You are on page 1of 3

Jornal O GLOBO – sábado, 23 de janeiro de 2010

História

Rússia reescreve o passado


Stalin passa por um silencioso processo de reabilitação

Vivian Oswald BRASÍLIA

Na maioria dos países, escrever a História é papel que cabe aos historiadores.

Na Rússia, costuma caber ao Estado. Em diferentes momentos da extinta União


Soviética, figuras proscritas desapareciam repentinamente de fotografias e textos, como
aconteceu com Leon Trotski. No caso do ditador Josef Stalin, cujos crimes foram
denunciados em 1963, sua imagem e seu nome foram removidos de praças e outros
logradouros públicos.

Na Rússia contemporânea, ressurgiu, juntamente com o orgulho nacionalista, o impulso


estatal de editar a História, ao mesmo tempo em que a imagem do próprio Stalin passa
por um silencioso processo de reabilitação. O presidente Dmitri Medvedev criou uma
comissão de professores que vai trabalhar nos próximos anos especialmente para acabar
com estereótipos e evitar distorções que fazem do país um grande vilão aos olhos da
comunidade internacional. A ideia é proteger a História russa e evitar que certos
acontecimentos caiam no esquecimento, como é o caso da vitória da Grande Guerra
Patriótica, como chamam a Segunda Guerra Mundial.

As paradas militares dos últimos dois anos foram as maiores de todos os tempos.

Este é um dos temas mais caros à Rússia, que, curiosamente, acabou se tornando a
guardiã do passado glorioso da URSS.

Especialistas russos afirmam que países do Ocidente têm distorcido os resultados da


guerra vencida ao custo de 25 milhões de vidas soviéticas, que derrubaram Hitler.
Jovens pelo mundo e até mesmo dentro da Rússia já não teriam a clareza dos fatos
históricos. Em entrevista ao GLOBO, a ex-deputada da Duma e diretora da comissão,
Natalia Narochnitskaya, afirma que existe uma tentativa deliberada de descredenciar a
Rússia. Segundo ela, há quem diga que a URSS era aliada de Hitler na guerra. Outros
dizem que os americanos venceram o confronto.

— Há novas versões que ignoram o sacrifício que a Rússia fez pelo mundo neste
episódio e que, muitas vezes, distorcem a história para transformar o país em vilão —
explica.

Ressentimentos entre ex-aliados

No final do ano passado, a Ucrânia tentou aprovar uma resolução na Organização das
Nações Unidas (ONU), que acabou saindo no formato de declaração subscrita por
alguns países apenas, em que acusa a URSS de genocídio durante o período da
coletivização na década de 30. A Rússia argumenta que os ucranianos não foram as
únicas vítimas da fome, mas todos os países soviéticos. Especialistas lembram que
aqueles que viviam da agricultura podem ter sofrido impactos maiores por razões
óbvias. Este é outro tema que tem sido tratado em profundidade pela comissão.

Sempre que pode, a Polônia diz que os russos, ao assinarem o Tratado de Molotov-
Ribbentropp de não-agressão com os nazistas, assinado às vésperas da Segunda Guerra
Mundial, combinaram, entre outros, a partilha do país. Narochnitskaya contra-ataca: —
A Polônia não era uma vítima inocente.

Todos sabiam que o ministro das Relações Exteriores teve conversas com Hitler
oferecendo a conquista da Ucrânia.

As versões são muitas e ressentimentos do passado acabam levando os países ex-


soviéticos a tentar se descolar do que já foram. Em maio de 2007, a Estônia resolveu
tirar de uma praça no centro da capital a estátua do soldado soviético de bronze, que
representava os 13 militares soviéticos mortos em território estoniano em combates
contra as tropas nazistas. A data escolhida marca o aniversário do final da Segunda
Guerra. A medida deu origem a uma crise diplomática entre os dois países.

País vende mal a própria imagem no exterior

O fato é que tudo isso acaba sendo facilitado por uma simples razão: a Rússia vende
mal a sua imagem. Analistas afirmam, e Narochnitskaya concorda, que é necessário o
acesso a documentos, muitos deles considerados secretos até hoje. A falta de um debate
mais aprofundado e baseado em informações propicia os curto-circuitos. O trabalho da
comissão, agora, segundo ela, é não só chegar a estes arquivos, como também promover
a sua abertura para estimular a pesquisa, desenvolver seminários e congressos, para,
assim, contar a verdadeira história da participação da URSS e da Rússia em eventos
mundiais.

De todo modo, Narochnitskaya fala de uma prevenção em relação à Rússia e atribui


parte dela à Revolução de 1917, que, segundo ela, foi uma experiência trazida do
Ocidente para o país.

— Se uma escola russa começar a reunir as crianças todos os dias para cantar o hino
nacional em torno da bandeira, seremos acusados de nacionalismo. Os EUA, não.

A especialista também lembra o tratamento que é dispensado a Ivan, o Terrível, que é


mais demonizado do que outros líderes de sua época, como Catarina de Médici.
Nem mesmo crimes evitam que ditador seja reverenciado
Livros, pesquisas e museu mostram uma incômoda popularidade

BRASÍLIA. A releitura da História da Rússia tem o objetivo nobre de proteger o


patrimônio nacional. Mas pode acabar por ressuscitar figuras como Josef Stalin. Embora
tenha sido proscrito em 1963, dez anos após a sua morte, o ditador já não parece estar
assim tão banido da cena atual como era de se esperar. Existe um movimento silencioso
de reabilitação de Stalin na Rússia.

O Manual de História dos professores elaborado há dois anos com o patrocínio do


governo já justifica em parte o que fez o líder soviético — seus fins seriam nobres,
segundo o professor de História da Universidade de Moscou, Sergei Chernov.

Na feira tradicional de Izamailovo, na capital, não é raro encontrar bustos de Stalin à


venda para turistas e locais.

Não muito longe dali, o antigo bunker de Stalin tornou-se uma espécie de museu do
ditador e, embora seja uma instituição privada, funciona com peças doadas em algum
momento pelo Museu das Forças Armadas.

Lá dentro, a guia lembra que Stalin levou um país agrícola ao espaço sideral.

Primeiro lugar em concurso de personalidades É inegável a transformação por que


passou a União Soviética na era stalinista, mas, segundo uma especialista da ONG
Memorial em Moscou, não é fácil defender este progresso tendo em vista o número de
pessoas que morreram no país.

— É claro que o país melhorou muito, mas o preço que se pagou foi muito alto.

No ano passado, um concurso de personalidade mais importante da História chegou a


ter o ditador em primeiro lugar. Mas há quem diga ter havido uma manobra na
contagem dos votos para impedir que o resultado final fosse esse.

— Ainda não está na hora de fazer um julgamento sóbrio sobre Stalin. Ninguém está
preparado para fazê-lo — disse Natalia Narochnitskaya, ex-deputada da Duma e
diretora da comissão criada pela presidência russa para proteger a História do país.

Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Iuri Levada ano passado, apenas um
terço dos russos considera Stalin um criminoso de Estado, sendo que 12% estão de
acordo com a ideia e outros 26% concordam parcialmente. (Vivian Oswald)

You might also like