendo com que, havendo uma comparação entre eles, a regra contida no
tipo especial se amolde adequadamente ao caso concreto, afastando, desta forma, a aplicação
da norma geral."

Assim, a norma penal especial (Cf. Bitencourt, 1999, p. 166) se evidencia a partir da
combinação entre os elementos da lei geral e novos elementos, estes, por sua vez, chamados
de especializantes. Além disso, é interessante lembrar que o princípio da especialidade afasta
a incidência de dois tipos a uma mesma conduta, ou seja, impede que ocorra o bis in idem e,
por conseqüência, evita que a punição seja duplamente aplicada em face de um mesmo
delito.

Ademais, pertinente mencionar que o princípio da especialidade está expressamente previsto


no art. 12 do Código Penal, cujo texto legal se encontra assim redigido:

"Art. 12. As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se
esta não dispuser de modo diverso."

As normas de caráter especial podem ser evidenciadas das mais diversas formas. A primeira
delas ocorre quanto às qualificadoras ou às causas de privilégio, tendo em vista que são
consideradas disposições especiais em relação aos tipos fundamentais, geralmente descritos
nos caputs dos dispositivos. Exemplo de norma especial da espécie descrita é aquela
tipificada como lesão corporal de natureza grave (art. 129, § 1.º, CP), cujo preceito informa
um plus em relação ao tipo penal básico descrito no caput do mesmo artigo (lesão corporal
de natureza leve).

Tem-se, ainda, como especiais aquelas normas que apresentam alguma elementar a mais do
que o tipo geral. Como exemplo, pode-se citar o crime de infanticídio (art. 123, CP) em
relação ao de homicídio (art. 121, CP), cujo tipo exige que a conduta de matar o recém-
nascido parta da própria mãe, quando se encontrar sob a influência de estado puerperal.

O legislador criou, ainda, a figura das leis penais especiais, cujo teor rege determinadas
condutas, seja em razão de sua maior gravidade, seja pela menor intensidade do fato, mas,
desde que mereçam um tratamento diferenciado. É o caso, por exemplo, da Lei de Crimes
Hediondos (Lei n.º 8.072/90), que dispõe acerca de certos delitos que, por sua natureza,
devem ser cuidados de forma mais severa.

Pode-se falar, também, do tráfico de entorpecentes, na modalidade "importar" (art. 12, Lei
n.º 6.368/76), em relação ao contrabando (art. 334, CP). O tipo do art. 12 é especial em
relação ao contrabando, tendo em vista que, além de descrever alguns elementos gerais, tais
como "importar mercadoria proibida", possui o elemento "substância entorpecente". Assim,
a conduta de alguém que importa lança-perfume para o Brasil, subsumir-se-á ao tipo
relacionado pelo art. 12 da Lei n.º 6.368/76, ficando, assim, o contrabando absorvido.

Assim, desde que todos os requisitos do tipo geral estejam presentes no tipo especial, e que
ambas as leis estejam vigendo naquele momento da aplicação, estará o intérprete apto para
empregar a lei especial à conduta do agente.

3.2) Princípio da Alternatividade

Pelo princípio da alternatividade também são resolvidos alguns dos conflitos aparentes entre
as normas penais. Muitos doutrinadores, a exemplo de Damásio Evangelista de Jesus (1998,
p. 117), ainda relutam em aceitar o princípio da alternatividade como uma opção para a
resolução dos conflitos normativos, pois, ao ver do citado jurista e professor, "não se pode
falar em concurso ou conflito aparente de normas, uma vez que as condutas descritas pelos
vários núcleos se encontram num só preceito primário".

Em que pese o posicionamento acima mencionado, sabe-se que o princípio da


alternatividade hodiernamente se encontra elencado nos manuais de direito penal como um
dos preceitos hábeis a solver os problemas atinentes ao concurso aparente entre as normas
penais.

Nesse pórtico, entende-se pelo princípio da alternatividade aquele que se volta à solução de
conflitos surgidos em face de crimes de ação múltipla, que são aqueles em que o tipo penal
expõe vários núcleos, correspondendo cada um desses núcleos a uma conduta.

É exemplo de crime de ação múltipla (ou plurinucleares) o de receptação, relacionado no art.


180, caput, do Código Penal da seguinte maneira, verbis:
"Art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio,
coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba
ou oculte."

A despeito das várias modalidades de condutas praticadas no crime acima transcrito, é


imprescindível que exista nexo de causalidade entre elas e que sejam praticadas no mesmo
contexto fático. Nesse caso, o agente será punido apenas por uma das modalidades descritas
no tipo. Caso contrário, haverá tantos crimes quantas forem às condutas praticadas.

3.3) Princípio da Subsidiariedade

Por meio do princípio da subsidiariedade, depreende-se que alguns dispositivos penais


prevêem o seu emprego apenas no caso de outra norma, de caráter primário, não poder ser
aplicada ao mesmo fato.

O princípio da subsidiariedade subdivide-se em duas espécies: subsidiariedade tácita e


subsidiariedade expressa.

Ocorre a subsidiariedade expressa, quando a própria norma reconhecer seu caráter


subsidiário, admitindo incidir somente se não ficar caracterizado o fato de maior gravidade.

Como exemplo, compete citar o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132,
CP):

"Art. 132. Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena – detenção, de 3 meses a 1 ano, se o fato não constituir crime mais grave". (grifei)

Como se retira do preceito secundário do artigo transcrito, somente "se o fato não constituir
crime mais grave" é que a pena relativa ao delito descrito no art. 132 será aplicada ao agente.

No caso da subsidiariedade tácita, a norma nada diz, mas, diante do caso concreto, verifica-
se seu caráter secundário. Exemplo claro é o do crime de roubo, em que a vítima, mediante
emprego de violência, é constrangida a entregar a sua bolsa ao agente. Aparentemente,
incidem o tipo definidor do roubo (norma primária) e o do constrangimento ilegal (norma
subsidiária), sendo que o constrangimento ilegal, no caso, foi apenas uma fase do roubo,
além do fato de este ser mais grave.

Na prática, no entanto, o princípio da subsidiariedade não surte muito efeito, porquanto


qualquer conflito da natureza dos delitos apresentados tende a ser solucionado com base no
princípio da especialidade.

3.4) Princípio da Consunção


O princípio da consunção é aquele segundo o qual a conduta mais ampla engloba, isto é,
absorve outras condutas menos amplas e, geralmente, menos graves, os quais funcionam
como meio necessário ou normal fase de preparação ou de execução de outro crime, ou nos
casos de antefato e pós-fato impuníveis (Cf. Greco, 2003, p. 33).

Vale salientar que a comparação é estabelecida apenas entre condutas e não entre normas, ou
seja, o fato mais completo prevalece sobre a parte, de modo que só sobrará uma norma a
regulá-lo.

Sabe-se que os delitos são praticados com o objetivo de alcançar alguma finalidade. Muitos
deles, contudo, são cometidos como um meio necessário para se preparar ou executar outro
crime. É o exemplo do crime de lesão corporal em relação ao crime de homicídio.
Analisando-se o resultado advindo da prática do homicídio, que é a morte da vítima, é
impossível não se concluir que antes do resultado morte, o autor do fato não tenha gerado na
vítima lesões corporais.

O fato anterior não punível (antefato impunível) também corresponde a uma hipótese do
princípio da consunção. Praticando uma conduta criminosa como o caminho necessário para
a obtenção do resultado de outra conduta, também criminosa e, em geral, mais grave, o
agente não é punido por aquela, mas apenas por esta, haja vista tê-la englobado.

Já o fato posterior não punível (pós-fato impunível), o exaurimento do crime mais grave, que
também constitui conduta ilícita, é absorvida e não é levada em conta no momento da
aplicação da pena. É o caso da venda do produto do roubo. Ora, se todos sabem que aquele
que rouba intenta lograr uma vantagem patrimonial, logicamente que não seria coerente
punir-se a venda do objeto roubado se esta é um mero exaurimento do delito.

Convém destacar que o antefato e pós-fato impuníveis são espécies da progressão criminosa
(pluralidade de desígnios e pluralidade de condutas) e, como tais, isentam o agente da
responsabilidade pelos atos anteriores ou posteriores que tenham eventualmente integrado o
intento delituoso.

Já nos crimes progressivos (unidade de desígnios e unidade de conduta), que são aqueles que
ocorrem quando o agente objetiva produzir o resultado mais grave, e pratica, por meio de
atos sucessivos, crescentes violações ao bem juridicamente protegido, o último ato praticado,
que é o causador do resultado inicialmente pretendido, absorve todos os anteriores que
acarretaram as violações em menor grau.

Quanto aos crimes complexos, o princípio da consunção atua no sentido de o fato complexo
absorver os fatos autônomos que o integram, prevalecendo o tipo resultante da reunião
daquele.

Portanto, o princípio da consunção, dispondo de um vasto rol de recursos aptos a resolver


problemas concernentes ao concurso aparente de normas penais, volta-se para a absorção de
condutas que, muitas vezes, servem apenas como um caminho natural para a prática do
intento criminoso.

4) Conclusão

Diante da abordagem sobre os meios adequados à solução dos conflitos aparentes entre as
normas penais, vê-se que o Direito Penal já se encontra devidamente aparelhado para
resolver toda e qualquer colisão eventualmente verificada em sede normativa, quando
defronte de vários comandos legais e apenas um bem jurídico a ser tutelado.

Logo, com fundamento nos subsídios elencados, os operadores do Direito já têm condições
de compreender a real finalidade das normas penais e, desse modo, aplicar adequadamente
os seus ditames ao caso concreto.

NOTAS

01. A lei especial derroga a geral.

Bibliografia

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal – parte geral. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1999.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2003.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – parte geral. São Paulo: Saraiva, 1998.

BOBBIO, Noberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora UnB, 1982.

DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

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