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PSICOLOGIA DA GRAVIDEZ E DA MATERNIDADE/PATERNIDADE


© Celeste Duque1 – Psicóloga Clínica, Executive Coach, Formadora (celeste.duque@gmail.com)

INTRODUÇÃO
Vive-se numa época em que se assiste a uma nova contextualização
sociocultural da reprodução, do nascimento, da relação precoce e dos conceitos
de parentalidade (maternidade e paternidade) o que, obviamente, obriga a uma
nova forma de olhar e abordar estas realidades.
Ao longo do semestre ir-se-ão apresentar as questões antropológicas e sociológicas contemporâneas que
alicerçam as propostas da Psicologia da Gravidez e da Maternidade/Paternidade, abordadas no âmbito da
disciplina de Psicologia V, do Curso de Licenciatura em Enfermagem, da ESSaF.
O contexto é o da Saúde e precisamente por isso a perspectiva deve ser multidisciplinar. À semelhança do
que sucede na prática também aqui se irá aproveitar a experiência clínica de diversos profissionais de
saúde, com especial incidência em psicólogos e enfermeiros, para analisar, entre outras áreas problemáticas,
nomeadamente aquelas que reenviam para dificuldades ao nível da reprodução, das múltiplas patologias
que podem decorrer do período gravídico, ou sequelas físicas e/ou psicológicas da mãe ou criança, no
período pós-parto.

PERÍODO GRAVÍDICO
O período gravídico é um período de profundas mudanças tanto em termos físicos e orgânicos, como
termos psicológicos. Vivido como uma crise, é normalmente, vivido como uma sequência contínuas
readaptações, por parte de quem o vive (mais particularmente a mulher, mas também o pai do seu filho,
podendo ser extensivo aos restantes membros da família: filhos, pais, sogros, etc.).
A par desta necessidade entrecruzam-se, inúmeras vezes, outras situações bem mais graves como sejam o
risco de aborto espontâneo, a presença de comportamentos de risco tais como: dependência alcoólica
(feminina/masculina), dependência de psicofármacos, toxicodependência, tabagismo; doenças sexualmente
transmissíveis (HIV/SIDA), Hepatite B, doenças crónicas (mais ou menos incapacitantes) que obrigam a
uma profunda reformulação dos princípios e estilos de vida, assim como à necessidade de procura de uma
maior qualidade de vida.

OBJETO DA PSICOLOGIA DA GRAVIDEZ E DA MATERNIDADE


O objeto da Psicologia da Gravidez e da Maternidade é obviamente a Mulher – a grávida saudável mas,
porque esta se encontra numa situação de crise existencial, vive num permanente equilíbrio/desequilíbrio,
logo em “distress”. Para além da gravidez que se pode considerar “normal” é igualmente objeto de estudo,
desta vertente da Psicologia, a investigação e intervenção, às mulheres, e às grávidas que apresentam
patologias correlacionadas ou simultâneas ao processo gravídico. Embora de forma menos explícita, são
igualmente objeto de estudo, dimensões que dizem respeito à saúde da mulher e que podem colocar em
risco ou mesmo impedir, seu projeto de vir a ser mãe. Questões como infertilidade, gravidez em idades
muito jovens, ou muito tardias, diversas fisiopatologias e psicopatologias, que podem ser consideradas
como determinantes na viabilidade da futura gravidez. É igualmente importante compreender como se
processam as primeiras relações do bebé com a sua mãe, como este comunica com ela (através do seu
reportório básico), referindo-se a importância da vinculação/relação precoce mãe/bebé, no desenvolvimento
global do sujeito.

1
Texto de escrito expressamente no âmbito da disciplina de Psicologia V, do 4º Curso de Licenciatura em Enfermagem (CLE), da
Escola Superior de Saúde de Faro (ESSaF), da Universidade do Algarve, em Fevereiro de 2004.

Escrito seguindo o novo acordo ortográfico.

© Celeste Duque, 2004 Última revisão: 2011-05-02 1


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REPRESENTAÇÕES SOBRE GRAVIDEZ E MATERNIDADE


Os países mais desenvolvidos têm vindo a demonstrar uma crescente preocupação em controlar a natalidade
e, deste modo, inverter a tendência de um elevado crescimento demográfico. Assim, os níveis de gravidez
são cada vez menores, menos filhos por casal, e a gravidez é cada vez mais planeada ou adiada em função
de diversos factores ou variáveis (e.g., investimento na formação e realização pessoal, na carreira, etc.). O
que leva ao surgimento de um outro fenómeno deveras interessante, o qual se relaciona com as
representações que, atualmente, se fazem sobre Gravidez e Maternidade, precisamente por isso:
- é atribuída à mais banal das gravidezes, toda uma nova significação
• em primeiro lugar, para a mulher que engravida,
• mas também, no que diz respeito à concepção de Programas e Sistemas de Saúde, em geral,
particularmente interessados na Prevenção e Promoção da saúde (Ribeiro, 1994).
Facilmente se percebe que este é um terreno de confluência de múltiplas especialidades médicas, de
variadas perspectivas psicológicas, nomeadamente: do desenvolvimento, sistémica, psicodinâmica,
cognitivo-comportamental, citando apenas algumas das que mais diretamente se relacionam com a
realidade da Gravidez e da Maternidade. Não é pois, muito difícil perceber a explicação de como se
formam impressões erradas (ou falsas representações) e ideias erróneas do objeto e campo de estudo da
Psicologia e da sua intervenção. No confronto com a prática, o psicólogo que atua na área de Saúde, vê-se
obrigado a uma permanente atualização e aprofundamentos dos seus fundamentos teóricos bem como ao
nível da própria prática. De facto, uma realidade considerada normal há dez anos atrás pode atualmente
mostrar-se desadequada ou mesmo obsoleta face às novas premissas. No entanto, este fenómeno não
confere menos precisão ou cientificidade a uma área de charneira entre as vertentes da Saúde, strictus
sensus, e a Psicologia, nomeadamente a Psicologia Clínica, Psicologia da Saúde, Psicologia da Gravidez e
Maternidade ou mesmo Psicologia do Desenvolvimento, bem pelo contrário, uma ciência que é capaz de
reconhecer que os seus constructos teóricos deixaram de ser eficazes na explicação dos fenómenos
estudados é mesmo considerada por Kuhn (1970) como uma ciência revolucionária. Fundamentando-se
esta constatação no facto de ser possível que se coloquem de parte teorias obsoletas e em seu lugar sejam
inseridos novos paradigmas consensuais, mais fiéis e atuais, na explicação dos processos/fenómenos
estudados. Este é o percurso percorrido pela ciência na sua evolução desde os seus primórdios.
A ciência, à semelhança do ser humano (tantas vezes o objeto de estudo), é feita de ensaios, e re-ensaios,
formulações e reformulações; adaptações e readaptações... tal qual sucede ao nível do desenvolvimento do
Homem que ao longo dos tempos (desde que nasce até que morre) vai ensaiando novos esquemas de
realidade, numa permanente e incessante busca de níveis cada vez mais evoluídos de funcionamento (de
adaptação ao meio). Não é pois de estranhar o facto de o psicólogo, aliás, à semelhança do que sucede com
os técnicos de saúde em geral, e os enfermeiros, em particular, serem “obrigados a uma vida de estudo e de
permanente atualização”, para não se tornarem eles próprios obsoletos!

PROJETO DE MATERNIDADE
É de extrema importância distinguir os conceitos de “gravidez” e de “maternidade”, os quais se encontram
profundamente interligados, mas que, no entanto, dizem respeito a realidades, subjetividades e processos
bem diferentes. Assim, a gravidez refere-se ao período de alguns meses que medeia entre a concepção e o
parto e que, como já foi exaustivamente demonstrado na literatura, implica, do ponto de vista psicológico,
ajustamentos e recurso a mecanismos adaptativos à própria situação (Justo, 1990).
Pode-se desde já concluir que se isto é verdade para a gravidez é-o igualmente para muitas outras situações
de vida que, vivenciadas como crise ou como fase, obrigam à atualização de sentimentos passados e
desencadeiam respostas adaptativas, mais ou menos adequadas, mas sempre coerentes com as capacidades
individuais do sujeito (Leal, 1997).
Nos anos sessenta, assistiu-se ao nascimento de uma perspectiva totalmente inovadora relativamente à
concepção de personalidade, segundo a qual o desenvolvimento do sujeito é um processo contínuo que se
arrasta ao longo de toda a vida – life span (Erikson, 1959). Assim e se, como Maria Teresa Maldonado
(1981) se considerar que no ciclo de vida da mulher existem três grandes períodos passíveis de serem
críticos, por serem períodos de transição, que se constituem como verdadeiras fases de desenvolvimento a
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saber: a adolescência, a gravidez e a menopausa (ou climatério), então, também deveremos ter em atenção
que a gravidez é, indiscutivelmente, uma fase da vida mulher que se reveste de uma valoração muito
particular. Senão veja-se, a adolescência e o climatério são vividos no singular (logo, apenas importantes
para quem os vive), o mesmo não se pode afirmar relativamente à gravidez. Esta, deve ser encarada como
uma fase de reprodução do indivíduo singular (a mulher), mas também da própria espécie. A sociedade é,
aliás, quem detém a última palavra, isto é, é ela quem vai tecer toda uma variedade de representações, de
níveis de discursivos e normativos. De facto é a sociedade quem cria as regras e normas pelas quais os
indivíduos que a integram se devem reger. As quais visam a contenção/inibição dos impulsos individuais, a
manutenção das boas maneiras e dos bons-costumes. Em suma, a sociedade cultiva nos indivíduos o mito
da “aceitação” e “passividade”.
Relativamente a estes conceitos podemos ainda afirmar que somos educados a aceitar incondicionalmente
tudo o que as hierarquias superiores ditam e a não questionar as regras. Se o indivíduo se rebela contra
aquilo que considera injusto ele não vai ser percepcionado como um revolucionário ou como um inovador,
vai ser percepcionado como um rebelde, delinquente ou considerado como um indivíduo bizarro,
“anormal”, etc. À sua volta irão tecer-se toda uma série de considerandos que o irão ostracizar. Facilmente
se percebe porque é que o indivíduo deve, desde muito pequeno, elaborar o seu processo de socialização
para ser aceite pelo grupo do qual faz parte, sob pena de ser estigmatizado, banido, votado à solidão e,
assim, à morte social (cuja consequência última é, não raras vezes, a morte psicológica). Na Gravidez estão
em jogo diversas realidades, nomeadamente:
- A criança que irá nascer;
- A mulher grávida;
- Um pai, mas também alguém com uma função material fundamental para a boa (sobre)vivência de todo o
processo e bem-estar; e, por fim,
- A sociedade que necessita de assegurar a sua própria continuidade.
Assim, gravidez, enquanto realidade amplamente estudada e questionada, em que se procuram as angústias
e ansiedades, fantasias e atitudes, ajustamentos e vivências, apenas se poderá considerar que alcança o seu
pleno sentido, quando analisada à luz de um outro conceito, que cujo epicentro não é tanto ao nível das
transformações que se verificam ao nível biológico (mudanças metabólicas e hormonais características das
diferentes fases do desenvolvimento), mas muito mais ao nível das dimensões eminentemente sociais e
culturais – a Maternidade.
Aqui, a tónica é colocada, não na situação gravídica (a importância que esta tem no equilíbrio e devir da
identidade feminina) mas na dimensão existencial da própria continuidade do indivíduo, das sociedades ou
da espécie. Logo o destaque vai para aquele ser que antes de ser já era, até porque este é a esperança que
perpetua a espécie. A gravidez é, deste modo, o pano de fundo presente na construção do conceito diádico:
mãe/filho. A Maternidade assume-se como um Projeto de vida a longo prazo, ou mesmo vitalício (que
transcende a mera gravidez) e que envolve a prestação de cuidados e a dádiva e troca de afectos que
assegurem um desenvolvimento sadio e harmonioso à criança (Leal, 1991).

DEFINIÇÃO DE PSICOLOGIA DA GRAVIDEZ E DA MATERNIDADE


A Psicologia da Gravidez é, então, o trabalho realizado pela psicologia em relação estreita com o período
da Gravidez. A Psicologia da Maternidade é, segundo Isabel Leal (1992):
“...o conjunto de saberes e conhecimentos psicológicos que tomam como objeto a Maternidade,
sincronicamente no sentido de determinar estruturalmente um conjunto de categorias que descrevam como
este conceito opera num determinado tempo e, diacronicamente no sentido de explicar as mudanças na forma
estrutural do objeto.
Epistemologicamente, a delimitação deste território de intervenção e de pesquisa implica o assumir de uma
óptica transdisciplinar, ou seja, o assumir de um discurso a partir do interior de uma disciplina – a psicologia
– para, como diria Agra (1986) decifrar as mensagens que aí circulam e as pôr em relação com outras que
circulam em outros domínios disciplinares. Implica, do nosso ponto de vista, a partir das interfaces dos
antigos limites disciplinares, assumir que este território é ele próprio produtor de um discurso normativo,
legislativo e regulador daquilo que produz, e que, isso mesmo se deve espelhar no valor heurístico das suas
propostas” (pp. 231-232)

Maldonado (1981) escreve, a propósito do conceito de maternidade que:


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“A maternidade é o um momento existencial extremamente importante no ciclo de vital feminino que pode dar
à mulher a oportunidade de atingir novos níveis de integração e desenvolvimento da personalidade.
Sobretudo, é durante a gravidez que se iniciam a formação do vínculo materno-filial e a reestruturação da
rede de intercomunicação da família – ponto de partida de um novo equilíbrio dinâmico na unidade familiar.
É, indubitavelmente, um momento que merece a convergência dos esforços preventivos de obstetras e
psicólogos que resulte num atendimento mais global e satisfatório para a saúde física e emocional da mulher e
do seu filho.” (p. 9)

O maior desafio que se coloca relativamente ao conjunto dos saberes e conhecimentos psicológicos sobre a
Maternidade é que estes se situam maioritariamente ao nível do paradigma psicanalítico, colocando os
conceitos feminino e materno de tal forma interligados que é quase impossível pensar um sem o outro.
Podemos igualmente afirmar que o evoluir social e antropológico da maternidade ultrapassou as teorias
psicológicas que lhe dizem respeito e, as únicas, que pretendem integrar a gravidez e a maternidade como
momento do desenvolvimento psicossexual da mulher inserem-se no paradigma psicanalítico, onde, o
desejo de gravidez e de maternidade são sinónimos e partes integrantes do processo de aquisição da
feminilidade.

TEORIAS DO FEMININO E DO MATERNO


Relativamente ao estudo dos conceitos de feminino e materno, pode-se de uma forma muito breve e fácil de
compreender, assim o conceito de feminino pode definir-se em termos de género sexual – ser mulher –, e a
identidade do género, segundo Stoller (1993), encerra um comportamento psicologicamente motivado. O
que equivale a dizer que, embora na maior parte dos casos o sexo e o género sejam coincidentes, existem
muitos outros casos em que assim não é.
Stoller, em 1993, considera que: “masculinidade e feminilidade é uma convicção – mais precisamente uma
densa massa de convicções, uma soma algébrica de se, mas e – não um facto incontroverso. Além de
fundamento biológico, a pessoa obtém estas convicções a partir das atitudes dos pais, especialmente na
infância, sendo estas atitudes mais ou menos semelhantes àquelas mantidas pela sociedade como um todo,
filtradas pelas personalidades idiossincráticas dos pais”.
Ao nível do paradigma psicanalítico o par antitético masculino/feminino, não se apresenta imediatamente à
criança, ele é precedido por outros patamares conceptuais – o par “fálico/castrado” e o par “ativo/passivo”.
Na prática, instala-se a confusão quando, como Freud (1931), se diz que: “mais tarde ou mais cedo a
menina descobre a sua inferioridade orgânica”. Stoller (1993), interpretando a teoria de Freud
relativamente ao desenvolvimento psicossexual da criança vai afirmar que: “Para Freud, a psicologia das
mulheres começa com um sentimento de castração... A feminilidade, constitui simplesmente uma defesa e
mostra as suas origens provisórias em sua natureza: passividade, masoquismo, inveja de pénis, renúncia,
um super-Ego frágil, compromisso com os imperativos biológicos como a reprodução, mais que com as
opções sociais, como a amizade, etc.”. Dito de outro modo tudo se complica quando uma teoria que se
afirma explicativa do processo de desenvolvimento psicossexual, de ambos os sexos, toma como referente
um dos sexos – o masculino.
Não nos podemos esquecer que muitas das teorias começam por ser muito revolucionárias para a época.
Lembremo-nos da reação bombástica que as ideias de Sigmund Freud tiveram na comunidade psicanalítica
da época e que o obrigaram a um profundo isolamento dos outros grandes teóricos, por um largo período de
tempo, e tudo isso porque o que ele afirmava se situava para além da capacidade de compreensão das
mentalidades próprias da época Vitoriana. Para uma melhor compreensão destes conceitos, mas também da
teoria, esta deve ser contextualizada à época em que surgiu – época Vitoriana, com tudo o que isso acarreta
de desconhecimento de e sobre as mulheres, a rigidez na educação que recebiam e que perpetuavam ao
repetir os mesmos valores sobre a geração seguinte, os limites profissionais e educativos, etc.. De referir
ainda que apesar de todas as oposições e dissidências, nomeadamente de alguns seguidores das ideias de
Freud por considerarem que este dava demasiada importância à “sexualidade infantil”, a verdade é que, o
conceito de feminino, em Freud, ultrapassa o próprio Freud e estende-se por todos os seus continuadores,
que de algum modo continuam a conceder um papel central à sexualidade na etiologia das neuroses.
Apesar de toda a evolução, posterior a Freud, os conceitos de feminino e materno parecem indivisíveis,
como se o feminino se cumprisse no materno e o desejo de gravidez e maternidade fossem coincidentes e
inerentes à natureza feminina. Como interpretar, então, o seguinte fenómeno: mulheres que apesar de
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fisiologicamente poderem gerar um filho, não só não o fazem, como assumem não ter qualquer desejo ou
vocação para tal? A função materna começou a ganhar o seu estatuto de culto a partir do séc. XVIII, e
cresce no séc. XIX, propagando-se até aos nossos dias. Questões como a educação, ligação precoce à
criança, amor materno foram questões não relevantes ou mesmo ausentes em muitas culturas, durante
longos séculos da história (Ariés, 1975).
Com um crescente interesse na obstetrícia, como especialidade médica, em 1806, a mulher passa a ser um
objeto de estudo em que o seu papel social é regulado a partir da sua própria anatomia, e o seu corpo
destina-se a ser o seu objeto de realização – ser mãe (Maldonado, 1976). As teorias que se construíram no
séc. XIX refletem noções impregnadas de exaltação do amor materno e dos discursos filosóficos, médicos e
políticos em que a família se constitui e se mantém em torno de um acontecimento – a maternidade.
Durante o séc. XX acentua-se ainda mais a dimensão da importância do amor materno, a mulher passa a ser
igualmente responsável por “cuidar do inconsciente e da saúde emocional dos filhos” (Maldonado, 1981, p.
18). Surge ainda aquilo a que muitos referem como “bebélogia”, a ciência que estuda exaustivamente o
bebé sobre todas as formas e em todos os seus estados. Bigeargeal (1985) é de opinião que nos anos 70 do
século XX, se promove a ideia da “mamã divina, bebé maravilhoso” e os anos 80 divulgam a crença do
“bebé profeta, mamã discípula”.
Leal defende que:
“movimento social que tenta conceder às mulheres a possibilidade de afirmação enquanto tal, incrustando a
maternidade (e também a paternidade) em projetos individualmente significativos, continua como discurso
dominante a hiper-responsabilização da função materna. Como se o destino das mulheres tivesse de continuar
a passar por uma certa ideia de maternidade, ou como se acabasse por haver incompatibilidades entre
afirmações femininas e afirmações maternas.” (Leal, 1997, pp. 210-211)

Em jeito de conclusão pode-se afirmar que a gravidez continua a ser uma experiência do próprio corpo,
desligada de posteriores responsabilidades e consequências, cuja referência dominante se situa na existência
de uma feminilidade que nem sempre se conforma às normas da maternidade, a qual, como já se viu, é
imbuída de uma dimensão social e cultural, por mérito da tecnologia, das legislações e dos discursos que
privilegiam a criança em devir, e que é capaz de escamotear os antigos limites do corpo e estabelecer-se,
mau grado qualquer afirmação de feminilidade. É então chegado o momento de pensar o feminino e o
materno individualmente e como conceitos autónomos, que em alguns momentos se cruzam, mas que
noutros se distanciam.

VIDA EMOCIONAL
A vida emocional do ser humano começa muito antes do nascimento. O estudo da vida emocional dos fetos
e bebés, numa íntima interação com o pensamento das suas mães, é de uma extraordinária e surpreendente
precocidade. Obrigando-nos a questionar as consequências da mesma no desenvolvimento da criança, mas
também do que se pode e deve considerar como “normal” ou “patológico”, logo de interesse dos campos de
estudo da Psicologia e Psicopatologia. É, aliás, o tema preferido da moderna Psicologia da Criança.
Presentemente, assiste-se ao exaltar da individualidade de cada sujeito, na sua causalidade com o meio
envolvente, ao contrário do que sucedia no passado em que a Psicologia da Criança procedia a um “adulto-
morfismo”. Na confluência desta abordagem observa-se uma cada vez maior constatação que o meio
envolvente desempenha um papel importantíssimo no desenvolvimento do sujeito enquanto ser individual.
Colocando-se, aqui, a tónica na importância das primeiras relações (relações precoces), nomeadamente a
relação com a mãe (ou objeto cuidador; falando-se a este nível de vinculação). Percebe-se e explica-se,
agora, um pouco melhor a relação mãe/bebé, com os atuais conhecimentos da Psicanálise, em que se
destacam autores como Sigmund Freud, Melanie Klein, Anna Freud, Wilfred Bion, Winnicott, Daniel
Stern, entre muitos outros. A relação mãe/bebé é frequentes vezes vivida pela mãe como culpabilizante.
É, então, inquestionável a grande importância da qualidade da relação precoce, e da comunicação, no
desenvolvimento da criança. De salientar ainda a importância da reciprocidade e complementaridade dos
dois membros desta díade (mãe/bebé) na (inter)relação.

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RELAÇÃO PRECOCE
Globalmente, pode-se afirmar que, frente a uma mãe e a um bebé em interação se observa claramente a
evolução da linguagem materna: a mãe transforma o seu monólogo verbal em diálogo imaginário, traduzido
pelos tempos de espera que corresponderiam às respostas do bebé – logo resposta imaginária do bebé –
como prefiguração de um futuro diálogo. Esta evolução não é exclusiva da atividade da mãe mas função do
próprio bebé: ele não é um ser passivo, ao contrário da convicção de muitos dos autores percursores da
moderna Psicologia, segundo os quais o bebé é uma “tábula rasa”, mas alguém que acompanha e modela o
comportamento materno, ao mesmo tempo que potencia as suas próprias capacidades.
O bebé possui, à nascença, um conjunto de competências, tais como: resposta diferenciada à voz e ao rosto
humano (segue-o e prefere-o a outros estímulos), acuidade auditiva e olfativa (que o levam a discriminar e
preferir o odor do leite materno e isto apenas com 5 a 7 dias de vida), e a capacidade motora (que lhe
permite alcançar e tocar objetos que estejam dentro do seu campo de visão). Isto é tanto mais extraordinário
quanto se constata que já anteriormente, ao próprio nascimento, ele evidencia um conjunto de competências
– designadas de competências fetais – das quais se distinguem as manifestações sensoriais: o feto reage a
um raio único de luz projetado diretamente sobre o ventre materno (o que sugere a existência de aptidões
visuais), às pressões manuais efectuadas sobre a região epigástrica da mãe, as quais desencadeiam
movimentos fetais (o que remete para uma sensibilidade táctil) e ingere o dobro das quantidades habituais
de líquido amniótico no qual é injetada sacarina (o que evidencia aptidões gustativas). Experiências como
as De Casper, sobre memória fetal, são bem ilustrativas que o bebé reage, igualmente, a estímulos
auditivos.
Na posse destes dados, existência de competências fetais e de competências precoces do bebé, “paira no ar”
uma questão que se revela importante: Como é que se processa e desenvolve a interação?
Cosnier (1984) fala em “desenvolvimento social do bebé/adulto” ou de uma “evolução diacrónica da díade
bebé/adulto” e Daniel Stern (1977), utiliza uma imagem feliz, referindo-se a uma “coreografia
comportamental que faz da relação mãe/bebé um importante e significativo bailado”.
Trevarthen, por seu turno, considera que “existe uma capacidade de captar o interesse e as expressões do
outro e de exprimir as suas próprias intenções de forma a ser compreendido”.
Esta intersubjetividade primária é um dos alicerces fundamentais dessa interação, isto é, do jogo social
entre a mãe e o bebé, o qual tem como principal objetivo o divertimento e o prazer de cada um dos
membros da díade. O aspecto interativo e recíproco, vital para o estabelecimento da relação mãe/bebé,
expressa-se pela sucessão de constantes feed backs: de facto, qualquer mãe, minimamente saudável, quando
face a face com o seu bebé, só muito dificilmente se irá inibir (impedir) de comunicar com ele, entrando
num jogo que envolve o seu próprio comportamento, e a duração é tanto mais prolongada quanto o prazer
que daí retira. Se não tiver prazer, a brincadeira pode estar condenada a durar, escassos, segundos, tal como
está condenada toda a interação e o respectivo desenvolvimento do bebé.
Então, se isto é verdadeiro no que respeita ao elemento – mãe –, como é que as coisas se passam em
relação ao bebé?
Se o bebé experimentar prazer e se divertir com os comportamentos da mãe, se os sentir como
interessantes, vai-lhe prestar atenção e produzirá, igualmente, experiências afectivas agradáveis, mostrando,
no seu reportório, prazer: sorrisos, olhar vivo, galreios. A mãe sentirá estas manifestações comportamentais
como satisfatórias e encorajadoras, procurando, deste modo, que o bebé mantenha a excitação e atenção a
níveis cada vez mais elevados (mais complexos), que lhe irão permitir executar novas manifestações
afectivas profundamente prazerosas. E, tal como afirma Stern (1977), assiste-se a um bailado constante e
harmonioso em que a mãe e o bebé procuram seguir-se um ao outro, num eterno movimento, numa dança
sem atropelos. Fica-se face a uma sincronia que se expressa da seguinte forma: “a maior parte do jogo
consiste tanto em ultrapassar as fronteiras superiores e inferiores como em integrar respeitando os limites
próprios”. Mas, para que este bailado possa ter lugar é necessário que ambos os elementos da díade
possuam as competências básicas fundamentais, só assim podem interagir ativamente neste processo. Por
parte da mãe tem que haver todo um conjunto de comportamentos sociais (ao nível da expressão do rosto,
do olhar, da vocalização e dos movimentos da cabeça e do rosto) os quais se destinam a estimular a atenção
e a provocar a interação com o bebé – estes comportamentos são universalmente caracterizados pelo
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exagero, quase caricatural das expressões maternas –, no tempo e no espaço e pelo carácter estereotipado do
seu reportório.
Para conversar com o bebé a mãe volta-o para si, a aproximadamente 20 centímetros, e envolvendo-o com
o seu olhar e estimula-o para a interação, começando, geralmente, com uma expressão inicial de surpresa,
acompanhada de variações de timbre de voz e de um olhar persistente e prolongado. As aproximações e os
jogos do “cucu” constituem a melhor forma de manter o bebé num nível “óptimo de atenção”.
Outra modalidade (ou variante) de comunicação processa-se através da combinação da mímica facial e dos
sons, a mãe procura prolongar e modelar a nova interação estabelecida, para isso, utiliza expressões como o
franzir das sobrancelhas, a diminuição do volume de voz, a modulação do tom de voz, bem como uma
transformação do seu timbre e do evitamento do olhar para por colocar um ponto final à interação. Se o
objetivo é levar o bebé a adormecer, então, a mãe procura “anular” a comunicação, escondendo-lhe a
cabeça junto do seu peito, e deixando que o seu próprio olhar vagueie no espaço (evitando o olhar “olhos
nos olhos”). A este comportamento, também o bebé responde com um conjunto de comportamentos
particulares e igualmente significativos.

RUDIMENTOS NEUROFISIOLÓGICOS
Sabe-se que o bebé possui à nascença de um sistema visuo-motor que lhe permite ver e seguir objetos em
movimento desde que estes estejam no seu “limitado” campo de visão. Inicialmente, como defesa (da
sobre-estimulação), o bebé só consegue percepcionar objetos situados a cerca de 20 centímetros dos seus
olhos. A partir da 6ª semana, passa a ser capaz de fixar e manter (suster) o olhar da mãe, e os seus próprios
olhos “alargam-se” ficando, em determinadas situações mais brilhantes. A mãe sente nessa altura e, pela
primeira vez, que o bebé a olha nos olhos e que comunica, de facto, com ela, o que assume um valor muito
importante e especial de interação.
Quando mais tarde o olhar do bebé se alarga ainda mais, até mais ou menos 3 metros, então, já consegue
seguir a mãe sempre que ela se desloca. Verifica-se um evidente aumento da rede de comunicação e o bebé
passa a ter o poder de controlar as informações visuais que deseja receber, socorrendo-se de determinados
movimentos da cabeça e dos olhos (consegue um autocontrolo e autorregulação gradualmente maior): ao
virar bruscamente a cabeça é entendida pela mãe como um sinal de recusa e de desejo de por fim à
interação. Pelo contrário, o seu sorriso permite a continuação do jogo, dado o poderoso carácter de
elemento “positivo” da interação.
Facilmente se percebe, neste momento, que desde o nascimento que o bebé e a mãe interagem numa
complementaridade cúmplice, por sequências de comunicação marcadas por sucessivos feed backs que
conduzem ao equilíbrio desejado ou desejável. Este processo envolve uma relação direta entre estimulação
e atenção (subjacente a estas a percepção). Assiste-se, então, ao progressivo aumento da atenção à medida
que o nível de estimulação tende para o seu máximo. E uma profunda diminuição (quebra) da atenção
quando o limiar de estimulação está abaixo ou excedeu o limiar de tolerância. Se os comportamentos de
estimulação se repetirem o bebé terá tendência a prestar-lhes cada vez menos importância, menos atenção,
cessando assim a interação. Se a mãe se aperceber do “enfado” do bebé e adoptar novas estratégias de
estimulação pode recuperar os níveis de atenção do seu bebé, reiniciando a interação. A comunicação pode
então ser “adulterada” (prejudicada) por excesso ou por defeito de estimulação.
Por exemplo, uma mãe perturbada irá adoptar estratégias de comunicação também elas perturbadas e o bebé
irá “aprender” os modelos deficientes de comunicação, o que pode originar uma perturbação ao nível do
desenvolvimento (e.g., mães profundamente deprimidas; mães que utilizam uma comunicação paradoxal;
incapazes de “lerem as necessidades e comunicação do bebé; etc.). Citam-se ainda a título de exemplo os
casos paradoxais de mães perturbadas na sua função maternal, que apenas são capazes de oferecer
estimulação eficaz ao seu bebé quando sentem que ele se magoa ou que está, de algum modo, a sofrer.

INTERAÇÃO MÃE/BEBÉ
Stern (1977) observou interações sociais entre adultos e bebés em casa, em laboratório, em creches, em
parques, nos transportes públicos (metropolitano, autocarro), em qualquer sítio onde esta observação se
proporcionasse, com o objetivo de melhor compreender como é que, no curto espaço de tempo, que são os
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primeiros 6 meses de vida, o bebé se transforma num “ser humano social”. Considerando ele, que estes 6
primeiros meses de vida é a primeira fase da aprendizagem das coisas humanas, neste curto espaço de
tempo, o bebé terá aprendido a convidar a mãe para brincar e iniciou e estabeleceu com ela uma interação,
ter-se-á transformado num perito em manter e modular a sequência de uma troca social e já se encontra de
posse de um código – os sinais – para poder, como já se referiu anteriormente, terminar ou evitar um
encontro interpessoal, ou “para colocar esse código temporariamente num ‘padrão de retenção’ dessa
aprendizagem”.
E mais, esta coreografia biologicamente determinada servirá de protótipo para todos os encontros
interpessoais futuros com os outros seres humanos. É o primeiro processo de interação social: o
comportamento tanto do bebé como da mãe, que vai desde a forma à estrutura, à definição e à
funcionalização. A mãe e o bebé, quer tenham ou não consciência, “sabem” muito mais, que qualquer
observador, sobre as suas próprias interações sociais. A mãe está envolvida num processo natural, de uma
imensa complexidade, com o bebé, mas para o qual eles estão preparados por muitas gerações de evolução.
Esta interação desenrola-se sob o primado da intuição.
O processo sistemático de observação de uma mãe em interação com o seu bebé obriga os investigadores ao
estabelecimento de metodologias de trabalho de recolha de informação e à criação de grelhas de
observação, dado que o ritmo de inter-relação da díade é quase sempre demasiado rápido. Se pretendem
aperceber-se da totalidade dos movimentos e subtilezas e dinâmica relacional envolvidos, têm de utilizar
toda uma diversidade de instrumentação tecnológica (nomeadamente, gravadores, câmaras de filmar, etc.)
para poderem registar a situação, para posterior visionamento ou audição. Por exemplo, quando se trata de
um filme da interação, este é, posteriormente, passado vezes sem conta, até que se consiga analisar e retirar
todos os elementos da sequência interativa. Pode-se afirmar que este é um trabalho que implica
perseverança, minúcia e isenção e que tem como objetivo específico o desvendar dos elementos mais subtis
do comportamento de comunicação, para isso podem gastar-se horas com o (re)visionamento de sequências
que, em tempo real, tiveram a duração escassos segundos. Da análise dos momentos cruciais de interação
social, por exemplo, aqueles jogos que se verificam intra-mamada (dentro de uma mesma mamada) – os
chamados “jogos livres” – são das experiências mais importantes na primeira fase de aprendizagem do
bebé.
Ao fim dos primeiros seis meses o bebé já integrou alguns esquemas do rosto humano, voz e tacto e dentro
destas categorias ele é capaz de diferenciar o rosto, voz e movimentos específicos da pessoa que mais cuida
dele – regra geral, a mãe. Já “recebeu” os padrões temporais do comportamento humano e o significado das
diferentes mudanças e variações de tempo e ritmo. Aprendeu as pistas sociais e convenções que têm efeito
mútuo para iniciar, manter, terminar ou mesmo evitar interações com a mãe. Aos poucos foi interiorizando
uma representação mental, cada vez mais estável, da imagem da mãe (inicialmente, é apenas seio, e aos
poucos vai ganhando o rosto, o contorno e forma corporal), passados alguns meses, após esta primeira fase
de aprendizagem, vai-se diferenciando claramente e tornando cada vez mais nítida a imagem da mãe, bem
como das expressões faciais, reações aos seus “chamamentos”, postura corporal, ritmo e movimento ao
andar, e neste momento pode-se afirmar que o bebé já estabeleceu uma permanência de objeto, ou se se
preferir uma imagem duradoura (não parcial) da mãe quer esta esteja ou não presente. Por volta do 8º mês
surge a “angústia do estranho”, manifestação que confirma a permanência do objeto e que, quando face a
adultos estranhos vai reagir com a recusa em ir para o seu colo e choro se este lhe pega.
Para se ter uma ideia e compreensão precisa de como se processa esta primeira fase de aprendizagem é
necessário analisarem-se diversas dimensões, como por exemplo:
- Repertório comportamental facial, vocal e outros – habitualmente fornecidos pelo adulto que presta
cuidados ao bebé, na sua primeira, e mais importante experiência com o mundo de estímulos (e de
relacionamento) humano;
Para além deste, é ainda, necessário estudar-se o:
- Repertório de comportamentos e capacidades de percepção que o bebé possui para perceber e (inter)agir no
mundo do comportamento humano, em que se encontra inserido.

É igualmente importante perceber como é que:


- Os comportamentos separados da mãe e do bebé se influenciam mutuamente um ao outro.

Chegados a este ponto, também será interessante tentar compreender:

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– Como é que a interação se estrutura de facto;
– Com que finalidade; e
– Quais as funções de desenvolvimento.

Infelizmente, nem sempre as coisas se processam de forma “saudável” pelo que é necessário analisar-se,
como é que a interação pode falhar. A este nível, quando a interação falha e o bebé corre risco de ver
comprometido o seu desenvolvimento, podem-se citar patologias graves do foro psicológico, tais como:
autismo primário e secundário, psicose infantil, neurose infantil. E a par destes, há ainda um outro risco – o
abandono – em que a mãe não é capaz de “correr o risco” de ficar dependente de um ser que precisa do seu
apoio e proteção para sobreviver.

ABANDONO
O abandono de uma criança, de um filho, de um bebé, é sem dúvida um gesto que reflete uma extrema
“pobreza afectiva”, que indigna todos quantos têm conhecimento de tal “barbaridade”... Mas ao adjetivar tal
atitude está-se, desde logo, a entrar com juízos de valor, a moralizar e este é um erro grave tão condenável
quanto o próprio comportamento de abandono. Deve-se, pelo contrário, tentar contextualizar e perceber os
motivos subjacentes a uma atitude de tamanho desespero e sofrimento.
Por vezes, a atitude de abandono é fruto de um medo intenso e irracional da mãe ficar dependente
definitivamente, e para toda a vida, vinculada a alguém que não desejou, que cresceu dentro de si como
“um intruso em casa alheia”. Outras vezes, são as condições de profunda miséria socioeconómica que
levam a mãe a colocar-se na perspectiva de uma esperança que é incapaz de viver. Quase sempre se verifica
que é a ausência de uma experiência de relação familiar gratificante, durante a sua própria infância. Mas,
acima de tudo, é a grande solidão e isolamento de quem não aceita o risco de um “encontro”, pois este só é
de facto possível quando nos (pré)dispomos a ser modificados pelo poder de um sorriso e pela “fragilidade”
de uma pequena mãozinha que procura a nossa mão (o nosso apoio e amor incondicional...). Logo, falar em
abandono e adopção remete para um passado que, no primeiro caso preparou a separação e, no segundo,
justifica o acolhimento assumido, na pobreza da falta de ligação genética, com o filho que irá receber o seu
nome. É, então, necessário falar-se sobre dois conceitos centrais em Psicologia da Criança, e obviamente da
Gravidez e da Maternidade/Paternidade – vinculação e filiação.

VINCULAÇÃO E FILIAÇÃO
Para que haja vinculação é preciso que se verifique o sonho... um lento caminhar ao encontro da realidade
em que o imaginário aí terá de se enraizar para adquirir condição de durabilidade e ser capaz de resistir à
verdade do crescimento. Quando se fala de realidades tão importantes quanto as capacidades do feto e do
bebé, recém-nascido, assim como do valor estruturante da gravidez (período gravídico) e do parto, mostra-
se o importantíssimo papel que este período de vida tem nas futuras relações afectivas. Mas não pode existir
filiação sem que se verifique a aceitação de que cada filho tem um destino próprio, uma autonomia de que
depende o seu estatuto enquanto pessoa. Deste modo, pode-se afirmar que, a vinculação, é, pois, um
concentrar de energia, o “abraço apertado” que antecede e torna possível o afastamento equilibrado e
saudável. Esta necessidade é vivida pela mãe de uma forma muito concreta, aquando do trabalho de parto,
nesse preciso momento ela ajuda o filho, que até ali acolheu no seu útero, à expulsão. E que,
instantaneamente, o (re)acolhe para que o fluir do leite retome (restabeleça a um outro nível) a unidade
momentaneamente perdida. Tal como está atenta, para o amparar em caso de necessidade, nos primeiros
passos – dividida entre o receio de uma queda e o desejo de o ver caminhar sozinho. E, aos poucos, vai-lhe
preparando o seu próprio caminho. Apesar disso, só atinge a verdadeira filiação quando ele assume o
comando do seu destino pessoal na segurança de um passado que lhe deixou, bem presente, uma sólida e
permanente ternura e capacidade de amar e ser amado (deixar-se amar).

NASCIMENTO DA FAMÍLIA
Só quando se verifica esta passagem da vinculação à filiação se assiste ao nascimento, definitivo, da família
e que, precisamente por isso, mal se forma logo se devem ir criando acessos (portas e estradas abertas) para
os outros. Mais do que uma fortaleza intransponível, uma muralha, a família constitui-se como o ponto de

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partida onde se prepara a separação pela individualidade do sujeito, é o abrigo que torna viáveis o encontro
de todas as fraternidades, de todas as relações (intra e extra-familiares).
Contrariamente, uma mãe que abandona, impede que as imagens do filho se constituam como uma
experiência enriquecedora do corpo. Valoriza assim, o sofrimento, o incómodo, a mudança de formas a que
a gravidez obriga e condiciona. Justifica-se pela razão de que faz “um bem” ao filho e a si mesma,
regressando à condição de “aparente” liberdade que usufruía antes da gravidez.
Ao se compreender o abandono pode-se pensar na criação de medidas (ou projetos) de prevenção que
evitem que este se repita na geração seguinte, por parte de quem sofreu na pele, os seus efeitos nefastos.

ADOPÇÃO
O casal que adopta, passando do sonho diretamente para o encontro (com o outro – o bebé) sem o lento
intermédio do corpo (processo gravídico), tem de impedir que a “esperança realizada” impeça o eclodir da
realidade. Isto é, o casal é chamado também ele, a aceitar o outro como ser diferente (e independente), este
é, de facto, o único percurso possível para alcançar a verdadeira filiação. Regra geral, exige-se ao casal que
adopta (por razões de infertilidade ou esterilidade) a grande pobreza de assumir a esterilidade biológica, e,
paradoxalmente, a enorme riqueza, de proporcionar um passado a quem só restava um futuro construído de
incertezas. Na realidade, o casal que se propõe a adoptar, só o faz, habitualmente ao fim de um longo
caminho de frustrações do seu desejo de paternidade e/ou maternidade. Assim, após um longo caminho de
desespero e frustração e, demasiadas vezes, humilhação, que se pode arrastar por muitos e muitos anos, o
casal é obrigado a submeter-se a uma avaliação psicológica. E, de repente, sem aviso prévio, é confrontado
com um filho que lhe é atirado para os braços, mas que ainda não é definitivamente seu.
Obviamente que as dificuldades são inúmeras, nomeadamente, no que concerne à necessidade de um tempo
prévio de adaptação à ideia de se ser pai/mãe, que nos casos em que a natureza funciona é de 9 meses,
tempo mais que suficiente para se proceder à integração e (re)ajustamento aos papéis que agora se espera a
pessoa venha a desempenhar da melhor forma – ser pais. A par disso há ainda as indicações judiciais
concretas tais como a legislação (do país em que a criança é adoptada) em vigor e o método legal a seguir.
De referir ainda que, por melhor que seja a instituição de acolhimento das crianças abandonadas, mal
tratadas, órfãs, esta dificilmente conseguirá obviar a personalização que uma família (biológica ou de
adopção) proporciona ao bebé (criança) onde este se sente único e insubstituível. Assim, toda e qualquer
instituição, deve, antes de mais, ser percepcionada como um local de colocação temporária, onde se permite
a sobrevivência, sem grandes lesões afectivas, antes do acolhimento pela família – biológica ou de adopção.

PAPEL DE “PAIS”
Brincar aos pais e aos filhos representa, para a criança que brinca, uma forma de conhecer os pais sempre
que se imaginam na sua pele, no seu lugar ou papel. Brincar é, então, conhecer e os filhos mostram ser bem
mais ousados que os pais, pois é bem mais fácil encontrar crianças a “fazer” de pais do que, inversamente,
pais a “fazer” de filhos. Impõe-se então a questão: Até que ponto não se deveria incentivar mais os pais
atuais, a descentrarem-se dos seus saberes, dos seus conhecimentos, das suas experiências e,
humildemente, aprenderem a ouvir o que a criança tem a dizer?
Deixar de serem adultos, por breves momentos, e voltar a ser criança, só traz instantes de alegria e prazer,
faz renascer em nós a criança que, por vezes, julgamos ter desaparecido para sempre, e olhar a vida e os
“crescidos” com os “olhos de uma criança”, frequentemente proporciona um conhecimento (sabedoria)
mais simples, é verdade, mas, nem por isso, menos profundo. Se o adulto tem a capacidade de, durante
alguns minutos, da sua atarefada vida de corre-corre, do dia a dia, “voltar a ser criança” e nessa perspectiva
interagir como o seu filho pode obviar de uma forma tão simples muitos dos desencontros dos chamados
“conflitos de geração” – a criança sentindo-se compreendida, “ouvida” vai interiorizar uma imagem mais
positiva, não só dos pais, como também dos adultos em geral. No contexto de uma relação familiar pode-se
considerar, regra geral, que os pais são, de algum modo, prematuros e isto porque o nascimento dos filhos
dentro dos pais se dá muito cedo na sua vida. Eduardo Sá (1996) afirma isso mesmo de uma forma muito
bela:

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“Os filhos crescem dentro de nós quando os imaginamos, ainda e só com o rosto dos nossos sonhos, o que faz
com que sejamos pais antes de termos filhos, ou pais mesmo se não os tivermos... tal como poderemos ser
estéreis tendo filhos.
É a relação com os filhos que cria as condições para que a maternidade e a paternidade nos tornem férteis, e
para que eles deixem de ser os nossos sonhos e se transformem, connosco, nos nossos filhos”. (p. ??)

ESTERILIDADE E INFERTILIDADE
A fertilidade é, então, uma realidade também emocional. De facto, há “esterilidades” que se esbatem com a
adopção de uma criança (e se “transformam” numa gravidez. No entanto não podem ser consideradas
apenas como “esterilidades psicológicas”, porque este é um fenómeno de uma extraordinária complexidade,
dada a grande diversidade de factores subjacentes, para além disso, apelar apenas à “racionalidade” não só
não resolve o problema – o obstáculo emocional – como ainda o agrava ou adensa mais. O que se constitui
como doloroso, no plano emocional, para o ser humano é toda e qualquer espera de algo que se deseja ou
sonha muito, e que não seja contemplada com a realização do sonho a que se aspira. A interrogação que
agora se coloca é a seguinte: Será “anómalo” não querer um filho?
Claro que não, muito pelo contrário, alguém que quer ter filhos e tudo faz para os evitar é um ser consciente
dos seus próprios limites e que ao optar por não gerar um filho está a obviar-lhe sofrimento (pelo menos no
seu imaginário). O que é realmente pouco saudável é querer ter um filho de uma forma “incontida e
desmesurada” – quase em desespero de causa – como se só assim conseguisse alcançar, o tão almejado,
bem-estar emocional de cada um dos pais. O desespero não é, certamente, um bom mediador da fertilidade
e, ironicamente, sempre que um casal se predispõe a viver a sua sexualidade com fins, única e
exclusivamente, de procriação, o desespero quase sempre se transforma numa condição que para além de
predispor para a esterilidade também lhes retira o prazer sexual.
O grande desafio do ser humanos decorre da capacidade de aprender, desde muito cedo a estar só e não
viver em solidão, a ser capazes de encarar a realidade da sua incompletude e reconhecer os seus próprios
limites pessoais (defeitos e qualidades) sem que isso o deprima. Só alguém que é capaz de encarar a
realidade de si mesmo, está preparado para o encontro e troca emocional com os outros. Um filho pode
permitir o confronto com o melhor e o pior de si, com as suas fragilidades (de ambos os membros do casal),
caso ainda, não tenham tido esse confronto, se já fora ultrapassado vai ser (re)vivido a um outro nível, bem
mais profundo. Um filho gerado nestas condições, não trará cadilhos (do ditado popular: Quem tem filhos
tem cadilhos), mas sim “a vida que nos separa de sermos felizes”. Os pais que tantas vezes sonharam o seu
filho mas que não podem gerá-lo, vivem, tantas e tantas vezes, esse desespero, vergonha, tristeza (e mesmo
raiva) – de ter que aceitar a dor de um luto tão irreparável. Para além disso, e como se isso não fosse já o
suficiente, em temos de sofrimento mental, ainda têm que aprender a lidar e (sobre)viver com uma
densidade de experiências que decorre da sua esterilidade, e que origina por parte dos outros, fenómenos
como “voyeurismo”, curiosidade (que pode variar de: leve a mórbida), rivalidade, agressividade (mais ou
menos camuflada).
Estas são formas mais ou menos camufladas de violência que geram dor, que se junta à dor de não poder ter
filhos, provocando, não raras vezes, situações de um profundo e incontornável sofrimento emocional e
psicológico que leva um ou ambos os membros do casal a depressões profundas que se cristalizam e
agravam (ainda mais) com o decorrer dos anos.

CONCLUSÃO
A disciplina de Psicologia V – dedicada aos temas da Psicologia da Gravidez e Maternidade e Paternidade
– quer-se uma disciplina que emocione profundamente e de forma irreversível, todos aqueles que com ela
têm contacto, já que aflora realidades de uma enorme beleza e ternura que envolvem a parte mais sublime
da humanidade – o bebé – que é simultaneamente o seu passado, o seu presente mas, também, o seu futuro.
Aborda a questão do bebé sonhado, vivido na gravidez, corporizado e tornado realidade real no olhar,
amamentação, mas também no contacto de todo um corpo que se constitui como resposta à fala, ao sorriso,
à ternura.
Bela ainda porque partindo de realidades tão adversas e cruéis como são os abandonos físicos e emocionais,
nos apresenta a esperança de uma “salvação”, representada pela adopção, pela prova de uma generosidade e
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amor sem limites, vivificado pelos casais que se (pré)dispõem a aceitar crianças com alguns riscos (o risco
de não se ser aceite e amado pelo ser que se adopta; ou, o risco de a criança ser portadora de uma qualquer
enfermidade física ou psicológica, entre outros). Como exemplo vivo desta esperança, veja-se o caso do
extraordinário movimento de solidariedade que se gerou, por volta de 2002/2003, em torno do crescente
número de crianças seropositivas Sul Africanas, em que há casais (de raça caucasiana) que adoptaram até
oito crianças (apenas porque lhes é humanamente impossível, neste momento, adoptar mais) – dois casais
de gémeos, um com seis meses de idade e outro com cerca de 15 meses, e 4 crianças com as idades
compreendidas entre os 12 meses e os 2 anos de idade) de raça africana – e isto num país em que, em
termos de mentalidade, ainda está muito presente o racismo, e o estigma do apartheid. Com realidades tão
marcantes como esta os conceitos que se propõe venham a ser estudados nesta disciplina, ganham outra
dimensão e significado: maternidade e paternidade não são mais restritos aos filhos biológicos (a quem
intuitivamente se deve amar), esterilidade e infertilidade, vinculação e filiação, relação precoce, repertório
(da mãe e do bebé), etc., passam a ser, igualmente, um sinal de esperança para a evolução e perpetuação da
própria sociedade, e de toda a humanidade!

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© Celeste Duque, 2004 Última revisão: 2011-05-02 12

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