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PROGRAMA

Com esta disciplina de carácter propedêutico, pretende-se proporcionar aos alunos


instrumentos e competências metodológicas fundamentais para uma melhor análise e
compreensão das práticas discursivas e sociais no mundo contemporâneo.
Para esse efeito, levar-se-á em linha de conta o seguinte elenco programático:

1. Cultura: paradigmas conceptuais e modos de abordagem.


2. Globalização e diversidade cultural.
3. Multiculturalismo e interculturalidade.
4. Nação e pós-colonialismo.
5. Raça e etnicidade.
6. Comunicação de massas e indústrias culturais.
7. Sociedade e novas tecnologias.

MÉTODOS DE ENSINO
Para além da exposição teórica levada a cabo pelo docente, lançando mão de
variadas estratégias, será valorizado o contributo activo e crítico dos alunos, tanto no
que concerne à leitura e discussão de textos teóricos, como aos exercícios de análise
orientada, com base num corpus textual e audiovisual previamente seleccionado.

RESULTADOS
Espera-se que, no final do semestre, os alunos sejam capazes de articular, de modo
produtivo, a reflexão sobre os paradigmas teóricos, na sua complexidade e
diversidade de manifestações, e os instrumentos metodológicos mais adequados com
a prática de análise de diversas formas textuais e discursivas.

SISTEMA DE AVALIAÇÃO
Propõe-se a existência de dois regimes de avaliação:
1. Avaliação final através de exame escrito, que abrange todos os conteúdos
leccionados (podendo implicar uma prova oral, nos termos previstos no Regulamento
em vigor na Faculdade).
2. Avaliação contínua, mediante os seguintes critérios:
a) a realização de duas provas, abrangendo cada uma delas um sector distinto da
matéria leccionada e que terão lugar sensivelmente a meio e no final do período de
aulas previsto para o 1.º semestre (45%+45%);
b) a participação regular nas actividades lectivas (10%).
c) a frequência de 75% das aulas leccionadas.
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Introdução aos Estudos Culturais

O HORIZONTE DE PESQUISA DOS ESTUDOS CULTURAIS

1. Para Stuart Hall (um dos responsáveis pela afirmação desta área de pesquisa):

“Os estudos culturais não configuram uma ‘disciplina’ mas uma área onde diferentes
disciplinas interactuam, visando o estudo de aspectos culturais da sociedade.”
(Hall et al., Culture, Media, Language, 1980: 7).

2. No volume Cultural Studies, organizado por L. Grossberg, C. Nelson e P.


Treichler, considera-se que estamos perante:

«um campo interdisciplinar, transdisciplinar e, por vezes, contradisciplinar que opera


na tensão entre a tendência para adoptar uma concepção de cultura ampla,
antropológica, e outra concepção mais estreitamente humanista. Diferentemente da
antropologia tradicional, contudo, eles nasceram de análises das modernas
sociedades industriais. Eles são, por norma, interpretativos e avaliativos nas suas
metodologias, mas, diferentemente do humanismo tradicional, rejeitam a identificação
exclusiva da cultura com a alta cultura e argumentam que todas as formas de
produção cultural têm de ser estudadas em relação com outras práticas culturais e
com estruturas sociais e históricas. Os estudos culturais dedicam-se, assim, ao estudo
de toda a panóplia das artes, crenças, instituições e práticas comunicativas de uma
sociedade».
(New York, Routledge, 1992, p. 4; seguimos a trad. proposta por A. Sousa Ribeiro e M.
Irene Ramalho em «Dos Estudos Literários aos Estudos Culturais?» (2001).

3. Sectores mais relevantes da investigação desenvolvida no âmbito dos


Estudos Culturais:

«As categorias mais utilizadas na actividade actual dos Estudos culturais são a história
dos Estudos culturais, o género {gender}, a sexualidade, a nação e a identidade
nacional, o colonialismo e o pós-colonialismo, a raça e a etnicidade, a cultura popular
e a sua audiência, a ciência e a ecologia, as identidades políticas, a pedagogia, as
políticas da estética, as instituições culturais, as políticas da disciplina, o discurso e a
textualidade, a história e a cultura global na idade pós-moderna.»
(L. Grossberg, C. Nelson e P. Treichler, 1992, p. 1)
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Introdução aos Estudos Culturais

1. Cultura: paradigmas conceptuais e modos de abordagem

TEXTO 1 — Stuart Hall, «ESTUDOS CULTURAIS. DOIS PARADIGMAS», in Da Diáspora.


Identidades e Mediações Culturais (org. de Liv Sovik), Belo Horizonte, Editora UFMG;
Brasília, Representação da Unesco no Brasil, 2003 [pp. 131-136]

Os Estudos Culturais, como problemática distinta, emergem [...] nos meados da


década de 1950. Certamente não foi a primeira vez que suas questões características
foram colocadas na mesa. Muito pelo contrário. Os dois livros que ajudaram a marcar
o novo terreno — As utilizações da cultura, de Hoggart, e Cultura e sociedade 1780-
1950, de Williams — são ambos, de maneiras distintas, trabalhos (em parte) de
recuperação. O livro de Hoggart teve como referência o "debate cultural" há muito
sustentado nas discussões acerca da "sociedade de massa", bem como na tradição
do trabalho intelectual identificado com Leavis e a revista Scrutiny. Cultura e
sociedade reconstruiu uma longa tradição definida por Williams como aquela que, em
resumo, consiste do "registro de um número de importantes e contínuas reações a ...
mudanças em nossa vida social, económica e política" e que oferece "um tipo especial
de mapa pelo qual a natureza das mudanças pode ser explorada". Os livros pareciam,
inicialmente, simples atualizações dessas preocupações anteriores, com referência ao
mundo do pós-guerra. Retrospectivamente, suas "rupturas" com as tradições de
pensamento em que estavam situados parecem tão ou mais importantes do que sua
continuidade com as mesmas. As utilizações da cultura propôs-se — muito no espírito
da "crítica prática" — a ler a cultura da classe trabalhadora em busca de valores e
significados incorporados em seus padrões e estruturas: como se fossem certos tipos
de "textos". Porém, a aplicação desse método a uma cultura viva e a rejeição dos
termos do debate cultural (polarizado em torno da distinção de alta/baixa cultura) foi
um desvio radical. Cultura e sociedade, num único e mesmo movimento, constituiu
uma tradição (a tradição de "cultura-e-sociedade"), definiu a sua "unidade" (não em
termos de posições comuns, mas de preocupações características e formas de
expressão de suas indagações) e fez uma contribuição distintamente moderna ao
assunto ao mesmo tempo em que escrevia seu epitáfio. O livro de Williams que o
sucedeu — The Long Revolution — indicou claramente que o modo de reflexão
cultura-e-sociedade só poderia ser completado e desenvolvido a partir de outro lugar
— um tipo de análise significativamente diferente. Com sua tentativa de "teorizar" a
partir de uma tradição cujo estilo de pensamento era decididamente empírico e
particularista, mais a densidade experimental de seus conceitos e o esforço
generalizante de sua argumentação, The Long Revolution deve sua dificuldade de
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Introdução aos Estudos Culturais

leitura, em parte, ao fato de ter a determinação de mudar [...]. As partes "boas" e


"ruins" dessa obra provêm do seu status de "obra de ruptura". O mesmo pode ser dito
de A formação da classe operária inglesa, de E. P. Thompson, que pertence decisiva-
mente a esse "momento", ainda que tenha surgido, cronologicamente, um pouco mais
tarde. Esse também foi um trabalho pensado dentro de certas tradições históricas
específicas: a historiografia marxista inglesa e a história económica e "do trabalho".[...]
Eram, claro, textos seminais e de formação. Não eram, em caso algum, "livros-
textos" para a fundação de uma nova subdisciplina académica: nada poderia ter sido
mais estranho ao seu impulso intrínseco. Quer fossem históricos ou contemporâneos
em seu foco, eles próprios constituíam respostas às pressões imediatas do tempo e da
sociedade em que foram escritos, ou eram focalizados ou organizados por tais
respostas. Eles não apenas levaram a "cultura" a sério, como uma dimensão sem a
qual as transformações históricas, passadas e presentes, simplesmente não poderiam
ser pensadas de maneira adequada. Eram em si mesmos "culturais", no sentido de
Cultura e sociedade. Eles forçaram seus leitores a atentar para a tese de que,
"concentradas na palavra 'cultura', existem questões diretamente propostas pelas
grandes mudanças históricas que as modificações na indústria, na democracia e nas
classes sociais representam de maneira própria e às quais a arte responde também,
de forma semelhante". [...] E talvez seja um ponto a notar que essa linha de
pensamento coincidia mais ou menos com o que tem sido chamado de "agenda" da
Nova Esquerda, à qual esses escritores e seus textos, de uma forma ou de outra,
pertenciam. Essa ligação colocou a "política do trabalho intelectual" bem no centro dos
Estudos Culturais desde o início — uma preocupação da qual, felizmente, eles nunca
foram nem jamais poderão ser liberados. Num sentido profundo, o "acerto de contas"
em Cultura e sociedade, a primeira parte de The Long Revolution, certos aspectos
particularmente densos e concretos do estudo de Hoggart sobre a cultura da classe
trabalhadora e da reconstrução histórica da formação da cultura de classe e das
tradições populares do período entre 1790/1830, feita por Thompson — em conjunto
— constituíram a ruptura e definiram um novo espaço em que uma nova área de
estudo e prática brotou. Em termos de marcações e ênfases intelectuais, esse foi —
se é que algo assim pode ser verificado — o momento de "re-fundação" dos Estudos
Culturais. A institucionalização deles — primeiro, no centro em Birmingham, e depois,
por meio de cursos e publicações provenientes de várias fontes e lugares, com suas
perdas e ganhos característicos, pertencem ao período dos anos 60 em diante.
A "cultura" era o local de convergência. Mas, que definições desse conceito
central emergiram desse conjunto de obras? E, em torno de qual espaço foram
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Introdução aos Estudos Culturais

unificadas as suas preocupações e conceitos, já que decisivamente essa linha de


pensamento moldou os Estudos Culturais e representa a tradição autóctone ou
"nativa" mais formativa? O fato é que nenhuma definição única e não problemática de
cultura se encontra aqui. O conceito continua complexo — um local de interesses
convergentes, em vez de uma ideia lógica ou conceitualmente clara. Essa "riqueza" é
uma área de contínua tensão e dificuldade no campo. Pode ser necessário, portanto,
resumir brevemente as ênfases e dimensões características pelas quais o conceito
chegou ao seu atual [1980] estado de (in)determinação. [...]
Duas maneiras diferentes de conceituar a cultura podem ser extraídas das
várias e sugestivas formulações feitas por Raymond Williams em The Long Revolution.
A primeira relaciona cultura à soma das descrições disponíveis pelas quais as
sociedades dão sentido e refletem as suas experiências comuns. Essa definição
recorre à ênfase primitiva sobre as "ideias", mas submete-a a todo um trabalho de
reformulação. A concepção de cultura é, em si mesma, socializada e democratizada.
Não consiste mais na soma de o "melhor que foi pensado e dito", considerado como
os ápices de uma civilização plenamente realizada — aquele ideal de perfeição para o
qual, num sentido antigo, todos aspiravam. Mesmo a "arte" — designada
anteriormente como uma posição de privilégio, uma pedra-de-toque dos mais altos
valores da civilização — é agora redefinida como apenas uma forma especial de
processo social geral: o dar e tomar significados e o lento desenvolvimento dos
significados comuns; isto é, uma cultura comum: a "cultura", neste sentido especial, "é
ordinária" (tomando emprestado uma das primeiras tentativas de Williams de tornar
sua posição básica mais acessível). Se as descrições mais sublimes e refinadas das
obras literárias também fazem "parte do processo geral que cria convenções e
instituições, pelas quais os significados a que se atribui valor na comunidade são
compartilhados e ativados", então não existe nenhum modo pelo qual esse processo
pode ser desvinculado, distinguido ou isolado de outras práticas que formam o
processo histórico. [...]
Assim, de maneira alguma as descrições literárias, entendidas dessa forma,
podem ser isoladas e comparadas com as outras coisas.

Se a arte é parte da sociedade, não existe unidade sólida fora dela, para a
qual nós concedemos prioridade pela forma de nosso questionamento. A
arte existe aí como uma atividade, juntamente com a produção, o
comércio, a política, a criação de filhos. Para estudar as relações
adequadamente, precisamos estudá-las ativamente, vendo todas as
atividades como formas particulares e contemporâneas de energia
humana.
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Introdução aos Estudos Culturais

Se essa primeira ênfase levanta e re-trabalha a conotação do termo cultura


com o domínio das "ideias", a segunda ênfase é mais deliberadamente antropológica e
enfatiza o aspecto de "cultura" que se refere às práticas sociais. É a partir dessa
segunda ênfase que uma definição de certo modo simplificada — "a cultura é um
modo de vida global" — tem sido abstraída de forma um tanto pura. Williams
relacionou esse aspecto do conceito ao uso mais documental do termo — isto é,
descritivo ou mesmo etnográfico. Mas a definição anterior me parece a mais central,
pois nela o "modo de vida" está integrado. O ponto importante nessa discussão se
apoia nas relações ativas e indissolúveis entre elementos e práticas sociais
normalmente isoladas. É nesse contexto que a "teoria da cultura" é definida como "o
estudo das relações entre elementos em um modo de vida global". A cultura não é
uma prática; nem apenas a soma descritiva dos costumes e "culturas populares
[folkways]" das sociedades, como ela tende a se tornar em certos tipos de
antropologia. Está perpassada por todas as práticas sociais e constitui a soma do
inter-relacionamento das mesmas. Desse modo, a questão do que e como ela é
estudada se resolve por si mesma. A cultura é esse padrão de organização, essas
formas características de energia humana que podem ser descobertas como
reveladoras de si mesmas — "dentro de identidades e correspondências inesperadas",
assim como em "descontinuidades de tipos inesperados" — dentro ou subjacente a
todas as demais práticas sociais. A análise da cultura é, portanto, "a tentativa de
descobrir a natureza da organização que forma o complexo desses relacionamentos".
Começa com "a descoberta de padrões característicos". Iremos descobri-los não na
arte, produção, comércio, política, criação de filhos, tratados como atividades isoladas,
mas através do "estudo da organização geral em um caso particular". Analiticamente,
é necessário estudar "as relações entre esses padrões". O propósito da análise é
entender como as inter-relações de todas essas práticas e padrões são vividas e
experimentadas como um todo, em um dado período: essa é sua "estrutura de
experiência" [structure of feeling]. [...]
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Introdução aos Estudos Culturais

TEXTO 2 — Raymond Williams, Moving from High Culture to Ordinary Culture


Originally published in N. McKenzie (ed.), Convictions, 1958

Culture is ordinary: that is the first fact. Every human society has its own shape, its own
purposes, its own meanings. Every human society expresses these, in institutions, and
in arts and learning. The making of a society is the finding of common meanings and
directions, and its growth is an active debate and amendment under the pressures of
experience, contact, and discovery, writing themselves into the land. […] A culture has
two aspects: the known meanings and directions, which its members are trained to; the
new observations and meanings, which are offered and tested. These are the ordinary
processes of human societies and human minds, and we see through them the nature
of a culture: that it is always both traditional and creative; that it is both the most
ordinary common meanings and the finest individual meanings. We use the word
culture in these two senses: to mean a whole way of life - the common meanings; to
mean the arts and learning - the special processes of discovery and creative effort.
Some writers reserve the word for one or other of these senses; I insist on both, and on
the significance of their conjunction. The questions I ask about our culture are
questions about deep personal meanings. Culture is ordinary, in every society and in
every mind.
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Introdução aos Estudos Culturais

Textos retirados de HARTLEY, John, Comunicação, estudos culturais e media:


conceitos-chave. Trad. Fernanda Oliveira e revisão científica de Isabel Ferin,
Lisboa, Quimera, 2004.

HEGEMONIA

Um conceito desenvolvido por Gramsci, nos anos de 1930, e recuperado nos


estudos culturais, em que se refere principalmente à capacidade de as classes
dominantes exercerem a liderança social e cultural em determinados períodos
históricos e, por este meio — em vez da coerção directa das classes subordinadas —,
manterem o poder sobre a direcção económica, política e cultural da nação.
O aspecto crucial da noção de hegemonia não é o facto de operar forçando as
pessoas, contra a sua vontade, a conceder o poder àqueles que já são poderosos,
mas sim o de funcionar obtendo o consentimento para formas de perceber o mundo
que fazem, de facto, sentido. Também acontece que estas últimas servem os
interesses da aliança hegemónica de classes, ou bloco do poder. Daí que a nossa
participação activa no entendimento de nós próprios, das nossas relações sociais e do
mundo em geral resulte numa cumplicidade com a nossa própria subordinação.
A ideia de obter consentimento estende o conceito de hegemonia para lá da
análise de classe como tal. Em análise cultural, o conceito é usado para mostrar como
os significados, representações e actividades quotidianos são organizados e dados a
perceber de forma a tornar os interesses de um «bloco» dominante num interesse
geral, aparentemente natural e inquestionável. Assim, os estudos que se concentram
no aspecto hegemónico da cultura centrar-se-ão naquelas formas e instituições que
são normalmente consideradas imparciais ou neutras; «representativas» de toda a
gente, sem aparente referência a classe, raça ou género. Essas instituições abrangem
simultaneamente a esfera pública e privada - incluindo o Estado, a lei, o sistema
educativo, os media e a família. Elas são prolíferas produtoras de sentido,
conhecimento e significados. Para além da função aparente, a sua importância cultural
reside no papel que desempenham enquanto organizadoras e produtoras da
consciência individual e social. Embora sejam relativamente autónomas, povoadas por
pessoas com características diferentes e com diferentes aptidões profissionais e
ideologias, a verdade é que estas agências culturais formam colectivamente o lugar
em que a hegemonia pode ser estabelecida e exercida.
Segue-se que a hegemonia opera no reino da consciência e das
representações; o seu sucesso é mais provável quando a totalidade da experiência
social, cultural e individual é capaz de ser dada a perceber em termos que são
definidos, estabelecidos e postos a circular pelo bloco do poder. Em suma, a
hegemonia naturaliza aquilo que historicamente é uma ideologia de classe, e
transforma-a em senso comum. A conclusão é que o poder pode não ser exercido
como força, mas como «autoridade», e que os aspectos «culturais» da vida são
despolitizados.
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Introdução aos Estudos Culturais

SUBCULTURA

Grupo de indivíduos que partilha interesses, ideologias e práticas particulares.


Como o prefixo sub indica, esses grupos são entendidos como formando a sua
identidade em oposição a uma cultura dominante ou «mãe». Os primeiros estudos
subculturais notaram que esta oposição era levada a cabo através de vários meios,
mas o mais visível era o estilo. O trabalho recente na área sugere que esta relação já
não é tão explícita, defendendo que as definições tradicionais das subculturas
assentam em circunstâncias históricas particulares.
O estudo realizado por Hebdige (1979) sobre os teddy boys, mods, roqueiros e
punks é entendido como um dos textos fundadores dos estudos subculturais. Ele
afirma que as subculturas tornam a sua identidade visível pela incorporação de um
estilo específico e pelas opções de lazer. Os punks, por exemplo, usavam alfinetes-de-
ama, maquilhagem e roupas extravagantes, e apoiavam um género de música
particular como meio de representar a sua identidade. Para Hebdige, o uso do estilo e
do lazer dos grupos subculturais era uma forma de política simbólica, «tornando os
seus valores visíveis numa sociedade saturada de códigos e símbolos da cultura
dominante» (Shuker, 1994). Os objectivos das subculturas são a formação da
identidade e um desafio visível à hegemonia da sociedade.
Central para a tese de Hebdige é a noção de resistência, especificamente em
relação à cultura mãe ou cultura de massas. Mas, como ele declarou, um dos maiores
desafios a esta resistência é a «recuperação ideológica», pela qual uma subcultura
começa a perder o sentido da diferença, à medida que o seu estilo vai sendo
incorporado na cultura comercial (Hebdige, 1979: 97). Uma das formas como isto é
alcançado é através da exposição mediática. Embora histórias reprovadoras na
imprensa possam operar no sentido de criar e legitimar as subculturas, os relatos
aprovadores «são o beijo da morte subcultural» (Thornton, 1995). O impacte inicial dos
punk foi relatado nos media em termos similares a um pânico moral, mas em pouco
tempo a moda punk espalhou-se e a aparência dos próprios punks nos postais de
Londres assinalou o começo do processo de recuperação, como descrito por Hebdige.
Teóricos mais recentes das subculturas, como Thornton (1995) defendem que
as comunidades estão a ser formadas, não tanto a partir da resistência, mas de gostos
e interesses partilhados. Thornton usa o termo «culturas de gosto» para descrever o
agrupamento de indivíduos que ouvem dance music e vão a raves e discotecas. Ela
insiste em que, embora as culturas de gosto, como as subculturas, estejam ligadas
através de certas comunidades, elas baseiam-se menos nos modelos de resistência
avançados por Hebdige. Aqui, mais do que o estilo, a música, as drogas e o lazer
(discotecas/festas) são centrais para a construção do significado, com a oposição
dirigida mais à música comercial do que genericamente à cultura mãe. A mudança das
subculturas para as culturas de gosto reconhece que as comunidades marginais nem
sempre estão necessariamente interessadas na resistência. Enquanto o próprio
Hebdige (1988) declarou a morte da importância subcultural juntamente com a do
movimento punk, os estudos da relação entre a identidade e as opções de lazer
continuam. O que é aparente em trabalhos mais recentes é que o estilo e o lazer ainda
são empregues como símbolos nas práticas dos jovens e transformam-se em marcas
de distinção entre várias culturas de gosto. A resistência é inútil.
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Introdução aos Estudos Culturais

TEXTO 1 — Armand Mattelart e Érik Neveu, Introdução aos Cultural Studies, Porto, Porto
Editora, 2006, pp. 37-39.

Expansão e coerência das problemáticas


A mancha de óleo do cultural
O interesse demonstrado pelas práticas culturais, definidas sem qualquer
preocupação com o respectivo prestígio social, conduz os investigadores do Centro a
considerarem a diversidade dos produtos culturais consumidos pelas classes
populares. Birmingham será uma das primeiras equipas a mobilizar as Ciências
Sociais para bens tão profanos como a publicidade e a música rock […]. Mas, […] são,
gradualmente, os media audiovisuais e os seus programas de informação e de
entretenimento que se tornarão no objecto de estudo das pesquisas. […] Em
Encoding/Decoding [1973], Hall desenvolve um quadro teórico que coloca a tónica no
facto de o funcionamento de um media não poder limitar-se a uma transmissão mecâ-
nica (emissão/recepção), supondo antes uma organização do material discursivo
(discursos, imagens, relatos) onde os dados técnicos, os constrangimentos de
produção e os modelos cognitivos têm grande peso. Este quadro analítico pode
parecer banal actualmente, mas, na época, implicava tomar em consideração todas as
situações de distanciamento, os códigos culturais, as regras mediáticas que regem a
produção da mensagem, por um lado, e as referências culturais dos receptores, por
outro lado. […] A noção de descodificação convida a que se encare seriamente o facto
de os receptores possuírem estatutos sociais e culturas e que, por se ver ou ouvir um
mesmo programa, isso não implica que o sentido ou a recordação daí retirados sejam
semelhantes.

Género e "raça": novas alteridades


O movimento tipo mancha de óleo conhecerá finalmente dois desen-
volvimentos, cujas consequências a longo prazo serão essenciais. O primeiro conduz
às questões de género, à variável masculino/feminino. Esta grelha de leitura estrutura
a colectânea Women Take Issue [Womens Studies Group, 1978]. A valorização do
género deve-se ao trabalho empírico, que manifesta diferenças de consumo e de
apreciação entre homens e mulheres, em matéria de televisão ou de bens culturais. É,
também, resultado da sensibilidade feminista das investigadoras (Charlotte Brunsdon
e Dorothy Hobson). Como abster-nos de revelar o quanto as personagens e os
comportamentos analisados pela literatura acerca das subculturas são sempre
masculinos ou de nos interrogarmos sobre uma forma de conivência machista em
determinadas descrições da cultura operária? […]
Valorizada nos primeiros trabalhos de Hebdige, a outra alteridade, simbolizada
pelas comunidades imigrantes e a questão do racismo, ocupará um lugar de destaque
na colectânea The Empire Strikes Back [CCCS, 1982]. Também aqui são o terreno e a
presença de importantes comunidades de imigrantes e as reacções de atracção e de
rejeição racista por elas suscitadas que obrigam a que seja prestada atenção a estas
variáveis. Esta sensibilidade deve-se igualmente à presença de imigrantes ou de filhos
de imigrantes entre os investigadores do Centro, a começar por Hall ou Paul Gilroy.
Acrescentaremos que a situação britânica se opõe à francesa num ponto essencial: os
criadores oriundos da imigração gozam, em Inglaterra, de uma presença e de um
reconhecimento mais marcante no mundo cultural, especialmente na literatura
(Kincaïd, Kureishi, Rushdie).
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Introdução aos Estudos Culturais

TEXTO 2 — Stuart Hall, «Codificação/Decodificação», in Da Diáspora. Identidades e


Mediações Culturais (org. de Liv Sovik), Belo Horizonte, Editora UFMG; Brasília,
Representação da Unesco no Brasil, 2003.

a) Diagrama [p. 391]

PROGRAMA COMO
DISCURSO “SIGNIFICATIVO”

codificação decodificação
estruturas de sentido 1 estruturas de sentido 2

referenciais de conhecimento referenciais de conhecimento


relações de produção relações de produção
infra-estrutura técnica infra-estrutura técnica

b) Toda sociedade ou cultura tende, com diversos graus de clausura, a impor


suas classificações do mundo social, cultural e político. Essas classificações
constituem uma ordem cultural dominante, apesar de esta não ser nem unívoca nem
incontestável. A questão da “estrutura dos discursos em dominância” é um ponto
crucial. As diferentes áreas da vida social parecem ser dispostas dentro de domínios
discursivos hierarquicamente organizados através de sentidos dominantes ou
preferenciais. […] Os domínios dos “sentidos preferenciais” têm, embutida, toda a
ordem social enquanto conjunto de significados, práticas e crenças: o conhecimento
cotidiano das estruturas sociais, do “modo como as coisas funcionam para todos os
propósitos práticos nesta cultura”; a ordem hierárquica do poder e dos interesses e a
estrutura das legitimações, restrições e sanções. Por isso, para esclarecer um “mal-
entendido” em relação ao nível conotativo, devemos nos referir (através de códigos) às
ordenações da vida social, do poder político e económico e da ideologia. Além disso,
como esses mapas são “estruturados em dominância” mas não são fechados, o
processo comunicativo não consiste na atribuição não-problemática de cada item
visual à sua posição dentro de um conjunto de códigos pré-arranjados, mas sim em
regras performativas; ou seja, regras de competência e uso, de lógica aplicada — que
buscam ativamente reforçar ou preferir um domínio semântico a outro e incluir e
excluir itens dos conjuntos de sentido apropriados. [p. 397]
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Introdução aos Estudos Culturais

TEXTO 3 — Armand Mattelart e Érik Neveu, Introdução aos Cultural Studies, Porto, Porto
Editora, 2006, p. 62.

Compreende-se […] que a "viragem etnográfica" possa também ser concebida como
continuidade, como identificação dos meios mais eficazes para analisar no terreno os
enigmas ligados aos processos de decomposição/recomposição identitária, para
compreender consumos culturais, opções identitárias e ideológicas, "prazeres"
mediáticos que não podem deixar de ser considerados escandalosos por intelectuais
marcados pelo marxismo. Baseando-se nestes diagnósticos relativos às novas
condições da formação das identidades sociais, desde então, Hall não cessou de afir-
mar a centralidade conquistada pela cultura na gestão das sociedades e,
consequentemente, na forma de encarar a acção política.
Em matéria de investigações académicas, em 1991, Hall explicava o
"reposicionamento" dos Cultural Studies, insistindo em determinados factores
principais que obrigavam a "transpor as fronteiras". Entre eles:
1) a "globalização" de origem económica, esse "processo parcial de desagregação das
fronteiras que formaram tanto as culturas nacionais como as identidades individuais,
especialmente na Europa";
2) a ruptura das "paisagens sociais" nas "sociedades industriais avançadas" que faz
com que o "eu" (self) passe a ser parte integrante "de um processo de construção das
identidades sociais no qual o indivíduo se define, situando-se em relação a diversas
coordenadas, sem ser redutível a uma ou a outra coordenada (quer seja a classe, a
nação, a raça, a etnia ou o género)";
3) a força das migrações que "silenciosamente transformam o nosso mundo";
4) o processo de homogeneização e de diferenciação que mina, a partir de baixo e de
cima, a força organizadora das representações do Estado-Nação, da cultura nacional
e da política nacional [Hall, 1991].
Acrescentaremos à sua lista a ruptura que constitui, para os investigadores que se
mantêm politicamente empenhados, a quase obrigação de investir as suas energias
em movimentos sociais e já não em organizações do partido. Estes investimentos, que
sempre foram os de Hall, passam também a ser os de Thompson, agente
indispensável ao movimento pacifista e para o desarmamento nuclear (CND),
confrontando-se, por vezes, com a incompreensão dos seus colegas. Menos
conhecido, o empenhamento de Morley reflecte, igualmente, esta nova focalização nos
movimentos sociais, uma vez que foi um dos principais responsáveis das edições
Comedia, intimamente ligadas aos movimentos alternativos (feministas, antinucleares,
anti-racistas e cooperativos).
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Introdução aos Estudos Culturais

BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA DA UNIDADE 1


(ESTUDOS CULTURAIS - HORIZONTE DE PESQUISA; CONDIÇÕES DE EMERGÊNCIA E
DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO)

BARKER, Chris, Cultural studies: theory and practice, London, Sage Publications,
2000.
EDGAR, Andrew e Peter Sedgwick, Cultural theory: the key concepts, London,
Routledge, 2002.
EAGLETON, Terry, A ideia de cultura, Lisboa, Temas e Debates – Actividades
Editoriais, 2003.
FERIN, Isabel, Comunicação e culturas do quotidiano, Lisboa, Quimera, 2002.
GROSSBERG, Lawrence, Cary Nelson e Paula A. Treichler, Cultural studies, New
York, Routledge, 1992.
HALL, Stuart, Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais (org. de Liv Sovik), Belo
Horizonte, Editora UFMG; Brasília, Representação da Unesco no Brasil, 2003.
HARTLEY, John, Comunicação, estudos culturais e media: conceitos-chave. Trad.
Fernanda Oliveira e rev. cient. de Isabel Ferin, Lisboa, Quimera, 2004.
MATTELART, Armand e Érik Neveu, Introdução aos ‘Cultural Studies’, Porto, Porto
Editora, 2006.
RIBEIRO, A. Sousa/Ramalho, M. Irene, «Dos Estudos Literários aos Estudos
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SANCHES, Manuela Ribeiro, «Nas margens: os estudos culturais e o assalto às
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SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e, «Genealogias, lógicas e horizontes dos Estudos
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methods, Athens, University of Georgia Press, 2002.
WILLIAMS, Raymond, Keywords. A vocabulary of culture and society, New York,
Oxford UP, 1983.
14
Introdução aos Estudos Culturais

GLOBALIZAÇÃO (John Hartley, Comunicação, estudos culturais e media: conceitos-chave. Trad.


Fernanda Oliveira e rev. cient. de Isabel Ferin, Lisboa, Quimera, 2004, pp. 125-127)

Os componentes da globalização não são novos. Há séculos que o movimento através


das fronteiras tem sido vigorosamente prosseguido. A troca cultural e a interdependência
ocorreram ao longo da história através da colonização, do comércio e da exploração. A
aceleração da indústria por via da inovação tecnológica descreve tanto a era industrial como a
era da informação. E a noção de uma cidadania de lealdades múltiplas, sujeita a mais do que um
poder soberano, há muito que acontecia em alguns países, sobretudo nas antigas colónias.
A palavra «globalização» é mais usada para descrever uma recente intensificação de
redes, alianças e interligações em economia, cultura e política, e a forma particular que estes
processos assumem na sua totalidade e não na sua singularidade.
O fenómeno económico da globalização assistiu, a partir dos anos de 1980, à expansão
do comércio e do capital para lá das fronteiras, a um ritmo sem precedentes. Isso implica
mudanças nos sistemas e estruturas do comércio. Os exemplos incluem:
x sistemas de comunicação através dos quais é conduzido o comércio;
x práticas de trabalho e as aptidões necessárias para dirigir o capital de modo eficaz;
x novos regimes legais e institucionais requeridos para controlar, ordenar e manipular os
mercados.
No processo, a globalização viu o comércio e o capital internacionais serem
desenraizados das economias nacionais. O comércio electrónico permite a comercialização de
bens no espaço electrónico internacional, estimulando a criação de novos serviços e fluxos de
capital mais rápidos, capazes de transcender as estratégias de controlo e intervenção directas do
governo. Com a nova tecnologia, os mercados de câmbio podem transaccionar transferências de
milhares de milhões de dólares pelo mundo fora numa fracção de segundo. Não só a extensão da
economia até áreas fora do governo do Estado-nação está a causar preocupação quanto à
capacidade dos Estados-nação para actuarem, como o ritmo e a magnitude a que o capital é
mobilizado deixou os bancos sem capacidade para influenciar as taxas de câmbio da forma
como é esperado que o façam (Sassen, 1999).
O mapa da globalização é um mapa onde economias nacionais separadas estão a tornar-
-se parte de uma nova economia descentralizada. Agora, os Estados-nação não têm estratégias
económicas nacionais, mas antes «estratégias que operam num sistema económico global»
(Castells, 1999: 48). Em resultado disso, surgiram receios de que os países perdessem a sua
autonomia - que a globalização trouxesse consigo a dissolução dos Estados-nação -, reforçados
pela formação de blocos comerciais, pela moeda única para a Europa e pelo desenvolvimento da
lei internacional.
No entanto, o poder do Estado-nação é essencial em muitos aspectos para os processos
de globalização. Os Estados são cúmplices na globalização, já que é o seu consentimento que
faz avançar a economia global de forma a melhorar a sua própria posição económica. Além
disso, os países dominantes desempenharam um importante papel na preparação de estruturas
legais e políticas essenciais para as operações das empresas multinacionais.
A globalização não é simplesmente uma ocorrência económica. A sua dimensão cultural
inclui o entretenimento global, a fast food, a moda e o turismo. A globalização cultural é muitas
vezes entendida como uma forma de americanização . No entanto, essa abordagem nega a
diversidade de formas como os produtos são recebidos e transformados através do uso cultural.
Esses usos e estratégias estão longe de ser uniformes. A cultura «global» pode existir lado a
lado com comunidades, identidades e gostos locais e tradicionais, encorajando uma
multiplicidade de culturas e proporcionando condições para o aparecimento de novas culturas.
Entretanto, ninguém se pode dar ao luxo de não entrar no jogo. A China, por exemplo,
que tem uma cultura política nacionalista fortemente centralizada e um grande receio do caos
interno e da interferência externa, saudou apesar de tudo a sua aceitação tardia na OMC, em
Dezembro de 2001, como um marco fundamental para o desenvolvimento nacional. A própria
dimensão, o dinamismo e a especificidade da China terão inevitavelmente efeitos de retorno
sobre a economia globalizada - influenciando na mesma medida em que é influenciada. O
mesmo se aplica à Índia.
15
Introdução aos Estudos Culturais

STUART HALL A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso


tempo (1.1. A centralidade da cultura: a dimensão global), cap. 5 da obra Media and Cultural
Regulation, organizado por Kenneth Thompson e editado na Grã-Bretanha 1997. Trad. e revisão de
Ricardo Uebel, Maria Isabel Bujes e Marisa Vorraber Costa. { www.educacaoonline.pro.br }

Os recursos que antes iam para a indústria pesada da era industrial do séc.
XIX — carvão, ferro e aço — agora, na virada do terceiro milênio, estão sendo
investidos nos sistemas neurais do futuro — as tecnologias de comunicação digital
e os softwares da Idade Cibernética.
Em termos de padrões absolutos de julgamento e preferência estéticos, os
produtos culturais desta revolução não podem ser comparados em termos de valor
às conquistas de outros momentos históricos — as civilizações egípcias e da antiga
China, por exemplo, ou a arte do Renascimento italiano. Entretanto, em
comparação com a estreita visão social das elites, cujas vidas foram positivamente
transformadas por esses exemplos históricos, a importância das revoluções
culturais do final deste século XX reside em sua escala e escopo globais, em sua
amplitude de impacto, em seu caráter democrático e popular. A síntese do tempo e
do espaço que estas novas tecnologias possibilitaram — a compressão tempo-
espaço, como denomina Harvey (1989) —, introduz mudanças na consciência
popular, visto que vivemos em mundos crescentemente múltiplos e — o que é mais
desconcertante — “virtuais”. A mídia encurta a velocidade com que as imagens
viajam, as distâncias para reunir bens, a taxa de realização de lucros (reduzindo o
“tempo de turn-over do capital”), e até mesmo os intervalos entre os tempos de
abertura das diferentes Bolsas de Valores ao redor do mundo — espaços de
minutos em que milhões de dólares podem ser ganhos ou perdidos. Estes são os
novos “sistemas nervosos” que enredam numa teia sociedades com histórias
distintas, diferentes modos de vida, em estágios diversos de desenvolvimento e
situadas em diferentes fusos horários. É, especialmente, aqui, que as revoluções da
cultura a nível global causam impacto sobre os modos de viver, sobre o sentido que
as pessoas dão à vida, sobre suas aspirações para o futuro — sobre a “cultura” num
sentido mais local.
Estas mudanças culturais globais estão criando uma rápida mudança social
— mas também, quase na mesma medida, sérios deslocamentos culturais. Como
observa Paul du Gay, “a nova mídia eletrônica não apenas possibilita a expansão
das relações sociais pelo tempo e espaço, como também aprofunda a interconexão
global, anulando a distância entre as pessoas e os lugares, lançando-as em um
contato intenso e imediato entre si, em um “presente” perpétuo, onde o que ocorre
em um lugar pode estar ocorrendo em qualquer parte (...) Isto não significa que as
pessoas não tenham mais uma vida local — que não mais estejam situadas
contextualmente no tempo e espaço. Significa apenas que a vida local é
inerentemente deslocada — que o local não tem mais uma identidade “objetiva”
fora de sua relação com o global.” (du Gay, 1994).
Um efeito desta compressão espaço-tempo é a tendência à homogeneização
cultural — a tendência (…) de que o mundo se torne um lugar único, tanto do
ponto de vista espacial e temporal quanto cultural: a síndrome que um teórico
denominou de McDonaldização do globo. É, de fato, difícil negar que o crescimento
das gigantes transnacionais das comunicações, tais como a CNN, a Time Warner e a
News International tende a favorecer a transmissão para o mundo de um conjunto
de produtos culturais estandartizados, utilizando tecnologias ocidentais
padronizadas, apagando as particularidades e diferenças locais e produzindo, em
16
Introdução aos Estudos Culturais

seu lugar, uma ‘cultura mundial’ homogeneizada, ocidentalizada. Entretanto, todos


sabemos que as conseqüências desta revolução cultural global não são nem tão
uniformes nem tão fáceis de ser previstas da forma como sugerem os
‘homogeneizadores’ mais extremados. É também uma característica destes
processos que eles sejam mundialmente distribuídos de uma forma muito
irregular — sujeitos ao que Doreen Massey (1995) denominou de uma decisiva
“geometria do poder” — e que suas conseqüências sejam profundamente
contraditórias. Há, certamente, muitas conseqüências negativas — até agora sem
solução — em termos das exportações culturais do ocidente tecnologicamente
superdesenvolvido, enfraquecendo e minando as capacidades de nações mais
antigas e de sociedades emergentes na definição de seus próprios modos de vida e
do ritmo e direção de seu desenvolvimento (…). Há também diversas tendências
contrapostas impedindo que o mundo se torne um espaço culturalmente uniforme
e homogêneo. A cultura global necessita da “diferença” para prosperar — mesmo
que apenas para convertê-la em outro produto cultural para o mercado mundial
(como, por exemplo, a cozinha étnica). É, portanto, mais provável que produza
“simultaneamente” novas identificações “globais” e novas identificações locais do
que uma cultura global uniforme e homogênea.
O resultado do mix cultural, ou sincretismo, atravessando velhas fronteiras,
pode não ser a obliteração do velho pelo novo, mas a criação de algumas
alternativas híbridas, sintetizando elementos de ambas, mas não redutíveis a
nenhuma delas — como ocorre crescentemente nas sociedades multiculturais,
culturalmente diversificadas, criadas pelas grandes migrações decorrentes de
guerras, miséria e das dificuldades econômica do final do séc. XX. […]
O próprio ritmo e a irregularidade da mudança cultural global produzem
com freqüência suas próprias resistências, que podem, certamente, ser positivas,
mas, muitas vezes, são reações defensivas negativas, contrárias à cultura global e
representam fortes tendências a “fechamento”. Por exemplo, o crescimento do
fundamentalismo cristão nos EUA, do fundamentalismo islâmico em regiões do
Oriente Médio, do fundamentalismo hindu na Índia, o ressurgimento dos
nacionalismos étnicos na Europa Central e Oriental, a atitude anti-imigrante e a
postura euro-cética de muitas sociedades do ocidente europeu, e o nacionalismo
cultural na forma de reafirmações da herança e da tradição (…), embora tão
diferentes entre si, podem ser considerados como reações culturais conservadoras,
fazendo parte do retrocesso causado pela disseminação da diversidade efetuada
pelas forças da globalização cultural.
Todos estes fatores, então, qualificam e complexificam qualquer resposta
simplista, puramente celebratória em relação à globalização como forma
dominante de mudança cultural num futuro previsível (…). Estes fatores não
podem, no entanto, negar por completo a escala de transformações nas relações
globais constituída pela revolução cultural e da informação. Queiramos ou não,
aprovemos ou não, as novas forças e relações postas em movimento por este
processo estão tornando menos nítidos muitos dos padrões e das tradições do
passado. Por bem ou por mal, a cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos
— e mais imprevisíveis — da mudança histórica no novo milênio. Não deve nos
surpreender, então, que as lutas pelo poder sejam, crescentemente, simbólicas e
discursivas, ao invés de tomar, simplesmente, uma forma física e compulsiva, e que
as próprias políticas assumam progressivamente a feição de uma “política
cultural”.
17
Introdução aos Estudos Culturais

Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, A cultura-mundo. Resposta a uma sociedade


desorientada, Lisboa, Edições 70, 2010, pp. 154-157.

Americanização, crioulização, individualização

Embora exista uma força de intervenção universal das produções americanas,


assistimos também ao desenvolvimento de bens culturais que, provindo de diferentes
partes do mundo, se apropriam dos formatos mediáticos americanos, adaptando-os e
conseguindo criar assim formas híbridas. As culturas particulares cruzam permanen-
temente a cultura-mundo e cruzam-se entre si, alimentando-se cada uma das demais.
Vemo-lo já no cinema dos próprios Estados Unidos, em que realizadores chineses,
europeus e australianos impregnam com a sua sensibilidade específica filmes
produzidos e concebidos no sistema hollywoodiano: é a própria América que se
mundializa. Vemo-lo nas formas híbridas que é a manga japonesa, os folhetins
egípcios e as telenovelas brasileiras e mexicanas, fruto do encontro do modelo dos
Estados Unidos com as realidades culturais locais. Vemo-lo também na prática dos
jovens artistas plásticos africanos, que, em vez de se limitarem a "fazer africano",
como lhes é pedido, obtêm inspiração num diálogo da sua africanidade com outros
modelos, nomeadamente europeus. Vemo-lo ainda no desenvolvimento da world
music, em que se misturam ritmos vindos um pouco de toda a parte: da Jamaica e da
Europa de Leste, do Magrebe e da África negra. Bossa nova, reggae, salsa, rai, gipsy
jazz: a música "sem fronteiras" baseia-se na fusão de ritmos modernos e ritmos
tradicionais, de instrumentos eléctricos e instrumentos antigos, na hibridação do jazz e
do samba, do rai argelino e do blues, do flamenco e do rock, das músicas locais e das
músicas funk, pop ou rhythm & blues. A cultura-mundo é aquela em que coabitam
produtos formatados e produções "crioulizadas", que se enriquecem com todas as
correntes e estilos do mundo próximo e longínquo.
A cozinha revela a mesma tendência no que alguns chamam world cuisine. Se,
por um lado, se defende a gastronomia tradicional dos países contra o neocolo-
nialismo americano, por outro, assiste-se ao desenvolvimento das novas cozinhas
francesas, espanholas, bascas, catalãs, japonesas, alemãs ou californianas, que se
enriquecem com produtos, técnicas e decorações estrangeiras (por exemplo, a
apresentação dos pratos é marcada actualmente por uma estética japonizante). A
mestiçagem dos modelos alimentares pode ser de vanguarda, mas pode ser também
do agrado do grande público, como, por exemplo, a cozinha vietnamita, que soube
adaptar-se aos gostos e usos ocidentais. A esse respeito, o que se destaca não é
tanto uma americanização uniforme, mas sim o aumento da variedade alimentar, a
multiplicação das interacções, a hibridação dos particularismos.
18
Introdução aos Estudos Culturais

Até o McDonnald’s, que surge como figura paradigmática do imperialismo


cultural americano, se caracteriza menos pela imposição dum modelo padronizado do
que pela sua flexibilidade, a sua capacidade de integrar diferenças culturais, de propor
produtos adaptados a situações locais diversas: Big Mac sem queijo, em Israel, sem
carne de vaca, na Índia, MacSpaghetti, nas Filipinas, e McLaks de salmão, na
Noruega. Se na América os empregados dos estabelecimentos da cadeia devem
apresentar sempre um sorriso, o mesmo não se passa na Coreia, onde esse
comportamento suscita desconfiança nos consumidores. A ideia dum mundo a
absorver passivamente os produtos da América não corresponde à realidade: aquilo a
que se assiste é a um processo de redefinição e de reciclagem deles em função dos
contextos culturais.
Para além disso, o público mundial não esgota a totalidade dos consumidores
do planeta. Por toda a parte vêm à superfície os particularismos, reivindicando a sua
identidade, por todo o lado se afirma a indispensabilidade das "raízes" e a valorização
da herança cultural e religiosa. Quanto mais se consome cultura americanizada, mais
as reivindicações identitárias e a procura de diferenças culturais se tornam
importantes. O grande consumo dos produtos culturais made in USA não conduz
sistematicamente a uma cultura universal e homogénea, pois, em larga medida, são
reinterpretados de diversas formas pelos diferentes povos do planeta. Embora o
mundo consuma produtos americanos, estes não são recebidos por todos da mesma
maneira: uma série de televisão não é vista com os mesmos olhos na América, na
Argélia ou na Rússia. O consumidor não é um sujeito que absorve passivamente
programas: em toda a parte os signos e as imagens, mesmo calibrados, são filtrados,
reapropriados e arrastados para novas redes de imaginação e sentido. As imagens
difundidas pela CNN durante a guerra do Golfo ou após o 11 de Setembro não foram
entendidas da mesma maneira no Norte e no Sul, onde a informação americana é
maciçamente rejeitada e sentida como uma forma de imperialismo cultural. Com a
globalização, assiste-se à erosão das fronteiras e das barreiras geográficas, à
compressão do espaço-tempo, mas não à anulação das distâncias culturais. Aliás,
quanto mais os indivíduos têm acesso à cultura-mundo, mais sentem necessidade de
defender as suas identidades culturais e linguísticas: face à CNN ergue-se agora a voz
da Al-Jazira como fonte de informação. Não é o Uno Mundial que se prepara por
influência da hiperpotência americana, é a vontade de assegurar o pluralismo cultural
a fim de contrariar o sentimento de perda de si e revitalizar as identidades colectivas.
19
Introdução aos Estudos Culturais

Ana Isabel Cabo, Os novos movimentos sociais e os media. Os movimentos


antiglobalização nas páginas do Público. Lisboa, Livros Horizonte, 2008.

3. OS MOVIMENTOS ANTIGLOBALIZAÇÃO (MAG) - 3.1. O contexto dos MAG

No contexto dos novos movimentos sociais, analisemos agora o campo es-


pecífico em que trabalham os Movimentos Antiglobalização (MAG), cuja importância e
estratégia são cada vez mais relevantes no desenrolar da actividade política e social
no novo espaço público. Usamos a designação de antiglobalização - é a mais corrente
-, embora ela não expresse da forma mais correcta a postura e a filosofia destes novos
movimentos. O objectivo não é rejeitar liminarmente a globalização - até porque os
activistas reconhecem-lhe alguns aspectos positivos -, mas propor alternativas à forma
como aquela está a ser implementada. Estaríamos essencialmente perante
Movimentos Alterglobalização; postura que poderá colocar novos desafios. Como
refere Vital Moreira (2003), lutar por uma globalização diferente é mais exigente do
que ser simplesmente contra a globalização existente, uma vez que a alternativa
carece de programas de acção política e está necessariamente vinculada a mudanças
de governo nos países que são vítimas da globalização neoliberal.
Feita esta importante ressalva, analisemos agora as características destas
novas formas de acção colectiva e que, em certos casos, não se afastam das
características dos novos movimentos sociais que foram referenciadas nos pontos
anteriores. Antimo Farro (2004) aponta, como principais marcas distintivas dos MAG, a
afirmação da subjectividade dos seus actores, a fluidez dos canais organizativos, a
oposição à dominação económica e social, a resistência à homogeneização cultural e
as ligações que estabelecem entre as iniciativas locais e as transnacionais com o
objectivo de propor modelos alternativos de desenvolvimento. A procura de novas
formas de democracia é, segundo o autor, outra das características fundamentais
destes movimentos.
Analisemos, então, de forma mais pormenorizada, estas características. Na
nossa perspectiva, […] é fundamental que a multiplicidade de elementos (Melucci,
1998) sincrónicos e diacrónicos dos MAG seja captada. Como frisa Boaventura
Santos, é importante captar as inúmeras energias que abrangem desde uma postura
mais tradicional - e que passa pela tentativa de controlar o sistema político - até uma
postura que tenha em conta a participação quotidiana na sociedade cívica. É esta
multiplicidade de objectivos, de formas de luta, mas também de actores que
caracteriza verdadeiramente os MAG e que tem levado à divisão destes movimentos
em diversos campos. Em primeiro lugar, aqueles que intervêm em iniciativas globais
de um ponto de vista económico, social, cultural e político e que, no fundo, podem ser
subdivididos num ramo mais cultural e num ramo mais político. Em segundo lugar,
encontramos grupos, associações ou mesmo particulares que trazem para os novos
movimentos abordagens mais tradicionais, como é o caso dos ambientalistas ou das
feministas. Finalmente, um terceiro campo que mais não é do que um
desenvolvimento do sindicalismo e de movimentos de agricultores.
Apesar de se situarem em campos distintos, todos estes actores desenvolvem
uma acção comum para a qual é essencial a constituição de uma rede
comunicacional. Esta é uma outra característica importante e não significa a perda da
especificidade e identidade; os MAG definem-se pelo que são e pelo que fazem como
20
Introdução aos Estudos Culturais

actores constitutivos de uma acção colectiva delineada com o objectivo de criticar as


formas dominantes de organização social, económica e cultural e de orientar a vida
social (Farro, 2004: 636). No fundo, o que está aqui em causa é a importância dada à
questão da identidade, definida em função das relações no seio do movimento e do
movimento com os outros actores do espaço público, questão que já foi abordada
anteriormente no capítulo dedicado à acção colectiva. A identidade surge, assim,
intimamente ligada à questão da comunidade e solidariedade. Apesar dos fenómenos
da globalização estarem a levar à erosão da ideia tradicional de "local", ainda que as
lutas e protestos locais se dirijam a forças que se inscrevem numa lógica global, o que
é facto é que as bases de determinação da acção e de protesto colectivo permanecem
geralmente enraizadas em contextos claramente espacializados (Estanque, 1999).
A rede comunicacional, a existência de canais de comunicação e de circulação
da informação vão possibilitar a fluidez das relações entre os diferentes actores dos
MAG. São estes canais que irão, de resto, permitir construir as infra-estruturas
organizacionais no seio do movimento e fazê-las funcionar em rede. Mas não se trata
de uma rede qualquer, já que irá permitir ligar iniciativas locais e transnacionais,
afirmando assim a subjectividade e a solidariedade do movimento na prossecução de
alternativas à dominação económica e social e à tentativa de homogeneização
cultural. Para que estas redes funcionem entre os diversos actores, mas também entre
estes e o público a quem querem divulgar a sua mensagem, é fundamental o recurso
à Internet, uma espécie de universo de informação paralelo e independente dos mass
media tradicionais, cada vez mais utilizado pelos MAG. Flexíveis, fáceis de partilhar e
abandonar e ainda susceptíveis de se reorganizarem de forma fluida na sequência da
entrada ou saída de organizações, as redes da Internet reduzem os custos da
comunicação, transcendem as barreiras geográficas e temporais, atingindo
localizações tão remotas que ultrapassam largamente as fronteiras dos media
tradicionais. Já vimos também que a Internet possibilita a circulação da informação
sem os filtros editoriais dos media, enfraquecendo assim a capacidade de selecção da
imprensa tradicional (Bennett, 2004). Neste sentido podemos dizer que a Internet está
a contribuir para uma nova forma de fazer notícias.
Os MAG têm sabido aproveitar plenamente as capacidades deste novo
medium. A Internet permite uma difusão ampla dos seus discursos, alarga o âmbito
dos seus protestos, coordenando-os, actualiza informações sobre actividades
planeadas, permite a co-existência de organizações com perspectivas políticas
diferentes, substituindo em muitos casos a falta de uma liderança organizativa forte e
centralizada. A criação, após os confrontos de Seattle, da rede de informação Indy
Media-Centro de Media Independentes é um exemplo claro da eficácia proporcionada
pela Internet. Hoje, são inúmeros os sites ao serviço dos MAG.
Mas se é verdade que ajuda à manutenção de um activismo global, também é
verdade que estas redes comunicacionais, ao oferecerem alternativas aos media
tradicionais e aos académicos, podem enfraquecer a coerência temática das ideias
que difundem, dificultando assim a formulação de uma ideia comum e proporcionando,
por outro lado, o aparecimento de novas formulações ideológicas (Bennet, 2004). A
difusão proporcionada pelas redes da Internet vai despoletar o aparecimento e a
divulgação em grande escala de perspectivas diferentes, susceptíveis, assim, de
quebrar a unidade ideológica dos MAG.

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