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2 A paixão segundo GH
A paixão segundo G.H. é publicada no ano de 1964, período em que Clarice
Lispector
já é uma escritora consagrada. O livro é escrito em alguns meses, durante o
ano anterior, momento que coincide com a oficialização da separação do casal e
a
conseqüente divisão dos bens. Em setembro de 1963, Clarice compra um
apartamento,
ainda em construção, situado no bairro do Leme, no Rio de Janeiro1. É nesse
ambiente
que encontra inspiração para a trajetória de G.H. Antes de tecermos
considerações
acerca da representação do corpo de G.H., a protagonista da obra,
vasculharemos
os corpos quase invisíveis de personagens ou situações corpóreas que
participam
do percurso intimista dessa personagem solitária e desesperada.
Em Perto do coração selvagem, entramos em contato com uma série de
personagens
secundários, muitos anônimos, outros importantes para a formação do delicado
enredo em direção à liberdade de Joana. O desfile dos tipos da velhice, por
exemplo,
que despertam o riso, a piedade e a culpa daqueles que se aprofundam no
intrincado
esquema descritivo articulado pela escritora, reflete o destaque que ela concede
às
transformações corpóreas pelas quais passam diversos de seus personagens.
Curiosamente,
em A paixão segundo GH, esse recurso parece apagar-se diante do monólogo
da protagonista, que centraliza a trama em sua complexa vida interior. Essa
ilusão
1 Retiramos essas informações sobre a confecção de A paixão segundo G.H. no recorte cronológico
estabelecido por Nádia Battella Gotlib, “A descoberta do mundo”, presente no volume
Cadernos de Literatura Brasileira (2004: 29).
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monologal, no entanto, dissipa-se na medida em que a personagem-narradora
pede
auxílio, desde o início do seu relato, a um interlocutor imaginário 1: “Estou tão
assustada
que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a
mão” (1998: 17).
Divergindo da posição de Benedito Nunes, que faculta a importância do
diálogo
no texto clariciano a partir de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, obra
publicada
em 1969, sustentamos o aspecto dialogal presente já em A paixão segundo G.H.
Apesar de acionar a faculdade da imaginação na formação desse interlocutor, a
narradora
busca aproximar-se sobretudo de um leitor comum, aquele que, no entanto,
conforme a dedicatória da escritora, ocupa para ela um lugar especial: “Este
livro é
um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de
alma
já formada” (1998: 7). Na seqüência dessa observação, que eleva o leitor a uma
idealização
por parte da personagem-narradora, esta se descreve pelo mesmo dado
corporal
que localiza no interlocutor de alma formada. Observemos a relação entre o
narrador
e o destinatário: “Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está
segurando a minha mão” (1998: 18, grifos nossos). As mãos, portanto, ligam a
personagem-
narradora aos possíveis interlocutores. Esse aspecto do corpo destaca-se na
parte inicial do relato de G.H.:
Oh pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensála,
irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão – mesmo
que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora
decepada, esta mão não me assusta. A invenção dela vem de tal
de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que,
se não vejo, é por incapacidade amar mais. Não estou à altura de imaginar
uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira. E
como imaginar um rosto se não sei de que expressão de rosto preciso?
Logo que puder dispensar tua mão quente, irei sozinha e com
horror (A paixão segundo G.H., 1998: 18).
1 Benedito Nunes, em “Do monólogo ao diálogo”, observa no recurso monologal empregado
pela escritora o diálogo da consciência consigo mesma: “Em A paixão segundo GH., a
personagem,
que chega à visão silenciosa onde o monólogo interior se esgota, inventa, para
garantir a possibilidade da narrativa, a presença de um interlocutor imaginário, de quem
finge segurar as mãos. É um estratagema contra a incomunicabilidade, que não consegue
superar a angústia da ‘consciência de si’, a caminho de uma nova ruptura dentro da própria
narrativa que se interrompe no final do romance” (1995: 78).
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O pacto que se estabelece entre G.H. e o interlocutor invisível se passa na
imaginação
da personagem, mas desperta, simultaneamente, o interesse do destinatário
que entra em contato com esse pedido um tanto sem propósito, já que pouco
sabemos
a respeito das conseqüências desse gesto de solicitude. A proposta da narradora
pode ser interpretada como uma estratégia discursiva no intuito de deter a
atenção
dos possíveis leitores e dessa forma ela cria uma presença bastante flexível,
comparando
esse exercício de auxílio àquele que ela prevê na solidão característica da morte:
“Por enquanto estou inventando a tua presença, como um dia também não
saberei
me arriscar a morrer sozinha” (1998: 19). Somos, nessa medida, enredados na
atmosfera
de pavor da solidão criada por G.H., personagem que, assim como Joana,
instiga
o sentimento de piedade nos leitores que se arriscam na investigação
pormenorizada
da natureza íntima desses seres ficcionais: “Por enquanto eu te prendo, e tua
vida
desconhecida e quente está sendo a minha única íntima organização, eu que
sem a
tua mão me sentiria agora solta no tamanho enorme que descobri” (1998: 19,
grifos
nossos). Na medida em que avança o relato de G.H., e nos tornamos cúmplices
de
sua trajetória agônica, as primeiras informações sobre a história banal que ela
relatará
têm como estratégia o pedido de ajuda a esse interlocutor invisível para a
narradora,
o qual ela prudentemente não especifica fisicamente: “Dá-me a tua mão
desconhecida,
que a vida está me doendo, e não sei como falar – a realidade é delicada demais,
só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais
pesadas”
(1998: 34). Em outro momento mais adiantado do seu percurso, quando G.H. já
está
dentro do quarto da empregada e diante da barata que desencadeia seus
questionamentos
mais profundos, a personagem-narradora prolonga o pedido de ajuda que no
início se apresenta como momentâneo: – Segura a minha mão, porque sinto que
estou
indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para o
inferno
de vida crua (1998: 60). Ao afirmar que tocara no imundo, fato que é
considerado pela
protagonista como sendo proibido, G.H. rompe com a brevidade do pedido de
socorro
aos interlocutores no início do seu relato. A dependência entre narrador e leitor
também proporciona uma ardilosa estratégia daquele para manter o interesse
desse
numa narrativa de poucas ações:
– Ah, não retires de mim a tua mão, eu me prometo que talvez até o
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fim deste relato impossível talvez eu entenda, oh talvez pelo caminho
do inferno eu chegue a encontrar o que nós precisamos – mas
não retires tua mão, mesmo que eu já saiba que encontrar tem que
ser pelo caminho daquilo que somos, se eu conseguir não me afundar
definitivamente naquilo que somos (A paixão segundo G.H., 1998: 73).
O excerto acima atenua o tom suplicante de G.H., pois a personagemnarradora
detém certo domínio da história vivida por ela. Nessa medida, ela nos expõe
à mesma situação de aflição que a envolve e motiva seu empenho narrativo.
Somos,
portanto, definidos e, por conseguinte, ficcionalizados em uma esfera de busca
desesperada que circunda a protagonista, visto que ela nos inclui como
participantes
de um percurso também agônico. O emprego dos verbos “precisamos” e
“somos”
confere-nos significativa cumplicidade na trajetória da personagem. A
narradora ganha
status de onisciência, apesar do medo intrínseco ao gesto do recorrente pedido
de
socorro. Tal onisciência, depois de afirmada, é subitamente posta em dúvida,
pois
G.H. desconfia de seu próprio relato. Essa capacidade de questionamento do
acontecimento
vivido já está presente em Perto do coração selvagem. Na cena em que Joana
reconstitui o que se esboça como a festa de seu casamento, observamos uma
riqueza
de detalhes que transita pela sutileza dos odores exalados pelas fazendas dos
convidados
da festa e pela materialidade percebida nos adereços e nos traços de outros
convidados. Todas essas lembranças se escoam sob a capa de uma dúvida que
aproxima
o acontecimento vivido de uma possível fabulação, pois, conforme Joana:
“Muito
provável mesmo que nunca tivesse vivido aquilo” (1998: 105). A dúvida retorna
em A paixão segundo G.H., na medida em que a narradora deixa margem para a
invenção
do acontecimento, o qual de início é revestido de uma carga de sofrimento
característica
daquilo que é efetivamente experienciado:
– Dá-me a tua mão. Porque não sei mais do que estou falando. Acho
que inventei tudo, nada disso existiu! Mas se inventei o que ontem
me aconteceu – quem me garante que também não inventei o que ontem
me aconteceu – quem me garante que também não inventei toda
a minha vida anterior a ontem?
Dá-me a tua mão (A paixão segundo G.H., 1998: 97).
O fragmento acima viabiliza uma interpretação que traz à tona a farsa social
que constitui a vida de G.H., uma mulher em tensão com o reconhecimento de
seu
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vazio existencial1. É importante somar a esse flagrante social a dúvida entre o
vivido
e o inventado, que não abranda o sofrimento da personagem-narradora. Por
isso ela
reitera o pedido de amparo na imagem da mão estendida: “E eis que a mão que
eu
segurava me abandonou. Não, não. Eu é que larguei a mão porque agora tenho
que
ir sozinha” (1998: 123). O gesto de abandono que ela imputa ao destinatário, o
qual se
configura a partir da vontade da narradora, é subitamente desfeito na seqüência
pela
própria personagem que, num outro movimento muito próximo desse jogo
amparo/
desamparo, ilustrado pela imagem da mão desse interlocutor imaginário,
abandona
o leitor a quem G.H. sempre recorreu: “Se eu conseguir voltar do reino da vida
tornarei a pegar a tua mão, e a beijarei grata porque ela me esperou que meu
caminho
passasse, e que eu voltasse magra, faminta e humilde: com fome apenas de
pouco,
com fome apenas do menos” (1998: 123). A narradora recria para os possíveis
interlocutores
a mesma atmosfera de solidão na qual ela se enredou, o que cristaliza o
sentimento de cumplicidade entre leitores e narrador e instaura um lapso no
relato
de G.H., mas o abandono “físico” de sua rememoração sinaliza sobretudo o
distanciamento
entre o vivido e o relatado, ou entre G.H. e os possíveis leitores dessa
experiência:
“Para revivê-lo, solto a tua mão” (1998: 123). Esquecida de que havia soltado a
mão do interlocutor imaginário, a personagem-narradora evoca essa presença
solidária
num momento em que o interlocutor está na mesma expectativa suspensa de
G.H.: – Ah, mão que me segura, se eu não tivesse precisado tanto de mim para
formar
minha vida, eu já teria tido a vida! (1998: 143). O reatamento da cumplicidade
cindida entre GH e o interlocutor, que sucede ao gesto de abandono da
personagemnarradora,
se processa na desatenção da narradora, pois ela evoca a presença de uma
mão que fora dispensada há poucos momentos. O abandono de G.H. reverte-se,
portanto,
de um gesto de confiança da personagem-narradora concedido a quem a lê,
1 BertaWaldman explora este aspecto no artigo “Alegria difícil, mas alegria”, no qual destaca
o choque social entre GH e a empregada Janair: “Quando G.H. se afasta do conforto
de seu apartamento e vai para o quarto da empregada, a diferença é tão grande que ela se
sente agredida como diante de um estômago vazio. Nesses termos, a oposição proposta
no romance é clara. Enquanto G.H. mora num apartamento de cobertura, sua empregada,
que mora com ela para melhor servi-la, ocupa um espaço ínfimo do mesmo apartamento,
mas nos fundos – cubículo esturricado pelo sol. A relação patroa-empregada reproduz no
interior do apartamento a natureza hierárquica da sociedade brasileira e a inibição da
comunicação entre classes sociais distintas” (1992: 73-74).
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uma vez que reconhece ter estado ligada ao interlocutor solícito, e portanto, tê-
lo como
um aliado sempre presente. Não é o esquecimento que move o gesto abrupto de
G.H. ao soltar a mão do interlocutor, pois a personagem-narradora mostra-se
atenta
aos deslocamentos gestuais que ela promove no percurso do seu relato: – Dá-
me de
novo a tua mão, não sei ainda como me consolar da verdade (1998: 145). Em
seguida,
G.H. faz uso da imagem das mãos grossas, pois esta a aproxima dos leitores,
incluindo-
os na mesma trajetória de busca: “Existe uma coisa que é mais ampla, mais
surda,
mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa
corra
o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em “pureza”, nossas
mãos
que são grossas e cheias de palavras” ( 1998: 158). A procura de G.H., que se
estende
aos interlocutores virtuais, se relaciona a algo em certa medida transformado
pelo
trabalho das mãos. A mediação proporcionada pelas mãos desempenha o papel
de
uma metáfora que encobre o nosso acesso imediato às coisas do mundo, por
isso a
“pureza” compreende a adjetivação disfórica “grossas” atribuída a essas
“mãos”, segundo
o universo de Clarice atento às minúcias, sutilezas e invisibilidades dos seres e
das coisas. Mesmo com a consciência dessa “pureza” partilhada com o
interlocutor,
que reflete a inescapabilidade da função simbólica, ou seja, da linguagem, a
personagem-
narradora insiste nessa imagem suplicante e fracassada das mãos estendidas: –
Dá-me a tua mão, não me abandones, juro que também eu não queria: eu
também
vivia bem, eu era uma mulher de quem se poderia dizer “vida e amores de
G.H.”
(1998: 160).
O adensamento do discurso de G.H. chega ao limite de sua tentativa de
despojamento
na atitude da personagem de levar à boca a massa da barata. Se o ato não atinge
o despojamento dos santos almejado pela protagonista, pois é recusado a ela
viver com a matéria de uma barata, e se opõe ao projeto de “desumanização”
da personagem,
resta a ela o exercício da reversão já mencionado antes pela narradora, no
entanto sem a mesma convicção desse final de trajetória: “E agora não estou
tomando
tua mão para mim. Sou eu quem está te dando a mão” (1998: 169). Assim como
G.H.
desloca o sentido da pureza, qualificando-a pela sua oposição – a impureza –, a
narradora
também desfaz o recorrente pedido de auxílio que marcou todo o seu percurso
de sofrimento. G.H. passa a necessidade de amparo físico aos seus
interlocutores:
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Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para
que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no
começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás
a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. Como
eu, não terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do
Deus (A paixão segundo G.H., 1998: 170).
Outro personagem, embora ausente do contato estreito com G.H., é Janair, a
empregada da protagonista. As primeiras referências à mulher que havia
trabalhado
no apartamento de G.H. revelam a dificuldade da personagem-narradora na
rememoração
física de Janair, aspecto que se estende à falta de comunicação entre as duas
mulheres: “A lembrança da empregada ausente me coagia. Quis lembrar-me de
seu
rosto, e admirada não consegui” (1998: 40). Ao entrar no quarto de Janair, G.H.
surpreende-
se com um desenho na parede onde se julga retratada com falta de respeito
pela mulher que supostamente deveria se restringir às tarefas domésticas.
Sentindose
excluída da própria casa, a protagonista perde por alguns momentos qualquer
referência
dos traços físicos da empregada: “A lembrança de sua cara fugia-me, devia
ser um lapso temporário” (1998: 40). Primeiro, G.H. relembra o nome da
empregada:
“Mas seu nome – é claro, é claro, lembrei-me finalmente: Janair” (1998: 40). No
momento
em que contempla o desenho na parede, é invadida por um “mal-estar
divertido”,
pois tal atitude transgressora a narradora jamais ligaria à imagem servil que
fazia de sua empregada silenciosa. Por meio dessa surpresa, que rompe a idéia
préconcebida
de G.H. em relação à empregada, refaz-se a descrição de Janair. A primeira
impressão de G.H acerca de Janair apenas constata o aspecto servil e silencioso
da
empregada; a que nos chega desenvolvida, no entanto, já é aquela refeita sob o
olhar
crítico da empregada, que flagra o vazio de sua patroa e o devolve na parede
como
desenho bruto:
Foi quando inesperadamente consegui rememorar seu rosto, mas é
claro, como pudera esquecer? revi o rosto preto e quieto, revi a pele
inteiramente opaca que mais parecia um de seus modos de se calar,
as sobrancelhas extremamente bem desenhadas, revi os traços finos e
delicados que mal eram divisados no negror apagado da pele (A paixão
segundo G.H., 1998: 41).
G.H. vasculha na lembrança dos traços do rosto de Janair elementos que a
retirem
da condição de rebaixamento sócio-econômico na hierarquia que ela mesma
te176
cera. O tom negro e opaco da pele de Janair dificulta a inspeção da narradora,
pois
esconde as proporções do seu rosto. Apesar disso, G.H. resgata vestígios dessa
face
que a elevam à delicadeza das mulheres bonitas. A respeito do rosto de Janair, a
narradora
conclui, sem escamotear certo descontentamento: “Os traços – descobri sem
prazer – eram traços de rainha. E também a postura: o corpo erecto, delgado,
duro,
liso, quase sem carne, ausência de seios e de ancas” (1998: 41). O
desapontamento de
G.H. reside no fato de ela não ter percebido as nuances da invisibilidade de
Janair. A
personagem-narradora supreende-se ainda mais ao relembrar a roupa da
empregada
cujo uniforme de cor preta ou marrom-escuro sobrepunha-se sobre sua pele
também
escura: “arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que
aquela
mulher era uma invisível” (1998: 41). G.H. compara ironicamente a imagem de
Janair
à imobilidade – está aí uma resposta à perturbação causada pelo desenho da
empregada
– das formas de um baixo-relevo: “os traços que ficavam dentro de sua forma
eram tão apurados que mal existiam: ela era achatada como um baixo-relevo
preso a
uma tábua” (1998: 41). O emprego do termo baixo-relevo leva-nos às formas de
expressão
artística dos antigos egípcios1.
A tridimensionalidade das figuras egípcias parece apagar-se diante do frágil
revestimento de madeira contido na tábua que apóia a imagem “achatada” de
Janair.
Distanciada dos materiais egípcios de pedra, que proporcionam solidez e
permanência
ao desgaste do tempo, a forma do corpo de Janair tem como substrato a
madeira,
material suscetível ao desaparecimento, que se acomoda aos contornos quase
invisíveis
decorrentes da pele escura de Janair. Todavia, nessa mesma passagem
descritiva,
a empregada de G.H. também é comparada à aparência delicada de uma
rainha,
o que permite, a partir das referências claramente egípcias aos baixo-relevos,
alçá-la à
condição de rainha do Egito2. A representação de Janair oscila entre a altivez
presente
1 Dietrich Wildung (1998: 66) chama a atenção para a prática que consiste em combinar a
frente e o lado das figuras humanas nos relevos do Antigo Egito, o que causa um efeito
de profundidade espacial dessas figuras fixadas sobre paredes.
2 Christian Jacq faz referência a uma possível rainha de pele negra no Antigo Egito. Segundo
o historiador (2000: 67-72), Ahmés-Nefertari, após a morte do marido, desempenhou a
função do faraó, tendo sido regente do reino durante a infância de Amenhotep I (1551-
1524). Ela ganhou bastante popularidade e foi considerada a santa padroeira da necrópole
tebana porque se preocupara com a manutenção dos túmulos e, em conseqüência dis177
na alusão à rainha egípcia e na simplicidade de sua figura de baixo-relevo. É, no
entanto,
o enfoque direcionado para o sagrado que sobressai no texto clariciano. Da
mesma forma que Kristeva, Clarice, sobretudo pelo viés ficcional, insere
temáticas
que procuram uma espécie de ligação com as formas do sagrado. Embora o
título do
penoso trajeto de G.H. aluda ao sofrimento de Cristo, implicando nesse caso
conflitos
catequéticos que se distanciam do âmbito do sagrado, observamos, em
contrapartida,
nas referências esparsas como ilustra o caso do corpo de Janair, um retorno ao
sagrado.
Kristeva evoca a deusa Ísis, a rainha do Egito que ressuscita Osíris e prefigura
todas
as outras mulheres influentes no Egito1. A psicanalista sustenta no poder de
ressurreição
acionado por Ísis o que chama de retorno à união com o corpo feminino
(1974: 485). Essa é a função dos mistérios arcaicos, sejam eles mesopotâmicos,
gregos,
ou, como no caso da rainha Ísis, egípcios. No exemplo ficcional de Clarice, a
empregada
Janair, apagada aos olhos de uma representante da classe média alta, faz esse
so, criara uma confraria encarregada da construção e restauração de túmulos. Por esse
gesto, a rainha foi elevada à categoria de divindade protetora e criou-se um templo para
ela. Por muito tempo, esteve como certo que a cor da pele de Ahmés-Nefertari era negra,
mas a descoberta de sua múmia dissipou essa dúvida: a rainha tinha a pele branca. Para
Jacq, entretanto, permanece a dúvida acerca das várias representações de Ahmés-
Nefertari em madeira betumada, o que leva à configuração da pele da rainha. Retomando
o simbolismo egípcio, o historiador conjectura que a cor escura encarna a idéia de regeneração,
ou seja “do processo alquímico pelo qual a alma deve passar para reviver no Além”.
Ademais, a cor negra é “a cor do deus Anúbis de cabeça de chacal, encarregado de
conduzir os ressuscitados ao longo dos belos caminhos do Além, não evoca morte nem
aniquilamento, mas um meio fértil e rico em potencialidades criadoras, onde se organiza
uma nova forma de existência” (2000: 72). O historiador conclui que a representação do
corpo da rainha por meio da cor negra prefigura as “Virgens negras”, as quais são numerosas
nas catedrais e igrejas do Ocidente.
1 De acordo com Christian Jacq, depois de ter o marido Osíris assassinado por Seth, a rainha
Ísis parte em busca de todos os fragmentos do corpo de Osíris, que fora jogado ao mar e
tivera todo o corpo retalhado. Antes de se transformar num falcão fêmea, gesto que leva
à ressurreição de Osíris, a rainha convoca a ajuda de sua irmã Néftis. Juntas elas pronunciam
encantamentos numa câmara funerária escura perfumada com incenso para ressuscitar
o corpo de Osíris. Chama a atenção o detalhe do “corpo purificado” dessas mulheres:
elas se apresentam para o ritual “inteiramente depiladas, com perucas encaracoladas,
a boca purificada com natrão (carbonato de sódio)” (2000: 27). O historiador reconhece na
imagem de Ísis aquela que se torna “a protetora de numerosas confrarias iniciáticas, mais
ou menos hostis ao cristianismo, que a consideravam o símbolo da onisciência, detentora
do segredo da vida e da morte, e capaz de assegurar a salvação dos seus fiéis. Mas Ísis
não exigia apenas uma simples devoção; para conhecerem, seus adeptos deviam sujeitarse
a uma ascese, não se contentando com a crença, mas subindo na escala do conhecimento
e transpondo os diversos graus dos mistérios” (2000: 37).
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jogo de retorno do sagrado. Janair e a harmonia de seus traços, que remetem às
representações
femininas esculpidas em pedra no antigo Egito, promovem o retorno do
sagrado já esfacelado à época moderna de G.H.. Janair como uma variação de
Ísis, na
sugestiva imagem escurecida da rainha egípcia Ahmés-Nefertari, desperta na
protagonista
também o gosto pelo sagrado.
A imagem sagrada de Janair deve-se muito à observação que leva em
consideração
o espaço. No exemplo de Janair, há uma volta ao antigo Egito. No decorrer da
busca de G.H., o limitado espaço onde se focaliza a inspeção de G.H. e seus
escassos
movimentos em direção ao que denomina de a “coisa bruta” conferem ao
ambiente
da protagonista um estado animado: ”E havia também o guarda-roupa estreito:
era
de uma porta só, e da altura de uma pessoa, de minha altura” (1998: 42).
Quando entra
no quarto da empregada e localiza os desenhos na parede, G.H. se vale de uma
metáfora para fundamentar a sua fragilidade num território que lhe escapa da
compreensão.
Na exegese de A paixão segundo G.H., Benedito Nunes desdobra uma afirmação
de G.H. anterior à cena do quarto numa passagem em que a narradora revela
sempre ter conservado uma aspa à direita e outra à esquerda de si. De acordo
com o
crítico, o recurso retórico das aspas nesse caso implica “aquilo que não é da
própria
autoria, nem pessoal, nem original” (1997: 21). Podemos estender essa nota de
Benedito
Nunes ao trecho que enfatiza a desagregação da protagonista no ambiente
destinado
à empregada, pois as aspas retornam com a mesma função metafórica de haver
algo artificial na constituição da personagem: “O quarto era o oposto (...) era
uma violentação
das minhas aspas, das aspas que faziam de mim uma citação de mim. O
quarto era o retrato de um estômago vazio” (1998: 42). G.H., desde o início de
sua
narração, encontra-se num processo de busca pessoal, que é refletida na
necessidade
de alcançar uma existência diversa daquela que a perturba. A metáfora
escolhida pela
narradora para a expressão de sua angústia é a do estômago vazio. O quarto da
empregada, pela perspectiva de G.H., personifica-se, isto é, ganha uma vida que
traz
à tona um foco de miséria ambígua, uma vez que alude tanto à condição de
pobreza
da empregada quanto ao vazio existencial da patroa. Metáfora de um sol
também
metaforizado em corpo, o quarto de Janair inspira uma vivacidade excessiva
para o
estado melancólico de G.H.:
179
lá era o próprio lugar do sol, fixado e imóvel numa dureza de luz
como se nem de noite o quarto fechasse a pálpebra. Tudo ali eram
nervos seccionados que tivessem secado suas extremidades em arame.
Eu me preparara para limpar coisas sujas mas lidar com aquela
ausência me desnorteava (A paixão segundo G.H., 1998: 42-43).
Para sair desse ambiente de intensa luminosidade sem fugir do quarto de
Janair,
a personagem-narradora volta-se à observação do guarda-roupa. Esse objeto
participa das modificações que a proprietária do apartamento faria para torná-
lo
homogêneo, isto é, sem lhe causar a “violentação” de um cômodo transformado
em
minarete. O quarto desperta na protagonista um incômodo físico, pois ele a
intimida
na medida em que destoa do conjunto de sua cobertura. Como medida para
atenuar
esse sentimento de desconforto físico, G.H. dá início a uma arrumação que
consiste
não na limpeza, pois para sua surpresa o quarto não apresenta sinais de sujeira,
mas
para reorganizá-lo, conforme a sua vontade. A primeira medida seria a de
afastar os
móveis para o corredor e depois jogar baldes de água no intuito de umedecer
aquele
ambiente por ela considerado árido. O guarda-roupa também entraria nesse
gesto de
purificação: “jogaria água no guarda-roupa para engorgitá-lo num afogamento
até à
boca – e enfim, enfim veria a madeira começar a apodrecer” (1998: 43). Nessa
citação,
a narradora mantém a predicação que personifica o inanimado. Este, que, já
fora
comparado à altura da própria G.H., metaforiza o processo de
autoconhecimento da
personagem. Como veremos mais adiante, na descrição do corpo da
protagonista, há
um despojamento essencial do revestimento do corpo para o êxito de sua
proposta.
Trata-se de uma perda corpórea equivalente àquela que a narradora constrói
hipoteticamente
na cena em que põe fim à estrutura do guarda-roupa. Completamente
perdida na arrumação do quarto de Janair, ela encontra no objeto guarda-roupa
uma
âncora para o extravasamento de seu vazio interior. Novamente, é por meio do
caminho
material que G.H. personifica a sua formação humana, no qual se verifica a
copresença do corpo e da alma: “Animei-me com uma idéia: aquele guarda-
roupa,
depois de bem alimentado de água, de bem enfartado nas suas fibras, eu o
enceraria
para dar-lhe algum brilho, e também por dentro passaria cera pois o interior
devia
estar ainda mais esturrado” (1998: 45). Ao abrir com dificuldade a porta dessa
espécie
de organismo que, para os leitores, já é um personagem muito vivo, obtemos a
180
confirmação, desenhada ao longo das referências anteriores, de que se trata
realmente
de um objeto animado: “Abri um pouco a porta estreita do guarda-roupa, e o
escuro
de dentro escapou-se como um bafo” (1998: 46). A catacrese, recurso explorado
em
Perto do coração selvagem no que toca ao corpo, retorna na caracterização da cama
de
Janair, promovendo suspense no relato de G.H.: “Tentei abri-lo um pouco mais,
porém
a porta ficava impedida pelo pé da cama, onde esbarrava” (1998: 46). De uma
brecha, G.H. acomoda o rosto para dentro do guarda-roupa. Sem nada ver pela
escuridão
do móvel quase fechado, a narradora concede a propriedade da visão ao
guarda-
roupa: “como o escuro de dentro me espiasse, ficamos um instante nos
espiando
sem nos vermos” (1998: 46). Ainda sem nada ver do interior do guarda-roupa,
G.H.
percebe um cheiro quente e seco como, segundo ela, o de uma galinha viva, que
é exalado
de dentro do móvel. Ao empurrar um pouco mais a porta do guarda-roupa, a
protagonista entra efetivamente em contato com algo vivo. Sem desfazer o
caráter
humano que a personagem-narradora tributa à fixidez própria de um guarda-
roupa,
ela joga em cena um outro personagem essencial para o andamento de sua
busca.
Chegamos, portanto, ao corpo da barata, mediado pelo corpo do guarda-roupa.
O primeiro contato entre GH e a barata acontece num dos revestimentos
escurecidos
do guarda-roupa: “De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura,
bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa“
(1998:
47). Apesar da escuridão do ambiente de abrigo do inseto, a narradora
perscruta-lhe
os traços: “Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados
da
boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se
lentos
e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam” (1998: 55). A descrição da barata
levanos
rapidamente a associá-la à imagem tecida pela narradora sobre Janair. A
empregada
de G.H. dispõe também de traços refinados e de uma pele negra que se mistura
ao uniforme de tom preto ou marrom-escuro. Esse jogo de sobreposições, de
nuanças
escuras, contribuíra para o apagamento dessa figura já esmaecida aos olhos de
G.H.,
uma mulher envolvida em questões que se distanciam do mundo de Janair.
Para justificar
esse descompasso entre as duas mulheres, basta uma comparação entre os
espaços
que habitam. Da mesma forma que a empregada, a barata é inicialmente
descrita
como um ser sem contornos, uma vez que a sua escuridão impede a
investiga181
ção visual típica dos personagens claricianos. Em seguida, ultrapassado esse
primeiro
obstáculo, G.H. flagra alguns aspectos da cara da barata. A narradora detém-se
sobretudo nos tons da boca e dos olhos e aos movimentos das antenas da
barata. Assim
como Janair1, a barata é analisada em seus pormenores pela narradora, pois,
além
do matiz marrom envolvendo o contorno da boca, G.H. percebe uma coloração
avermelhada no corpo do animal que se deve à movimentação das pernas da
barata,
metáfora que a personifica: “E era arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios
seriam
talvez as múltiplas pernas. Os fios de antena estavam agora quietos, fiapos
secos e
empoeirados” (1998: 56). A personagem-narradora fita o corpo da barata e
percebe
finas camadas sobrepostas que compõem a estrutura que chama de “compacta”.
O
olhar de G.H. decompõe a solidez dessa estrutura comparando-a a cascas de
uma cebola.
Descobrimos em seguida que a solidez referida por G.H. nessa análise
específica
não tem a ver com o peso da barata, mas com a capacidade de instigar a
sensação
de eternidade:
E eis que eu descobria que, apesar de compacta, ela é formada de
cascas e cascas pardas, finas como as de uma cebola, como se cada
uma pudesse ser levantada pela unha e no entanto sempre aparecer
mais uma casca, e mais uma. Talvez as cascas fossem as asas, mas
então ela devia ser feita de camadas e camadas finas de asas comprimidas
até formar aquele corpo compacto (A paixão segundo G.H.,
1998: 56).
A referência à antigüidade sobre a constituição do corpo da barata entrelaça-se
à de Janair, pois as duas personagens representam para a narradora uma
espécie de
contato violento com o sagrado. A eternidade que a narradora vislumbra nas
camadas
escuras que formam uma espécie de pele sempre presente desenvolve-se a
partir
de uma afirmação anterior que localiza temporalmente as baratas: “Há
trezentos e
cinqüenta milhões de anos elas se repetiam sem se transformarem. Quando o
mundo
era quase nu elas já o cobriam vagarosas” (1998: 48). A passagem fortalece a
noção de
eternidade simbolizada em seguida pela carapaça que forma o corpo das
baratas,
1 Nacitação a seguir, G.H. explicita a relação entre a barata e Janair: “A barata não tem nariz.
Olhei-a, com aquela sua boca e seus olhos: parecia uma mulata à morte. Mas os olhos
eram radiosos e negros. Olhos de noiva. Cada olho em si mesmo parecia uma barata” (A
paixão segundo G.H., 1998: 56).
182
pois a data remota evocada pela narradora acompanha os estudos da
localização das
baratas, realçando o arcaico que a imagem desses animais sugere. De uma
eternidade
que escapa ao logos, as baratas inserem-se, assim como a possível alusão à
rainha egípcia
que tecemos a propósito da personagem Janair, num universo mítico: “Era
uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era
antiga
como uma lenda” (1998: 55). Em outro momento da narrativa, G.H. compara a
barata
ao escaravelho: “Olhei: a barata era um escaravelho. Ela toda era apenas a sua
própria
máscara. Através da profunda ausência de riso da barata, eu percebia a sua
ferocidade
de guerreiro. Ela era mansa mas sua função era feroz”1 (1998: 116). A violência
presente no sagrado retorna numa interessante imagem da barata no relato
tenso
de G.H., momento em que a narradora, assustada com os deslocamentos do
corpo
ágil da barata, fecha a porta do guarda-roupa. A sucessão de quinze parágrafos
pontua
esse gesto abrupto da protagonista. Pensando ter matado a barata, a narradora
contempla o corpo do animal ainda vivo entre a fresta do guarda-roupa
fechado: “E
vi a metade do corpo da barata para fora da porta. Projetada para a frente,
erecta no
ar, uma cariátide. Mas uma cariátide viva” (1998: 54). As cariátides são estátuas
de
mulheres gregas que substituem as colunas na sustentação de pórticos2.
Chegamos
novamente, agora pela via dos mistérios gregos, à consolidação da necessidade
do
sagrado no texto de A paixão segundo G.H. A imagem da barata como cariátide
traz à
tona a força do bicho, que, num momento de quase morte, se fortalece como
uma estátua
que serve de sustentáculo para uma estrutura também maior do que ela. A
barata
vence o impacto da porta do guarda-roupa sob pena de significativa perda de
sua estrutura corpórea. O movimento que a narradora impõe à fixidez
intrínseca das
1 Conforme a nota de Benedito Nunes no trabalho pontual sobre A paixão segundo G.H.,
verificamos
o aspecto sagrado que envolve essa comparação: “O escaravelho tem atributos
místicos e era símbolo da imortalidade entre os egípcios, em harmonia com outras imagens
originadas da egiptologia, no romance. Identificam-se barata e escaravelho” (1997:
75).
2 Conforme Lawrence (1996: 120-121), há um exemplo de formas de cariátides na sustentação
do templo jônico da Acrópole, Erectêion, iniciado em 421 e terminado em 404. Localiza-se
de frente para o lado norte do Partenon. A intenção da construção desse templo era religiosa.
De acordo com o historiador, o termo adequado é o de Virgens e não a expressão
popular cariátides. Ele as descreve como “mulheres vestidas com pesados drapeados, cujas
dobras parecem as nervuras vistas de frente nas colunas do Partenon” (1996: 122).
183
mulheres-estátuas reproduz o esforço da barata na luta pela sua permanência e,
por
conseguinte, pela sua eternidade. A barata resiste heroicamente à pressão sobre
seu
corpo. O cinetismo das estátuas de pedra que metaforizam a luta da barata pela
continuidade
do corpo – esse que fora outrora descrito como uma sucessão de infinitas
camadas – constrói uma cena na qual é retomado aqueles sentimentos
ambíguos,
amplamente explorados em Perto do coração selvagem, quais sejam, o riso e a
piedade.
Subjaz à intensa movimentação desses seres arcaicos, conseqüentemente
sagrados, os
quais são recobertos de outra camada de sacralidade na medida em que são
comparados
às virgens gregas, uma brecha para o riso, seguido de culpa por ter rido. G.H.,
ao construir essa metáfora, toca no sagrado pela via da transgressão, pois a
personagem-
narradora desloca um símbolo grego, cuja finalidade é a de suporte e o amolece
para dar vigor à barata. Essa também é subvertida no centro da sua eternidade,
uma
vez que perde a adjetivação “compacta” que é essencial para a constituição de
permanência
desse animal.
Faremos de agora em diante uma análise voltada ao corpo da protagonista, já
que é ela quem articula esses personagens secundários e fundamentais para
uma
busca de intenso sofrimento físico. Assim como a barata, G.H. perde, conforme
ela
expõe no início de seu relato, algo que lhe era essencial e que se metaforiza na
imagem
de uma terceira perna. Esta também trabalha no sentido metafórico e pode ser
interpretada como o uso das máscaras sociais que encobrem convenientemente
as
hipocrisias diárias. A perda dessa terceira perna ressoa na personagem pelo
avesso,
uma vez que representa um falso retorno: “E voltei a ser uma pessoa que nunca
fui.
Voltei a ter o que nunca tive: apenas duas pernas” (1998: 12). Na verdade, a
perda da
personagem representa um ganho, que se expressa pela economia do corpo, ou
pelo
corpo sem suportes.
Na crônica de 2 de março de 1968, intitulada “Persona”, Clarice retoma a
origem
dessa palavra que se relaciona ao teatro grego, na qual os atores vestiam uma
máscara no rosto de acordo com o papel a ser representado. A cronista revela
sentirse
agradada pela idéia de os atores fixarem no palco uma expressão que impede
uma
das importantes qualidades do ator, qual seja, a exploração das “mutações
sensíveis
de seu rosto” (1999: 80). A máscara, segundo a escritora, protege o rosto na
medida
184
em que ele não fica exposto à sensibilidade. A ausência da máscara é perigosa,
pois:
“é que esse rosto que estava nu poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em súbita
máscara
involuntária e terrível” (1999: 80). Clarice admite o uso de uma máscara e
também
reconhece que a segurança desencadeada por esse artifício pode, a qualquer
momento, desabar. Aquele que passa por essa perda se torna, para a escritora,
uma
pessoa1. Em G.H., acontece uma perda curiosa dessa máscara. Essa terceira
perna,
que pode ser uma metáfora para o uso da máscara, G.H. reconhece ter perdido,
sem,
no entanto, ter consciência de tê-la possuído alguma vez. Isso só se manifesta no
momento em que tal máscara, invisível para ela, se esfacela abruptamente. Na
crônica,
a escritora descreve o repentino que envolve essa perda: “de repente a máscara
de
guerra da vida cresta-se toda no rosto como lama seca, e os pedaços irregulares
caem
com um ruído oco no chão. Eis o rosto agora nu, maduro, sensível quando já
não era
mais para ser” (1999: 80-81).
O esfacelamento da máscara de G.H. dá-se quando, dentro do quarto de Janair,
observa o desenho na parede que lhe devolve uma imagem de si mesma que até
então lhe escapava à consciência: “Os pés simplificados não chegavam a tocar
na linha
do chão, as cabeças pequenas não tocavam a linha do teto – e isso, aliado à
rigidez
estupidificada das linhas, deixava as três figuras soltas como três aparições de
múmias” (1998: 39). A insinuação de fluidez, típica da formação da personagem
Joana,
de Perto do coração selvagem, está aqui na suspensão do desenho dos corpos, pois
eles flutuam sem tocar no solo ou alcançar o teto. No entanto, essa fluidez se
dissipa
no momento em que G.H. se vê na imagem de um corpo embalsamado e
petrificado
pela técnica de conservação. Assim, a fluidez de Joana, em consonância com o
sentimento
de liberdade, reverte-se, com G.H., em imobilidade pela representação de um
corpo sem vida (também pode ser interpretado como um corpo protegido para
uma
1 Na mesma crônica, Clarice explica o significado da palavra pessoa para ela, palavra que se
assemelha foneticamente à persona: ”Vou falar da palavra pessoa, que persona lembra. Acho
que aprendi o que vou contar com meu pai. Quando elogiavam demais alguém, ele
resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma pessoa. Até hoje digo, como se fosse o máximo que
se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de pertencer
à humanidade: ele, ele é um homem. Obrigada por ter desde cedo me ensinado a
distinguir entre os que realmente nascem, vivem, morrem, daqueles que, como gente, não
são pessoas (Descoberta do Mundo, 1999: 80).
185
vida eterna). Além disso, a perda da máscara da protagonista deve-se ao
sentimento
de solidão flagrado pela empregada ao retratar a patroa: “Nenhuma figura
tinha ligação
com a outra, e as três não formavam um grupo: cada figura olhava para a
frente,
como se nunca tivesse olhado para o lado, como se nunca tivesse visto a outra e
não soubesse que ao lado existia alguém” (1998: 39). A solidão da protagonista
mistura-
se a sua conduta egoísta, confirmada na representação inicialmente apagada
que
ela faz da empregada Janair. Essa é para ela uma figura praticamente apagada,
não
tanto pela cor da pele, que serve como símbolo para adensar a diferença
sócioeconômica
entre as duas mulheres, mas sobretudo porque a personagem-narradora
desautoriza a sua empregada qualquer indício de pensamento independente,
crítico.
Como num jogo de espelhos, Janair devolve habilmente à patroa uma
representação
análoga à que fora tacitamente submetida, ou seja, a empregada desenha na
parede
uma mulher cujos traços não são divisados:
E fatalmente, assim como ela era, assim deveria ter me visto? abstraindo
daquele meu corpo desenhado na parede tudo o que não era essencial,
e também de mim só vendo o contorno. No entanto, curiosamente,
a figura na parede lembrava-me alguém, que era eu mesma
(A paixão segundo G.H., 1998: 41).
O desabamento do mundo de G.H. ou a sua transformação em pessoa necessita
desse desenho no qual as mãos dos retratados estão espalmadas e podemos
assim
vê-la ridicularizada pela mesma perspectiva de baixo-relevo a que outrora ela
havia
rebaixado o corpo de Janair. G.H. toma consciência de sua existência solitária e
apática
através do desenho na parede, flagrante da unidimensionalidade que ela
inspira
em Janair. É difícil para nós, leitores, enquadrá-la nessa situação de
rebaixamento característica
das personagens planas, visto que, conforme destacamos na descrição dos
outros personagens, somos ficcionalizados e nos acostumamos com o
sentimento de
piedade despertado pelo sofrimento de G.H.
A literatura brasileira dispõe de dois exemplos notáveis de narradores de
primeira
pessoa. Não nos esqueçamos de que G.H. participa de uma tradição que sucede
o ardiloso Bentinho, de Dom Casmurro1. Bentinho foi suficientemente sedutor
para
1 Conforme Roberto Schwarz, em Duas meninas, Bentinho representa um dos tipos mais es 186