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Tema: Direitos da Criança e do Adolescente:

Realidade ou promessa? Sub-tema: Educação Delmário Araújo Leal Júnior

Aprimoramento Constante: Uma Abordagem da Filosofia do Direito

No caminho do resgate dos direitos fundamentais a sociedade brasileira vem


retomando a atenção para um de seus aspectos principais, qual seja a dos direitos
da criança e do adolescente. A grande importância dedicada aos aspectos
correcionais, ainda obscurece o alicerçamento de bases suficientes e necessárias à
condução e preparação da infância e adolescência com vistas à cidadania integral.
Redundante até, apesar de oportuno, afirmar que a educação desempenha papel de
relevância na preparação de cidadãos e na prevenção de faltas e desvios de
conduta. Nessa concepção continuam bastante atuais os princípios basilares da
filosofia, na sua contribuição ao conhecimento, à eticidade, à justiça e à formação da
cidadania. A não observância de aspectos de formação educacional, ainda manterá
somente sob promessa, a garantia dos direitos fundamentais da criança e do
adolescente.

A abordagem do tema dos direitos da criança e do adolescente, sob o


enfoque da Filosofia aplicada ao Direito, nos parece pertinente, dada a íntima
relação entre as duas matérias, desde a contribuição histórica emprestada pelos
filósofos à construção das bases éticas e jurídicas da cidadania, até a importância
da interpelação filosófica à prática do Direito. Neste trabalho, com a intenção de
aprofundar a discussão, nos utilizaremos de aspectos da Filosofia do Direito que, ao
contrário, em lugar de ir das normas jurídicas às suas conseqüências, volve à fonte
primordial de onde aqueles ditames de ação necessariamente emanam, ou seja,
não observa a experiência jurídica de fora, como um dado ou um objeto externo,
mas sim in interiore hominis 1

Na tendência de dimensões planetárias da valorização dos direitos


fundamentais, a sociedade brasileira tem amadurecido a sua discussão, e vem
paulatinamente positivando esses direitos. A Constituição Federal de 1988 foi um
passo importante nessa trajetória, valorizando a cidadania. O seu artigo 227 fixou as
diretrizes dos Direitos da Criança e do Adolescente, e norteou a elaboração da Lei

1
Reale, M. Filosofia do Direito, 19. ed., 1999: 304
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8.069 de 13 de julho de 1990, que formalmente dispõe sobre o Estatuto da Criança e
do Adolescente.

Infelizmente ainda é fácil verificar que o aspecto correcional ainda mantém


preponderância na abrangência da seara dos assuntos da criança e do adolescente,
inclusive materializado na legislação, como podemos observar, por exemplo, no
Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, que reserva diminuta atenção aos
aspectos prevencionais e formadores como a educação, que em melhor análise
fundamenta-se como principal alicerce, ao lado do bom convívio familiar e social,
para a formação e consolidação do caráter pessoal e de cidadão para aqueles que
são células da polis.

De pouco adiantarão os ditames da norma que primam pela ação sobre as


conseqüências de atos cometidos, se a atenção também não estiver voltada para as
causas desses atos. À guisa de conferir segurança e proteção aos envolvidos com
atos infracionais cometidos por crianças e adolescentes, ainda se destina grande
atenção, por um lado aos aspectos concernentes à garantia da inimputabilidade dos
menores de 18 anos sob a égide da garantia dos direitos humanos, e por outro viés,
às medidas denominadas sócio-educativas, para reparação dos danos, entre outros.

Apesar de importantes, os cuidados com os já comentados aspectos


correcionais, revelam-se paliativos, por se revestirem de caráter remediativo. São
trabalhadas por essa abordagem, apenas as conseqüências de situações complexas
que envolvem condições familiares, sociais, financeiras, psicológicas e educacionais
dos indivíduos que são objeto da aplicação das medidas sócio-educativas. Ainda
estão relegadas a plano secundário as indagações sobre a origem do estado caótico
de coisas relacionadas com os desvios de conduta dos menores infratores, e sobre
as medidas a serem implementadas para modificar o rumo da história que está
sendo escrita.

De maior valia, podemos citar aqueles aspectos relacionados à prevenção e


formação da estrutura da pessoa e do cidadão. Medidas sócio-educativas têm real
eficácia quando aplicadas com o propósito formador, não com o propósito corretivo.
Na construção do ser humano integral devem-se buscar medidas visando atingir
metas de curto, médio e longo prazo e que tenham espectro mais abrangente que a
cronologia dos mandatos e legislaturas. A consolidação de uma sociedade de
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caráter ético e baseado em conceitos de justiça está acima dos interesses de
partidos e mandatos. Definitivamente os assuntos da criança e do adolescente,
assim como todos os assuntos do âmbito dos direitos fundamentais, devem deixar
de ser tratados na esfera dos dados estatísticos, para terem a si dispensados
tratamento de cunho humanitário.

Malgrado a sua diminuta dimensão, uma vez comparada aos aspectos


correcionais e de natureza de responsabilização judicial, é necessário destacar as
prescrições relativas à educação no conteúdo do Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA, em seu Título II, Capítulo IV – Do Direito à Educação, à Cultura,
ao Esporte e ao Lazer, que tencionam conferir ao documento, atenção a um dos
aspectos primordiais da formação da pessoa e do cidadão, tanto é assim que em
seu artigo 53, o ECA dispõe:

A criança e o adolescente têm o direito à educação, visando ao pleno


desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e
qualificação para o trabalho,...

Não obstante estar de acordo com as mais recentes tendências da


atualidade, relativamente aos preceitos da formação de cidadãos, a ênfase à
educação continua reproduzindo o ideário dos filósofos que na Antiguidade se
dedicaram aos aspectos estruturais da cidadania. A contribuição dos sofistas, de
Sócrates, de Platão e de Aristóteles, entre outros, deu relevo especial à formação
para a cidadania e para o exercício da justiça, marcando sua época com suas idéias
revolucionárias e por vezes mal compreendidas.

Sem surpresa, pode-se verificar que a história se repete, ao se observar


reações a semelhantes ideais, quando, por exemplo, em pleno final do século XX,
ao ser sancionado, o ECA causou espécie em segmentos da sociedade que o
classificaram como não aplicável à realidade brasileira e como instrumento que
serviria à impunidade e desvirtuamento dos mais jovens e até mesmo de elemento
desagregador da família. A reedição da história se deve neste caso, ironicamente ao
desconhecimento do texto e do propósito do estatuto, que, por ser uma lei, deveria
remeter à leitura. A palavra lei, derivada do latim legere significa ler. A lei, portanto, é
um ato do poder público feito para que as pessoas leiam.2 Verifica-se então, que até
2
Porto, Paulo César Maia. S mentiras e as verdades sobre o Estatuto da Criança e do adolescente.
Um Caminho para a Proteção Integral, Recife: Cedhec, 1995: 70.
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mesmo a discussão e a aplicação conseqüente das leis, nos remete ao
conhecimento.

É importante se observar que apesar de sempre ter sido criticado, o papel da


educação como precursor da formação das células de cidadania, sempre esteve em
voga na busca da garantia dos direitos fundamentais. Foi assim que os filósofos
iniciaram a formação da estrutura basilar dos direitos fundamentais. Mesmo imersos
em uma era recheada com notáveis ranços equivocados de marginalização de parte
da sociedade, com educação destinada preferencialmente aos homens de algumas
classes sociais, foram os filósofos, importantes defensores da educação na
formação da pessoa e do cidadão. Em rápida análise do legado desses formadores
de opinião, pode-se buscar a essência da contribuição que a educação pode dar à
formação da cidadania e da efetivação da justiça, discutindo a sua aplicabilidade à
realidade contemporânea.

A começar pelos Sofistas 3, com sua ênfase à retórica e à prática judiciária.


Há de se notar que, mesmo marcado por práticas e idéias contraditórias o legado
dos Sofistas nos remete à busca do aperfeiçoamento como forma de crescimento.
Se de um lado cometeram o equívoco da valorização do direito natural pelo
condenável viés que os levaram a sobreestimar a concepção de que o poderoso
poderia oprimir o fraco, e a tratar com desdém a igualdade moral entre fortes e
fracos, chegando até a considerá-la como prejudicial à sociedade; de outro lado os
sofistas preconizavam o exercício do engrandecimento ilimitado da própria
personalidade, marcando o seu tempo com a alcunha da retórica somente
conseguida à custa da educação direcionada e permanente. Pode-se então observar
que, mesmo em uma época de aplicação equivocada dos conceitos do direito
natural que hodiernamente levam a humanidade à defesa inconteste das igualdades,
a educação era exercida como fator preponderante de crescimento pessoal e
formação de valores na sociedade. Não será fora de propósito então, que no início
do séc. XXI, quando observamos uma sociedade que exerce práticas que, à
semelhança daquelas do séc. V a.C., tratam desigualmente fortes e fracos, seja
3
Sofistas foram filósofos do sec. V a.C., que trouxeram a discussão sobre o relativismo da
justiça, “mobilizaram conceitos no sentido de afastar todo tipo de ontologia ou mesmo todo tipo de
metafísica ou mistificação em torno dos valores sociais”, apontaram “para a identidade entre os
conceitos de legalidade e justiça, de modo a favorecer o desenvolvimento de idéias que associavam à
inconstância da lei a inconstância do justo”. (Bittar, E. Curso de Filosofia do Direito, 3. ed., 2004: 63)
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estabelecida um compromisso com a educação como elemento de desenvolvimento
das nossas crianças e adolescentes.

De Sócrates pode-se a princípio tomar o exemplo do menino que mesmo


originário de uma família de poucas posses, tendo como pai um escultor e como
mãe uma parteira, após longo período de dedicação aos estudos e meditações,
4
legou à humanidade os princípios do auto conhecimento, da maiêutica como
técnica de educação e da busca inarredável da virtude. E como buscava Sócrates a
virtude? Acreditava que virtude é inteligência, razão, costume, tradição, lei positiva,
opinião comum. Tudo isto tinha que ser criticado, superado, subindo até a razão,
não descendo até a animalidade como ensinavam os sofistas 5. O conhecimento,
segundo Sócrates, está relacionado com a virtude, assim como a ignorância está
relacionada com o vício. Sócrates entendia ser a sabedoria o maior bem do homem.

Para a aplicabilidade nas técnicas educacionais do nosso tempo, ofertou


Sócrates, a colaboração da maiêutica, assumindo a posição de auxiliar nos partos
do espírito, inspirando a parturição da vida ao se espelhar na sua mãe que auxiliava
nos partos do corpo, devotando-se ao sublime ideal de que a instrução não deve
consistir na imposição extrínseca de uma doutrina ao discente, mas o mestre deve
tirá-la da mente do discípulo, pela razão imanente e constitutiva do espírito humano,
a qual é um valor universal 6. Depreende-se que até mesmo na aplicação de
medidas sócio-educativas, deve-se ter em foco a interação com o indivíduo no
sentido de trazer à tona a sua capacidade de discernimento sobre os valores éticos
e morais.

Platão, que se ocupou da transcendência como causa da virtude dos seres


humanos, não deixou de conferir importância à educação para a grandeza do
homem, acreditando não poder haver progresso em ambiente medíocre. Queria que
o Estado expusesse as crianças ao belo, assim a vida delas seria enobrecida.

4
Maiêutica: método baseado na ironia e no diálogo, com a finalidade da provocação da
parturição das idéias. (Bittar, Curso de Filosofia do Direito, 3. ed., 2004: 65)

5
Marrou, Henri Irénée. História da Educação da Antiguidade, 4ª reimpr. – Tradução do
Professor Mário Leônidas Casanova São Paulo: E.P.U., 1975.: 113

6
Marrou, Henri Irénée. História da Educação da Antiguidade, 4ª reimpr. – Tradução do
Professor Mário Leônidas Casanova São Paulo: E.P.U., 1975.: 112
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Dando novo impulso aos ensinamentos socráticos, a filosofia platônica admitia como
virtudes fundamentais a justiça e o conhecimento. Preconizava que a perfeita
conjunção entre a sabedoria e a justiça se daria quando a racionalidade humana
alimentada pelo conhecimento atingisse estágio superior e de domínio da alma
concupiscível.

Não queremos por este raciocínio advogar a virtude irrepreensível e ignorar


que o erro está ligado à natureza do ser humano, mas queremos ressaltar,
baseados nas idéias de Platão e Sócrates que o erro é fruto da ignorância e que o
conhecimento descortina os horizontes do indivíduo para a livre escolha entre os
caminhos que a vida oferece. Em poucas palavras, assumimos que em diversas
circunstâncias, a vida do menor infrator provém também da ignorância e que
somente a educação possibilita à criança o contato com o mundo da virtude e com o
discernimento sobre o caminho que pode ser perseguido.

Aristóteles encontrou um ponto de equilíbrio evoluindo, a partir das teses


propaladas por Sócrates e Platão, para um formato mais elaborado de justiça,
introduzindo a partir da correlação entre virtude e justiça, conceitos como justo meio,
justo corretivo e distributivo, justo natural e político. Particularizou a aplicação da
justiça e da ética para a especificidade de cada indivíduo sem, no entanto, perder de
vista a importância da contribuição do bem individual para o Bem coletivo,
consolidando o conceito de justo político, que seria a gênese da justiça social.
Esteve presente na elaboração dos seus conceitos, a ênfase à amizade e a
eqüidade aplicada à justiça, preconizando o arbitramento como forma mais humana
de resolução de conflitos. Raciocinava Aristóteles que a amizade seria a relação
existente entre pessoas virtuosas, que se relacionariam em nível de igualdade e
voltadas para a consecução do Bem comum.

Poder-se-ia classificar esses ensinamentos como idealistas, como frutos de


uma realidade somente possível em tempos outros. Aqui chamamos à advertência
de que nenhum tempo no tocante às relações humanas é mais ou menos complexo
que o outro, uma vez que os seres integrantes desse tempo estão a ele adaptados e
capacitados para a vida que lhe é peculiar. A antiguidade teve, assim como
atualmente temos, aspectos adversos à implementação de políticas morais e éticas.
Os obstáculos à busca de uma sociedade justa, poderão ser superados, por
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exemplo, com algumas práticas simples como a interiorização em nossas ações da
semântica da palavra ética, que no grego (éthos) quer dizer hábito.

A lição crucial que nos traz o ensinamento dos filósofos, é a da busca da


virtude através do conhecimento. Identificaram, com muita propriedade, ser a
educação o caminho mais retilíneo na procura da vida ética, virtuosa e justa. E foram
além, quando valorizaram o reconhecimento dos valores intrínsecos do ser humano
em cada individuo, traduzindo de forma simples o ideário da facilitação do contato
com o conhecimento interno inato, aliado à transmissão dos ensinamentos dos
mestres. Os referenciais históricos podem contribuir para o empreendimento da
consolidação de uma sociedade mais justa, na medida em que, ao utilizar-se os
basilares conceitos históricos da virtude, da ética e da justiça, estaremos nos
aproximando do que existe de mais atual, apesar do seu distanciamento
cronológico.

Faz-se necessário, para a conclusão deste trabalho, correlacionar conceitos


fundamentais para a formação da cidadania, quais sejam o conhecimento, a ética, o
direito e a justiça. Como imaginar o exercício da cidadania sem a devida e
necessária preparação através de uma educação calcada em sólidos valores morais
identificadores do Bem comum? Como após a absorção desses valores morais,
evitar que se percam no desuso e no distanciamento dos seus princípios, senão
através do exercício da ética cotidiana. E que se dizer do reconhecimento e
aplicação dos direitos individuais e coletivos, senão através da prática diuturna dos
sólidos conhecimentos éticos e morais adquiridos. A tarefa da justiça, uma vez
efetivamente incorporados esses preceitos ao âmbito da sociedade, passa a ser de
guardiã da virtude, enquanto espectadora vigilante de uma sociedade cidadã, sem a
necessidade do foco nos aspectos reparativos.

Bibliografia

Bittar, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito, 3. ed. São Paulo:
Atlas, 2004.
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Realidade ou promessa? Sub-tema: Educação Delmário Araújo Leal Júnior
Porto, Paulo César Maia e Outros. Um Caminho para a Proteção Integral, 1.
ed. - . Recife: CENDHEC - Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social,
1999.

Marrou, Henri Irénée. História da Educação da Antiguidade, 4ª reimpr. –


Tradução do Professor Mário Leônidas Casanova São Paulo: E.P.U., 1975.

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