You are on page 1of 98

A Arte

do
Violão
Textos do Programa A Arte do Violão

Idealização e Apresentação : Fabio Zanon

Difusão : Radio Cultura FM de São Paulo (103,3 MHz)

Programas apresentados no Ano de 2004

Textos do programa disponibilizados por Fabio Zanon no Fórum “ Violão Erudito ”

endereço eletrônico : www.forumnow.com.br/vip/foruns.asp?forum=26122

em Dez/2004

Editoração: Fábio Monteiro / Afonso Monteiro / Ricardo Marui


A Arte do Violão pág. 4

Índice

PROGRAMA I – O legado de Tarrega: Pág. 5


PROGRAMA II – Agustin Barrios: o Paganini das selvas do Paraguai Pág. 9
PROGRAMA III – ANDRÉS SEGOVIA: gravações 1927-1939 Pág. 13
PROGRAMA IV – ANDRÉS SEGOVIA: gravações 1947-1955 Pág. 17
PROGRAMA V – Andrés Segovia: gravações 1957-1977 Pág. 19
PROGRAMA VI – Os contemporâneos de Segovia Pág. 23
PROGRAMA VII – Duo Presti-Lagoya Pág. 27
PROGRAMA VIII – Julian Bream I Pág. 31
PROGRAMA IX – Julian Bream II Pág. 35
PROGRAMA X - Julian Bream – 1979-1995 Pág. 37
PROGRAMA XI – A geração dos anos 20 Pág. 41
PROGRAMA XII – John Williams I Pág. 45
PROGRAMA XIII – John Williams II Pág. 49
PROGRAMA XIV – Leo Brouwer Pág. 53
PROGRAMA XV – Konrad Ragossnig, Oscar Ghiglia Pág. 57
PROGRAMA XVI – Turíbio Santos e Carlos Barbosa-Lima Pág. 61
PROGRAMA XVII – Sérgio e Eduardo Abreu Pág. 65
PROGRAMA XVIII – Kazuhito Yamashita Pág. 69
PROGRAMA XIX – Los Romeros Pág. 73
PROGRAMA XX – A escola rio-platense dos anos 70 Pág. 75
PROGRAMA XXI – Manuel Barrueco e David Starobin Pág. 79
PROGRAMA XXII – Eliot Fisk e Sharon Isbin Pág. 83
PROGRAMA XXIII – David Russell, Paul Galbraith, Raphaella Smits Pág. 85
PROGRAMA XXIV – Duo Assad e Marcelo Kayath Pág. 89
PROGRAMA XXV - O Violão no Brasil Pág. 93
PROGRAMA XXVI – O Violão no séc. XXI Pág. 97
A Arte do Violão pág 5

PROGRAMA I – O LEGADO DE TARREGA :

Diz a lenda que Hermes inventou o primeiro instrumento de cordas dedilhadas esticando tripas de boi na cara-
paça vazia de uma tartaruga – e Apolo, encantado com seu som, trocou seu gado roubado pelo novo instru-
mento. Apolo, deus da música e também da arte do arco e flecha, é o primeiro violonista documentado, apesar
de termos imagens de instrumentos similares ao violão já entre os hititas, egípcios e assírios. Parece ser uma
idéia tão antiga quanto a própria civilização – e, hoje, sob vários disfarces, é o instrumento mais tocado no
mundo. Por quê? Quem sabe as cordas do arco de Apolo, o grande caçador, estendidas sobre uma caixa de
ressonância na forma de um corpo de mulher, não seja um símbolo da perfeita realização física? A verdade é
que o astronauta Scott Carpenter, antes de partir para uma perigosa missão espacial, disse que, se morresse,
teria duas coisas a lamentar: não haver criado seus filhos e não ter aprendido a tocar violão direito. De Apolo
aos astronautas, a história do violão é a história da humanidade.

Em meados do séc XVI havia uma profusão de instrumentos de cordas dedilhadas em toda a Europa, que vi-
nham em todas as formas, afinações e quantidade de cordas imagináveis, mas que podem, grosso modo, ser
divididos em três famílias principais: a dos alaúdes, em forma de pêra, cujo nome se origina no al´ud persa
[exemplo], a das vihuelas, em forma de oito, um nome originário da palavra latina fidicula, de onde também se
derivam as palavras portuguesas viola e violão [exemplo] e a das guitarras, também em forma de oito, um
nome derivado das palavras persas char (4) e tar (corda). Estas grandes famílias atingiram um apogeu de po-
pularidade no Renascimento e Barroco e produziram um repertório imenso, mas a família das guitarras, origi-
nariamente a menos aristocrática, passou por grandes transformações e atingiu seu apogeu no final do séc
XVIII enquanto as outras duas gradualmente declinaram até tornarem-se obsoletas. Ao redor de 1780, simulta-
neamente na Itália e Alemanha, as mutações organológicas haviam transformado o instrumento de 4 cordas
duplas em um instrumento solista de seis cordas simples, um formato suficientemente estável para se espalhar
por toda a Europa. Ao redor de 1800, a popularidade deste formato produziu um levante de grandes virtuoses
e compositores que constituem a primeira Época de Ouro do violão.

[Sor Minueto op.11] 2´00


José Miguel Moreno

É um período concomitante ao bel-canto na ópera e à primeira onda de virtuoses do violino e do piano, e não
é por acaso que Schubert, Paganini, Berlioz e Weber tocaram e publicaram música para violão. A popularida-
de era imensa em várias capitais européias, especialmente em Viena, Londres e Paris, para onde convergiram
os maiores virtuoses espanhóis e italianos, como Fernando Sor e Mauro Giuliani.
Uma segunda geração se aproveitou da expansão estética do Romantismo e criou um magnífico repertório.
Compositores como Mertz, Coste e Regondi dotaram o violão com um grande número de obras características
e evocativas, mas também presenciaram seu declínio como instrumento de concerto.

Mertz
Brigitte Zaczek

Várias foram as causas, artísticas e sociológicas, para esse declínio. O instrumento não possuía volume para
enfrentar o inchaço das salas de concerto e as demandas da música de câmara. Berlioz, apesar de amar o
instrumento, diz em seu tratado de orquestração que é necessário que o compositor seja capaz de tocá-lo para
escrever música de maiores conseqüências; em decorrência, os maiores compositores do período não escre-
veram para o violão. O instrumento progressivamente se confinou às manifestações musicais domésticas, fol-
clóricas e como acompanhamento para a dança, e caiu nas mãos da classe trabalhadora, dos ciganos e man-
driões de todas as colorações. Ainda hoje o preconceito de classe se verifica nos círculos dominantes da músi-
ca clássica, onde o violão muitas vezes não é aceito sem reservas.

O resgate espetacular e seu estabelecimento como moderno instrumento de concerto se inicia no final do séc XIX,
através de um artista com uma missão, dono de integridade e capacidade musical superiores: Francisco Tárrega.

Prelúdio
Stefano Grondona
A Arte do Violão pág. 6

Nascido em 1854 na Espanha, Tarrega efetuou a transição para o violão moderno em três frontes de atuação:
modernização do instrumento, renovação do repertório e reformulação da técnica e sua aplicação musical.
A modernização do violão se efetuou através da colaboração de Tarrega e de seu antecessor Arcas com o
grande luthier Antonio Torres. O instrumento feminino, leve e frágil do romantismo aumentou de tamanho, o
comprimento das cordas aumentou para um padrão de 65 centímetros, a escala foi levantada e a estrutura foi
reforçada com um leque radial por baixo do tampo, que disciplinava a distribuição das ondas sonoras. O resul-
tado foi um instrumento de concerto pleno, com mais volume, maior caráter e riqueza de timbres e uma
projeção frontal, cristalina e direcionada. O instrumento adequado para um novo conceito estético de interpre-
tação.
[violão Torres]

A via escolhida por Tarrega para aumentar a respeitabilidade do instrumento foi a da transcrição. Numa época
menos purista, ele quis mostrar que o instrumento podia dar conta de um argumento musical mais consistente,
transcrevendo genialmente obras de Bach, Haydn e Mozart, mas também de românticos como Schumann,
Chopin e Mendelssohn e de seus contemporâneos espanhóis como Albéniz, que chegou a dizer que preferia
as transcrições de Tarrega a alguns de seus originais para piano.
Para fazer jus a este novo repertório, uma revolução técnica se fazia necessária. Sua mente analítica, sua am-
pla formação musical e um afã incontrolável pela excelência, levaram-no a selecionar e adaptar ao novo ins-
trumento o que de melhor havia sido feito por seus antecessores, e uma boa parte dos fundamentos hoje em-
pregados pela maioria dos violonistas foram sistematizados por Tarrega: foi ele quem defendeu o uso do vio-
lão sobre a perna esquerda, levantada com o auxílio de um banquinho; foi ele quem definitivamente aboliu o
uso do dedo mindinho apoiado sobre o tampo do violão, liberando assim a mão direita para um uso mais
inventivo, passeando ao longo das cordas e obtendo um colorido mais aveludado ao tocar próximo à escala
[exemplifica], honesto e afirmativo sobre a boca do instrumento [exemplifica] ou mais metálico e pontiagudo ao
se posicionar próximo ao cavalete (a ponte onde as cordas estão amarradas) [exemplifica]. O colorido e o rele-
vo das passagens melódicas pode ser explorado de forma ainda mais detalhada e rica com a mudança de
angulação dos dedos em relação às cordas. Essas características foram parte integral do novo estilo
interpretativo de Tarrega e admiradas e documentadas por seus devotos, mas não ficaram registradas para a
posteridade através de gravações. Aparentemente há um fragmento de Tarrega tocando uma de suas compo-
sições num cilindro de cera, o qual até o momento não está disponível. Mas dois de seus alunos deixaram um
número significativo de gravações, e é o mais destacado, Miguel Llobet, que ouviremos numa majestosa de-
monstração do renovado potencial colorístico do violão.

[El Mestre]

Outra significativa inovação de Tarrega é a adoção de um estilo de digitação mais expressivo, colorido e em-
polgante. Os violonistas do séc XIX tendiam a empregar as posições abertas e as cordas soltas, buscando um
brilho e amplitude que faltava a seus instrumentos. Tarrega desenvolveu a digitação ao longo das cordas, simi-
lar ao violino, explorando uma sonoridade mais diáfana, calorosa e cantabile das posições altas, ressaltando
assim os movimentos caprichosos do fraseado musical e as riquezas harmônicas através da sonoridade
[exemplificar]. O uso constante de glissandos [exemplificar] torna o fraseado mais fluido e tátil e permite a ma-
nutenção de longas linhas melódicas eloqüentes, sem cesuras. Estas inovações podem ser detectadas nas
centenas de transcrições e composições originais que Tarrega deixou ao morrer em 1909, aos 54 anos, e nas
obras de seus sucessores.

[Testament d´Amelia]

Talvez seu talento maior tenha sido mesmo o de professor: vários de seus alunos tornaram-se concertistas de
mérito, viajaram por todo o mundo empregando sua nova concepção de violonismo e pregaram com fé evan-
gélica a nova “Escola de Tárrega”, um conceito um pouco difuso e contraditório de uma nova metodologia de
ensino. Tarrega não deixou nenhum método escrito de sua própria lavra, e temos de nos contentar com os mé-
todos deixados por seus discípulos e, mais tarde, pelos alunos destes, mas refletem ao mesmo tempo as quali-
dades e limitações de seus autores. Décadas depois de sua morte, ainda se publicavam métodos de violão
intitulados “A Escola de Tarrega”, com uma foto do mestre impressa na capa, que não eram nada além de uma
coletânea requentada de exercícios, “enriquecidos” por princípios técnicos de origem e eficácia duvidosa, que
se apropriavam indevidamente do legado e da reputação de Tarrega.
Miguel Llobet e Emílio Pujol foram os dois alunos mais célebres de Tarrega. Dois temperamentos artísticos
sobremaneira diferentes, mas que, cada um a seu modo, deixaram uma marca e abriram uma trilha possível
para o violão clássico nas décadas subseqüentes.
O catalão Miguel Llobet, é às vezes chamado de “violonista do Impressionismo”. Seu talento excepcional foi
desde cedo alimentado por um ambiente familiar de inclinação artística – seu pai era um artesão especializado
em figuras religiosas, e Llobet manteve sua habilidade como desenhista por toda a vida. Estudou com Tarrega
A Arte do Violão pág 7

por vários anos e freqüentou o Conservatório de Barcelona onde teve colegas do quilate de Pablo Casals,
Ricardo Viñes e Gaspar Cassado, e teve se debut em Málaga em 1900. Com o auxílio do grande pianista
Ricardo Viñes, Llobet se estabeleu como um membro da elite musical em Paris, e teve contato direto com
Debussy, Fauré e Ravel, compositores que freqüentavam seus concertos e influenciaram seu estilo como com-
positor.
[La Filla Del Marxant]

Nos anos seguintes, Llobet tocou por toda a Europa e pela América do Norte e do Sul. Chegou a morar na Ar-
gentina por alguns anos, onde realizou algumas de suas gravações. Algumas delas foram lançadas pela pri-
meira vez pela Odeon brasileira. Estas gravações foram feitas entre 1926 e 1929. Llobet não foi o primeiro
violonista a gravar – este mérito provavelmente tem de ser atribuído ao paraguaio Agustín Barrios, tema do
nosso 2o programa, mas estas foram provavelmente as primeiras gravações de violão feitas com a nova
tecnologia do microfone. (Falar sobre cilindros de cera).

[Estilo],

A figura de Llobet ilustra à perfeição o paradoxo da “Escola de Tarrega”. O aspecto mais importante de qual-
quer abordagem técnica é a qualidade do som, a matéria-prima da música. Tarrega orquestrou toda sua técni-
ca em torno uma concepção platônica de som: por considerar as unhas matéria morta, ele optou, a certo ponto
de sua carreira, pelo toque sem unhas, o qual, de acordo com Pujol, serve-se da parte mais sensível do corpo,
a ponta dos dedos. Esta sensibilidade assoberbada teoricamente levaria à produção de um som mais redondo,
suave e aparentado ao órgão, em resumo, um som puro, como era a arte de Tarrega, ao contrário da unha,
que teria um som pungente e cônico. Teoricamente. Llobet, seu aluno mais destacado, tocava com unhas. A
julgar pela qualidade dessas gravações, Llobet provavelmente usava as unhas bastante curtas, o que permite
ao violonista modular a forma de ferir as cordas, produzindo, assim, uma variedade de colorido e de saliência
musical, onde a hierarquia entre [exemplificar ao violão] a linha melódica, o fundamento dos baixos e o acom-
panhamento é projetada de maneira mais nítida.

[Plany]

Outra grande inovação de Tarrega é o uso sistemático do toque apoiado, ou seja, o dedo fere a corda num
ângulo mais fechado e repousa sobre a corda seguinte em seguida, produzindo assim um efeito robusto, mais
explosivo e saliente, ideal para o destaque de linhas melódicas expressivas e de picos melódicos ou eventos
harmônicos. Essa robustez sonora é uma das maiores estratégias na imposição do violão como instrumento
de concerto, pois sua projeção e nitidez são excepcionais.

[Leonesa]

Tarrega se digladiou à exaustão com os limites impostos pelo toque sem unhas, que exige maior grau de es-
forço físico por parte da mão esquerda. O toque com os dedos proporciona uma natural uniformidade e fusão
das notas, mas ao mesmo tempo, pelo ponto de contato com as cordas ser mais amplo e débil, a resistência
também é maior, o que leva a uma perda considerável de agilidade. O inimitável virtuosismo de Llobet na gra-
vação do estudo no 23 de Coste não seria possível sem o emprego das unhas. Do ponto de vista puramente
ginástico, há poucos violonistas capazes de alcançar a facilidade de Llobet nesta pequena dor de cabeça mu-
sical.

[Coste]

Até agora nos concentramos em aspectos da técnica violonística de Llobet. E suas qualidades como intérpre-
te? Llobet é um contemporâneo exato do que chamamos de época de ouro da interpretação romântica –
Caruso no canto lírico, Kreisler ao violino, Cortot ao piano, Casals ao violoncelo – um período que associamos
erroneamente a uma liberdade indisciplinada do discurso musical, em favor de uma expressão individual trans-
bordante, submissa aos caprichos momentâneos do intérprete. Essa pode ser uma definição adequada para a
abordagem de artistas menores, mas não se pode chamar de indisciplinada a arte dos músicos mais brilhan-
tes, tampouco a de Llobet.
[Menuetto de Sor]

Não é exatamente uma versão clássica, simétrica, mas sim um momento onde ele se encontra com o universo
A Arte do Violão pág. 8

espiritual de Sor no seu lirismo sóbrio.


É interessante a estratégia de desvio rítmico, onde as notas da melodia são agogicamente alongadas, para
que se evite um efeito chato e repetitivo, na intensa interpretação do estudo op. 35 no 22 de Sor.

[Sor estudo]

Ele também gravou uma Sarabande de Bach, uma versão anacrônica para os ouvidos modernos, repleta de
deslizamentos entre os acordes, onde percebemos que ele quase se deixa arrebatar irremediavelmente e per-
der completamente o pulso da música no seu clímax, mas, num momento de contenção, consegue domar seu
impulso e terminar a obra com calma e dignidade.
[Bach Sarabande]

Em contraste à eloqüência e virtuosismo de Llobet, o outro grande aluno de Tarrega, Emilio Pujol, preferiu o
caminho mais discreto, mas igualmente importante da musicologia e pesquisa histórica. Nascido em 1886,
Pujol começou sua carreira tocando música folclórica, mas em 1900 iniciou seus estudos com Tarrega e rapi-
damente se projetou como solista de violão. Foi um compositor prolífico e deixou centenas de obras de exce-
lente qualidade.
Em 1924, Pujol descobriu em um museu em Paris uma antiga vihuela, e, intrigado pelo instrumento, iniciou um
labor descomunal de pesquisa do repertório de instrumentos como a vihuela, alaúde e guitarra barroca. O re-
sultado dessas décadas de pesquisa foi sendo publicado pela casa Max Eschig em Paris a partir de 1925, e
constitui um dos primeiros exemplos do processo de reconstituição histórica hoje corrente. Este foi o maior
presente que Pujol deu à história do violão: em pouco tempo as obras de Milan, Mudarra, Sanz, Le Roy e ou-
tros mestres do passado foram adotadas por concertistas e amadores, e hoje constituem algumas das pedras
fundamentais do repertório do instrumento.
[Milan, 3 pavanas]

Nessas obras notamos uma sobriedade e elegância que contrasta ao estilo arrebatado de Llobet.
Mas uma das características mais importantes de Pujol é que, como um seguidor ortodoxo dos princípios de
Tarrega, ele toca SEM unhas, talvez o único caso de um violonista de alta categoria a empregar esta técnica,
ao menos em gravação.
Pujol foi um grande professor (conservatório de Lisboa) e, como escritor, produziu três clássicos para a litera-
tura do instrumento: a Escuela Razonada de la Guitarra, um calhamaço que é a maior referência para o estudo
desses primórdios do violão moderno, ainda adotado em muitos conservatórios; uma biografia de Tarrega; e
“O Dilema da Sonoridade do violão”, uma apaixonada defesa do princípio do toque sem unhas e uma das pri-
meiras tentativas de uma abordagem científica da capciosa questão da produção sonora. É impressionante a
variedade e consistência de timbre que Pujol consegue com esta técnica, e talvez uma lástima que nenhum
outro violonista digno de nota tenha se enveredado por este caminho. Um belo exemplo é o duo com sua es-
posa Matilde Cuervas.

[La Vida Breve]


A Arte do Violão pág 9

PROGRAMA II – AGUSTIN BARRIOS:


O PAGANINI DAS SELVAS DO PARAGUAI

PROFISSÃO DE FÉ
Tupã, o Espírito Supremo e protetor de minha raça,
Encontrou-me um dia no meio de um bosque florescido.
E me disse: Toma esta caixa misteriosa e descobre seus segredos.
E, aprisionando nela todos os pássaros canoros da floresta
E a alma resignada dos vegetais, abandonou-a em minhas mãos.
Tomei-a, obedecendo a ordem de Tupã,
Colocando-a bem junto ao coração,
Abraçado a ela passei muitas luas à borda de uma fonte.
E, uma noite, Jaci, retratada no líquido cristal,
Sentindo a tristeza de minha alma índia,
Deu-me seis raios de prata para com eles descobrir seus arcanos segredos.
E o milagre se operou: do fundo da caixa misteriosa,
Brotou a sinfonia maravilhosa
De todas as vozes virgens da natureza da América

AGUSTÍN BARRIOS

Barrios – disco 1 – faixa 12


Pericón 3.55

Gravação de 1928. Da mesma forma que o broto de uma planta remove de sobre si a pedra para que possa vir
à luz e florescer, Agustín Barrios é um milagre da natureza que soube enfrentar todos os obstáculos e deixar
uma marca perene na história do violão, da música e de seu país.
Nascido em 1885 num Paraguai destroçado por uma guerra desigual e sangrenta, onde a herança cultural
havia voltado à estaca zero e onde a prática da música culta era praticamente inexistente, ele conseguiu, à
força de um talento excepcional e de uma genuína ilusão artística, tornar-se um dos compositores mais signifi-
cativos da história do instrumento e um violonista de recursos extraordinários.
Barrios foi um dos oito filhos de uma família de pendores artísticos. Começou a estudar música muito cedo e
seu primeiro professor foi Gustavo Sosa Escalada, que o instruiu nos clássicos Sor, Tarrega e Aguado. Aos 13
anos, Agustín já era reconhecido como um prodígio e ganhou uma bolsa para o colégio Nacional em
Assunção. Ao terminar seus estudos, embarcou numa carreira musical e, em 1910, aos 25 anos, na Argentina,
realizou suas primeiras gravações.

Barrios – disco 3 – faixa 8


C.A Silva: San Lorenzo (marcha) 3.06

Gravação sem data, provavelmente realizada antes de 1913. [comentar a gravação: dificuldades da gravação
em cilindro de cera, caráter marcial, etc.] Nesse período, Barrios deve ter conhecido e talvez até estudado com
Gimenez Manjón, o célebre violonista espanhol cego, e talvez com Miguel Llobet. Após breves períodos em
Buenos Aires e Montevidéu, em 1916 encontramos Barrios no Brasil, onde permaneceu por seis anos e gozou
de sucesso sem precedentes.
sua obra favorita para encerramento dos concertos é a Jota Aragonesa. Sendo uma obra que nos dá um retra-
to bastante fiel da eletrizante experiência de um recital de Barrios, vamos escutá-la apesar da baixa qualidade
de reprodução.

Barrios – disco 2 – faixa 3


Jota 5.35

Hoje, numa época em que os recitais de violão podem ser encarados como uma parte integral da vida de
concertos, onde há um repertório e um público formados, é difícil imaginar as dificuldades que se impuseram
para Barrios apresentar um concerto desta natureza. Um paraguaio descendente de índios, tocando um instru-
mento de reputação duvidosa, associado à malandragem, e ao qual não se atribuía a capacidade de sustentar
um argumento musical. Sabe-se que Barrios conheceu Villa-Lobos e se encontrou com os chorões cariocas,
que estavam no auge de popularidade na década de 1910, e chegou a conhecer João Pernambuco e dizer
que ninguém improvisava como ele.
A Arte do Violão pág. 10

Depois de um retorno decepcionante ao Paraguai, Barrios decidiu retornar ao Brasil, cenário de seus maiores
êxitos, e aqui residiu até 1932. Foi um período que marcou época na história do violão, durante o qual Barrios
compôs grande parte de suas melhores obras.

Barrios – disco1 – faixa 18


Valsa no 4 3.13

Gravação de 1928 [comentar, com exemplos]. A vida romântica de artista boêmio, embriagado de sua arte e
em comunhão com seu público é um retrato bem preciso do rumo que Barrios escolheu para sua vida neste
período maduro de sua arte. Ele visitou todos os 21 estados brasileiros, tocando em toda e qualquer cidade de
qualquer tamanho e sem conhecimento prévio do nível de cultura musical que haveria de encontrar. Há uma
estória deliciosa que me foi contada pelo grande violonista Marcelo Kayath. Nos anos 80, Marcelo esteve no
estado do Pará para uma série de concertos promovidos pela secretaria estadual de cultura, que incluíam não
só Belém, mas várias cidades do interior, algumas das quais de acesso difícil. Uma dessas cidades, à qual
somente se podia chegar depois de uma viagem de avião e de algumas horas por barco ou estrada de terra,
era na verdade era um povoado, um par de ruas sem pavimentação, com uma igreja e um pequeno colégio
onde o recital se realizou. Marcelo pensou que deveria ser o primeiro violonista clássico a se apresentar no
local. Ao final do concerto, um senhor já bastante idoso lhe disse que esse não era o caso, pois ele tinha
escutado o grande Agustín Barrios tocar no mesmo local ainda nos anos 30.

Barrios – disco 1 – faixa 5


Danza paraguaia 3.05

Gravação Odeon de 1928. Este era um artista que literalmente ia aonde o povo estava. A partir de 1930, Ba-
rrios decidiu-se por uma completa maquiagem publicitária, assumindo suas raízes indígenas e anunciando
seus concertos como “O Paganini das selvas paraguaias, cacique Nitsuga Mangoré”, apresentando-se e divul-
gando fotos publicitárias onde vemos um figurino indígena completo, de tanga e cocar! Com o novo formato,
Barrios levou seu espetáculo a praticamente todos os países da América Latina. Às vésperas da 2a Guerra,
visitou brevemente a Bélgica, Espanha e Alemanha e, ao voltar à Costa Rica, sofreu um infarto que encerrou
qualquer sonho de conquistar os EUA. Sem saúde para continuar com a vida boêmia, Barrios se fixou em El
Salvador, onde ensinou no conservatório superior e onde faleceu, em 1944. Em condições tão romanticamente
precárias, qual seria o repertório de que Barrios dispunha? O violão ainda não havia incorporado o repertório
do alaúde, a arte da transcrição ainda estava em seus primórdios e artistas como Tarrega, Llobet ou o jovem
Segovia elaboravam um pot-pourri de transcrições românticas, de obras de sua própria autoria e de peças
curtas dos compositores-violonistas do séc XIX como Sor, Coste ou Aguado. O acesso a obras novas ainda
era limitado, e compositores mais sérios só começaram a escrever música em meados dos anos 20. Barrios
solucionou o problema da maneira mais prática, compondo música em todos os estilos. Podemos
compartimentalizar a produção de Barrios como compositor, de quase uma centena de peças curtas, em 4
categorias: a primeira é a das obras inspiradas no folclore e nas danças locais, como o Pericón e a Danza
Paraguaia que já ouvimos. Uma de suas melhores gravações nessa veia é a de

Barrios – disco 3 – faixa 15


Caazapá – aire popular paraguaio 2.58

Na verdade, um arranjo admirável de uma canção folclórica. A segunda é a categoria de pastiches de música
antiga, minuetos, gavotas e árias onde ele “imita” o estilo de compositores como Bach ou Mozart, ou das
danças espanholas como a Jota que ouvimos no início do programa, e preenche uma desconfortável lacuna
no repertório de sua época. A esta categoria pertence uma de suas obras mais conhecidas, La Catedral, que
sugere a intensidade de uma experiência pessoal. Barrios, certa vez em Montevidéu, foi visitar a Catedral de
San José, onde um organista estava estudando um coral de Bach. Aquela música solene transportou o compo-
sitor a uma dimensão de íntima espiritualidade. Após esta epifania, o homem transfigurado se ressente do con-
traste com o burburinho prosaico, a agitação e a futilidade da vida terrena quando volta à rua. A dualidade en-
tre o religioso e o profano é representada pelas duas partes contrastantes, Prelúdio e Allegro Solenne

Barrios – disco 1 – faixa 16


La Catedral 4.32
A Arte do Violão pág 11

A terceira categoria é a das peças características de inspiração romântica, talvez onde encontramos o genuíno
Barrios. É o Barrios boêmio e arrojado, que recitava de memória trechos de Don Quijote e das Mil e uma
Noites, o Barrios mestre da caligrafia, o Barrios autor de vários poemas, o Barrios que desenhava com
perfeição os retratos das jovens mais belas, o Barrios que falava várias línguas, o homem profunda e ingenua-
mente religioso, enfim o poeta do violão, na tradição do intelectual de feira popular que ainda é tão presente
na América Latina e cujas reverberações ainda podemos presenciar na arte de um Antônio Nóbrega. São
obras de temática variada, algumas com temas sentimentais, outras com temas religiosos, históricos ou
evocativos, e cada uma de inspiração soberba.

Barrios - disco 1 – faixa 13


Confesión – romanza 3.25

[Comentar a técnica: cordas de aço, peso do braço na linha de baixos, toque lateral que pode ter influenciado
Segovia, com exemplos]

A quarta categoria é a de obras de caráter técnico/didático, estudos de concerto, ora intricados e extenuantes,
ora poéticos e evocativos, um misto de exercício e peça característica. Uma de suas especialidades era o
efeito de tremolo [descrever e exemplificar]. Ele deixou várias obras nesse estilo, e ouvindo Contemplación
logo percebemos por quê.

Barrios – disco 1 – faixa 11


Contemplación 4.06

Energia e eloqüência, temperados com um sentimento puro e idealista, realmente uma interpretação vinda do
fundo do coração. Embora muitas vezes as gravações demonstrem uma expressão descontrolada e
excessivamente açucarada para ouvidos modernos, só podemos admirar a extraordinária imaginação de seu
fraseado. Ouçamos por exemplo a bela Valsa no 3, onde a figura recorrente é pronunciada com uma inflexão
diferente a cada repetição, algumas vezes mais lenta e melancólica, outras rápida e nervosa, outras mais pau-
sada e digna, sempre mantendo sequinho o ritmo da valsa e uma atmosfera de profundo dissabor. A seção
central é pura magia e leveza, uma verdadeira dança de fadas e uma das mais belas gravações da história

Barrios – disco 1 – faixa 15


Valsa no 3 3.29

Apesar da imagem de saltimbanco que temos de Barrios, ele também sabia ser artista sério. Foi o primeiro
violonista da história a tocar uma suíte para alaúde de Bach completa e, no final da carreira, incorporou obras
de Turina, Albéniz e Granados a seu repertório. Mas os arranjos de clássicos de bolso e de temas populares
foram a segredo de seu sucesso. A famoso minueto de Beethoven, por exemplo, é tocado com uma languidez
totalmente apropriada e um especial cuidado nas terminações de frase que praticamente não se escuta em
interpretações modernas.

Barrios – disco 3 – faixa 13


Beethoven: Minueto 2.32

Barrios não fez escola. Segovia certamente aprendeu algo ao encontrar-se com Barrios, mas cuidadosamente
evitou falar do colega e rival, ativamente impediu sua carreira na Europa e dizia que Barrios era “um composi-
tor fraco”. Sua música nunca deixou de ser tocada na América Latina. Na Europa e EUA, entretanto, Barrios
era somente um nome obscuro para especialistas, até que o violonista australiano John Williams gravou, em
1978, um LP totalmente dedicado a Barrios, um estrondoso sucesso.

Latin American guitar music - John Williams – Faixa 12


Barrios: Maxixa 2.44

Barrios – disco 1 – faixa 8


Maxixe 2.33

A partir daí, sua importância como o elo perdido do violão romântico foi re-avaliada e sua música começou a
ser publicada, uma tarefa difícil pois o estilo de vida de Barrios fez com que tivesse várias cópias de suas
obras, com textos incongruentes, distribuídas a amigos e escritas em mesas de bar; muitas delas só existem
em gravação, outras têm de ser buscadas em coleções particulares. Nosso conhecimento sobre Barrios está
somente começando. [agradecimentos]

Barrios – disco 3 – faixa 17


Levino Albano da Conceição: Tarantela 2.49
A Arte do Violão pág. 12
A Arte do Violão pág 13

PROGRAMA III – ANDRÉS SEGOVIA: gravações 1927-1939

“O violão é como uma orquestra cujo som nos alcança vindo de um planeta que é menor e mais delicado que o
nosso.”

ANDRÉS SEGOVIA

BG (c.20 segundos)
Disco 2, faixa 14
Ponce – Variações s/ folia de Espanha

Há, na história da música, poucos instrumentistas que conseguem dirigir o fluxo dos acontecimentos e pare-
cem re-definir a imagem pública e a estatura musical de seus instrumentos. O violino, o piano e o órgão esta-
rão para sempre associados aos nomes de Paganini, Liszt e Bach, respectivamente, por terem aberto a tampa
que trancava a sonoridade e as qualidades expressivas de seus instrumentos. No violão, este papel coube ao
espanhol Andrés Segovia. Numa carreira que se estendeu ininterruptamente por quase 80 anos e sem ser um
compositor de relevo, Segovia efetuou uma síntese daquilo que melhor se fazia em sua época e alçou os as-
pectos técnicos, sonoros e expressivos do instrumento a um patamar sequer imaginado por seus contemporâ-
neos. Ele se serviu de seu prestígio ímpar para consolidar três objetivos auto-impostos, os quais, em sua vi-
são, eram fundamentais para a aceitação do violão pelo público filarmônico (o termo usado por Segovia para
definir o público de concertos sinfônicos e camerísticos): [1] levar um repertório ortodoxamente clássico, sem
concessões a manifestações de caráter folclórico, a um público que extrapolasse o limite dos aficionados do
violão; [2] propugnar pelo estabelecimento do curso de violão em nível de igualdade com outros instrumentos
em todos os conservatórios mais importantes e estimular publicações especializadas de violão; e [3] estimular
compositores a criarem um novo repertório para o instrumento. Estes objetivos foram consolidados com ener-
gia hercúlea e incomparável ambição artística e pessoal, e corooaram uma carreira inigualável onde o nome
Segovia, ainda hoje, 16 anos após seu falecimento, é sinônimo de violão clássico na acepção mais elevada do
termo. O extraordinário alcance da arte de Segovia é ainda mais surpreendente pelo fato dele ter, em todos os
parâmetros artísticos e pessoais, adotado uma persona do século XIX: seu ideal musical era o romântico, sua
presença pública a de um fidalgo, sua inclinação política e comportamental conservadora, enfim, Segovia
transportava o ouvinte a uma era anterior, que havia sucumbido com a 1a Guerra Mundial.

Disco 1 – faixa 18
Malats – Serenata Española 3.45

Segovia nasceu na pequena cidade de Linares, na província de Jaén, uma região ligada à mineração e à agri-
cultura, no sul da Espanha, em 21 de fevereiro de 1893, e faleceu aos 94 anos em Madri, em 1987.

BG – c.15 segundos
Disco 2 - faixa 1
Albéniz - Granada

Sua infância não é bem documentada, mas parece ter sido algo turbulenta. Como todo bom espanhol, Segovia
foi, por toda sua vida, extremamente cauteloso ao revelar detalhes de sua vida pessoal e nunca fez de sua
intimidade um espetáculo. Sua autobiografia, que nunca passou do primeiro volume, é um relato pitoresco e
fantasioso de seus primeiros anos, mas praticamente não menciona seus pais, irmãos e demais familiares.
Aparentemente, ainda em tenra idade, devido a tensões familiares, ele foi separado de seus irmãos e enviado
a seus tios em Granada, que não tinham filhos, para que o criassem. Para consolar o garoto separado de sua
família, seu tio o ensinou a tocar alguns acordes no violão. Um psicanalista teria muito a ler nas entrelinhas de
seu relato e associaria sua relação obsessiva com o violão a um mecanismo compensatório para sua carência
emocional. O fato é que o menino Segovia, de acordo com relatos de parentes, não parecia estar aprendendo
o violão – a intimidade era tão grande que ele mais parecia estar relembrando algo que já sabia antes de nas-
cer.
De qualquer maneira, Granada no final do séc XIX era um dos lugares mais inspiradores para qualquer estu-
dante de violão e o garoto formou sua sensibilidade em contato com a cultura mourisca, a presença latente
dos ciganos e da música flamenca e com a perfumada e misteriosa arquitetura dos monumentos granadinos,
dos quais o mais magnífico é o palácio dos reis mouros, o Alhambra.

Disco 1 – faixa 19
Tarrega – Recuerdos 3.22
A Arte do Violão pág. 14

Segovia teve uma escolaridade irregular, parte devido ao caos familiar, parte devido ao fato de gazetear aulas
para ir às covas dos ciganos para escuta-los tocar violão. Sua família, de aspirações pequeno-burguesas, cas-
tigou-o por meter com os ciganos e foi, desde o início, radicalmente contra sua decisão de tornar-se músico.
Talvez daí venha a radicalismo com que, mais tarde, tentou separar o violão clássico da guitarra flamenca, que
sempre tratou como uma forma de arte inferior. Ainda adolescente, rompeu com a família e decidiu morar sozi-
nho e estudar, por conta própria, não só o violão mas também teoria e solfejo. Por ser autodidata, diria quando
já famoso, nunca houve atrito entre o mestre e o aluno. Depois de sua estréia em Granada aos 15 anos, come-
çou uma carreira local, fazendo suas estréias nas cidades vizinhas, expandindo pouco a pouco sua atividade
para cidades mais distantes como Barcelona. Neste período fixou-se alternadamente em várias cidades, geral-
mente motivado por ligações amorosas e noivados rompidos. Em todas as viagens procurou encontrar os vio-
lonistas locais mais famosos, em parte para comparar seu desenvolvimento musical com o deles, mas também
para ampliar os horizontes de seu repertório e absorver e aperfeiçoar sua arte, auxiliado, sem dúvida, pela sua
imensa capacidade de observação e análise, que supriram a necessidade de um estudo regular.
A verdade é que, já aos 18 anos Segovia devia possuir poucos rivais além de Llobet e Pujol, e isto tornou-se
aparente já em sua estréia em Madri, no Teatro Ateneo, em 1912. As obras que estamos ouvindo formavam a
base de seu repertório neste período, e podemos somente imaginar o deslumbramento que sua técnica excep-
cional já provocava.

Disco 2 – faixa 2
Albéniz – Sevilla – (grav 1939) 4.17

[Comentar]. Foi também em Madri que começou a associação entre Segovia e os luthiers. Como não possuía
um instrumento adequado para o recital no Ateneo, foi à casa Ramirez no intuito de alugar um instrumento de
qualidade. Ao ver o rapaz tocar, Ramirez resolveu presenteá-lo com seu melhor violão, dizendo “é claro, rapaz,
que não vou te alugar nenhuma guitarra, mas você pode levar esta a passear pelo mundo afora. Pague sem
dinheiro.”
[falar sobre os violões Manuel Ramirez]

Disco 2 – faixa 7
Granados – Dança no 10 4.12

[Comentários]. Sua estréia em Madri teve enorme repercussão e a partir daí Segovia ampliou suas atividades
para toda a Espanha. Casou-se pela primeira vez, fato que ele não menciona em sua autobiografia... A um
dado momento começou a trabalhar com o empresário Quesada, que já havia organizado extensas turnês
para Artur Rubinstein na Espanha e, além de incrementar suas atividades em seu país, Segovia visitou tam-
bém a Argentina e Uruguai no início dos anos 20, onde conheceu Agustín Barrios. Segovia agora vislumbrava
uma verdadeira carreira internacional e, para obter sucesso em sua empreitada, era necessário ampliar os
horizontes de seu repertório.
[Falar sobre a base do repertório]

Disco 1 – faixa 11
Sor – Variações op.9 3.28

Transcrições. O legado de Tarrega e Llobet. Respeitabilidade.

Disco 1 – faixa 17
Mendelssohn – Canzonetta 4.16

A relação de Segovia com a música de Bach. Edições de Bruger. Recepção.

Disco 1 – faixa 1
Bach – Gavotte em Rondeau 2.47

A estréia de Andrés Segovia em Paris em 1924 é um marco na carreira do andaluz e na história do violão. Até
então o instrumento era visto como uma curiosidade fora dos círculos de aficionados e a carreira de Segovia
ainda não se havia projetado fora da Espanha, com a exceção de ocasionais visitas à Argentina. Este recital
contou com a presença de uma multidão de figuras importantes da cena musical parisiense e a surpreendente
qualidade artística de Segovia transformou-o numa celebridade num golpe único.
A partir desse momento, sua carreira internacional tomou corpo e sucessivas estréias na Inglaterra, Alemanha,
Bélgica, URSS, EUA e Áustria e as primeiras gravações realizadas em 1927 começaram a projetar o seu nome
A Arte do Violão pág 15

como o de um pioneiro musical e de um artista de qualidade indiscutível. Foram os primeiros passos da cria-
ção do mito Segovia.

Disco 1 – faixa 16
Torroba – allegretto da sonatina 3.19

Este era o momento para ele aproveitar a súbita elevação de seu perfil público e fazer contatos com os compo-
sitores mais destacados de sua época para que escrevessem obras originais para violão, uma idéia que, na
época, ainda era considerada estapafúrdia
Depois da Homenaje de Falla de 1920, a obra geralmente aceita como a primeira escrita para Segovia é a
Danza de 1923 (ou, segundo Segovia, de 1919), publicada como último movimento da Suíte Castellana de
Moreno Torroba.
Se escrever para Segovia praticamente se tornou uma moda depois que obras de vulto foram estreadas de-
pois de 1925, seria necessário um dom profético para se supor que uma obra escrita para o violão, antes de
1924, para um artista ainda emergente, seria tempo bem empregado. Este crédito tem de ser dado a Moreno
Torroba. [comentar]

Disco 2 – faixa 3
Torroba – Fandanguillo 1.58

- Compositores espanhóis do período.

Disco 2 – faixa 6
Turina – Fandanguillo 3.57

Relação de Segovia com Ponce.

Disco 2 – faixa 12
Ponce – Mazurka 3.23

Os pastiches de Ponce.

Disco 1 – faixa 10
Ponce/Weiss – Gigue 4.38

- Início das gravações em 1927.


- Guerra civil espanhola. Saque da casa em Barcelona em 39.
- Inclinações políticas de Segovia. Carreira norte-americana. Residência em Montevidéu durante a guerra.
- Morte do filho, divórcio, casamento com Paquita Madriguera.
- Composições importantes de Ponce.

Disco 2 – faixa 11
Ponce – Poslúdio 1.54

A 2a guerra trouxe várias dificuldades de caráter pessoal para todos os artistas da época e Segovia não foi
exceção. Além de muito de seu patrimônio na Espanha ter sido confiscado ou destruído e das despesas de
manutenção da ex-mulher e dos filhos, sua atividade estava praticamente circunscrita às Américas e, mesmo
nos EUA, sua inclinação política significou discriminação por parte alguns setores. A partir de então, ele se
tornaria mais cauteloso nas declarações de caráter público, guardando ciosamente sua vida privada e opini-
ões políticas, controlando o conteúdo de suas entrevistas e resguardando-se sob um véu de lenda e de remi-
niscências romanceadas. Instintivamente ele adotou uma estratégia moderna de relações públicas que, aliada
à qualidade superlativa de seus concertos e gravações a partir de 1949, contribuiu para a aura intocável de
lenda viva que perdura até hoje.
A Arte do Violão pág. 16
A Arte do Violão pág 17

PROGRAMA IV – ANDRÉS SEGOVIA, gravações 1947-1955

Como som de violão, é absolutamente ideal e o melhor som possível em toda a era do violão clássico no sécu-
lo XX. Aquele tipo de som, aquele vibrato, aquele debruçar-se sobre as notas, é tudo parte do mesmo senti-
mento pelo som do violão. É o som e o estilo que inspiraram todo o mais.

John Williams
Hauser 1937

A vida musical do planeta passou por mudanças drásticas após o final da 2a Guerra mundial. Do ponto de vis-
ta sociológico, as décadas seguintes marcam a ascensão absoluta e imprevisível da cultura de massa, benefi-
ciada pela ampliação e alcance dos meios de comunicação como o rádio, tv e gravação. A música popular,
antes um aspecto, se não secundário, certamente de pouca atração para o establishment cultural, passou pro-
gressivamente a dominar o imaginário popular e, como demonstra a vertiginosa ascensão do rock, a movimen-
tar massas humanas antes somente encontradas em manifestações de caráter político. A música clássica en-
trou nas universidades e pouco a pouco tornou-se domínio de uma nova elite, não econômica, mas acadêmi-
ca. Nessa esfera, triturados pela guerra, compositores e intérpretes diminuíram suas atividades, exilaram-se
ou pereceram. A música composta na década de 50 é de um caráter rigoroso, ascético e se reveste de um
apego ao cientificamente demonstrável sem precedentes na história da música. Como conseqüência, uma
nova abordagem de interpretação do repertório tradicional se fez necessária e passou, pouco a pouco, a domi-
nar a cena musical: o intérprete não mais é um demiurgo que revive o espírito de um compositor, mas um pes-
quisador que, servindo-se das ferramentas da hermenêutica, encontra o significado da música em sua estrutu-
ra, e no significado exclusivo do que se vê na única fonte confiável de acesso à idéia do compositor: a partitu-
ra. Um estilo severo e rigoroso de interpretação passou a dominar a cena musical, mas Segovia manteve-se,
impávido, fiel aos princípios românticos da interpretação como um espelho da vida emocional, por vezes ínti-
ma mas freqüentemente arrebatadora. Muito de seu fascínio neste período residiu exatamente na lealdade a
uma abordagem interpretativa que apelava aos sentidos do ouvinte antes de mais nada.

BG
[Falar sobre concertos para violão e orquestra, estréia em Montevidéu. Primeira gravação de concertos.]

Recordings – faixa 17
Castelnuovo-Tedesco: Concerto op.99 2o mov. 6.29

[Relação de Segovia com Villa-Lobos]

1949 London Recordings – faixa 8


Villa-Lobos: Estudo no.1 1.56

[Conceitos de sonoridade e interpretação. Qualidade de som. As necessidades primárias do ouvido humano.


Necessidade de se completar uma ampla gama de freqüências. Fascínio pela variedade de timbres. As mãos
de Segovia e descrição das características fundamentais de seu timbre.]
“O maior problema para o músico que se encontra à frente de duas mil pessoas é precisamente este: ter uma
grande variedade de cores à disposição, ser um pintor de afrescos. A técnica de Segovia não era particular-
mente brilhante no que se refere, por exemplo, a velocidade, mas era superlativa no que se referia a varieda-
de de cor.” Piero Rattalino

The Art of Segovia – disco 1 faixa 2


Tarrega: Capricho Árabe – 1955 5.27

[Conceitos de fraseado. Emulação da voz. Canto salmódico/ canto falado]


“Quando entra a melodia, não ouvimos apenas um som agradável. O som do cantabile, diferente do som do
acompanhamento, desenvolve-se, abarcando uma doçura langorosa a um ataque afiado com a unha ao invés
da polpa do dedo. Segovia não está interessado em cantar somente com um único tipo de som bonito, porque
o canto seria salmódico. Ele usa variedade timbrística para re-conquistar a variedade oferecida por vogais e
consoantes. Seu cantabile torna-se absolutamente “falado””. Piero Rattalino

Segovia Music of Albeniz and Granados – faixa 5


Albéniz: Torre Bermeja – 1950 3.40?
[Imprevisibilidade e fantasia. Necessidade de aspectos unificadores e elementos de variedade.]
A Arte do Violão pág. 18

“Ele afina inaudivelmente e praticamente sem ser visto. Quando ele ainda parece estar afinando, a obra já co-
meçou de fato, e é função do público se ajustar ao pequeno volume. Apesar disso, ninguém preferiria estar
numa sala menor, tal é a sedução de seu conceito ame-ou-deixe de interpretação.
Suas interpretações são feitas de uma infinita variedade de toque e nuance, aplicadas com atordoante
imprevisibilidade. Não há como dizer se a próxima nota será atacada frontalmente ou se será alcançada atra-
vés de um deslizamento, se a próxima frase trará um vibrato e onde ele será aplicado, se uma passagem rápi-
da soará polida e nítida ou com uma sonoridade oca.
Quase invariavelmente, é depois do evento, nunca antes de um episódio se concluir, que se compreende qual
era a sua meta. Assim, ao contrário do tipo mais extrovertido de virtuose, este nobre artista nos deixa exaus-
tos, não emocionalmente, mas, mesmo que não se perceba, intelectualmente.”
Peter Stadlen, Daily Telegraph

The Art of Segovia – disco 2 faixa 3


Haendel – Sarabande 1952 3.59

[A arte do rubato. Liszt descreve o rubato de Chopin. Manutenção da forma através do rubato.]

“Em geral, o estilo de Segovia é caracterizado por um sistemático uso do staccato. Podemos ouvi-lo no seu
manuseio de notas individuais ou em fragmentos motívicos compostos de notas curtas. Esteticamente, o efeito
geral é de uma pronúncia musical extremamente distinta. A execução de Segovia também se caracteriza por
um conceito bastante flexível de pulso, o qual, mais que qualquer outro fator individual, contribui para a com-
pleta vitalidade de seu som.”
Charles Duncan, Guitar Review

The Art of Segovia – disco 1 faixa 13


Castelnuovo-Tedesco: Capriccio Diabólico - 1954 9.15

[relaxamento e seu efeito na interpretação (Busoni). Impassibilidade de Segovia e consistência técnica.]

The Art of Segovia – disco 1 faixa 17


Carlos Pedrell: Guitarreo - 1954 1.28

Aspecto demiúrgico. Convicção. Genuíno delírio artístico compensando desvios estilísticos. 10 anos estudando
a Chaconne.]

Segovia Box – disco 4 faixa 15


Bach: Chaconne - 1954 13.51
A Arte do Violão pág 19

PROGRAMA V – ANDRÉS SEGOVIA: gravações 1957-1977

“Acompanhá-lo no processo de gravação foi uma das minhas maiores experiências. Seu som era parte integral
do conceito musical como um todo; eu não conheço ninguém que toque desse jeito em nenhum outro instru-
mento. Não importa o quê ele fizesse, de qualquer jeito que fizesse, funcionava – e de uma maneira única”.
Esta é a recordação do produtor Israel Horowitz depois de décadas de colaboração no estúdio de gravação.
Ao lhe perguntar: “Maestro, com que idade começou a tocar o violão?”, a resposta foi: “desde muito antes de
nascer”.

Andrés Segovia, gravações 1957-77


The Segovia Collection – disco 3, faixa 35
Granados – La Maja de Goya - 1958 4.47

O intérprete freqüentemente enfrenta o dilema da escolha entre a manutenção da unidade musical, o que se
faz essencialmente pela constância do pulso, e o desejo de sublinhar pequenas belezas localizadas, o que se
faz essencialmente com a qualidade do som – que pode ser mais penetrante, mais vibrante, mais velado, mais
pontiagudo de acordo com o caráter que se quer imprimir. O problema é que um tipo de som tão particular
toma tempo para desabrochar – o que afeta a continuidade do pulso musical. Nesta gravação da Tonadilla de
Granados Segovia demonstra de maneira magistral como é possível obter o equilíbrio. Ele não só valoriza
uma infinidade de detalhes que numa execução literal passariam desapercebidos, mas o faz sempre evitando
posicionar o vibrato, o glissando e as sonoridades metálicas (exemplificar com violão) nos lugares mais óbvi-
os; assim ele se exime da obrigação de repeti-los e cair em redundância, ganhando liberdade para retornar
rapidamente ao andamento correto depois de roubar uma fração do tempo em favor da sonoridade. Apesar da
minúcia e nitidez, o forte perfume erótico que sua interpretação exala chega às bordas do impossível ao fazer
uma obra puramente instrumental soar quase obscena - tão obscena quanto o olhar descarado da cortesã do
quadro de Goya.
1959 foi o ano do Jubileu de Segovia, quando ele celebrou 50 anos de carreira lançando uma caixa de 3 LPs
que são um verdadeiro marco. O sexagenário violonista parece superar até mesmo sua habitual excelência. O
primeiro desses LPs traz dois concertos para violão e orquestra escritos para ele. Neste fragmento gostaria de
chamar a atenção para a sonoridade de bronze dos baixos do violão e para a sutileza com que ele timbra suas
entradas de acordo com os instrumentos de sopro – clarineta, oboé e flauta – que o acompanham na seção
central.

The Segovia Collection – disco 1, faixa 6


Ponce – Concierto del Sur – 2º mov.andante - 1958 6.27

[Desanunciar] É impressionante como ele consegue ao mesmo tempo fazer com que suas entradas não soem
casuais, tocando com uma sonoridade mais estridente, ao mesmo tempo em que reserva sua sonoridade mais
robusta, valorizada por um leve espalhar das notas dos acordes, nos momentos de maior tensão dramática.
A partir gravações do Jubileu, Segovia teve espaço para registrar no LP as maiores obras que marcaram sua
carreira. Uma crítica freqüente a Segovia era a de que ele tocava obras curtas com grande charme, mas que
não era capaz de cumprir os requerimentos formais das obras de maior envergadura com o mesmo sucesso.
No entanto suas gravações mostram que ele tinha uma capacidade ímpar de caracterizar os vários movimen-
tos de uma sonata e de desenhar um grande arco formal através de um processo cumulativo. Um dos melho-
res exemplos é o da Sonata de Castelnuovo-Tedesco.

Castelnuovo-Tedesco – Sonata 16.05

Entre 1949 e 1977, ano de sua última gravação, Segovia lançou cerca de 40 LPs, e as várias re-edições e
compilações fazem de sua discografia um verdadeiro labirinto. Precisaríamos de uma série de programas só
para Segovia para fazer justiça ao seu legado. Em mais de 50 anos de carreira ele não se havia permitido um
único período de férias, fazendo anualmente temporadas de mais de 100 concertos, ainda aprendendo novo
repertório, enfrentando a bajulação dos admiradores e dos alunos, que ensinava nos festivais de Santiago de
Compostela e de Siena, gravando discos e programas de TV, e sem jamais fazer concessões em seus exten-
sos programas, que infalivelmente incluíam obras de seus amigos mais chegados. De Torroba gravou 3 obras
extensas, os Castillos de España, a Sonatina e as Piezas Características, da qual ouvimos o 5 movimento,
Albada. Aqui ele obtém um efeito formidável no uso do glissando, o ligeiro deslizar entre as notas, ora criando
o um efeito tátil e sensual, ora dando ao fraseado um caráter risonho e brincalhão.
A Arte do Violão pág. 20

The Segovia Collection – disco 2 faixa 13


Torroba – Albada 1958 1.33

De seu favorito Manuel Ponce, Segovia gravou algumas das maiores obras, incluindo 4 sonatas, uma
sonatina, dois temas com variações e vários prelúdios e peças curtas, aliando um certo rigor formal acadêmico
à extraordinária fantasia e vigor. Um pequeno exemplo de sua afinidade com este compositor pode ser ouvido
no movimento final, allegro, da Sonata no.1 “Mexicana”. Reparem no cuidado com que ele gradua sua dinâmi-
ca e constrói uma sucessão de clímaxes cada vez mais intensos, que só se desencadeiam totalmente no final.

The Segovia Collection – disco 2 faixa 25


Ponce – Allegro, da Sonata mexicana - 1958 3.37

Outro compositor de presença marcante em seu repertório foi Tansman, o maior compositor polonês do perío-
do, de quem gravou a Cavatina e a Suíte em Modo Polônico, entre outras obras menores. Tansman foi um
grande admirador Stravinsky, um compositor de um neo-barroquismo enriquecido pelo cromatismo harmônico
rica e informado pelo aristocrático uso do folclore nacional. Nele ouvimos Segovia num estilo mais comedido,
de serena intensidade e sem sombra de espanholismo, onde as tramas da textura musical são desfiadas com
habilidade de ourives.

Segovia – Suite in Modo Polonico – faixa 5


Tansman – Reverie e Alla Pollaca - 1964 4.26

No mesmo disco, Segovia gravou a estupenda Suite Compostelana de Mompou, uma obra íntima e de um
caráter místico. Aqui ouvimos o sofisticado comando da atmosfera através de um fraseado aristocrático e de
uma intensa projeção da linha melódica.

The Segovia Collection – disco 2, faixa 19


Mompou – 5o mov. Canción – 1964 2.58

Formidáveis como são suas gravações de obras de maior envergadura, nas obras curtas de caráter íntimo é
onde a luz de Segovia brilha mais intensa. Numa obra despretensiosa de uma autora obscura, Nana de Maria
Esteban de Valera, ele extrai todo o mel do violão e toca com a doçura de um avô afagando a cabeça de um
netinho. Se o consolo pudesse ser traduzido em música, este é o som que ele teria:

Escenas Españolas – disco 2 faixa 25


Valera – Nana – 1964 2.27

Segovia usou por 25 anos seu violão Manuel Ramírez/Santos Hernandez e, em 1937, adotou o instrumento
feito pelo luthier alemão Hermann Hauser, que de fato era o maior instrumento de sua época. Depois de 25
anos de viagens, resolveu aposentá-lo e experimentar os violões de José Ramírez III, que estava fazendo uma
interessante pesquisa com um novo tipo de madeira para o tampo. Até então o tampo do violão, que é o que
efetivamente caracteriza seu timbre e equilíbrio, era feito exclusivamente de abeto alemão, uma árvore da fa-
mília dos Pinus. Ramirez III, na tentativa de fazer instrumentos em série de melhor qualidade, com uma madei-
ra menos temperamental, fez experiências com o cedro do Oregon e obteve resultados excepcionais. Segovia
usou vários desses instrumentos até o final de sua carreira, e depois de desentendimentos com Ramirez,
adotou também os violões de Ignácio Fleta, de Barcelona. Não é necessário dizer que esses instrumentos va-
lorizaram-se enormemente e, em pouco tempo, todos os jovens violonistas do mundo queriam também tocar
em Ramirez e Fleta. A diferença fundamental é de timbre e projeção. Os violões de abeto costumam ter uma
sonoridade extremamente focada e definida, onde todas as notas de um acorde soam individualmente. Os vio-
lões de cedro normalmente têm uma projeção mais difusa e menos direcionada, uma textura mais pastosa e,
não importa quem os esteja tocando, tendem a soar com uma cor própria. É um instrumento mais potente e
grato de tocar, e que ajudou Segovia a disfarçar o inevitável declínio de sua facilidade técnica, mas que au-
mentou ainda mais o apelo de sua magnífica sonoridade, que reveste uma obra modesta como a Suíte Inglesa
op.31 de John Duarte com um verniz mágico.

Segovia on Stage – Faixa 12


John Duarte – Folk Song - 1967 2.42

[Desanunciar e comentar] Esta obra foi dedicada como presente de casamento, o terceiro de Segovia, com
uma aluna quase 50 anos mais jovem, com quem ele ainda teria mais um filho, de uma certa forma um final
tranqüilo para uma vida pessoal atribulada e repleta de eventos que não fazem nenhum favor à sua reputação.
A Arte do Violão pág 21

A partir dos anos 60, o artista septuagenário foi coberto de honrarias, entre elas o título de Marquês e o prêmio
da Royal Philharmonic Society de Londres, além de ter tocado para vários monarcas, para o Papa e para o
presidente Jimmy Carter na Casa Branca num concerto televisionado. Em certos momentos, sua memória, já
não tão confiável, podia trazer problemas. Neste concerto da Casa Branca, por exemplo, ao esquecer um tre-
cho de uma das peças, ele teve a presença de espírito do consumado profissional e, improvisando uma transi-
ção, terminou em outra obra. Para quem não conhecia as músicas, o sufoco foi imperceptível. Como muitos
dos ouvintes nunca tiveram a chance de ouvir uma gravação de Segovia ao vivo, um exemplo da enorme con-
centração e atmosfera que ele era capaz de comandar.

Aura, faixa 23
Torroba – Romance de los Pinos – gravado ao vivo em Lugano em 3-Out-1968 1.52

Nos últimos 20 anos de sua vida, Segovia regularmente tocava em teatros de mais de 2 mil lugares, e dizia
que, enquanto as pessoas ainda o quisessem escutar, ele continuaria tocando. Como cada recital de um se-
nhor de mais de 80 anos pode ser o último, ele sempre tinha casa cheia pois o público não queria perder a
chance de ver a lenda ao vivo, mesmo com o evidente declínio que levou as gerações mais jovens a, injusta-
mente, desprezar sua importância. O violão e seu repertório já estavam caminhando em outra direção e
Segovia representava uma tradição já passada, mas hoje, através de suas gravações, podemos avaliar em
perspectiva o papel fundamental que ele exerceu na história do violão. Seu último concerto foi aos 94 anos em
Miami, em abril de 1987, e ele faleceu em junho do mesmo ano na sua casa em Madri, assistindo televisão.
Seu último disco, gravado dez anos antes, já mostra um artista quase incorpóreo, com interpretações estáti-
cas, onde o tempo parece passar mais devagar.

Reveries, faixa 14
Asencio – Pentecostes, da Suíte Mística

No próximo programa, os contemporâneos de Segovia.


A Arte do Violão pág. 22
A Arte do Violão pág 23

PROGRAMA VI – OS CONTEMPORÂNEOS DE SEGOVIA

Andrés Segovia está num carro, a caminho de um concerto, e por todo o percurso vai criticando duramente
seus colegas, reclamando o quanto suas técnicas deficientes mancham a reputação do violão. “Quanto aos
amadores”, diz, “deveriam desaparecer da face da terra, pois são uma desgraça para a arte do violão”. Um
amigo, com ele no carro, replica: “mas Maestro, o mundo do violão é uma pirâmide. Nós precisamos de uma
ampla base de amadores, pois estes é que compram ingressos e discos, e assim sustentam o topo da pirâmi-
de, que é o senhor!”. Depois de uma pausa, Segovia responde: “Você tem razão. São necessários muitos pe-
cadores para se fazer um Papa”.

BG

Mas seriam todos eles pecadores? Ou bispos e cardeais, talvez até injustamente preteridos para o posto de
Pontífice?
Coloquemos os pingos nos ii. Claro que Segovia foi a pessoa certa na hora certa, mas, no que se refere à téc-
nica, “pontaria” musical e abrangência de repertório, nenhum outro violonista poderia lhe fazer frente; alguns
deles poderiam ser superiores em alguns elementos específicos, mas Segovia atingiu uma síntese que só
pôde ser emulada na próxima geração, a partir dos anos 50. [Só podemos imaginar o número de horas que ele
deve ter passado debruçado sobre o violão, construindo um conceito sonoro a partir do nada, livrando-se de
preconceitos musicais, experimentando o acabamento ideal para suas unhas, a angulação que produzisse o
som mais vívido, as inúmeras maneiras de se harpejar um acorde, as infinitas maneiras de se acentuar uma
nota ou realçar uma frase, tocando, ouvindo, sentindo, comparando e corrigindo.] A arte de se fazer violões
melhorou para servi-lo; as cordas de nylon, inventadas por Albert Augustine durante a 2a Guerra, para substi-
tuir as de tripa, indisponíveis por serem de fabricação alemã, foram inventadas porque Segovia assim o quis.
Entretanto alguns de seus contemporâneos, extraordinariamente talentosos, complementaram seu trabalho,
cada um com uma ênfase pessoal. Se suas carreiras foram mais modestas, foram também essenciais como
um contraponto para o êxito singular de Segovia e para a formação de um público para o violão fora dos gran-
des centros em que ele estava habituado a se apresentar.
Na Espanha, o mais respeitado deles foi Regino Sainz de la Maza (Burgos, 1896-1981).

[BG?]

Regino estudou com Fortea, que havia sido aluno de Tarrega. Sua carreira internacional foi modesta, mas na
Espanha ele era considerado o violonista dos “iniciados”, e tido como um músico de maior cultura musical que
Segovia. Ele e seu irmão Eduardo foram compositores de relevo; Regino foi o criador da primeira cátedra de
violão do mundo, no Conservatório de Madri em 1935; a presença dos irmãos La Maza foi fundamental como
uma resistência no duro período da ditadura franquista. Inúmeros compositores, inclusive os vanguardistas da
geração de 1927, escreveram para ele. E seu nome foi inscrito na história quando estreou uma obra que
Joaquin Rodrigo lhe dedicou: o concerto mais popular do século, o Concierto de Aranjuez.

Concierto de Aranjuez, FAIXA 2


2º mov, Adagio 8.08

[Desanúncio] Rodrigo se auto-denominava um compositor “neo-castiço”, e o Concierto de Aranjuez ilustra sua


preferência por formas inspiradas no passado musical espanhol, temperada por uma elegante ironia, que é
sublinhada por esta vigorosa interpretação. Hoje estamos acostumados a interpretações melosas deste movi-
mento, mas Regino o toca com uma expressão franca, sem arrastar o andamento e com especial cuidado pela
sincronia com a orquestra, nesta que foi a primeira gravação, em 1948, da obra que tornou Rodrigo mundial-
mente famoso.
O primeiro intérprete sul-americano a ter uma carreira de relevo no exterior foi o uruguaio Júlio Martinez
Oyanguren. Nascido em 1905, ainda bastante jovem fixou residência nos EUA, onde foi extremamente popular,
chegando até a solar com a Filarmônica de N York e a tocar para o presidente Roosevelt. Em 1960 ele
retornou ao Uruguai, onde faleceu em 1973. Muito do repertório de Oyanguren era dedicado a arranjos de mú-
sica folclórica e clássicos de salão. Ouviremos a fantasia Alhambra de Juan Parga, um notável compositor
andaluz da 2a metade do séc XIX, que em suas obras procurou aliar as formas de dança flamenca a uma mol-
dura clássica. Nesta gravação ouvimos a habilidade de Oyanguren em despachar com verve uma batelada de
efeitos; ele consegue amarrar a estrutura desta obra rapsódica com um timing perfeito, caracterizando cada
ambiente com clareza de articulação e uma ampla gama de dinâmica que sugere vários planos de atividade
musical.
A Arte do Violão pág. 24

Disco Oyanguren, faixa 23


Juan Parga: Alhambra 4.25
Introducción, Zambra, Moruna, Parranda, Granadina e Final

[Desanúncio] Numa gravação em 78 rotações sem data. Nela ouvimos as melhores qualidades de Oyanguren,
mas também algumas de suas limitações, como uma sonoridade de arame nos baixos; em muitas de suas gra-
vações, os defeitos são mais aparentes que as qualidades. É importante dizer, entretanto, que, nas gravações
anteriores à 2a guerra, Llobet, Segovia e dos artistas deste programa tocam com cordas de tripa. Essas cor-
das têm um timbre mais áspero que o nylon e são notoriamente temperamentais, desfiando e perdendo a so-
noridade com o uso e as condições climáticas. Artistas como Oyanguren, de uma certa forma, ajudaram a en-
grossar um público de pouca cultura musical que, no entanto, viria se “graduar” para a arte mais severa de
Segovia.
Estes senhores eram sem dúvida extremamente capazes, mas um talento verdadeiramente fora da norma per-
tencia a uma dama: a argentina Maria Luísa Anido. [BG?] Ela nasceu 1907 e estudou com Domingo Prat e com
Miguel Llobet. Ainda menina já fazia turnês em duo com Llobet. Ela ensinou no Conservatório Nacional em
Buenos Aires por mais de 50 anos, e aos 81 anos de idade, foi convidada pelo governo de Cuba a residir em
Havana, onde continuou a ensinar até pouco antes de falecer em 1996. Eu tive o privilégio de conhecê-la pes-
soalmente na Espanha em 1992; ela não devia passar de 1.50 de altura, estava impecavelmente trajada e
maquiada e portava-se com a suavidade e autoridade de uma lady. Talvez ela só tenha dado vazão ao lado
delirante de sua personalidade no violão, como ouvimos nesta interpretação arrebatada, grandiosa, de Albéniz:

Maria Luisa Anido vol 1 – FAIXA 8


Albeniz: Cadiz 4.19

[Desanúncio] nesta gravação ouvimos a prática, também adotada por Segovia, de se harpejar os acordes
como uma norma [exemplificar], sendo que acordes perfeitamente simultâneos são exceção [exemplificar]. A
intenção desta prática é otimizar os recursos sonoros do violão, já que os acordes harpejados tendem a criar
um espectro harmônico mais complexo e uma sonoridade mais cheia, além de permitir o realce de vozes inter-
nas. Anido parecia não ter limites. Ela toca esta pequena dança de sua autoria de forma eletrizante, e com
uma combinação de pizzicato com sons naturais e um movimentado contraponto consegue dar a ilusão de um
grupo folclórico a todo vapor.

Maria Luisa anido vol 1 – FAIXA 11


Anido: Aire Norteño 1.09

[Desanúncio] Anido tinha o dom de re-compor uma obra com sua interpretação. Neste tremolo de Tarrega, ela
maneja o andamento com uma liberdade sem fronteiras, acelerando e acalmando de maneira totalmente es-
pontânea. Seu tremolo é perfeito, mas na introdução ouvimos a sua especialidade, que é conjurar uma atmos-
fera de calma em que o tempo quase pára.

Anido - Recital de Guitarra – FAIXA 7


Tarrega: Sueño 4.40

[Desanúncio] O pianista Daniel Baremboim já disse que os músicos desse período tinham uma sensibilidade
exacerbada para a harmonia, e que o peso e tensão relativos de cada acorde guiavam seu conceito de inter-
pretação. Anido é uma demonstração deste conceito, nesta interpretação de Albeniz. Aqui, sua sonoridade não
está particularmente bonita, mas a melodia inicial parece flutuar, as notas longas ficam suspensas no espaço e
cada mínimo movimento harmônico é sublinhado com uma nuance de dinâmica e colorido.

Anido – Recital de Guitarra – FAIXA 6


Albeniz Granada 5.22

[Desanúncio] Um defeito desta gravação, aliás uma constante na época, é que o violão está terrivelmente de-
safinado, provavelmente um descuido ou uma corda com defeito, algo que Segovia jamais deixaria passar; ele
trocaria as cordas quantas vezes fossem necessárias para perfeição.
Uma artista muito diferente, mas igualmente uma grande dama do violão, foi a austríaca Luise Walker [BG?].
Ela nasceu em 1910 Viena, onde residiu por toda sua vida e faleceu em 1998. Estudou com os maiores nomes
do violão em Viena na época, mas também teve aulas com Miguel Llobet, e tornou-se por muitos anos a cate-
drática de violão na Academia de Música de Viena. Luise Walker herdou um interesse pela tradição vienense,
que remontava ao início do séc XIX, e iluminava o violão como instrumento de salão da alta sociedade e um
A Arte do Violão pág 25

ativo participante na música de câmara. Sem ter uma técnica particularmente brilhante, Walker tocava com um
lirismo, feminilidade e doçura incomparáveis. Nesta gravação de Schumann, nós temos um exemplo extremo
da abordagem vienense na época: praticamente todos os acordes são harpejados; os baixos, sem exceção,
são antecipados em relação à melodia; muitas vezes ela toca 4, 5 ou 6 notas consecutivas com glissando, um
leve deslizar entre elas, um procedimento usado no violino, como ouvimos nas gravações de Fritz Kreisler ou
do quarteto Busch. Esta prática, que produz uma textura diáfana e uma projeção quase vocal da melodia está,
infelizmente, praticamente abolida das interpretações modernas, e esta gravação é um documento de uma
época que não existe mais.

Ida Presti & Luise Walker – FAIXA 10


Schumann: Träumerei 2.44

[Desanúncio] Enquanto Luise Walker se desvelava pelo violão como um instrumento quase que doméstico e
Segovia prosseguia em sua conquista dos grandes teatros, o espanhol Ángel Iglesias rodava o mundo com o
seu espetáculo cross-over. [BG?] Nascido em Badajoz em 1917, ele, como todos de sua geração, foi aluno de
um aluno de Tarrega. Desde suas primeiras apresentações, ele oscilou entre o repertório clássico e o
flamenco, dominando os dois com igual excelência. Mais tarde casou-se com a dançarina Nati Morales, com
quem faria intermináveis turnês, fascinando o público dos teatros de revista e dos night-clubs com sua beleza
misteriosa e com a eletricidade de suas apresentações. Claro que as considerações econômicas também tive-
ram sua parte: nos anos 40 e 50, artistas do show business já ganhavam muito mais que obscuros concertistas
de violão clássico. Ao chegar à Dinamarca, onde Iglesias residiu, os repórteres ficaram estarrecidos com a
quantidade de malas em sua bagagem. A explicação era simples: eles vinham de uma turnê ininterrupta de 8
anos! Pouca gente acredita que um sujeito bonito e bem sucedido possa também ser bom músico, e Iglesias
ficou com a pecha de ser um músico de boate; mas a evidência de suas gravações é a de que ele era uma
capacidade extraordinária e, no que se refere a metralhar uma grande quantidade de notas por segundo, o
seu arrojo não tinha paralelo. Nesta obra de Tarrega, um dos grandes “hits” do repertório do violão deste perí-
odo, ele deixa seus colegas comendo poeira.

Arabesca, FAIXA 1
Tarrega: Gran Jota 3.21

[Desanúncio] Uma contraparte a esta fúria violonística de gosto algo duvidoso é o refinado cubano Rey de la
Torre, também nascido em 1917. A exemplo de Anido e Walker, ele estudou com professores locais e mais tar-
de aperfeiçoou-se com Llobet. Sua estréia em Nova Iorque em 1941 fez tal sucesso que ele viveu pelo resto
de sua vida nos EUA, gozando de uma sólida reputação. Em meados dos anos 60 ele foi acometido de uma
artrite degenerativa e teve de abandonar os palcos, mas continuou ensinando violão por mais 30 anos e fale-
ceu, amargurado, na Califórnia, em 1994. A extensa discografia de Rey de la Torre demonstra um gosto impe-
cável na escolha de repertório. Suas interpretações da obra de Fernando Sor são de especial interesse, pois
demonstram uma abordagem mais moderna e disciplinada que a de seus contemporâneos. Dispensando ar-
roubos delirantes, seu fraseado respeita a simetria clássica com uma sutil flutuação de andamento, evitando
acentos impróprios e atingindo os pontos culminantes com um cuidadoso controle dinâmico, como nesta res-
plandecente interpretação do estudo op.29 no.1:

Fernando Sor Grand Sonata, FAIXA 7, começando 1´58´´ e terminando aos 4´08´´
Sor: Estudo em si b maior op.29 no.1 2.10

[Desanúncio] Sem contar com a imensa gama expressiva de Segovia ou Anido, Rey de la Torre, com seu
fraseado aristocrático e minucioso, ajudou a “desanuviar” a atmosfera carregada dos clichês interpretativos de
sua época. Ele já aponta para a tendência contemporânea de se “esconder” as idiossincrasias técnicas do
violão em favor de uma realização musical mais neutra. Sua arte inspirou vários compositores latino-america-
nos a escreverem obras-primas para o violão como este bartokiano Prelúdio y Danza de Orbón:

Rey de la Torre vol 1, FAIXA 12


Orbón: Prelúdio y Danza 3.33

[Desanúncio] Não é exagero dizer que Segovia é, no violão, a contraparte dos regimes totalitários que marca-
ram o século XX. Sua figura dominante relegou estes grandes artistas a um papel coadjuvante. Se ele não
houvesse existido, seus nomes seriam escritos no cartaz da história do violão com letras maiúsculas. Mas,
sem ele, esse cartaz teria sido bem menor.
[Agradecimentos e anúncio.]
A Arte do Violão pág. 26
A Arte do Violão pág 27

PROGRAMA VII – DUO PRESTI-LAGOYA

Tanto o alaúde quanto o violão são instrumentos gregários, e, desde o Renascimento, há uma tradição da es-
crita para conjuntos de violão. No caso dos duos, havia duas categorias de composição, a de duos “iguais”, em
que as partes têm a mesma dificuldade, e “desiguais”, provavelmente escritos para o professor tocar com seus
alunos. No séc.XIX e no início do séc XX, vários violonistas importantes tocaram ocasionalmente em duo, no-
tavelmente o mestre de todos, Fernando Sor, com Dionísio Aguado na Paris do início do Romantismo; nesta
série já ouvimos Emílio Pujol em duo com sua mulher Matilde Cuervas. Entretanto o primeiro duo profissional,
em período integral, onde ambos membros abdicaram de suas carreiras solo em favor de um ideal de música
de câmara, em que a busca primordial é a anulação da individualidade em favor de um resultado integrado, foi
movido por uma paixão de folhetim: o duo de marido e mulher de Ida Presti e Alexandre Lagoya.

BG

Podemos dizer que o que Andrés Segovia representou para a consolidação do violão como um instrumento
solista, o duo Presti-Lagoya representou para o duo de violões – uma formação de proporções clássicas, com
um repertório substancioso e com o potencial para um trabalho de unificação interpretativa comparável a um
quarteto de cordas ou um duo de violino e piano.
Tanto Ida Presti quanto Alexandre Lagoya já tinham suas carreiras encaminhadas como solistas, mas seu en-
contro e suas três paixões – pela música, pelo violão e um pelo outro – foram uma combinação explosiva, ca-
paz de criar reverberações incalculáveis.
Alexandre Lagoya nasceu no Egito, de pai grego e mãe italiana, e já adolescente iniciou sua carreira de
concertista em seu país e, mais tarde, mudou-se para a França para completar seus estudos. Ida Presti era
filha de um professor de piano francês e de mãe italiana, foi praticamente autodidata no violão e deu seu pri-
meiro recital solo em 1934, aos 10 anos de idade. Aos 14 fez suas primeiras gravações e aos 17 já era uma
veterana dos palcos. A ocupação de Paris na 2a guerra e um primeiro casamento infeliz prejudicaram sua car-
reira, mas as gravações que realizou aos 14 anos de idade atestam a presença de um talento singular, um dos
maiores prodígios da história do violão. Já vi muitas crianças tocando repertório bastante avançado, com técni-
ca polida e ocasionalmente uma musicalidade inata evidente, mas nada que remotamente se comparasse a
esta estupenda interpretação do 1o. mov. da Sonatina de Torroba.

Ida Presti & Luise Walker, faixa 7


Torroba – allegretto da sonatina em la maior 3.05

É uma interpretação de notável controle rítmico, verve e elegância. Ida e Alexandre se encontraram pela pri-
meira vez 1950 na casa de um aficionado em Paris. A identificação foi total e, em 1952, já estavam casados e
já estava decidido que se dedicariam exclusivamente à carreira de duo. A recepção da crítica francesa foi ex-
tremamente positiva e abriu espaço para uma carreira internacional ascendente, até a abrupta interrupção com
a morte prematura de Ida Presti em 1967. Em 15 anos de atividade, deram mais de 2 mil recitais e gravaram
vários LPs, a maioria pela Phillips. De todos os programas até agora este é o que mais apresentou dificulda-
des na seleção, pois todas as gravações são de qualidade extraordinária. Uma marca inconfundível já se es-
cuta no seu cartão de visitas, a Chaconne de Haendel.

Ida Presti & Alexandre Lagoya, disco 2, faixa 13


Haendel – Chaconne em sol maior 13.12

Ao contrário de Segovia, que fazia com que todos os elementos expressivos gravitassem em torno de si e de
suas melhores qualidades, aqui já percebemos uma abordagem que tenta importar para o violão a linguagem
de outros instrumentos, no caso o cravo. A expressividade é obtida com um comando absoluto das cores pri-
márias do violão, na intransigência com que mantém o colorido em seções completas para sugerir as mudan-
ças de registro do cravo, no rigor rítmico, mas ao mesmo tempo na sonoridade redonda e na alta temperatura
emocional. A ornamentação traz algumas novidades. Apesar de demasiado intensos para os padrões atuais,
os ornamentos são historicamente corretos e exploram as duas maneiras distintas de executar os trinados com
igual desenvoltura e precisão (exemplificar).
No que se refere à precisão de conjunto, o patamar alcançado por eles é sem precedentes. O violão tem em
comum com o piano o fato de todas as notas terem um ataque extremamente definido e uma rápida queda de
volume. Se o ouvinte tentar, junto com um amigo, tocar duas notas ao mesmo tempo, num piano ou num vio-
lão, pode apostar que na maioria dos casos estas notas não soarão juntas. Um duo de violões tem de estudar
e ensaiar praticamente cada nota e cada acorde, na busca da unificação da intenção musical. Muitas vezes
esta tentativa de sincronia faz com que a execução fique rígida como um bate-estacas. Não o duo Presti-
Lagoya. Escutem a admirável maleabilidade com que tocam a suíte de Marella
A Arte do Violão pág. 28

Disco 1, faixas 5 e 8
Marella – Suíte em lá – Andante e giga 3.18
1.41

[comentar sobre o estilo Empfinsamkeit] A imprevisibilidade do fraseado é atordoante: nunca se sabe se a pró-
xima frase será tocada estritamente no tempo, se haverá uma hesitação antes da última nota, se haverá uma
leve brisa de aceleração, se a nota superior será alcançada a seco ou com um gentil debruçar-se – mas cada
mínima inflexão é executada com total sincronia. Até as mínimas ondulações da dinâmica (exemplificar) são
tocadas com total unidade de propósito.
A sonoridade do duo é bastante particular. Ida Presti adotou, bem cedo em sua carreira, uma angulação para a
mão direita que fere a corda com o lado direito do dedo, que produz uma sonoridade redonda e penetrante,
que eu costumo chamar de “bolsinhas de couro”; esta sonoridade é naturalmente aveludada, mas de alta defi-
nição timbrística: as notas agudas têm uma sonoridade brilhante e os metálicos têm uma qualidade de sino
bastante peculiar, que eles usam com grande efeito dramático nas obras pré-românticas italianas como esta
serenata de Carulli.

Disco 3, faixa 14
Carulli – Serenata em sol, op.96 no.3 – Finale:presto 4.33

[comentar abordagem estilística] Esta sonoridade arrebatadora fez deles o veículo ideal para a música espa-
nhola; suas interpretações de Albeniz, Granados e Falla são soberbas, e uma das melhores obras de Joaquin
Rodrigo foi escrita para eles.

Disco 1, faixa 19
Rodrigo – Tonadilla 1o. mov. allegro ma non troppo 2.43

Rodrigo também escreveu um excelente concerto para 2 violões e orquestra. O violão costuma refletir nitida-
mente a personalidade de quem o toca. Não só o tipo de técnica e postura, a velocidade com que os dedos
deixam as cordas escapar, mas também o formato e textura dos dedos e unhas faz com que cada violonista
tenha uma sonoridade característica e difícil de reproduzir. Duos formados por irmãos, especialmente irmãos
gêmeos, têm mais facilidade em obter homogeneidade sonora, devido à semelhança física. Mas o duo de ma-
rido e mulher Presti-Lagoya consegue o milagre de uma sonoridade absolutamente uniforme pela afinidade
musical e espiritual. Já ouvimos várias obras de Castelnuovo-Tedesco nos programas sobre Segovia; ele com-
pôs 24 prelúdios e fugas para dois violões, As Guitarras Bem Temperadas, e dedicou-os ao duo. O P & F em
mi maior nos deixa o gostinho do que teria sido uma integral, que não chegou a ser feita pelo duo, e nos dá
um exemplo comovente da atmosfera de ternura que eles eram capazes de criar.

Disco 3 – faixa 9
Castelnuovo-Tedesco – P & F em mi maior 4.15

[relato de Duarte] Como todos os grandes artistas, é difícil categorizar o duo Presti-Lagoya. Aos mesmo tempo
em que eram capazes de tocar com tal doçura, eles também se excediam em obras ágeis ou galhofeiras do
repertório francês. Um exemplo é a Toccata de Pierre Petit, também composta para eles, onde o grau de
eletricidade é elevado e uma citação de Gershwin perto do final é tocada quase que em meio a gargalhadas.

Disco 3 – faixa 6
Petit – Toccata 5.20

Ou esta pequena transcrição de Poulenc, que traz à mente imagens de acordeonistas de boina, à beira do
Sena.

Disco 3 – faixa 7
Poulenc – Improvisation no.12 2.04

Ou a atmosfera misteriosa, opressiva e obcecada da violência mal contida da Dança de Manuel de Falla.

Disco 3 – faixa 8
Falla – Danza Ritual do Fogo do ballet El Amor Brujo 3.51

Em abril de 1967, durante uma turnê dos EUA, Ida Presti sentiu-se mal durante um vôo e foi levada ao médico.
Um erro provocou uma hemorragia durante uma bronquioscopia, e ela faleceu com apenas 43 anos. Alexandre
A Arte do Violão pág 29

Lagoya entrou em profunda depressão e só conseguiu retomar uma carreira solo, sem brilhantismo, 5 anos
depois dessa verdadeira tragédia. Numerosos projetos de gravação, de obras importantes como os concertos
de Rodrigo e Castelnuovo compostos especialmente para eles, não se concretizaram. Mas ainda assim estes
desbravadores criaram o precedente de uma carreira possível para um duo de violões. Nunca tocaram no Bra-
sil, e a distribuição de seus discos aqui era precária, mas ainda assim, por vias independentes, dois duos bra-
sileiros, os irmãos Abreu e os Assad, vieram progressivamente a preencher o vácuo deixado por estes artistas
estupendos, Ida Presti e Lagoya.
No próximo programa, a arte de Julian Bream.
A Arte do Violão pág. 30
A Arte do Violão pág 31

PROGRAMA VIII – JULIAN BREAM I

Uma entrevista feita na Itália. “Mr Bream, o senhor é alaudista ou violonista?” “Sou alaudista, violonista e
violoncelista”; “O senhor gosta de estudar?” “Eu devo. Eu adoro. Amo estudar até mais que tocar”. “Entre nós,
porque o senhor não tem o título de Sir? Diga a verdade.” “Posso não ser um Sir, entretanto sou um
Commander, comandante da Ordem do Império Britânico. Ser um comandante de um império que não existe é
uma sensação superior a qualquer outra. Inefável.”
Julian Bream

BG

Considerando sua inquestionável hegemonia econômica, científica e literária, é surpreendente que a Grã-
Bretanha não tenha construído, ao longo da história moderna, uma tradição musical de magnitude comparável.
No final do século XIX, ela era chamada de “A Ilha sem Música”; apesar de ter uma vibrante atividade musical,
a maior parte dos músicos de relevo no país era importada do continente. Com o fim da rica produção musical
do período elisabetano, o último compositor britânico de primeiro escalão tinha sido Purcell. Tampouco produ-
ziu instrumentistas capazes de criar maiores reverberações. Apesar do violão ter sido por um período conside-
rável um instrumento de moda na Inglaterra, Tarrega chegou a dizer que um bom violonista inglês era uma
“contradição em termos”, opinião compartilhada por Segovia. Bem, os espanhóis tiveram de engolir suas pala-
vras, pois a figura dominante do violão no pós-guerra seria a do quintessencialmente britânico Julian Bream.

BG

Se Segovia trouxe o violão à maturidade técnica e, na sua perspicaz construção de uma mitologia pessoal e
guitarrística, conseguiu conquistar a aceitação do violão como um instrumento de concerto, Bream é responsá-
vel pelo amadurecimento musical do instrumento. Ao contrário dos violonistas da geração anterior, seu ponto
de partida foi a aquisição de uma vasta cultura musical que moldasse sua concepção de violão; enquanto a
geração de Segovia se bastava com o violão e seu fascínio intrínseco, servindo-se da música para mostrar as
mágicas qualidades do instrumento, Bream é primordialmente interessado em fazer com que o violão seja par-
te ativa da vida musical como um todo, um veículo de música de alta qualidade e um ator respeitável na músi-
ca de câmara. Visto por este viés, um britânico deixa de ser uma exceção, já que, depois da 2a Guerra, o país
conseguiu criar uma estrutura para sua vida musical – tanto no campo de ensino quanto no campo empresarial
e de logística – que praticamente não tem paralelo em nenhum outro país. Julian Bream é, no violão, o repre-
sentante do levante da música britânica, que produziu algumas das melhores orquestras e escolas do mundo,
vários compositores de primeiro escalão, uma posição de liderança no movimento de música antiga e solistas
e regentes de fama mundial. Como conseqüência, um garoto de família modesta e de sotaque caipira conse-
guiu tornar-se um artista de refinamento sem paralelo, que trouxe o violão à esfera da alta cultura.

Julian Bream - guitar recital faixas 8 e 9


Turina: Homenaje a Tarrega op.69 – 1956 2.31
2.10

Julian Bream nasceu num subúrbio de Londres em 1933; seu pai era um artista gráfico que tocava jazz nas
horas vagas. Teve uma infância austera, marcada pelos bombardeios da blitz na 2a guerra e pela penúria ge-
ral da década seguinte. Inicialmente ele também tocou jazz, com palheta, mas ao ouvir um disco de Segovia
ele vislumbrou as possibilidades do violão clássico e nunca mais olhou para trás. Desde cedo ele percebeu
que, para deixar sua marca com o violão, precisaria ampliar seu conhecimento musical, e estudou também
piano e violoncelo, ao mesmo tempo em que tinha aulas de violão com o professor russo Boris Perrot. Foi
como cellista que ele conseguiu uma bolsa para estudar no Royal College of Music, que, na época, ainda não
tinha o curso de violão (que só seria criado nos anos 60). [história com o diretor e o problema do cockney].
Sua estréia foi aos 14 anos em Cheltenham, num programa que já mostrava um equilíbrio clássico e um enten-
dimento musical que seriam constantes em toda sua carreira. Compare-se por exemplo uma gravação de
Segovia etc.

Andrés Segovia, faixa 11


Sor: Rondo
Julian Bream – guitar recital faixa 7
Sor: Rondo – Allegretto da sonata op.22 - 1956 4.35
A Arte do Violão pág. 32

Violão Hector Quine 54

- relação com o pai e sua perseverança na promoção do filho


- relação com Thomas Goff e o contato com o alaúde. Começo no teatro e na BBC
- estréia no Wigmore Hall em 1951 e serviço militar
- início da carreira discográfica em 1956
- comentar o equilíbrio da gravação de V-L

Julian Bream – guitar recital faixa 13


Villa-Lobos: Prelúdio no.1 – 1956 4.22

- Pioneirismo na pesquisa do repertório de alaúde


- Comentar abordagem do alaúde e voicing em Johnson

The Golden Age of English Lute Music – faixa 10


Johnson - Carman´s Whistle – 1961 2.38

- Início da relação com compositores. Perfil


- Perfil dos compositores caros a Bream.

Twentieth Century Guitar I – faixas 1-3


Berkeley – Sonatina op.51 - 1959 10.36
Violão Hauser II 1957

- Desenvolvimento da carreira discográfica


- O violão como alaúde e o alaúde como violão
- Comentar Byrd

The Golden Age of English… - faixas 18 e 19


Byrd – Pavan & My Lord Willoughby´s Welcome Home - 1963 2.28 1.43

- repertório diferente do de Segovia;


- abordagem do repertório barroco

Baroque Guitar – faixa 6


Weiss: Passacaglia – 1965 4.17
Violão Bouchet 1964

- Relação com Britten & Peter Pears


- Moda da música elisabetana

[fita Bream & Pears]

- Ciclos de canções de Britten, Walton, etc.


- Comentar Britten

Music for Voice & Guitar – faixas 3 & 6


Britten: Songs from the Chinese, op.58 - 1963 1.12
The Autumn Wind, Dance song 0.56

- Comentar Walton
- Relação camerística de complementaridade.

Music for voice & Guitar – faixas 15 & 18


Walton: Anon in Love - 1963 1.49
Lady, when I behold the roses; To couple is a custom 1.18
Violão Robert Bouchet 1960
- primeiras gravações com orquestra
- marco na história do violão. Dificuldades na gravação
A Arte do Violão pág 33

- trio JB, casa no campo


- Comentar Nocturnal.

Music for voice & guitar


Britten: Nocturnal op.70 - 1966 18.33
Violão Rubio 1965

Esta gravação consolidou Bream como o arauto da música moderna de qualidade para o violão. Sua reputa-
ção internacional atingiu o ápice e ele freqüentemente dava concertos tocando alaúde na primeira parte e o
violão na segunda. Para a maior parte do público – agora não só de violonistas – ele era o intérprete dedicado
à música antiga ou à contemporânea, ao contrário de Segovia e Williams, que se excediam no repertório ro-
mântico. Mal poderiam imaginar que também no repertório tradicional ele operaria uma revolução nos anos
seguintes. E isto ouviremos no próximo programa.
A Arte do Violão pág. 34
A Arte do Violão pág 35

PROGRAMA IX – JULIAN BREAM II

Homem curvado sobre o violão,


Como se fosse foice. Dia verde.
Disseram: “É azul teu violão,
Não tocas as coisas tais como são”.
E o homem disse: “As coisas tais como são
Se modificam sobre o violão”.
E eles disseram: “Toca uma canção
Que esteja além de nós, mas seja nós,
No violão azul, toca a canção
Das coisas tais como são”. No programa de hoje, Julian Bream

[BG]

Estes versos são a seção inicial do poema “O Homem do Violão Azul”, onde Wallace Stevens explora o para-
doxo entre a realidade artística e a realidade exterior; eles, entretanto, poderiam perfeitamente se aplicar à
arte de Julian Bream. Uma arte de ilusionismo, de um violão que sugere uma envergadura e uma profundidade
que estão nele, mas ao mesmo tempo além dele. Até os anos 60, as gravações de violão costumavam ser
compilações de obras de vários períodos, ao gosto do intérprete, um reflexo da estrutura dos programas de
recitais. Bream inaugurou, no violão, a tendência das gravações que cobrem áreas específicas do repertório,
muitas vezes explorando somente um compositor. Isto lhe permitiu uma imersão total no estilo em questão e a
busca de um idioma interpretativo que se adequasse a ele. A música renascentista inglesa lhe é especialmen-
te querida; ele gravou as maiores obras deste período, e o compositor que visitou com maior freqüência foi
John Dowland. Dowland é um autor cujas obras alternam empolgação com momentos de profundo pessimismo
e melancolia. Os especialistas em música antiga tendem a uniformizar este contraste, mas Bream faz com que
cada peça tenha uma voz própria; em especial nas pavanas e fantasias ele consegue descer ao fundo do poço
e criar versões memoráveis. Ou como diz Wallace Stevens, “Ser o leão no alaúde/ Ante o leão preso na pe-
dra.”

Julian Bream plays Dowland – FAIXAS 13 e 20


Dowland: Sir Henry Guilforde´s Almaine –1967 - Goff 1.48
Dowland: Forlorne Hope Fancy – 1976 – Rubio 4.01

[Desanúncio] Estas gravações de Bream ao alaúde tiveram extraordinária acolhida e, na Inglaterra, disputaram
a popularidade com outros hits da música antiga como as 4 estações. Ele convidou seus luthiers favoritos,
Rubio e Romanillos, a trabalharem num atelier que ele mantinha na sua casa de campo. Por mais de 25 anos
ele trabalhou com o mesmo produtor e o mesmo engenheiro de som, e gravou seus discos na Wardour
Chappel, uma capela a poucos quilômetros de sua casa. Não surpreende que cada uma dessas gravações
seja um clássico. Cada uma das linhas do contraponto é burilada ao extremo, o soprano tem som de soprano,
o tenor tem som de tenor, o baixo de baixo, e ele consegue manter ao mesmo tempo individualidade e
interdependência, como nesta Fantasia que ouviremos agora:

Fita No.14
Francesco Canova da Milano: Fantasia ‘La Compagna” –1972 – Rubio c.3.00?

[Desanúncio] Um complemento a esta atividade foi a colaboração com o tenor Peter Pears, o companheiro do
compositor Benjamin Britten, com quem Bream pôde dividir sua paixão pela música elizabetana. Ouçam a dis-
crição com que Bream sublinha a ambigüidade métrica desta linda canção de Dowland:

Elizabethan Lute Songs – faixas 12 e 13


Dowland: Shall I sue? 1970 – Rubio 1.57

[Desanúncio] Julian Bream também montou o seu próprio “consort”, especializado em música elizabetana, um
dos primeiros grupos do gênero; nos anos 70, deu vários recitais de música e poesia, com a grande atriz
shakespeareana Peggy Ashcroft. Sua fama parecia residir nos dois extremos da música renascentista e da
contemporânea, mas nos anos 70 ele começou também a investigar a música original para violão do séc XIX
e, graças a este esforço, hoje há uma re-avaliação do papel histórico dos compositores da época de ouro do
violão. Ninguém negará o papel central da grande tradição das sonatas e sinfonias de Haydn a Brahms, porém
as fantasias, obras de forma variável, além de serem o retrato de uma época, tiveram um papel fundamental
na disseminação do processo de transformação temática que culminaria na forma cíclica de Liszt e Franck. A
A Arte do Violão pág. 36

advocacia de Bream revelou a plena estatura de um mestre como Giuliani: ele desfia a música como se fosse
o enredo de uma ópera, desde a atmosfera solene da introdução, caracterizando cada tema como se fosse um
personagem e desencadeando uma tempestade no final. A homogeneidade de fraseado é algo notoriamente
difícil de se conseguir no violão: cada corda tem um colorido próprio, e mesmo tocar uma simples escala pode
ser um problema insolúvel, já que o violão impõe uma mudança de cor e de articulação que muitas vezes não
pertence à música em um plano ideal. [exemplo?] Bream não só faz com que a técnica do violão desapareça,
mas consegue absoluto controle de dinâmica e agógica com um colorido atordoante, mas perfeitamente con-
trolado. Ouça, por exemplo, como ele gentilmente empurra este tema para diante com um “coice” na anacruse
[5´10´´]; ou como ele “orquestra” este outro, à maneira de Rossini, pontuando a mudança de timbre entre as
frases com acordes de um colorido intermediário [11´05´´]. Estas são estratégias típicas de artistas como
Michelangeli ou Horowitz, e colocam Bream no panteão dos maiores artistas do século.

Classic Guitar – faixa 8


Giuliani: Rossiniana no.3, op.121 1974 - Romanillos 14.20

[Desanúncio] Acho que esta execução enterra para sempre a idéia de que Bream teria uma técnica insuficien-
te. Continuando sua sistemática exploração do cânone do repertório do violão, Bream gravou a obra completa
de Villa-Lobos nos anos 70. Como todo grande artista, ele consegue abreviar o abismo cultural e produziu
uma interpretação de estilo perfeitamente convincente, que lhe valeu, por parte do governo brasileiro, uma
condecoração com a Medalha Villa-Lobos. Como exemplo, o 3o movimento do concerto, em que ele equilibra
o lirismo derramado da introdução a um ritmo estrito e um caráter rigoroso no rondó.

Villa-Lobos – faixa 3
Villa-Lobos: concerto, 3o. mov.allegretto non troppo – 1971 - Hauser 4.24
London Symphony, Andre Previn

[Desanúncio] Ao mesmo tempo em que cobria o repertório tradicional, Bream estreava ao menos uma obra de
larga escala por temporada. A lista de compositores que escreveram para ele soa como um quem-é-quem da
música dos anos 60 e 70, e hoje estas obras ocupam posição central na história do violão e na discografia de
Bream. Nas obras de Walton, Berkeley, Maxwell Davies, ou Henze, ele destilou sua experiência musical, pro-
duzindo interpretações ao mesmo tempo empolgantes do ponto de vista instrumental e intelectualmente com-
plexas e equilibradas. Comparemos a célebre gravação das Bagatelas de Walton com sua versão orquestral.

Fita
Walton: Varii Caprici (cerca de 30 segundos)

Dedication – Faixa 6 e 8
Walton: Bagatelle no 1 e 3 – 1981 – Romanillos 3.35
2.13

[Desanúncio] Importante como foi a contribuição britânica, talvez a maior obra escrita para Bream tenha sido a
Royal Winter Music de Hans Werner Henze. É uma sonata de 30 minutos em seis movimentos que ilustram
personagens das tragédias de Shakespeare, que atende o pedido de Bream de uma obra de proporções e
ambições estéticas comparável às últimas sonatas de Beethoven. O primeiro movimento ilustra cena inicial do
Ricardo III, onde Gloucester monologa sobre sua incapacidade de se deleitar com a vitória e os prazeres mun-
danos e sua resolução em se tornar um vilão devido à sua deformidade física. O estilo de Henze, um genuíno
herdeiro da tradição germânica representada por Beethoven e Brahms, alia um atonalismo livre informado pelo
desenvolvimento motívico clássico, e é perfeitamente caracterizado nesta dramática e majestosa interpretação
de Julian Bream.

Dedication – faixa 12
Henze: Royal Winter Music – Gloucester – 1981 - Romanillos 6.16

[Desanúncio] Muitos intérpretes especializados se satisfazem em executar música contemporânea com preci-
são e um mínimo compromisso pessoal, mas são interpretações densas, buriladas e poderosas como esta as
que verdadeiramente podem trazer a música contemporânea para uma posição de maior prestígio no meio
musical. Julian Bream não havia gravado o repertório espanhol por cerca de 20 anos e já era hora de se pre-
encher este buraco em seu catálogo. Isto ele fez nos anos 80 com um projeto de maiores proporções, e é o
que ouviremos no próximo programa.
[Agradecimentos]

Extra: concerto de Bennett 3o mov.


A Arte do Violão pág 37

PROGRAMA X - JULIAN BREAM – 1979-1995

ADIVINANZA DE LA GUITARRA
a Regino Sainz de la Maza

Na redonda
Encruzilhada,
Seis donzelas
Bailam.
Três de carne
E três de prata.
Os sonhos de ontem procuram-nas
Porém têm-nas abraçadas
Um Polifemo de Ouro.
A guitarra! No programa de hoje, as gravações mais recentes de Julian Bream

[BG – Music of Spain – faixa 17]

Este é o poema Adivinanza de la Guitarra, de Garcia Lorca, dedicado a Regino Sainz de la Maza, que já ouvi-
mos em programas anteriores, mas que sugere o projeto de música espanhola que Julian Bream desenvolveu
nos anos 80. Ele havia gravado várias obras espanholas nos anos 50, de uma forma algo convencional. De-
pois de haver re-habilitado os compositores do renascimento e do início do romantismo, e enriquecido o reper-
tório com obras-primas contemporâneas, ele decidiu fazer, já em sistema digital, uma exploração sistemática
de 400 anos de música espanhola. Ele arrematou o projeto com uma série de programas para o Canal 4 da TV
britânica que teve imenso sucesso. Tipicamente, ele evitou os clichês e iniciou a série com uma gravação es-
tupenda dos mestres do renascimento espanhol, que, em teoria, são o ponto de largada para qualquer estudo
sério do repertório do violão, mas que, ainda hoje, são negligenciados. Estas obras são escritas para vihuela,
um instrumento aparentado ao violão, também em forma de oito e com seis cordas duplas, que teve um curto
período de popularidade em meados do séc. XVI. Elas têm um valor histórico incalculável; por exemplo, Luys
de Narváez é o primeiro compositor documentado que publicou obras em forma de tema com variações, ou
diferencias, como eram chamadas. Ao lado de Narváez, o grande mestre do período é Luys Milan, um artista de
imaginação ilimitada. Seu livro El Maestro, de 1536, é um tratado de instrução de vihuela que traz 40 fantasias
em que ele explora genialmente as múltiplas possibilidades de combinações imitativas e de livre improvisação;
ele é um precursor na criação de uma linguagem puramente instrumental. Ouviremos dele a Fantasia no. 22.

[fita]
Milan – Fantasia XXII - 1979 3.00?

[Desanúncio] Quanto à interpretação de Bream, ele quase nos faz crer que não há outra maneira de se tocar
esta música. O cuidado com que ele molda as seções imitativas e prepara as explosões de entusiasmo e a
clareza com que caracteriza as seções da obra sem prejudicar a fluência do discurso são realmente tudo o
que esta obra precisa, apesar dele não usar um instrumento autêntico e tocar com uma técnica moderna.

[BG? Spanish Guitar Recital faixa 14]


O cenário do violão nos anos 70 ainda contava com um Segovia em plena atividade, mas alternativas de um
modo mais objetivo e atlético de se tocar o repertório espanhol já se cristalizavam com John Williams ou Narci-
so Yepes. Entre os dois extremos, a arte de Julian Bream é a da síntese. Suas explorações de Albeniz,
Granados, Tarrega, Turina e Rodrigo primam por uma plasticidade extraordinária, aliando rigor, fantasia e um
alto teor evocativo. Tive a satisfação de ouvi-lo várias vezes ao vivo tocando Granados, e com esta música ele
carregava o público na palma da mão. Sua transcrição, para início de conversa, é muito mais rica, detalhada e
rigorosa que as de seus colegas; no que se refere à agilidade, ele nem chega a impressionar, mas o aroma
schubertiano que se desprende de sua versão, às vezes lânguido e melancólico, outras vezes altivo e cava-
lheiresco, faz desta uma das gravações mais belas do século.

Spanish Guitar Recital – faixa 10


Granados: Valses Poéticos – 1982 – Romanillos 12.26

[Desanúncio] Enquanto alguns artistas se contentam em tocar mais forte ou mais suave, Bream trabalha com
uma gama de sensações mais complexa: freqüentemente temos a sensação de que a música está mais próxi-
ma ou mais distante, mais quente ou mais fria, mais dura ou mais maleável. Melodias não são exatamente res-
saltadas: mais parece que estão sendo declamadas. Acompanhamentos não são somente suaves: são sussur-
A Arte do Violão pág. 38

rados. Vibratos podem sugerir uma leve brisa ou um tremor de raiva. O ouvinte praticamente vê o rubor dos
pimentões e dos gazpachos e sente o aroma do vinho de Rioja nesta interpretação de Moreno Torroba:

Twentieth Century Guitar II - faixa 10


Torroba: allegro da Sonatina – 1983 – Romanillos 3.52

[Desanúncio] Aqui ouvimos um artista no auge de sua maturidade técnica e musical; notamos, entretanto, um
aspecto técnico que ele deixa passar, que são os chiados de corda. Hoje em dia, muitos violonistas já desen-
volvem uma técnica de mão esquerda que praticamente elimina este efeito bastante intrusivo; basicamente
temos de levantar o dedo para mudar de posição, o que é simples, mas bem trabalhoso. Uma vez eu lhe per-
guntei se isso não o incomodava, e ele me respondeu que sim, e muito, mas ele tem como prioridade máxima
a continuidade das linhas, um legato perfeito, e que, quando ele toca do jeito que “soa” certo, não consegue
eliminar os chiados porque a música “pede” que ele deslize entre as notas. Sinceramente, em interpretações
superlativas como estas, isto é só um detalhe bobo. Bream cria um personagem vivo à nossa frente, com ce-
nografia completa. Escutem só a Guajira, de Pujol, uma interpretação que sugere os heróis picarescos da tra-
dição literária espanhola. Eu me divirto tanto com esta gravação que a escolhi como tema de abertura de nos-
so programa. Isto é uma festa.

Music of Spain – La Guitarra Romantica – faixa 9


Pujol: Guajira – 1990 - Romanillos 4.23

[Desanúncio] Nos anos 80, Bream sofreu um acidente que quase encerrou sua carreira: ele estava dirigindo
seu carro com o braço apoiado na porta e, ao fazer uma curva por baixo de um pontilhão, perdeu a direção e
esmagou o cotovelo direito numa pilastra de concreto. Ele passou por uma operação delicadíssima e ficou fora
de ação por toda uma temporada, mas, felizmente, retomou sua carreira logo em seguida. Ele também encer-
rou seu contrato com a RCA e passou a gravar pela EMI. Seu primeiro disco na nova companhia incluiu sua 4a
gravação do Concierto de Aranjuez e sua 2a gravação do concerto de Arnold, que havia estreado nos anos 50.
Além da tecnologia digital, há uma razão muito forte para estas regravações: a parceria com Sir Simon Rattle,
que consegue cavar uma riqueza insuspeita nestas obras. Claro que Bream está em grande forma nesta obra
extremamente difícil, mas repare no vigor e riqueza de detalhes da realização orquestral. Isto é música de câ-
mara em larga escala.

Julian Bream – Simon Rattle – faixa 1


Arnold – Concerto 1o mov allegro – 1993 6.27
City of Birmingham Symphony orc. Simon Rattle

[Desanúncio] Aliás uma obra riquíssima que mereceria ao menos uma estréia no Brasil. Eu tive o sumo privilé-
gio de tocar várias vezes para Julian Bream em masterclasses neste período, e o impacto de sua imaginação
musical foi profundo e determinou muitas de minhas escolhas artísticas. Uma grande lição foi a sua total
intransigência. Várias vezes gastamos muitos minutos repetindo somente um acorde, buscando o timbre, arti-
culação e toque ideais; “mais ou menos” simplesmente não serve. Também notei que, ao se aproximar da ter-
ceira idade, sua inclinação para um caráter elegíaco e um certo azedume estavam se acentuando. Sua esco-
lha de repertório reflete este caráter, e ele gravou várias obras carregadas de reminiscência e de tons escuros.
Na Sonata de Brouwer, ouvimos um cuidado quase neurótico com cada som: a música é estática; cada nota é
polida ao extremo, mas soa estranhamente distante. Parece um pianoforte ouvido em um sonho.

Nocturnal – faixa 15
Brouwer: Sonata - Sarabanda de Scriabin - 1993 4.03

[Desanúncio] Uma interpretação de beleza glacial e profundo estranhamento. As gravações de Bream são de
tal abrangência e qualidade que nos faz esquecer que seu repertório era muito maior. Eu o vi com freqüência
tocar Ponce, Tansman, Regondi e Piazzolla, compositores que nunca gravou. Seu último CD, de 1995, revelou
Antonio José, um dos mais promissores compositores do modernismo espanhol, assassinado ainda jovem du-
rante a Guerra Civil. Sua sonata, escrita para Sainz de la Maza, voltou a ser tocada nos anos 90 e Bream rea-
lizou uma gravação majestosa; aliás, a engenharia de som deste CD capta seu toque com mais fidelidade que
qualquer outro, e vocês podem perceber que não é exatamente um som limpinho. Aqui nós ouvimos um ligeiro
click das unhas, que dá mais contorno e definição à sonoridade.

Sonata – faixa 1
Antonio José – Sonata – allegro moderato – 1995 6.41
A Arte do Violão pág 39

[Desanúncio] Ao terminar este disco, ele sentiu que a missão estava cumprida. Apesar das homenagens por
toda parte, graus de doutor honoris causa, etc., ele tem sentido um certo desencanto com a crescente
comercialização do mundo da música clássica. Gradualmente ele foi limitando sua atividade e, em 2001, deu
um recital no Wigmore Hall em Londres, um reduto do bom-gosto e do bem-pensar, em comemoração aos 50
anos de sua estréia naquela sala. Foi uma noite memorável, onde, pasmem, ele estreou duas obras, e desde
então o mundo está mais pobre porque o músico que trouxe o violão para o primeiro mundo intelectual decidiu
pendurar o chapéu. Não é por acaso que esta série deu a Julian Bream um espaço igual ao de Segovia; am-
bos abriram avenidas na história do violão, e ficamos na esperança de que outros artistas venham a dar
continuidade a este magnífico plano urbanístico.
[agradecimentos e anúncio]
A Arte do Violão pág. 40
A Arte do Violão pág 41

PROGRAMA XI – A GERAÇÃO DOS ANOS 20

Grandes virtuoses não se destacam por sistematizar sua arte para uso das futuras gerações. Paganini nunca
deixou nenhum método; só podemos ter uma idéia de como Chopin e Liszt tocavam através de seus alunos;
mesmo Tarrega, que foi mais um professor que um concertista, só nos dá pistas através de suas composições.
No século XX, a figura dominante do violão, Andrés Segovia, não deixou exatamente uma escola, apesar de
muitos artistas mais jovens terem esmiuçado e imitado seus procedimentos técnicos e musicais. Ele não dei-
xou nenhum método ou livro que revelasse seu pensamento musical e preservasse seu legado para as próxi-
mas gerações. Porém ele lutou para que se estabelecessem cursos de violão nas maiores escolas de música
de todo o mundo e, com este intuito, ministrou inúmeros cursos ao longo de sua carreira e ajudou a projetar o
nome de vários de seus alunos. É da primeira geração de discípulos de Segovia que tratamos no programa de
hoje.

[BG]

Apesar de sempre ter sido um instrumento extremamente popular, o violão é notoriamente carente de sistema-
tização técnica. Até mesmo uma coisa simples como uma postura em que o instrumento não escorregue ainda
não é consenso. Mas a partir dos anos 50, um violonista uruguaio, de talento analítico incomum, começou a
estudar de uma forma mais científica os maiores problemas técnicos do violão, e escreveu uma série de obras
didáticas que tiveram enorme repercussão em todo o mundo. Este foi Abel Carlevaro.

[BG]

Carlevaro nasceu em Montevidéu em 1919, e formou-se em harmonia e composição, mas estudou violão como
auto-didata até 1937, quando encontrou Segovia, que residiu no Uruguai durante a II Guerra Mundial.
Carlevaro estudou com ele por nove anos e, logo em seguida, embarcou numa carreira internacional. Suas
gravações dos anos 50 atestam um alto grau de maturidade musical. Nesta gravação do intrigante Nocturno
de Moreno Torroba, acompanhamos uma mente de compositor desvendando com calma a complexa estrutura,
que conjuga amplas melodias, inconfundivelmente castelhanas [exemplo FAIXA 5: 3.54], com um tecido
harmônico mutante, composto por empréstimos dos modos eclesiásticos [exemplo: 2.55], o impressionismo
das escalas de tons inteiros [exemplo: 3.29] e dos acordes alterados [exemplo:4.44] e gestos da música tradi-
cional espanhola [exemplo: 4.53].

Abel Carlevaro - Faixa 5 iniciando aos 2´54´´


Torroba: Nocturno c.4´00

[Desanúncio] Com a habilidade de um perfeito barman, Carlevaro acerta a dose em cada um dos elementos,
trazendo à tona as dissonâncias, distendendo as terminações de frase, comprimindo os momentos rapsódicos
e deixando as harmonias mais complexas ressoarem com naturalidade. Mas a grande contribuição de
Carlevaro para o mundo do violão foi sua exposição de uma teoria instrumental. Sua detida observação da
arte de Segovia, um violonista que tocava aparentemente sem esforço, levou-o a formular uma técnica que
trabalha a favor do aparato neuro-muscular.
[
BG]
Para Carlevaro, não são as mãos e dedos que executam o trabalho pesado: partindo de uma postura estável e
repousada, ele considera as costas, os ombros, braço, antebraço e cotovelo como um mecanismo integrado,
em que cada uma das partes contribui para o equilíbrio gravitacional, tendo como meta a clareza de emissão e
um mecanismo bem azeitado que não trai nenhum esforço desnecessário e praticamente elimina os
incômodos chiados que anteriormente se consideravam parte intrínseca do som do violão. Ele foi um professor
extremamente persuasivo e formou gerações de violonistas, especialmente na América do Sul. Seu impacto no
Brasil foi incalculável, e vários de nossos mais influentes músicos e professores passaram temporadas no Uru-
guai se aperfeiçoando com Carlevaro. Ele mesmo manteve sua técnica intacta e estava ainda em plena forma
quando faleceu na Alemanha, em 2001, aos 85 anos.
Esta gravação de um difícil estudo de Barrios é um retrato da arte de Carlevaro: sua técnica é, claro,
irrepreensível, mas o que mais interessa é que ela lhe dá margem para tocar com um fraseado elástico e ele-
gante.

Abel Carlevaro - faixa 3


Barrios: Las Abejas c.2´00´

[Desanúncio] Uma personalidade que é a antítese do erudito Carlevaro é a do borbulhante venezuelano Alirio
A Arte do Violão pág. 42

Díaz.

[BG]
Díaz nasceu no interior da Venezuela em 1923 e desde criança já tocava música folclórica ao violão, de ouvi-
do, e pouco a pouco se aperfeiçoou e construiu uma bela carreira de âmbito local. Quando já era homem feito,
estudou com Regino Sainz de la Maza no conservatório de Madri. Mais tarde freqüentou os cursos de Segovia
em Siena, na Itália, e foi escolhido pelo mestre como seu assistente. A partir daí sua carreira internacional to-
mou corpo e chamou a atenção para seu virtuosismo extrovertido e descomplicado. Alírio Diaz sempre teve um
repertório imenso, mas suas interpretações de música venezuelana sempre tiveram o poder de entusiasmar o
público.
Eu costumo chamar Alírio Díaz de violonista-champanhe: tudo o que ele toca é direto, franco e espouca com
um caráter alegre, dançante e celebratório, que é particularmente adequado para o repertório latino-americano
e espanhol, como demonstra este Bolero de Eduardo Sainz de la Maza.

The Spanish Guitar - faixa 9


E Sainz de la Maza: Bolero 3.57

[Desanúncio] Longe de ser um artista superficial, o intérprete Díaz prima por uma sabedoria que brota da ex-
periência e da intuição, e usa os recursos básicos do violão de forma totalmente desinibida. Aos 80 anos ele
ainda está ativo, com uma técnica de extraordinária firmeza e flexibilidade, que é, na minha opinião, o verda-
deiro modelo para a técnica colossal do australiano John Williams, que foi seu aluno, bem como de Segovia,
nos cursos de Siena. Além de uma sonoridade robusta e masculina, eles têm em comum uma abordagem es-
sencialmente rítmica, em que o pulso da música nunca é subserviente aos caprichos do fraseado e ao feitiço
da sonoridade.

Solos de Guitarra – faixa 3 começando no 4´20´´


Lauro – Valsas nos 3 c.5´40´´

[Desanúncio] Uma figura controversa, mas de enorme popularidade, é a do espanhol Narciso Yepes.
[BG Ruiz Pipó, Asencio, Mompou] Nascido em Lorca em 1927, ele começou a tocar violão aos 4 anos de idade
e formou-se pelo conservatório de Valencia, onde seu principal professor foi o compositor Vicente Asencio.
Sob a orientação de Asencio, Yepes foi essencialmente um autodidata que desenvolveu um arsenal de inova-
ções técnicas, muitas delas inspiradas na técnica da guitarra flamenca, que lhe permitiram extraordinária flu-
ência em passagens rápidas e extenuantes. Sua estréia em Madri, tocando o Concierto de Aranjuez aos 19
anos, foi um retumbante sucesso e abriu as portas de uma carreira internacional. Não é difícil imaginar o im-
pacto criado pelas suas versões atléticas e intransigentes do repertório espanhol. Sua interpretação do famo-
so Recuerdos de la Alhambra de Tarrega pode não ser das mais poéticas, mas seu tremolo é uma metralhado-
ra de alta precisão.

O mundo da Guitarra Espanhola vol 1 – faixa 3


Tarrega – Recuerdos 3´

[Desanúncio] Yepes teve poucas aulas esporádicas com Segovia, mas ele decidiu traçar um caminho totalmen-
te independente e a rivalidade entre os dois cresceu com o passar do tempo. Yepes soube administrar sua
carreira de forma admirável.
[BG romance de amor] A trilha sonora do filme francês Jogos Proibidos, que inclui o notório Romance de Amor,
tornou seu nome conhecido em todo o mundo. Entretanto, a maior contribuição de Yepes para a história do
violão é a vasta lista de obras-primas que lhe foram dedicadas por compositores de primeiro escalão. Alguns
dos melhores concertos para violão e orquestra foram escritos para Yepes, como este magnífico Concierto
Levantino, do catalão Manuel Palau, onde ouvimos as marcas registradas de Yepes: uma sonoridade levemen-
te metálica e anasalada, a preferência por uma articulação dura, de notas bem destacadas, e a alternância
entre frases tocadas de forma indiferente com súbitas intrusões de algumas notas incrivelmente suculentas.

Manuel Palau – faixa 1


Concierto Levantino: allegro non tanto c.12´´

[Desanúncio] É uma obra admirável, de sutil coloração impressionista, praticamente desconhecida até entre os
violonistas. A partir dos anos 60, Yepes realizou dezenas de gravações para a companhia alemã Deutsche
Grammophone, incluindo todos os maiores concertos de violão, que tornaram seu nome uma referência mun-
dial. E aqui também começa um paradoxo: é o caso, talvez único, de um intérprete de inatacáveis credenciais
que, inexplicavelmente, produziu uma sucessão de interpretações completamente inadequadas do ponto de
A Arte do Violão pág 43

vista técnico e musical. Até o ouvinte menos instruído pode perceber que há algo errado nesta interpretação
do Choros no.1 de Villa-Lobos, por exemplo:

[BG Choros]
Acho que já é o suficiente... Mas, claro, são as qualidades de Yepes que nos interessam, e não os equívocos.
Também nos anos 60, ele projetou um novo instrumento, um violão de 10 cordas – 4 baixos a mais – que lhe
permitiu novas possibilidades musicais e com o qual criou uma sonoridade característica, que explora a resso-
nância por simpatia das cordas extra.

[BG ??]
Esta sonoridade singular inspirou o grande compositor Maurice Ohana a escrever várias obras-primas, entre
elas aquele que é um dos maiores concertos para violão, os Três Gráficos. Ohana é um compositor judeu nas-
cido em Gibraltar, mas de educação francesa e que se considerava meio africano, meio andaluz. Nesta obra
ele desenvolve aspectos essenciais do ritmo e da trágica intensidade da música flamenca, que é sublinhada
pela interpretação rígida, quase brutal de Narciso Yepes.

[LP, faixa 3]
Ohana: 3 Graficos: Grafico de la Bulería y Tiento 5´32

[Desanúncio] Aquí, já em 1957, estamos a anos-luz do universo estético de Segovia, que se tornou um crítico
ferrenho das idéias de Yepes. Uma das gravações mais interessantes dos anos 70 é a que Yepes fez das Can-
ções Populares Espanholas de Manuel de Falla, com a notável mezzo-soprano Teresa Berganza, onde ele
explora com inteligência os recursos de seu instrumento de 10 cordas.

[LP – faixa 3]
Falla: Asturiana 2´01´´

[Desanúncio] Yepes faleceu em 1997, mas um violonista que continua a propagar os valores oitocentistas ins-
pirados em Segovia é o argentino Manuel Lopez Ramos.

[BG]
Lopez Ramos nasceu em Buenos Aires em 1929 e cedo desenvolveu uma brilhante carreira confinada à Amé-
rica do Sul. Em 1952, depois de uma estréia de sucesso, fixou-se na Cidade do México, onde ainda vive, como
catedrático de violão na Universidade, e, a partir dali, sua fama internacional cresceu, especialmente nos EUA.
Sem ser exatamente um aluno, ele se inspirou na arte arrebatada de Segovia e criou um estilo pessoal carac-
terizado por uma sonoridade cálida e intimista e uma irresistível sinceridade de expressão, como demonstra
esta gravação ao vivo de Ponce, um compositor com quem tem especial afinidade.

Manuel Lopes Ramos – faixas 4 e 6


Ponce Sarabande e Giga 6´30´´

[Desanúncio] Uma gravação realizada ao vivo em Belo Horizonte em 1958. É interessante saber que Lopez
Ramos, assim como Carlevaro e Narciso Yepes, era um visitante assíduo do Brasil nos anos 50, 60 e 70, um
período em que os promotores de concertos pareciam dar maior atenção ao violão e ao seu infinito potencial
na formação de um público para a música clássica.

[Agradecimentos] No próximo programa, a arte de John Williams.


A Arte do Violão pág. 44
A Arte do Violão pág 45

PROGRAMA XII – JOHN WILLIAMS I

Em 1958, um jovem violonista deu seu primeiro concerto profissional em Londres e Andrés Segovia, já uma
lenda viva, escreveu o seguinte texto de apresentação: “Um príncipe do violão surgiu no mundo musical: John
Williams , nascido na Austrália há 17 anos. Ele vive e estuda em Londres, e desde 1954 vem aperfeiçoando
sua técnica instrumental na Academia Musical Chigiana em Siena, e atingindo rapidamente a maturidade artís-
tica. Deus colocou um dedo em sua testa, e não passará muito tempo para que seu nome se torne conhecido
na Inglaterra e no exterior, com isto contribuindo para o domínio espiritual de sua raça. Constatei os méritos
deste jovem e faço um desejo, do fundo do coração, que o sucesso possa acompanhá-lo por toda parte, como
se fosse sua sombra.”

[BG: Colibri]

O desejo de Segovia se concretizou numa dimensão que talvez nem ele esperasse, e não é para menos. Com
a provável exceção de Ida Presti, é difícil imaginar um violonista tão maduro tão precocemente. Nas semanas
seguintes a esse concerto, Williams gravou seus dois primeiros LPs, que já mostram os ingredientes do suces-
so que o acompanha até hoje: já parece que nada é difícil o suficiente e tudo soa sem esforço, espontâneo.
Outros violonistas também podem ter uma técnica impecável, mas Williams, ainda adolescente, já é o único
infalível. Entretanto ele nunca dá a impressão de chamar a atenção para este fato, nunca se tem a impressão
de que ele deixa de tocar com raça em favor da segurança. Estas variações de John Duarte conseguem a pro-
eza de soarem perfeitas e casuais ao mesmo tempo.

The Virtuoso Guitar, faixa 13


John Duarte: Variações sobre um tema catalão, op.25 9´50
1958, Hernandez y Aguado

[desanúncio] Bem, poderíamos supor que depois do êxito dessa estréia fenomenal, ele se acomodaria confor-
tavelmente como herdeiro do manto de Segovia como rei do violão clássico. Não poderíamos estar mais enga-
nados. Este sucesso inicial lhe deu cacife para afirmar uma personalidade independente e uma visão musical
antagônica à de Segovia. Numa entrevista para a BBC em 1993 ele disse: “esta recomendação me persegue
até hoje e é mais um fardo que uma honra.”

[BG – Harvey faixa 1 2´44 ou faixa 2]


“Parecia que tudo que eu havia aprendido, tudo que pudesse se aprender de violão, fosse através de Segovia.
[...] Não foi o caso! Eu estudei com meu pai dos 4 aos 14 anos, e ele era um excelente professor – essa foi a
parte mais importante de minha formação, não Segovia! Segovia foi uma grande inspiração, mas ele era um
professor bem ruim, simplista e autoritário, o que não ajuda ninguém a se desenvolver como músico.”
Este sucesso inicial lhe deu autoconfiança para desenvolver uma personalidade independente, quase
antagônica à de Segovia, e já nas próximas gravações, num contrato com a CBS, podemos perceber que ele
procura criar um repertório próprio que já pertence a uma estética totalmente diferente.

Rodrigo/Dodgson faixas 11 e 12 5´08


Dodgson: Partita no.1
Allegro con moto; molto vivace
1964, violão Fleta

[Desanúncio] Uma obra adstringente, stravinskiana, com uma interpretação destemida e incisiva. A recomen-
dação de Segovia foi realmente infeliz e revela o abismo que se abria entre uma geração sisuda e
preconceituosa e o espírito mais democrático e inclusivo de John Williams. Chamar o jovem de príncipe suge-
re a existência de um único rei, ele mesmo. E nunca passou pela cabeça de Williams estabelecer o “domínio
espiritual” de sua “raça” – seja ela australiana ou inglesa, o que a mensagem de Segovia não deixa claro.

[BG]
O traço mais cativante de sua personalidade é exatamente o contrário: ele é o tipo de pessoa que poderia ser
nosso vizinho, nosso colega de escola ou de trabalho. Ele consegue ser despretensioso sem perder a consci-
ência de seu extraordinário talento, um equilíbrio difícil de se alcançar quando se é uma celebridade aos 18
anos. Isto já era evidente quando ele fez suas primeiras turnês na União Soviética e nos Estados Unidos. Um
souvenir desta primeira fase de sua carreira é a magnífica gravação que fez do Concierto de Aranjuez em
Fliadélfia em 1965.
A Arte do Violão pág. 46

Rodrigo/Dodgson faixa 1
Rodrigo: concierto de Aranjuez, 1o.mov: allegro com spirito 5.55
Orquestra de Filadélfia, Eugene Ormandy / 1965

[Desanúncio] Uma interpretação modelar e até hoje uma das melhores versões desta obra já gravada mais de
100 vezes. Aqui já notamos também a preferência de Williams por alterar o texto original em favor de uma exe-
cução mais fluente: o segundo tema é tocado uma oitava abaixo do original de Rodrigo, evitando o efeito es-
trangulado da região aguda do violão, e muitas das indicações de dinâmica não são respeitadas. Mas nunca
temos a sensação de que ele faz isso para fugir da dificuldade, afinal tudo soa fácil e parece que ele ainda tem
uma larga folga técnica. O que ele quer é que a música soe mais arredondada e natural. Se há uma pequena
crítica é que muitas vezes a ginástica do solista faz parte do efeito dramático da obra, e essa sensação de
perigo iminente está totalmente ausente de sua versão do Concierto de Aranjuez.

[BG – Gentilhombre?]
Seu colega Julian Bream o definiu como um músico apolíneo, onde o equilíbrio, a luminosidade e uma atitude
sadia são os conceitos essenciais, opostos à visão do artista como um ente neurótico. Como ele mesmo já
disse, a idéia de que o estudo é trabalho pesado é um ranço vitoriano. Para ele, a essência da atividade musi-
cal é que ela deveria ser um prazer. E isso é o que emana de suas inúmeras gravações dos anos 60 – um
imenso deleite em ser capaz de se expressar e dominar tecnicamente uma sucessão de grandes obras.

Greatest Hits faixa 21


Paganini: Capricho no 24 6.53
1969

[Desanúncio] Poucos músicos fazem de suas gravações um retrato tão perfeito de sua atuação ao vivo como
John Williams. Eu o vi tocar esta peça várias vezes, e, em uma ocasião, numa das variações que terminam na
região sobreaguda, o seu dedo mindinho simplesmente escapou da corda e ele errou a última nota,
espetacularmente. Silêncio no auditório. Um erro desses é um evento raríssimo num concerto de John
Williams. Ele olhou para a platéia com uma cara de “nem eu acredito que isso aconteceu”. Todo mundo come-
çou a rir e ele prosseguiu, impávido, ainda mais perfeito que antes, até o final, quando o aplauso foi ainda mai-
or que numa situação normal.
Dentro de um legado de cerca de 80 discos, todos igualmente imaculados do ponto de vista técnico, é difícil
escolher as melhores gravações, mas eu acho que algumas de suas versões de música espanhola têm uma
certa impaciência e tensão interna verdadeiramente empolgante.

Spanish Guitar Music faixa 1


Albéniz: Asturias 6.16
1969

[Desanúncio] Realmente, seu ritmo implacável e o cuidado com que gradua o crescendo de volume são
inimitáveis, e a seção lenta definitivamente não é tocada para se escutar sonhando. De acordo com suas pró-
prias palavras, “Segovia pensa a música verticalmente: há pouca tensão e propulsão no seu estilo. O som é
maravilhoso e nada soa apressado, o que sempre foi e continua sendo um estilo maravilhoso. Mas minha sen-
sação é de maior urgência, eu sempre tive esta tensão interna, não importa quão relaxante é a música”.
[BG Bach?] Esta urgência também serve admiravelmente à música de Bach. Suas gravações das obras com-
pletas de alaúde representam uma virada na maneira como se encara Bach ao violão. Ele vê Bach como um
compositor vigoroso, com um forte senso de pulso e consciência do substrato dançante da música barroca. Ao
contrário dos violonistas do passado, ele não se debruça sobre a música, mas conquista o ouvinte pela propul-
são.

LP Columbia presents... faixa 1


Bach: prelúdio BWV 1006 c3´30?

[Desanúncio] Outra característica em que ele se distingue de Segovia e de muitos outros solistas famosos em
qualquer instrumento é a disposição em fazer música de câmara. Segovia jamais dividiria a ribalta. Williams
sente-se mais feliz atuando como parte de um time, e usando seu prestígio para promover música que, sem
ele, não teria muito espaço. Inicialmente suas colaborações foram algo convencionais, como neste esplêndido
quarteto de Haydn.

LP Paganini/Haydn lado 1 faixa 1


Haydn: Quarteto op 2 no 2, allegro 4´13
1968
A Arte do Violão pág 47

[Desanúncio] Mas pouco a pouco ele foi criando outras conexões, e a lista de seus parceiros aumentando. Ele
fez duos com canto, com violino, com órgão, com cravo, duos de violões com vários violonistas conhecidos e
não tão conhecidos, e uma célebre série de concertos com seu suposto rival, Julian Bream. Uma das combina-
ções mais bonitas foi o duo com o grande cravista Rafael Puyana.

LP Music for guitar and Harpsichord faixa 4


Ponce: Preludio 3´30?
Rafael Puyana, cravo
1971

[Desanúncio] Londres devia ser um lugar muito estimulante para uma jovem celebridade nos anos 60.
[BG Tellemann] Seu círculo de amigos incluía Daniel Baremboim, Jacqueline Dupré e F´Ou T´Song, mas tam-
bém os músicos de jazz, uma herança de seu pai – aliás, sua filha, nascida nesta época, é pianista de jazz.
Pouco a pouco ele acompanhou a moda de dar concertos sem casaca, e, ao final dos anos 60, não só estava
tocando vestido com uma camisa florida totalmente paz-e-amor [hoje em dia ele toca com uma roupa esporte e
mocassim], mas também começou a se envolver em espetáculos de fundo político, por exemplo com a cantora
dissidente grega Maria Farandouri ou com o grupo chileno Inti Ilimani. Mas estas experiências são assunto
para o próximo programa.
[Agradecimentos]
A Arte do Violão pág. 48
A Arte do Violão pág 49

PROGRAMA XIII – JOHN WILLIAMS II

“Embora eu tenha morado na Inglaterra a maior parte de minha vida, no fundo eu me sinto mais australiano
que inglês, e mais londrino que qualquer coisa. Há algo no caráter australiano que é uma mistura das melho-
res coisas dos americanos, de encontrar, descobrir, construir; uma atitude bem franca, lacônica. A Austrália
tem vozes originais em arte e música sem aquela coisa horrível de tirar o chapéu e baixar a cabeça para ou-
tros países”. John Williams.

[BG Gowers]
Em 1971 já era considerado um dos grandes mestres do violão e era um veterano em turnês ao redor do mun-
do; sua companhia, CBS, deu-lhe um prêmio por ter vendido mais de um milhão de discos, um feito raro para
um artista clássico que mal havia completado 30 anos. Não demorou muito para que ele percebesse que era
mais divertido tocar em shows que ficar repetindo o Concierto de Aranjuez ao redor do mundo. Ele começou a
se interessar pela guitarra elétrica e encomendou várias obras para este instrumento. Foi também o primeiro
artista clássico a tocar no Ronnie Scott´s, o mais célebre clube de jazz de Londres. Para essa ocasião ele en-
comendou uma obra para o compositor de trilhas sonoras Patrick Gowers, que é um dos poucos exemplos de
cross-over plenamente satisfatórios do ponto de vista artístico.

LP JW plays Patrick Gowers, lado A, início


Gowers: Chamber Concerto, início c.8´00
1971

[Desanúncio] E seu virtuosismo é um show à parte. Os círculos da música clássica ainda eram extremamente
circunspectos e não absorveram essa guinada sem chiar. Segovia disse: “este rapaz está empenhado em des-
truir tudo aquilo que eu levei anos construindo”. John Williams foi acusado de oportunismo, de ter-se vendido
e ser viciado em publicidade. Em 1979, criou um grupo de rock progressivo, o Sky, que teve extraordinário
sucesso, inclusive o privilégio de ser o único grupo de rock a tocar na Abadia de Westminster. Um crítico che-
gou a se perguntar: “o quê um músico que, tocando violão clássico, é um parâmetro de comparação em todo o
mundo, consegue ver num material musical tão inconseqüente? Talvez a posição dos discos nas paradas de
sucesso tornem essa questão irrelevante”.

[BG Cavatina]
O que os críticos não percebiam é que a vida de solista de música clássica pode ser brutalmente solitária e
paralisante. A atitude mais descompromissada e arejada dos músicos de jazz e pop e o caráter artesanal da
música comercial exercem um fascínio inegável. Além de pope jazz, ele gravou várias trilhas sonoras para fil-
mes de sucesso, entre eles Um Peixe Chamado Wanda, Grandes Esperanças e O Franco Atirador.

[BG]
Esta Cavatina de Stanley Myers, o tema deste filme, chegou ao terceiro lugar nas paradas de sucesso.
Muitas destas experiências, que na época impulsionaram as vendas de seus discos, simplesmente passaram
com o tempo; hoje em dia, encontramos com mais freqüência, re-editados em CD, as músicas mais convencio-
nalmente clássicas do lado B destes LPs..

[BG]
Mas isso não quer dizer que ele tivesse abandonado a música séria, muito pelo contrário. Ele não só enco
mendou e estreou inúmeras obras contemporâneas de linguagem bem mais drástica, mas manteve várias co-
laborações de música de câmara num repertório tradicional, como esta com Itzakh Perlman.

Perlman & Williams, faixa 16


Paganini: Cantabile 3´38
1976

[Desanúncio e comentário] ele também participou da gravação das obras completas de Webern sob a regência
de Boulez e da estréia de várias obras contemporâneas de peso, como esta Libra de Roberto Gerhard, uma
obra extraordinária em que o equilíbrio sugerido no título é alcançado através de uma oposição entre a lingua-
gem tonal e atonal e entre a sonoridade dos instrumentos cantantes de um lado e dos percussivos, dos quais
o violão faz parte, do outro.

K7 Gerhard
Gerhard: Libra c.4´00
A Arte do Violão pág. 50

[Desanúncio] Mas o forte de Williams na verdade é sua atuação como solista de orquestra. Sua técnica flexí-
vel, excelente senso de conjunto, boa vontade para colaboração musical e consumado profissionalismo deram
origem a algumas das melhores gravações de um vasto repertório para violão e orquestra, boa parte do qual
foi composto especialmente para ele.

LP Castelnuovo/Arnold/Dodgson, lado B, final


Dodgson: Concerto no 2 para violão, presto c.4´00
Orquestra de Câmara Inglesa, Charles Groves
1977

[Desanúncio] Sem ser exatamente fácil, esta é uma obra acadêmica e que propõe poucos desafios ao ouvinte,
mas ao mesmo tempo ele trabalhava com Leo Brouwer, o grande compositor cubano, numa obra bem mais
experimental.

K7 Brouwer
Brouwer: concerto no 1 alguns minutos
1977

É uma obra em que usa a técnica do improviso controlado. Muito do material que se escuta na orquestra não
passa de blocos pré-determinados de motivos e efeitos sonoros que são embaralhados e repetidos irregular-
mente pelos músicos, e o solista “encaixa” sua parte ao redor destas seções parcialmente improvisadas – uma
técnica que Brouwer aprendeu do polonês Penderecki.

[BG]
[Desanúncio] Williams gravou mais tarde várias outras obras de Brouwer, inclusive o Concerto no.4, uma peça
de sua fase neo-romântica. Dos muitos concertos escritos para John Williams, uma obra que certamente ficará
no repertório de muitas gerações é a de Toru Takemitsu.

[BG Takemitsu]
Takemitsu é o compositor japonês mais conhecido no Ocidente, principalmente através de suas trilhas sonoras
para os filmes de Kurosawa. Sua obra alia o ouvido afiadíssimo para um delicado colorido orquestral – influên-
cia francesa – a uma estética e uma filosofia tipicamente japonesas de se encarar a música como uma comu-
nhão com a natureza: ela é organizada como um jardim japonês, em que os materiais sólidos se posicionam
ao redor da fluidez aquática, e o passeio circular do observador revela novos ângulos de uma essência imutá-
vel. Este concerto para violão, oboé d´amore e uma vasta orquestra é uma homenagem ao pintor espanhol
Joan Miró.

Takemitsu, faixa 12
Takemitsu: Vers, l´Arc-em-ciel, Palma 14´39
1989

[Desanúncio] Muitos desses experimentos de cross-over, de pop e música de cinema ficaram irremediavelmen-
te datados, mas em uma entrevista ele afirmou que está muito mais interessado em manter uma atitude areja-
da com a música e ter liberdade para experimentar o que quer que atraia sua atenção em dado momento. Ele
não grava para a posteridade e não tem o menor interesse pelo que as pessoas possam achar de seu trabalho
no futuro.

[BG – world]
Pode-se dizer que isso é um pouco a filosofia do eu-também, que se volta para um tipo de som que está na
moda, sem muita convicção artística. Claro que há uma possibilidade elevada de erro, porém alguns acertos
históricos também ocorrem, como no caso de Barrios.

Barrios e Ponce faixa 9


Barrios: Cueca 3´26
1977

[Desanúncio] Barrios nunca deixou de ser tocado na América Latina, mas este LP de 1977 marcou o início de
um enorme interesse internacional por Barrios, que hoje é um autor publicado e tocado em todo o mundo.
John Williams é autêntico ao defender uma visão inclusiva das diferentes culturas musicais: para ele, a música
clássica é somente uma linha particular de desenvolvimento que não tem de ocupar necessariamente uma
posição central.
A Arte do Violão pág 51

[BG]
É uma linha de pensamento que ele tem defendido desde os anos 60, muito antes da moda, imposta pelas
grandes companhias, de se fazer do cross-over um caça-níqueis. Ele já chamou a atenção para a música asiá-
tica, australiana, africana, para o jazz e o pop, e nutre uma profunda admiração pela música das Américas. Ao
invés de fazer coletâneas com peças já batidas, ele sempre procura novo material para seus discos e concer-
tos, uma atitude arejada que deveria ser um exemplo para todos os estudantes.

Spirit of the Guitar faixa 1


Andrew York: Sunburst 3´32
1988

[Desanúncio] Nesta gravação ele já exibe o instrumento que tem usado nos últimos anos, feito pelo australiano
Greg Smallman.

[BG – Koyunbaba?]
É um design inovador, que foge por completo da linha tradicional criada por Torres no séc.XIX, e usa um tam-
po finíssimo, esculpido em forma de tela, com um fundo pesado de compensado. É um instrumento de timbre
fosco, mas que produz um considerável ganho de volume e atesta o fato de que o violão ainda é um instru-
mento em desenvolvimento. E é com este olhar para o futuro que terminamos a primeira série d´A Arte do Violão.
[Dedicatória e agradecimentos]
A Arte do Violão pág. 52
A Arte do Violão pág 53

PROGRAMA XIV – LEO BROUWER

Música costuma ser uma atividade intelectual independente, que obedece a seus próprios paradigmas, e onde
o diálogo histórico com a técnica e a linguagem é preponderante. Eventualmente, acontecimentos de ordem
política podem exercer uma influência determinante na orientação estética dos compositores, em casos como
os de Gossec, Beethoven, Meyerbeer, Wagner ou Shostakovich. Na América Latina, temos o caso de Villa-
Lobos e de sua guinada populista na Era Vargas. E em Cuba, um grande compositor e violonista pode ser es-
miuçado à sombra dos eventos da Revolução Comunista: uma personalidade carismática, uma criatividade
irrequieta, pujante e otimista e um talento único para a mediação entre a discussão acadêmica da música clás-
sica pós-moderna e sua tradução para a massa do público: Leo Brouwer.

BG - Quinteto
Leo Brouwer pode ser apontado, com segurança, como o mais importante compositor-violonista da atualidade,
legítimo herdeiro de uma tradição que começa com Luys Milan no séc XVI e passa por Sor, Giuliani e se am-
plia com Villa-Lobos, que parte do violão como base de uma produção sinfônica. Ele nasceu em 1939, filho de
um cientista e violonista amador de origem holandesa e parente, por parte de mãe, do grande compositor
Ernesto Lecuona. Inicialmente, ele aprendeu guitarra flamenca sob a influência de seu pai, e aos 12 anos pas-
sou a estudar com o grande pedagogo cubano do violão, Isaac Nicola, que havia sido aluno de Emílio Pujol.

BG – Scarlatti
Estas são palavras do próprio Brouwer: “Eu era louco pelo flamenco, mas com Isaac Nicola meu horizonte se
ampliou e descobri um universo insuspeito entre as seis cordas. Este mestre e amigo não só nos colocou ante
uma tradição, a espanhola, e ante o modo como esta se fundia com nossa identidade, mas seu mérito reside
em haver-nos incitado a entender o violão como uma aventura intelectual, e a entender que a aparente humil-
dade do violão escondia uma nobreza indescritível e infinita”.
O respeito pela tradição acompanha Brouwer até hoje e pouco a pouco tem se transmutado numa estética de
sincronicidade, em que os eventos musicais se sucedem numa linha contínua, mas se amalgamam de forma
simultânea na consciência do compositor contemporâneo.

Bach – Siciliana (sonata p/ violino BWV 1001) 3.05

[Desanúncio e comentários sobre a pronúncia e estilo] Desde o primeiro momento Brouwer se afirma como
criador e inicia uma sucessão de obras para violão que se movem numa esfera correlata ao nacionalismo es-
sencial de um Bártok. Esta pequena “Peça sem Título”, uma micro-obra-prima, já demonstra a certeza da for-
ma, a economia de material, o entendimento do potencial da música folclórica cubana na libertação da métrica
quadrática tradicional, a perfeição na condução das vozes e a originalidade harmônica. Escrita quando
Brouwer tinha apenas 17 anos, ela é de precocidade verdadeiramente mendelssohniana.

Brouwer – Pieza sin Titulo no. 1 1.20


Marcelo Kayath, violão Fleta

[Desanúncio] Brouwer diz que, na Cuba dos anos 50, o acesso às obras mais modernas era limitado e, desco-
nhecendo obras de vanguarda para violão, ele quis compor aquilo que o instrumento não tinha, o equivalente
violonístico das obras de Bártok ou Stravinski.

BG – Danzas Concertantes
A Revolução Cubana em 1959 reformulou, muitas vezes à força, todos os aspectos da sociedade. Brouwer, já
considerado o maior talento jovem da composição cubana, e um ativo militante da revolução, ganhou uma bol-
sa de estudos para os EUA, onde estudou composição por um ano. De volta a Cuba, atualizado com a produ-
ção da vanguarda, tornou-se uma figura dominante na vida musical do país, definindo os rumos do ensino mu-
sical, participando de comissões orquestrais, de produção cinematográfica e de órgãos governamentais de
cultura e educação. Como violonista e compositor, tornou-se artigo de exportação da nova Cuba e visitou festi-
vais de música contemporânea como representante oficial – e nestes sofreu a profunda influência do
aleatorismo e efectismo de Penderecki e Maderna. Suas credenciais de revolucionário permitiram-no estabele-
cer a experimentação de vanguarda na agenda da produção musical cubana. Segundo suas próprias palavras,
“inovar é uma condição intrínseca a qualquer adepto da Revolução; restringir ou subestimar as massas é que
é uma atitude burguesa”.

BG – concerto para violino, c. 30 segundos


Os anos 60 e 70 marcam sua fase mais experimental, de um alinhamento multifacético com as várias vertentes
de vanguarda, quando ele compôs obras orquestrais de peso e flertou com a música eletrônica. Este concerto
A Arte do Violão pág. 54

para violino e orquestra, que estamos ouvindo, antecipa a inclinação dos compositores da década de 80 de
produzir um argumento polissêmico através da fricção de elementos estilísticos heterogêneos. Após uma intro-
dução de escrita descontínua, baseada em relações de tensão, a cadência inicial do violino nos remete ao
universo dos grandes concertos românticos de Brahms e Bruch, que, por sua vez, prestam honras à grande
escola do violino barroco italiano.

BG sobe
[desanúncio] Mas é nas obras de violão que a reputação internacional de Brouwer se firma, e com razão.
Pode-se dizer que estas obras constituem uma perfeita introdução à produção contemporânea, por traduzirem
o discurso muitas vezes hermético da produção dos anos 60 em termos palpáveis e acessíveis até ao ouvinte
desavisado; esta tradução é efetuada em obras tecnicamente acessíveis, que prescindem de complicações de
notação e privilegiam a improvisação controlada ao invés de uma desnecessária complicação métrica. No no-
tável “Canticum”, de 1968, ele faz uma síntese das possibilidades de organização intervalar encontradas em
obras de compositores mais “densos”. Nesta obra, ele se inspira na transformação da larva, dentro de um ca-
sulo, em borboleta. O potencial estético da borboleta é comprimido no acorde inicial, que concentra simultane-
amente todas as relações intervalares desdobradas ao longo da peça: o semitom (ex.), a 7a. maior, que é sua
inversão (ex.), o trítono (ex.), a 4a. justa (ex.), e a 6a. menor (ex.); combinadas, elas formam este acorde
arquetípico (ex.). Estas relações são organicamente desfiadas, explorando várias possibilidades de articula-
ção: o semitom melódico descendente (ex.) ou em volteio ornamental (ex.), a granulação das sétimas (ex.), a
tremulação (ex.) e sua progressiva permuta em forma de deslizamento (ex.), de articulação dura (ex.) e de re-
petição espiralada (ex.). A primeira parte tem um caráter improvisatório e pontilhista, enquanto a segunda ad-
quire um coração, na forma de um pedal pulsante (ex.). É difícil acreditar que uma obra que soa tão espontâ-
nea obedeça a um projeto ditatorial em que absolutamente todas as notas, sem exceção, pertencem a uma
seleção pré-estabelecida de intervalos.

Brouwer – Canticum 4.01

[desanúncio] Brouwer retoma a idéia medieval da música como um reflexo da ordem cósmica em “La Espiral
Eterna”, de 1971, que deveria ser estudada como uma das obras modelares do século XX. Partindo de uma
citação de um livro de astrofísica de Withrow, “pela primeira vez revelou-se nos céus a famosa estrutura espi-
ral empregada com profusão pela natureza no mundo orgânico”, Brouwer desenvolve em termos musicais a
idéia de que as mesmas estruturas são encontradas no cosmos e nas criaturas vivas. A obra é dividida em 5
seções: na 1a, ouvimos este volteio de 3 notas (ex.), que, repetido à velocidade máxima, sugere um movimen-
to espiralado (ex.), que parte do silêncio e que, na total ausência de ataque, sugere uma nuvem de gás. A pri-
meira nota atacada marca o início da 2a seção, que, na sua materialidade, anuncia a presença dos materiais
sólidos (ex.) em adição ao material gasoso, que gradualmente penetra no espaço microtonal (ex.). A 3a seção,
composta unicamente de golpeios sobre o braço do violão, em ritmo propositalmente irregular, mantém o pa-
drão de 3 notas no início (ex.) e sugere o início da atividade molecular que marca a aparição das formas de
vida na seção 4. Somente um cubano poderia simbolizar o aparecimento de vida com um ritmo de dança: a
seqüência de 3 notas do início é esgarçada em intervalos mais amplos – o que, de novo, sugere uma estrutura
espiralada – e o intérprete improvisa com elas uma dança, aqui e ali interrompida por intervenções – que seri-
am, talvez, formas orgânicas - de complexidade crescente (ex.). Isto desemboca na 5a. seção, em que o mate-
rial é aberto no limite da possibilidade do violão, usando a nota mais grave e a mais aguda (ex.) e levado à
dissolução (ex.). E esta dissolução deixa a obra em aberto, sugerindo o eterno retorno do mesmo ciclo da na-
tureza. É uma das raras obras contemporâneas que, executadas ao vivo, compelem o ouvinte a um total
engajamento e o convencem de uma verdade oculta que está bem além de uma simples organização casual
de notas.

Brouwer – La Espiral Eterna 7.29

[desanúncio] Nesta altura Brouwer, compositor e intérprete, foi adotado como o troféu da vanguarda européia
de inclinação esquerdista. Luigi Nono e Hans Werner Henze visitaram Cuba e se encantaram com seu talento;
isto abriu-lhe as portas do circuito internacional de música contemporânea e vários compositores escreveram
obras que ele tocou e gravou para o selo alemão Deutsche Grammophon. Uma das mais notáveis é o recital
para barítono, flauta, percussão e violão de Hans Werner Henze: “El cimarrón”, baseado no relato autobiográ-
fico de um escravo fugitivo, um raro caso de obra socialmente engajada que sustenta um escrutínio puramente
musical.

BG - El Cimarrón c.3.00
[desanúncio] Ao lado de uma frenética atividade como compositor, Brouwer passou a fazer extensas turnês
como intérprete, criando um amálgama muito pessoal de defesa da música experimental e seu complemento
na música popular, de investigação do estilo histórico de interpretação de música antiga e de um personalismo
A Arte do Violão pág 55

e uma expressão apaixonada verdadeiramente românticos.


Nos anos 50, o movimento de investigação da interpretação histórica tomou corpo; pouco a pouco, o uso de
instrumentos originais, de conceitos esquecidos de articulação e fraseado e de evidência histórica para a reali-
zação da ornamentação tomaram o mundo musical de assalto e levaram os intérpretes do repertório convenci-
onal a reverem suas posições. No violão, Leo Brouwer foi um pioneiro e um dos primeiros a adotar uma reali-
zação dessa nova filosofia da interpretação sobre o violão moderno. Ouçamos o que o próprio Brouwer tem a
falar sobre sua interpretação da suíte em ré menor do compositor Robert de Visée:

Comentário 2.00c
Visée – Suíte em ré menor 4.00c

[desanúncio] Visée é um dos compositores supremos do barroco francês. Ele foi o professor particular de gui-
tarra barroca do rei Luís XIV. A interpretação de Brouwer é extraordinariamente inventiva sem pôr de lado o
aspecto de baile dos movimentos de dança; a ornamentação reflete o entusiasmo inicial do movimento de mú-
sica antiga pela liberdade criativa, mas para os padrões atuais poderíamos dizer que é um pouco carregada
demais, mas a seu crédito podemos dizer que alguém precisava abrir as portas bruscamente para que outros
músicos pudessem se dar conta do vasto espaço a ser explorado.
BG - Fariñas
Já no repertório romântico, ele é um legítimo herdeiro da tradição espanhola de Llobet e Segovia, como de-
monstra esta sublime interpretação, de envergadura orquestral, de Manuel de Falla.

Falla – Pantomima (El Amor Brujo) 4.17

[desanúncio] Quase sempre ele traz uma visão de compositor ao repertório mais tradicional. Neste conhecido
estudo de Villa-Lobos, ao invés de manter a simetria da progressão harmônica [ex.], ele valoriza uma relação
secundária e interrompe a marcha harmônica [ex.], uma leitura imaginosa e que não se atém à notação de
Villa-Lobos. Numa interpretação mais rigorosa, esta passagem soaria assim:
Zanon -
A interpretação de Brouwer, ao contrário, soa ao mesmo tempo rapsódica e analítica:

Villa-Lobos – Estudo no.7 2.11

[desanúncio] Importantes como foram estas inovações, é o trabalho de Brouwer com a linha mais extrema do
repertório contemporâneo que o coloca na linha de frente do violão contemporâneo. Simplesmente não havia,
nos anos 70, nenhum outro violonista capaz de tocar com tanto rigor e entendimento as obras de Maderna,
Cristóbal Halffter, Ohana, Henze, Cornelius Cardew ou Bussotti. Para falar a verdade, à exceção de John
Williams, eu não consigo pensar em nenhum outro violonista que conseguisse, nos anos 70, sequer decifrar a
partitura desta obra de Juan Blanco, para violão e tape, onde Brouwer toca um dueto consigo próprio.

Juan Blanco – Contrapunto Espacial III-c 2.00c

[desanúncio] Esta multiplicidade de interesses se reflete em algumas de suas composições dos anos 70. Nes-
te duo, o discurso entrecortado, onde os dois violões perseguem-se aleatoriamente, é subitamente interrompi-
do por uma citação de Beethoven. Uma figura em harpejo, talvez uma vaga lembrança de uma canção popular,
sobrevoa a textura como uma fantasmagoria, perpassando os dois violões de forma de-sincronizada e servin-
do como um fluido pano de fundo ao pontilhismo da boca de cena. O efeito é teatral: linguagens opostas con-
vivem num ambiente orgânico, assimétrico, como se toda a história da música fosse ouvida de relance, num
sonho, com um efeito quase psicodélico.

Brouwer - Per Suonare a Due 3.00

[desanúncio] No final dos anos 70, Brouwer teve um problema com uma de suas unhas da mão direita e, para
manter seu apertado calendário de concertos, estudou todo um programa sem usar aquele dedo. Infelizmente,
ao final da temporada, o esforço afetou seus movimentos, o dedo se atrofiou e sua mão direita incapacitada
encerrou, para sempre, sua carreira de violonista. Ele não se deixou abater e, além de incrementar a carreira
de compositor, passou a dedicar-se, com igual competência, à regência. Isso coincidiu com uma guinada na
sua orientação estética.

BG
De acordo com suas palavras, “com o tempo, eu percebi uma saturação da linguagem da chamada vanguarda.
O que aconteceu é que este tipo de linguagem atomizada, seca e tensional sofreu, e ainda sofre, um defeito
A Arte do Violão pág. 56

relacionada à essência do equilíbrio composicional, um conceito que está presente na história: movimento,
tensão e seu conseqüente repouso ou relaxamento. Esta “lei de forças opostas” – dia-noite, masculino-femini-
no, yin-yiang, tempo de amar, tempo de odiar – existe em todas as circunstâncias da humanidade. A vanguar-
da sentia falta do relaxamento das tensões. Não há ente vivo que não descanse. Dessa maneira, eu fiz uma
regressão na direção da simplificação dos materiais composicionais. Este é o que considero minha última
fase, que chamo de “Nova simplicidade”, e que abrange os elementos essenciais da música popular, da músi-
ca clássica e da própria vanguarda. Elas me ajudam a dar contraste às grandes tensões”.
BG sobe
Esta guinada a uma nova simplicidade informada pelo minimalismo, certamente um reflexo da época
globalizada e do enfraquecimento das certezas etnocêntricas da cultura clássica, levou Brouwer a compor al-
gumas de suas obras mais populares, como a Sonata e El Decameron Negro, além de mais 7 concertos para
violão e orquestra. Como regente, ele já se apresentou frente a algumas das maiores orquestras do mundo e
fixou-se como diretor musical da Orquestra de Córdoba, na Espanha, Para ilustrar esta fase, que se estende
de 1980 até hoje, ouviremos um trecho de seu 2o. Concerto para violão, uma de suas obras mais representati-
vas, onde ele exibe seu brilhantismo como regente.

Brouwer – concierto de Liege 10.00c

[desanúncio] Coberto de honrarias em Cuba e ao redor do mundo, vivendo na Europa mas representando seu
país em vários organismos internacionais, hoje Brouwer é uma das figuras mais requisitadas do circuito inter-
nacional de violão, e recebe encomendas de obras novas o suficiente para mantê-lo ativo por décadas. Ao
contrário de Villa-Lobos, que pouco a pouco se afastou do violão para se concentrar em obras sinfônicas,
Brouwer situou-se como um líder, ao optar por enriquecer o papel do instrumento como um fundamental medi-
ador entre a música clássica contemporânea e a esfera da música popular e da world music. Isso só foi possí-
vel pela emergência, nos anos 70, de um circuito internacional de festivais e sociedades de violão clássico,
um fenômeno que será explorado nos próximos programas.
[Agradecimentos – Ragossnig, Ghiglia, Ponce]
A Arte do Violão pág 57

PROGRAMA XV – KONRAD RAGOSSNIG, OSCAR GHIGLIA

O final dos anos 50 constituem um período de transição na história do violão. Andrés Segovia, o patriarca, por
um lado imprimia no inconsciente do público a idéia de que o violão era um show de um homem só. Por outro
lado, uma vasta massa de aficionados e amadores começava a construir um público fiel, informado e aberto
para outras possibilidades, que já se materializavam nas incipientes carreiras de Narciso Yepes, Julian Bream
e John Williams. Em vários países, o violão já fazia parte do curriculum dos conservatórios e universidades,
profissionalizando o ensino do instrumento, o que intensificou a expectativa do público no que se referia à téc-
nica e à proficiência musical. Revistas e programas de rádio especializados em violão apreciam por toda parte.

BG
A situação parodoxal que se criou, neste período, e que perdura até hoje, é a de que o violão é, por um lado, o
instrumento mais tocado em todo o mundo, mas ao mesmo tempo, na esfera da música de concerto, ele ocupa
uma posição periférica. A capacidade de mediação do violão é, infelizmente, mal explorada. As programações
de orquestras sinfônicas ou de séries de recitais, em qualquer cidade, com razões pouco fundamentadas, rara-
mente absorvem mais do que um ou dois solistas de violão por temporada.
O leal público de aficionados do violão passou, no final dos anos 50, a contornar a falta de oferta de maneira
artesanal: criando clubes, sociedades, programas de rádio e festivais dedicados exclusivamente ao violão
clássico, que hoje constituem, em todo o mundo, a base da carreira de muitos solistas.

BG
Este período também marcou a elevação do perfil dos concursos internacionais de interpretação musical, um
fenômeno esquentado pelo clima de guerra fria e pela teledifusão de eventos esportivos. O violão, na tentativa
de emular os outros instrumentos solistas, não poderia ficar de fora desta tendência por muito tempo e, em
1960, foi criado o primeiro grande concurso internacional de violão, em Paris. Este concurso anual, organizado
sob a égide da Radio e Televisão Francesa, foi criação de Robert Vidal, um aficionado fanático e um dos maio-
res conhecedores de violão e violonistas que já houve. Ele já apresentava um programa regular de violão clás-
sico, mais ou menos como este nosso, na Radio France, porém o Concurso, por ele comandado, tornou-se o
evento mais esperado e comentado do calendário internacional de violão e lançou as carreiras de dezenas de
jovens praticamente desconhecidos até ser desativado em 1993, quando o exemplo já havia sido imitado em
todo o mundo e um verdadeiro circuito de fórmula 1 de concursos de violão estava instaurado. Entre os primei-
ros vencedores deste evento de importância incalculável, e aquele cuja carreira provocou reverberações que
superavam o gueto do violão, foi o austríaco Konrad Ragossnig.

BG
Nascido em Klagenfurt em 1932, Ragossnig estava longe de ser um novato quando sua carreira foi acionada
através do prêmio em Paris. Ele já havia feito estudos com Karl Scheit e com Segovia e já tinha sido apontado
professor na Academia de Música de Viena. O prêmio em 1961 trouxe à luz um violonista de sólida cultura
musical, ampla experiência em música de câmara e um natural equilíbrio de concepção que tinha muito a ofe-
recer no cenário internacional, como já demonstram suas primeiras gravações.

BG
LP Guitar Recital
Torroba: Madroños

A arte de Ragossnig se define por uma sonoridade líquida e penetrante e por uma sensação de calma e sere-
nidade que perpassa todas as suas interpretações. Nesta gravação de uma obra de Granados, difícil de imagi-
nar sem o ardor da versão de Segovia, ouvimos um artista que deixa o argumento musical escorrer como o fio
de um azeite finíssimo, sem pressa, sem suor e com uma clareza de expressão que só posso definir como
puro alto astral.

K7
Granados: Danza Española no.10 c.4.30

[desan] Não se pode dizer que Ragossnig tenha aberto um universo de novas possibilidades no violão. Ele se
contenta em percorrer com maestria superior o caminho previamente aberto por outros violonistas. Ouçamos
por exemplo esta interpretação de Villa-Lobos, um compositor que já estava na ordem do dia nos anos 60: a
melodia é tratada com carinho e está sempre destacada, mas sem ansiedade; os acordes são ligeiramente
espalhados, com um harpejo delicadíssimo, que soa como um cabelo bem penteado; as difíceis mudanças de
posição da mão esquerda são manejadas imperceptivelmente; e as mudanças de sonoridade entre as seções
são discretas, como convém ao caráter preguiçoso da peça.
A Arte do Violão pág. 58

Lp Guitar Recital
Villa-Lobos Prelude no 5 3.40

[desanúncio] Vários compositores, na maioria austríacos ou suíços, dedicaram obras a Ragossnig, mas pou-
cas delas entraram para o cânone do repertório como aquelas feitas para Segovia ou Julian Bream. É uma
pena. Ouçamos, por exemplo, este concerto de Bondon. É uma obra vigorosa, original, de orquestração fulgu-
rante, de alto interesse rítmico, com um preciso manejo dos diálogos entre o solista e a orquestra e que sus-
tenta um timing perfeito para o desenrolar de cada idéia. Seu ritmo seco e pontiagudo trai a influência de
Darius Milhaud. Ragossnig toca com impecável virtuosismo – virtuosismo-virtude, que nunca chama a atenção
para si próprio.

LP Bondon
Bondon: Concerto de Mars 3o mov 8.00?

[des.] Eu costumo encarar Ragossnig como uma contrapartida germânica para o historicismo britânico de
Julian Bream. Eles têm muito em comum – ambos estudaram piano e violoncelo, ambos se interessaram por
música de câmara, pelo repertório renascentista e barroco, e ambos, num dado momento, preferiram tocar o
alaúde. Ele também trouxe à luz obras pouco conhecidas de autores de enorme importância histórica. Esta
Chaconne, que é tocada com elegância e flexibilidade expressiva e raro bom gosto para ornamentação, foi
escrita por Robert de Visée, um dos mais significativos compositores do barroco francês, professor de guitarra
do rei Luís XIV.

LP La Guitare Royale
Robert de Visée: Chaconne 3.21

[dês.] Mas a maior parte da discografia de Ragossnig é dedicada à música de câmara.

BG
Ele fez duos com voz, com flauta doce e transversal, com cello, com cravo, duos e trios de alaúdes e de vio-
lões, e até com órgão. Parece absurdo? Escutem só este magnífico madrigal de Gabrieli. É uma obra sem
instrumentação especificada; dois grupos escritos a 4 vozes são colocados em oposição antifonal. Um arranjo
contemporâneo feito para 2 alaúdes sugeriu esta versão, onde a mudança de registros do órgão é eficazmente
espelhada no controle de colorido do violão.

LP órgão –
Gabrieli – Lieto Godea Sedendo 5.01

[dês.] Suas gravações trouxeram à luz o pouco explorado repertório para conjuntos de alaúdes, que hoje é o
arroz-com-feijão dos alaudistas historicamente informados. Vale notar que, como Julian Bream, ele toca um
alaúde adaptado, com uma técnica mais próxima à do violão. Esta gravação ilustra a personalidade gentil e
altiva, de um verdadeiro cavalheiro de eras em que boas maneiras e modéstia eram qualidades, que é Konrad
Ragossnig.

LP 2 ou 3 Alaúdes
Anon: De la Trumba 2.50

[des.] Em 1963, o vencedor do primeiro prêmio do Concurso de Paris foi o italiano Oscar Ghiglia.

BG - Tarantela
Assim como Ragossnig, Ghiglia já era um músico de considerável experiência quando o prêmio em Paris o
consagrou. Ele nasceu em Livorno em 1938; seu pai era um artista plástico e tudo levava a crer que ele segui-
ria o mesmo caminho. Conta ele que, num belo dia, seu pai quis fazer um retrato da família. Para acalmar o
garoto de sete anos, que não queria ficar sentado na pose correta, o pai lhe deu um violão. Quando o quadro
ficou pronto, o menino tinha posto de lado os pincéis e queria ser violonista. Ghiglia estudou na Academia de
Santa Cecília em Roma e tornou-se o aluno favorito de Segovia nos festivais de Siena e Santiago de
Compostela. Quando venceu o concurso de Paris, Ghiglia já estava sendo convidado por Segovia para ser seu
assistente.

LP The Guitar in Spain


Albéniz: Zambra Granadina 3.49
A Arte do Violão pág 59

[dês.] Nesta gravação fica fácil ver por quê Ghiglia tornou-se alvo da afeição de Segovia: uma sonoridade ro-
busta, de coloração judiciosa e discreta, e que consegue criar um impacto singular com a dosagem certeira
entre espontaneidade e estratégia estrutural, onde as belezas localizadas são revestimentos para um passo
rítmico firme e um fraseado de notável plasticidade.

BG
LP The Guitar in Spain - Sanz

O que mais impressiona em Oscar Ghiglia é a majestosa autoridade de sua concepção musical. O ouvinte
pode até cogitar outras possibilidades interpretativas, mas é massacrado pela total coerência intelectual, pela
convicção com que ele ataca a obra num andamento que parece funcionar em todas as situações. Todos os
elementos são postos na balança e sofrem um inquérito, e o resultado é um veredicto, soa como lei.
Isto é particularmente evidente em suas interpretações de Bach. Nesta fuga, a simetria das entradas do sujeito
principal é mantida com um minucioso controle do volume de cada nota. A articulação é mantida obsessiva-
mente em toda a peça, o que produz uma delicada continuidade de fluxo na seção central. Ele soa como um
tranqüilo passeio de barco num rio de águas límpidas, onde cada entrada do tema é apenas uma pedrinha
jogada na água.

LP Oscar
Bach: Fugue c.6.40

[dês.] Outro compositor ao qual ele dedicou muita reflexão é o mexicano Manuel Ponce, um favorito de
Segovia.

BG – Ponce

Ponce hoje parece ter conquistado um espaço cativo no repertório do violão, o que não deixa de ser surpreen-
dente. Ninguém contestará a nobreza de sua inspiração, mas ele não é um original – pelo contrário, é um com-
positor bem acadêmico, que escreveu sonatas de feitio didático, onde os temas são apresentados de maneira
estanque, o desenvolvimento, apesar de engenhoso, parece destacado do resto da peça e a recapitulação é
algo convencional. Ghiglia parece ter encontrado a receita certa para esta música: correta proporção de anda-
mentos e paciência para esperar o momento certo de se desencadear um único ponto culminante. Isto dá mais
propósito à forma e o discurso passa a soar como um monólogo interior.

LP
Ponce: Sonata III 3o mov. c.6.00

[dês.]
BG Segovia

Em meados dos anos 60, Ghiglia parecia ter tudo para uma carreira primorosa, que extrapolasse o restrito cir-
cuito dos festivais de violão: a mão benevolente dee Segovia, um contrato com uma gravadora multinacional,
técnica e cultura musical irretocáveis, mas algumas oportunidades foram desperdiçadas. Sua atividade em
música de câmara foi pequena e inexpressiva. Uma personalidade extremamente independente levou-o a pas-
sos algo bizarros, como um período de residência no Taiti, que o isolou dos grandes centros musicais. E, prin-
cipalmente, a intransigência ao trilhar um caminho que já tinha sido percorrido por Segovia: ele não explorou
novos caminhos no repertório e a percepção do público resumiu-se a vê-lo como o embaxador post-mortem do
mestre espanhol, uma avalição injusta para um artista tão original. A arte de Ghiglia, hoje, é apreciada princi-
palmente nos inúmeros cursos que dá, professor inspirado que é, ao redor do mundo, e no conservatório de
Basiléia, na Suíça, onde é o catedrático de violão.
[agradecimentos]
A Arte do Violão pág. 60
A Arte do Violão pág 61

PROGRAMA XVI – TURÍBIO SANTOS E CARLOS BARBOSA-LIMA

A única coisa que se rivaliza com o futebol na identidade do Brasil para o mundo é provavelmente o violão. Ele
veio ao Brasil com os portugueses na forma de vihuela e guitarra barroca e, depois da independência, sua
participação na formação da identidade nacional foi se tornando cada vez mais forte.

BG
Na literatura brasileira, o violão é sempre posto nas mãos do boêmio, do capadócio, da pessoa de moral duvi-
dosa. Mas já no início do séc. XX há algo no ar dizendo que o violão terá um papel glorioso a cumprir na cultu-
ra nacional. Américo Jacomino, o Canhoto, é provavelmente o primeiro concertista de violão do país, mas pou-
co o distingue dos não-tão-concertistas João Pernambuco e Quincas Laranjeiras. Esta distinção talvez nunca
se torne muito nítida, felizmente; assim podemos ter o melhor de ambos os mundos: grandes concertistas de
música clássica e grandes criadores de música instrumental brasileira.

BG sobe
O violão clássico brasileiro levou tempo a conquistar um espaço internacional. Uma das mais fortes razões foi
a falta de sistematização do ensino, que impediu muitos talentos de desabrocharem plenamente. Isto veio nos
anos 40 e 50 com o uruguaio Isaías Sávio, que incluiu o violão nos cursos de conservatório do país, e que
formou uma primeira geração de violonistas plenamente treinados no repertório clássico.
O primeiro concertista brasileiro a conquistar um espaço no exterior foi Laurindo de Almeida, que chegou aos
EUA como membro do Bando da Lua de Carmen Miranda. Sua carreira pendeu para o jazz e será tratada num
outro programa mais adiante. Pode-se afirmar com segurança, então, que o 1o. violonista brasileiro a fazer
uma carreira expressiva no exterior exclusivamente como violonista clássico foi Turíbio Santos.

BG
Ele nasceu no Maranhão em 1940 e mudou-se com sua família para o Rio de Janeiro, onde estudou com Antô-
nio Rebello, um grande divulgador do violão clássico no Rio e um irmão espiritual de Isaías Sávio. Mais tarde
ele também teve aulas com outro uruguaio, Oscar Cáceres. Sua estréia como concertista foi em 1962 e, no
ano seguinte, o Museu Villa-Lobos convidou-o a gravar em estréia mundial os 12 estudos de Villa-Lobos.

BG
Turíbio, ainda menino, teve o privilégio de conhecer Villa-Lobos e travar conhecimento em primeira mão com
sua criatividade torrencial, além de discutir aspectos da interpretação de sua obra. Esta sua primeira grava-
ção, portanto, reveste-se de uma autoridade indiscutível e continua sendo uma referência para a infinidade de
outras versões que vêm sendo feitas desde então.

LP Villa Lobos
2 Estudos C.8.00

[desa.] O intérprete já disse que Villa-Lobos é um compositor que se toca sozinho, que não requer a imposição
de uma interpretação individual; ou seja, uma vigorosa execução daquilo que está escrito na partitura é sufici-
ente para que essa música aconteça plenamente, uma visão que compartilho: nada mais xarope que uma in-
terpretação preciosista de Villa-Lobos.

BG
Em 1965, Turíbio Santos tomou parte no Concurso Internacional da Radio France em Paris e obteve o primeiro
prêmio. Este feito sem precedentes transformou-o numa celebridade dentro do meio musical brasileiro e mar-
cou o início de uma guinada para a aceitação do violão como um instrumento de concerto pleno, algo de que
ainda se duvidava dentro dos meios musicais mais conservadores. Esta é a gravação feita na Inglaterra logo
após a vitória em Paris: realmente ele estava preparado de maneira impecável, e esta gravação feita ao vivo
poderia tranqüilamente passar por um CD gravado em estúdio.

CD Turíbio em Paris

[desa.] As portas para uma carreira internacional estavam abertas: ele fixou-se em Paris por 10 anos como
professor do Conservatório Municipal e tocou regularmente nos maiores centros musicais, freqüentemente à
frente de importantes orquestras, ocasionalmente dividindo o palco com artistas do calibre de Yehudi Menuhim
A Arte do Violão pág. 62

ou Christian Lardé. Gravou dezenas de discos no Brasil e na França, onde escutamos suas principais qualida-
des: uma sonoridade potente e algo áspera, que tende a explorar os efeitos mais elementares de contraste
sonoro; um forte conceito de pulso, seguro e simétrico, que promove a unidade interpretativa; e um conceito
de interpretação despojado, que não tenta se impor à música.

CD Spanish Music, faixa


Albéniz – Malagueña

De volta ao Brasil, Turíbio estabeleceu o curso de violão nas universidades do Rio de Janeiro e envolveu-se
de corpo e alma na vida musical do país. Por muitos anos, ele foi o único violonista a tocar regularmente à
frente das orquestras brasileiras e nas maiores séries de concertos, vencendo o preconceito e desbravando
um caminho para violonistas mais jovens. Compositores como Edino Krieger, Almeida Prado e Marlos Nobre
dedicaram-lhe obras de envergadura. Mais tarde, tornou-se diretor da Sala Cecília Meirelles e, depois do fale-
cimento da viúva do compositor, diretor do Museu Villa-Lobos, onde tem feito uma administração excepcional;
graças a ele, hoje está preservado e disponibilizado o legado escrito e gravado de nosso maior compositor.

BG
Turíbio continua sendo um solista bastante requisitado mas, mais recentemente, tem se dedicado a promover
uma ponte entre o universo mais ortodoxo do violão clássico e a tradição do violão popular brasileiro. Uma boa
parte de seus recitais são compostos exclusivamente de música brasileira; não só tem colaborado com artistas
como Paulo Moura e Olívia Byington, mas tem também gravado o legado de compositores como João
Pernambuco.

CD da Radio: escolher c.4 min.

[desanuncio] Nos anos 30, o concertista uruguaio Isaías Sávio decidiu estabelecer-se como professor em São
Paulo e operou uma transformação no ensino do violão no Brasil: ele formou centenas de estudantes, publicou
métodos, criou uma cultura para o violão clássico e foi uma figura determinante para a inclusão do violão nos
programas de conservatório e universidade do país. Hoje, podemos dizer que praticamente todo estudante de
violão no país é um neto ou bisneto de Isaías Sávio. Uma figura dinâmica e livre de preconceitos, ele estimu-
lou seus alunos a desenvolverem um caminho próprio e muitos deles, como Luís Bonfá e Toquinho, mesmo
tendo um embasamento no violão clássico, transformaram-se em ícones da música popular brasileira. No final
dos anos 50, um de seus alunos começou a chamar a atenção por sua precocidade incomum: Antonio Carlos
Barbosa Lima

BG
Ele nasceu em São Paulo em 1944 e começou a estudar violão muito menino por influência do pai. Aos 11
anos, conheceu Isaías Sávio que, encantado com sua habilidade natural, lhe disse: “se você estudar comigo,
eu não vou te tratar como criança, mas como um estudante adulto especial”. Seu desenvolvimento foi
rapidíssimo e, com apenas 12 anos, fez o seu debut com estrondoso sucesso em São Paulo e no Rio. Em sua
estréia na TV dividiu o palco com João Gilberto, que lançava a bossa nova, no programa do Chacrinha. Pouco
depois, realizou suas primeiras gravações, um verdadeiro milagre de precocidade.

K7 Barbosa Lima
Castelnuovo Tedesco Vivo e enérgico c.3.30

[desa.] Esta é uma gravação absolutamente incomum. Já seria excepcional somente pelo fato de Barbosa
Lima ter apenas 12 anos na ocasião, mas consideremos as condições sob as quais foi feita: o Brasil, na épo-
ca, ainda não tinha uma cultura para o violão clássico e não havia praticamente nenhum intérprete capaz de
servir como modelo para o garoto, numa obra de tal complexidade; as condições de gravação eram primárias,
tudo é tocado num único take; não havia violões de qualidade e o instrumento que ele usa é precário, uma
verdadeira caixa de cebolas. Seria o equivalente a um pianista de 12 anos gravar uma sonata de Chopin, sem
nunca ter visto outro pianista tocá-la, usando um piano de armário. As pequenas imperfeições inclusive dão
um lustro de autenticidade, e mostram que não se tratava de um pequeno autômato treinado para reproduzir
as idéias do professor. Somente a título de comparação, John Williams, que fez sua primeira gravação no
mesmo ano com 17 anos de idade, mas ele já contava com um grande instrumento, uma infra-estrutura educa-
cional e técnica e, claro, a orientação de nada menos que Andrés Segovia.
A Arte do Violão pág 63

BG
Aos 15 anos ele já era um veterano dos palcos e exibia um dinamismo contagiante, uma técnica segura e flexí-
vel e uma incrível capacidade para aprender peças novas com rapidez e manter um extenso repertório. Ouça-
mos uma gravação que fez nos poucos anos mais tarde do concerto do compositor argentino Eduardo Grau.
Nesta ocasião, ele teve de substituir um outro violonista impossibilitado de tocar e aprendeu a obra, para sua
estréia, em apenas duas semanas.

Grau – Concerto em Modo frígio 3o. mov 6.00

[desa.] Sempre amparado por seu pai e pelo professor, Barbosa Lima tocou por todo o Brasil; no início dos
anos 70, teve a chance de tocar nos EUA pela primeira vez e a recepção foi bastante positiva. Em pouco tem-
po ele já tocava também por toda a América do Norte e logo em seguida foi convidado a residir no país, como
catedrático de violão na cidade de Pittsburgh e, mais tarde, fez parte do corpo docente da Manhattan School
em Nova York. Sua primeira gravação norte americana teve enorme repercussão: pela primeira vez um violo-
nista gravava um LP inteiramente dedicado a transcrições de sonatas de Scarlatti.

LP Scarlatti
1 ou 2 sonatas

[desa. e comentários] Neste período, ele estabeleceu suas credenciais como solista clássico, mas nunca pôs
de lado suas origens e sempre incluiu algo do repertório brasileiro em seus programas. Em 1970, temos um
outro marco em sua carreira: a seu pedido, Francisco Mignone compôs seus 12 estudos para violão, a mais
importante obra brasileira depois de Villa-Lobos. Barbosa Lima gravou este magnífico ciclo em 1976.

LP Mignone
Estudos no. 1 e 9 7.00c

[desa.] O trabalho de ampliação do repertório através de transcrições e colaboração com compositores pros-
seguiu e, em 1977, ele estreou a obra que, junto ao Mignone, inscreveu seu nome na história do violão: a so-
nata de Alberto Ginastera.

BG
Barbosa Lima esteve ao lado do compositor em todo o processo de composição deu sugestões para os efeitos
instrumentais que cumprem um papel fundamental na construção da peça. Ginastera percebeu a ausência de
uma obra contemporânea de maior envergadura e complexidade e no repertório de violão e escreveu uma so-
nata que é uma continuidade natural de suas sonatas para piano e uma das obras capitais do repertório, e um
rito de passagem obrigatório para qualquer jovem virtuose. Ouviremos os dois últimos movimentos: o primeiro
é uma longa canção de amor expressionista, de caráter sensual e ardoroso, e o segundo é uma toccata base-
ada no ritmo de malambo, onde o compositor emprega a técnica de rasgueado e golpe, típica do estilo
pampeano de tocar violão, com estonteante violência e empolgação.

Tom Jobim
Gershwin
A Arte do Violão pág. 64
A Arte do Violão pág 65

PROGRAMA XVII – SÉRGIO E EDUARDO ABREU

Num país como o Brasil, onde a música clássica nunca ocupou uma posição central na educação e na vida
social, grandes compositores ou intérpretes têm a aura de aparições miraculosas, fantasmagóricas. Artistas
como Carlos Gomes, Villa-Lobos, Guiomar Novaes ou Nelson Freire são dissidências da ordem natural das
coisas, verdadeiros cometas: intensos, distantes e fugazes. Dois irmãos cariocas juntaram-se, nos anos 60 e
70, a este limitado olimpo e são objeto de culto no mundo todo: Sérgio e Eduardo Abreu.

BG
Eles nasceram no Rio de Janeiro em 1948 e 49, respectivamente, em uma família em que o pai e o avô eram
professores de violão. Quando os garotos já haviam superado o que havia para se aprender em casa, continu-
aram seus estudos sob a égide da enigmática violonista argentina Adolfina Távora, uma ex-aluna de Segovia,
metódica e de vasta cultura que, por vir de uma família de posses, nunca buscou uma carreira como
concertista ou professora. Em sua passagem pelo Brasil, somente aceitou quatro alunos regulares: os irmãos
Abreu e os irmãos Assad. Esta é uma das poucas gravações deixadas por ela:

CD Simalha, S Marcos, Távora etc.


Assioli: 1.25

[desanúncio e comentário] Ela era adepta de uma preparação rigorosa, em que uma nova obra era estudada
em detalhe por alguns meses, posta de lado, estudada de novo, e o processo se repetia até que o aluno pu-
desse tocá-la com perfeição a qualquer momento, sem aviso prévio. A estréia do duo Abreu em 1963 foi um
sucesso estrondoso, mas ela os orientou a tocar somente um ou dois concertos por ano para que a rotina de
concertos não afetasse seu desenvolvimento no longo prazo. De qualquer forma, o ambiente doméstico não
distinguia estudo de brincadeira e a rigorosa disciplina foi uma decorrência natural. Em 1967 Sérgio venceu o
prestigioso concurso internacional de Paris, e no ano seguinte Eduardo obteve o 2o prêmio; a partir daí, de
acordo com Sérgio, “a carreira começou a tomar conta de si mesma” e eles obtiveram excepcional recepção
nos maiores centros musicais e foram convidados a gravar pela Decca e pela CBS. Esta é sua primeira grava-
ção comercial, feita em 1968.

LP Abreu
Albéniz: El Puerto c. 4.40

[desanúncio] Uma gravação de excepcional maturidade para jovens de 18 ou 19 anos, numa transcrição que
exime Albéniz de sua herança da música de salão e projeta a sua modernidade num colorido sofisticado, que
realça a reiteração nervosa das frases.

BG - Telemann
É curioso o fato de que, no início, os irmãos tocavam duos como uma experiência de disciplina artística, mas
as próprias contingências da carreira – é mais prático organizar um concerto só para dois irmãos – acabaram
levando-os a adotar um formato em que eles abriam o concerto com alguns itens em duo, Sérgio fechava a
primeira parte com alguns solos, Eduardo abria a segunda sozinho e o programa se encerrava com mais duos.

BG sobe
Apesar da absoluta sincronia de ritmo e dinâmica, podemos perceber que eles tiram partido das ligeiras dife-
renças técnicas. [fade BG] Neste tema com variações de Sor, ouvimos no canal direito a sonoridade mais bri-
lhante, robusta e articulada de Sérgio, e no canal esquerdo a sonoridade mais líquida, sustentada e penetran-
te de Eduardo. Como nesta obra as repetições se alternam entre o primeiro e segundo violão, essa pequena
diferença cria a variedade necessária numa interpretação de intenção musical impossivelmente uniforme.

CD
Os Violões etc.
Sor: L´encouragement 5.07

[desanúncio] Um compositor freqüentemente assassinado que recebe aqui uma interpretação a um tempo es-
pontânea, vibrante e sóbria, que, nas palavras de Sérgio, combina “um profundo sentimento romântico com
uma pureza clássica de estilo”, uma interpretação parnasiana.

BG
O fascínio que os irmãos Abreu exercem deve-se muito à sua intransigência no aspecto de acabamento técni-
co, que é empregado em uma concepção musical ampla e exuberante, mas de rigor estilístico sem preceden-
A Arte do Violão pág. 66

tes. Poucos são os artistas que têm um comando tão completo e abrangente de todos os aspectos da realiza-
ção musical; os irmãos Abreu juntam-se a mitos como Arturo Benedetti Michelangeli, Krystian Zimerman e
Jascha Heifetz em seu perfeccionismo obsessivo.

BG
Isto exige uma dedicação completa a uma variedade de minúcias e milhares de horas de prática atenta, meses
debruçados sobre umas poucas passagens e um entusiasmo genuíno pelo detalhismo, sob risco de se amor-
daçar a expressão com o excesso de preparo, o que definitivamente não acontece nesta empolgante versão
da Tonadilla de Rodrigo.

Rodrigo: tonadilla 2o e 3o mov. 7.30

[desanúncio] Uma versão que transmite um senso de coragem frente ao perigo, com imensa gama de dinâmi-
ca, rigor e vigor rítmico, e que, no minueto, sublinha o lado delicado e cerimonioso do estilo castiço de
Rodrigo. A sensação de plenitude sonora é alcançada por um perfeito controle vertical, onde os graves
aveludados servem como uma cama elástica onde a sonoridade mais brilhante dos agudos pode pipocar.

BG
Mesmo em mitos como Segovia ou Julian Bream, um violonista profissional não encontra dificuldade em “ver”
mentalmente a digitação, ou seja, a escolha das cordas e dedos que são empregados em cada passagem, já
que a mudança de uma corda a outra é perceptível e a mesma passagem tocada em posições diferentes soa
diferente. Não no Duo Abreu; eles conseguem esconder e uniformizar de tal forma as dificuldades técnicas do
violão que suas digitações soam como uma charada.

CD BBC
Scarlatti: Toccata 3.45

[desanúncio] Uma obra que foi quase que uma assinatura do duo e demonstra sua consistência de ritmo,
fraseado, articulação e senso de conjunto. Eles tocam de maneira pontiaguda e parecem se servir da potência
máxima do violão sem, entretanto, jamais produzir uma nota troncha ou zumbida. Sem esquecermos que todas
estas gravações foram feitas num curto espaço em que eles tinham pouco mais de 20 anos, seu senso de esti-
lo em música barroca estava anos à frente de qualquer outro violonista da época.

Rameau: Les Cyclopes 3.12

[desanúncio] Na passagem central, Rameau orienta o cravista a tocar cada nota com uma das mãos; na trans-
crição, o violão I toca a primeira nota, o violão II a segunda, o violão I a terceira, assim se alternando sucessi-
vamente, criando uma tapeçaria de fios imperceptíveis.

BG Santorsola
Uma sincronia em tal grau exige não só muito trabalho, mas um tipo específico de controle e memória auditiva.
As diferentes versões ao vivo das mesmas obras tocadas por eles demonstram uma similaridade de concep-
ção que está fora do alcance da maioria dos mortais – as obras estão plenamente resolvidas e soam como
diferentes takes da mesma execução.

BG
O último Lp do duo traz dois concertos para 2 violões e orquestra, e aqui notamos a simplicidade de concep-
ção e a sonoridade resplandecente que eram suas marcas registradas.

Concertos for 2 guitars:


Castelnuovo: 1o. mov. 6.04

[desanúncio] Poucas gravações com orquestra, de qualquer instrumento solista, trazem esta aura jovial; sem
nenhum esforço aparente, parece que os solistas estão sempre tocando “entre aspas”. Inclusive Sérgio, que
tem grande interesse por tecnologia de gravação, pessoalmente se envolvia com a produção e fazia as edi-
ções dos próprios discos em casa.

BG
Mas este mesmo perfeccionismo que realiza o ideal artístico pode se provar um empecilho. Eles
freqüentemente levavam vários anos para incluir novas obras no repertório e gastavam um tempo precioso
resolvendo problemas técnicos e musicais talvez imperceptíveis para ouvidos comuns. No início dos anos 70,
Eduardo, dono de uma personalidade retraída, e pouco afeito à atividade febril de um concertista internacio-
A Arte do Violão pág 67

nal, resolveu abandonar os palcos e se dedicar à eletrônica. Hoje ele vive nos EUA e, segundo o irmão, ainda
é capaz de tocar como se nunca tivesse parado.

LP
Villa-Lobos: Estudo no.1 1.20

[desanúncio] Uma gravação de facilidade extraordinária e de textura clara e envolvente. Segundo o irmão,
Eduardo sempre foi, entre os dois, o que tinha maior facilidade técnica.

BG Sor?
A partir de então, Sérgio prosseguiu brilhantemente com uma carreira solo. Poucos violonistas na história po-
dem-se comparar a Sérgio Abreu em cultura musical, fina percepção auditiva e meticulosidade de preparo.
Sua concentração é proverbial, e para ele não há distinção entre trabalho e hobby: longas horas de trabalho
são horas de alegria por descobrir e produzir. E isso é perceptível no seu único LP solo, que contém grava-
ções insuperáveis de Paganini e Sor.

Sérgio: Paganini e Sor


Paganini: 9.33

[desanúncio] Aqui ele transforma uma obra que, em outras mãos, pode soar bastante prosaica em um verda-
deiro concerto para violão, com inventividade, bravura, ardor e humor. Mais uma vez, o desejo de encontrar a
fórmula ideal procrastinou a realização deste disco por vários anos e envolveu várias experiências com dife-
rentes instrumentos e salas de gravação.

BG Sor
No início dos anos 80, Sérgio, insatisfeito com o que considerava alguns problemas técnicos, resolveu tirar
alguns meses de folga para estudar sem pressões. Ele sempre tivera um interesse mais que passageiro pela
construção de violões e, em suas turnês, visitava luthiers e comprava madeira e ferramentas para o que era,
então, somente um hobby.

BG
Mas nesse período ele conseguiu fabricar seus primeiros violões. Os poucos meses de folga foram se ampli-
ando, tornaram-se anos e, num dado momento ele se deu conta que estava mais satisfeito fazendo violões
que viajando pelo mundo a dar concertos. Retirar-se dos palcos foi uma decisão séria mas natural. Em suas
próprias palavras, “gostar de tocar e gostar de dar concertos são coisas diferentes. Tocar, de uma certa forma,
era a parte mais fácil, mas aquela xaropada de aeroportos, entrevistas, recepções, todos os dias, sem dormir
direito... tem gente que gosta exatamente disso, mas quem não gosta, não dá pra forçar; foi como tirar um sa-
pato apertado”.

BG –
Hoje Sérgio Abreu vive no Rio de Janeiro e é internacionalmente reconhecido como um dos maiores luthiers
da atualidade. Seus instrumentos têm um timbre melífluo e trazem as mesmas características de clareza,
projeção, limpidez e perfeição de artesanato que encontramos no Abreu intérprete.
Eu mesmo sou o feliz proprietário de um violão Abreu feito em 1986, que estamos ouvindo nesta gravação.

BG – Fabio Scarlatti
Para mim é um privilégio poder realizar algumas de minhas gravações num instrumento feito por um dos intér-
pretes que mais admiro, e que é um modelo de inteligência, dedicação e solicitude. E é a ele que agradece-
mos, por haver fornecido as versões em CD das gravações que ouvimos neste programa.
No próximo programa, a arte de Kazuhito Yamashita.
A Arte do Violão pág. 68
A Arte do Violão pág 69

PROGRAMA XVIII – KAZUHITO YAMASHITA

O imaginário popular sempre associa o violão com a Espanha e a América Latina, mas um dos países onde
mais se toca violão hoje é o Japão. A progressiva adoção da cultura ocidental ao longo do séc XX firmou o
instrumento no país e, já nos anos 30, há uma cultura violonística, com professores, compositores e
concertistas. Nos anos 60, com a formação de clubes de violão com milhares de membros, o país começa a
exportar concertistas, e aquele que tem provocado maior impacto no cenário internacional é um original, com
formação 100 % japonesa: Kazuhito Yamashita.

BG
Nascido em Nagasaki em 1961, ele foi menino-prodígio e seu único professor foi seu pai. Sua formação foi
bem pouco ortodoxa e, ao lado da literatura tradicional do instrumento, ele desde cedo criou o hábito de fazer
arranjos para violão de todo tipo de música que atraísse sua atenção, fosse uma obra sinfônica ou um simples
tema de televisão. Progressivamente, sem ter nenhum parâmetro de comparação, ele criou um enorme arsenal
de novos efeitos e possibilidades técnicas. Aos 15 anos já era vencedor de todos os concursos de música de
seu país, e aos 16 viajou à Europa pela primeira vez, tornando-se o mais jovem vencedor da história do presti-
gioso concurso da Radio France em Paris em 1977. Nos anos seguintes sua carreira tomou corpo tanto no
Oriente quanto na Europa e, em 1981, lançou seu primeiro disco, que marcou época: sua própria transcrição
para violão solo dos Quadros de uma Exposição de Mussorgski, baseada na versão orquestral de Ravel. Infe-
lizmente esta obra completa preencheria quase toda a duração do programa e não nos daria a chance de ouvir
outras gravações interessantíssimas, mas alguns movimentos já nos dão a idéia do verdadeiro choque elétrico
desta estréia de Yamashita.

CD Mussorgski, faixas 1, 8, 9 e 10
Mussorgski: Quadros de uma exposição
Promenade, Gnomo, Catacumbas, A cabana de Bab Yaga, A Grande Porta de Kiev 19.26
1981

[Desanúncio] Confesso que até hoje não me recuperei da surpresa ao ouvir esta gravação pela primeira vez.
Eu não poderia sequer imaginar que o violão era capaz de fazer tudo isso. A primeira coisa que chama a aten-
ção é a imensa vitalidade da interpretação, de uma energia arrasadora. O colorido orquestral é reproduzido
fielmente através de um ágil deslocamento da mão direita: ele sugere a sonoridade dos metais, tocando em
várias posições próximas ao cavalete [exemplo]; das madeiras agudas tocando em harmônicos [ex]; dos cellos
e contrabaixos, tocando sobre a escala do violão com a polpa do polegar [ex]; ele produz uma sonoridade
mais redonda para sugerir o saxofone [ex]; ou mais pontiaguda para o oboé [ex]; ou toca exatamente na meta-
de da corda para reproduzir o som da tuba [ex]. Ele desenvolveu vários tipos de tremolo, os quais, que eu sai-
ba, nunca haviam sido explorados antes, que sugerem diferentes texturas orquestrais: um harpejo tremolado
[ex], uma escovadela com a palma das mãos para sugerir os violinos em pianíssimo [ex]; ele consegue tocar
em dedillo, ou seja, com o vai e vem de somente um dedo, tocando a corda alternadamente com a o lado de
cima e de baixo da unha, mas com qualquer dedo, inclusive o mindinho; e isso, tocando acordes ao mesmo
tempo, um feito extraordinário! [ex]; buscando mais velocidade e um efeito de metralhadora em passagens de
notas repetidas, ele toca grupos de duas notas com três dedos, em que o indicador, médio e anular funcionam
como ponto de apoio alternadamente [ex]; e até consegue sugerir o rulo do tambor militar [ex] ou o efeito de
sinos, com uma rápida alternância de sons ocos e metálicos [ex]. Isso sem contar os efeitos menos evidentes
numa gravação, mas dificilíssimos, como a superimposição de ligados em direções opostas, rápidos saltos,
extensões extremas da mão esquerda, trinados simultâneos de mão esquerda e direita.

BG
Pode parecer que esta batelada de efeitos tem um intuito puramente circense e exibicionista, mas a verdade é
que sua interpretação é magistral e capta perfeitamente a essência pré-expressionista, depressiva e onírica,
da arte de Mussorgski; eu conheço poucas gravações do original desta obra ao piano que sejam tão vívidas
quando a versão de Yamashita para violão.

BG
Estas inovações de Yamashita já têm mais de 20 anos, mas ainda não foram digeridas por outros violonistas;
outras tentativas de tocar este Mussorgski não têm sido tão felizes, e poucos estudantes têm a paciência de
estudar estes efeitos miraculosos que, entretanto, não têm espaço em outras esferas do repertório. Yamashita
está, neste aspecto, 50 anos à frente de seu tempo e tenho certeza que a composição contemporânea eventu-
almente incorporará estes efeitos em obras originais e forçará as próximas gerações a desenvolverem um
grau de virtuosidade que, hoje, pertence somente a Yamashita.
A Arte do Violão pág. 70

BG
Este não foi um evento isolado. Yamashita, nos anos seguintes, realizou arranjos para violão do Pássaro de
Fogo de Stravinski, da Sinfonia Novo Mundo de Dvorak, do concerto para violino de Beethoven e, em duo
com sua irmã Naoko, gravou a Scheherazade de Rimski-Korsakov. Isso tudo soaria muito suspeito se ele não
tivesse já ao seu crédito, com apenas 43 anos de idade, mais de 60 CDs, que cobrem uma vasta parcela do
repertório tradicional, incluindo, por exemplo, a obra completa para violino, cello e alaúde de Bach.

Bach, faixa 13
Suíte para cello BWV 1012, prelúdio 5.10

[desanúncio] Esta interpretação é típica de sua abordagem de Bach, bastante tradicional e inflada, mas, para
um violonista acostumado a tocar no extremo da possibilidade do instrumento o tempo todo, certos aspectos
não soam tão satisfatórios. A técnica de Yamashita, no que se refere a velocidade, intensidade, garra, é sem
paralelo, mas o acabamento fica prejudicado com este excesso de energia. O que é acabamento?

BG – Bach Fx 7
A música clássica tende a priorizar os sons de freqüências definidas, ou sons musicais, onde as ondas sono-
ras vibram de forma periódica e harmoniosa. Em contrapartida, o ruído, um som de vibrações caóticas, é visto
como um elemento desagregador, ao menos até o séc.XIX. Um bom acabamento, na técnica de qualquer ins-
trumento, é aquele que permite os sons musicais serem projetados com um mínimo de interferência de ruído.
No caso do violão, estes ruídos são as alfinetadas das unhas [ex]; chiados de cordas [ex]; notas que, ao serem
tocadas com força excessiva, rebatem contra o braço do violão [ex]; ou que zumbem ao serem mal-pisadas

[ex].
Yamashita é um violonista singular, que alternadamente toca com total abandono e não liga para esse tipo de
coisa, e até incorpora estes defeitos como “efeitos” musicais [ex], ou que ocasionalmente pode produzir uma
sonoridade de derreter o coração [ex]. O público, em geral, ou ama ou detesta.

BG
Eu acho que o mais sensato é tentar ouvir seletivamente e, mentalmente, “eliminar” as idiossincrasias de sua
técnica e tentar apreciar sua colossal musicalidade.

BG
Ele gravou a obra completa de Sor, em mais de 10 CDs, mas também pesquisou outros autores obscuros do
séc XIX. Escutem, por exemplo, este interessantíssimo arranjo de Haydn feito pelo violonista francês François
de Fossa:

CD Fossa, fx 12
Haydn/Fossa: presto da Sinfonia no 85 “La reine” 2.09

[desanúncio] No repertório espanhol, ele também se excede e produz versões com um tremendo arranque, de
uma vitalidade ameaçadora:

CD Espanhóis
Asencio: Collectci Intim, 5o mov, La Frisança 2.27

[desanúncio] É difícil achar uma obra que Yamashita não tenha tocado. Sua facilidade para aprender músicas
novas é proverbial e, com uma técnica deste tamanho, nada é difícil o suficiente. Uma de suas gravações mais
interessantes é a dos grandes ciclos de Castelnuovo-Tedesco, o Platero y Yo e os 24 Caprichos de Goya.
Nesta obra, C-T ilustra musicalmente a notória série de gravuras do artista espanhol Francisco Goya, um sar-
cástico e desesperado ataque à decadência da sociedade espanhola no início do séc XIX. Nesta assustadora
gravura, ele ataca o trabalho das parteiras que realizavam abortos:

Cd Caprichos de Goya Fx 19
C- Tedesco: Hilan Delgado 2.27

[desanúncio] Castelnuovo –Tedesco é um compositor demasiado comportado e urbano para ilustrar um ciclo
tão macabro, mas o virtuosismo diabólico de Yamashita re-instaura o equilíbrio e aumenta o impacto desta
obra.
A Arte do Violão pág 71

BG – Japão Fx 1
Mas Yamashita também toca a música de seu país, e um de seus discos mais encantadores e delicados traz
obras compostas por violonistas japoneses, talvez os equivalentes de Isaías Sávio ou Garoto daquele país.
Esta gravação enterra a idéia de que Yamashita só brilha quando toca milhões de notas. Poucos violonistas
conseguem criar uma atmosfera de paz tão completa.

CD Japão Fx 26
Shun Ogura (1901-77), Magouta 1.34
[desanúncio] Vários compositores japoneses dedicaram obras para ele, inclusive vários concertos para violão
e orquestra. Um dos mais impressionantes é o Concerto “Pegasus Effect”, de Yoshimatsu; no primeiro movi-
mento ele consegue criar uma textura mágica com somente dois acordes e uma profusão de ornamentos e
inusitados efeitos orquestrais.

CD Yoshimatsu
Concerto para v e orq “Pegasus Effect”, 1o mov Bird 9.27
Sinfo-Filarmônica de Tóquio, reg Tadaaki Otaka

[desanúncio] Ao contrário do que sua atividade musical possa fazer crer, Yamashita é uma pessoa tranqüila,
modesta e equilibrada, de uma polidez tipicamente japonesa. Ele mora no Japão com sua mulher e quatro fi-
lhos, é uma celebridade local e, nos últimos anos, tem evitado extensas turnês no Ocidente, pois é um dedica-
do homem de família. Do ponto de vista artístico, ele suscita acalorada discussão, mas não se pode negar que
ele é o passo mais evidente na direção de uma evolução das possibilidades do violão na segunda metade do
séc XX, comparável a Segovia 60 anos antes. O desafio para a próxima geração é conciliar as suas criações
no campo do virtuosismo com as evoluções na esfera da musicologia e do acabamento técnico das últimas
décadas.
Agradecimentos.
A Arte do Violão pág. 72
A Arte do Violão pág 73

PROGRAMA XIX – LOS ROMEROS

Era muito comum até o século XVIII a ocorrência de famílias inteiras devotadas ao ofício da música. A profis-
são tinha um caráter artesanal e corporativo, e o know-how era passado de pai para filho como um livro de
receitas secreto; exemplos óbvios são as famílias Bach, Benda e Mozart. A partir do Romantismo e sua ênfase
no individualismo artístico, este fenômeno recrudesceu e, se normalmente grandes intérpretes são alimenta-
dos no seio de uma família musical, raramente há uma sucessão de estrelas com o mesmo sobrenome. Um
raio não pode cair duas vezes no mesmo lugar, e as raras exceções, como nas famílias Oistrakh ou Serkin,
demonstram que um pai notável é tanto um modelo quanto um peso a se carregar. Mas temos um raro caso,
no violão, de uma família que tem passado a tocha por três gerações: a Família Real do Violão, Los Romeros.

BG: Concierto Andaluz


A origem da dinastia está em Celedonio Romero, um espanhol nascido em Cuba em 1913, que foi aluno de
Daniel Fortea, que por sua vez foi aluno de Tarrega. Desde cedo ele tornou-se um respeitado concertista, ten-
do sua base em Málaga, mas teve enormes dificuldades para desenvolver sua carreira depois da Guerra Civil
Espanhola, por ser abertamente contrário ao regime do General Franco. Entretanto, em 1958 ele conseguiu se
evadir, junto com sua família, primeiro a Portugal e depois aos EUA. A fama de seus filhos tem obscurecido o
valor de Celedonio como solista até certo ponto, mas a evidência de suas gravações mostra um músico sólido,
técnica esplêndida e de uma espécie de musicalidade senhoril que trai uma conexão direta com o séc.XIX, como
podemos ouvir nesta pequena peça de sua autoria, que ele gravou poucos meses antes de falecer em 1996:

CD Celedonio, Fx 5
Celedonio Romero: Fantasia (Suíte Andaluza) 3.47

[desanúncio] Uma peça sem maiores conseqüências, mas de inegável charme, gravada com galhardia e técni-
ca impecável por um já alquebrado senhor de 83 anos, um verdadeiro exemplo de vitalidade.

BG Celedonio
Ele foi um pai devotado e um tremendo professor, pois como disse seu filho Pepe, “desde minhas primeiras
lembranças, ele me fez sentir que eu era um músico, que era um violonista, que eu era seu amigo e que era
seu parceiro”. Seus três filhos, Celín, Pepe e Ángel, começaram a aprender violão aos 3 anos de idade; Celín,
o mais velho, nunca teve pretensões como solista e hoje se dedica principalmente ao ensino e ao quarteto da
família, mas Pepe e Ángel começaram como meninos-prodígio e logo juntaram-se ao pai em suas turnês. Dos
irmãos, o que tem gozado de uma carreira mais consistente é o filho do meio, Pepe Romero.

BG
Pepe nasceu em Málaga em 44 e, como o pai, é fluente tanto no violão clássico como na guitarra flamenca.
Pouca gente se dá conta de que, apesar dos instrumentos serem idênticos, a técnica, a “pegada” e o raciocí-
nio musical não só são diferentes, mas, em muitos casos, antagônicos, e um pleno domínio da linguagem do
flamenco exige dedicação integral. Uma das idéias fixas de Segovia era distinguir por completo uma arte da
outra, o que aumentou ainda mais o cisma entre elas. Uma das grandes inovações da família Romero foi ten-
tar reunir o melhor de ambos os lados e enriquecer o violão clássico com a intensidade do flamenco, ao mes-
mo tempo em que o flamenco tornou-se mais refinado com a minúcia da formação clássica, como exemplifica
esta gravação de Pepe:

CD Flamenco Fx 9
Trad: Bulerías 4.39

[desanúncio] Raramente se escuta flamenco tocado com tanto refinamento sonoro. Este conhecimento íntimo
da arte folclórica andaluza, aliado a uma cultura musical inatacável, tornam Pepe um dos maiores intérpretes
do repertório clássico espanhol. Ele consegue tornar convincente até uma obra como a Sonata de Turina,
onde não só corrige os problemas formais com uma judiciosa escolha de andamentos, mas também alucina o
ouvinte com seus rasgueados de arrepiar os cabelos.

CD Noches de España
Turina: Sonata 3º. Movimento allegro 2.56

[desanúncio] Pepe é também um profundo conhecedor da literatura da época de ouro do violão no século XIX
e, entre inúmeras gravações de Sor, Boccherini, Carulli, etc. eu destaco a gravação integral dos concertos de
Mauro Giuliani, obras-primas do gênero apesar de pouco conhecidas. Infelizmente estes concertos são longos
e não caberiam completos neste programa, mas para ilustrar a maestria com que Pepe Romero defende este
A Arte do Violão pág. 74

magnífico repertório ouviremos um fragmento do concerto no.2.

Cd Giuliani Fx 4
Giuliani: Concerto no.2 em lá maior 1o mov maestoso 9.28

[desanúncio] Uma obra formidável, onde Giuliani tenta criar a síntese entre o estilo operístico italiano e a com-
plexidade formal do classicismo vienense, interpretada de forma algo espanholada por Pepe Romero. Pepe é
hoje, merecidamente, um dos mais populares solistas internacionais, dos poucos que regularmente tocam com
todas as maiores orquestras; apesar de, atendendo à demanda, ele tocar o desgastado Concierto de Aranjuez
com frequência maior que a desejável, ele tem o mérito de ter gravado um vasto repertório bem menos conhe-
cido. Ele é também um grande colecionador de violões e toca sempre com instrumentos diferentes, mas todos
são de categoria excepcional; inclusive um de seus filhos é agora um respeitado luthier. Seu irmão mais novo,
Angel, também tem uma esplêndida carreira como solista.

BG Angel: Rodrigo, Elogio de la Guitarra Fx 4


Tecnicamente, é difícil verificar alguma diferença marcante entre eles, são madeira da mesma cepa, mas Angel
tem uma musicalidade transbordante e um gosto musical algo menos erudito que Pepe. Sua verve no repertó-
rio mais leve e a sua boa pinta, que lembra um pouco Antonio Banderas, garantem o sucesso de seus CDs,
mas as gravações mais sérias, como a deste concerto de Moreno Torroba, atestam uma integridade artística
que justifica a prática mais comercial.

LP Concertos
Moreno Torroba: Concierto de Castilla, 3o. Mov. Allegretto sostenuto 6.27
Orquestra de Camara Inglesa, Moreno Torroba reg.

[desanúncio] A família Romero era muito ligada ao grande compositor espanhol Joaquín Rodrigo. Ele dedicou
várias obras a Celedonio, Pepe e Angel, inclusive um concerto solo e um concerto para 4 violões e orquestra.
Mas a gravação que mais me impressiona é a da obra mais sofisticada de Rodrigo, um concerto para dois vio-
lões e orquestra escrito para o duo Presti-Lagoya, o Concierto Madrigal.

Cd ou fita, Concierto Madrigal


Rodrigo: concierto Madrigal, movs. Madrigal, Entrada, Pastorcito tu que vienes partocito tu que vas, Girardilla c.8 min.

[desanúncio] Uma obra estimulante, de orquestração magistral, que tem a forma de uma introdução e oito vari-
ações sobre um madrigal do séc XVI. O trabalho do duo não chega a mostrar a finesse de um duo Abreu, mas
eles tocam com fogo, de maneira quase beligerante, e com um virtuosismo aterrador. A velocidade de aço da
girardilla é algo que somente se conquista com décadas de prática assídua de escalas, nesta que é uma das
grandes gravações de música espanhola do século.

BG – Carmen
É apenas natural que esta plêiade de virtuoses na mesma família se juntem para tocar, e desde sua mudança
para os EUA em 1958 o quarteto Los Romeros tem tido uma carinhosa acolhida, não só pelo seu valor artísti-
co, mas pela imagem de afeto familiar que exsude de suas apresentações, que é completa pela presença da
mãe, Angelita Romero, tocando castanholas. A formação de quarteto de violões não tem uma tradição centená-
ria e a maior parte do repertório consiste de transcrições ou de obras encomendadas. Naturalmente eles
gravitaram para a órbita da música de entretenimento, o que eles fazem com imenso savoir faire.

CD Carmen Fx 9
Moreno Torroba: Sonatina Trianera 8.10

[desanúncio] A Família Romero, desta forma, tem levado um entretenimento de qualidade ao público há 50
anos. Eles abriram o precedente à formação de quarteto de violões, que hoje goza de enorme popularidade no
cenário do violão clássico.

BG
Em 1993 Ángel decidiu dedicar-se à carreira solo e, com o falecimento de Celedonio em 96, a formação do
quarteto agora inclui seus netos Celino e Lito. Se, por um lado, a excessiva ênfase no repertório espanhol,
com milhares de apresentações dos concertos de Rodrigo, encoraja a visão distorcida de que o violão tem um
repertório circunscrito a somente um estilo, o êxito internacional do quarteto, e de Pepe e Angel como solistas,
garante a presença do violão na programação das maiores orquestras e séries de música de câmara.
Agradecimentos a Pepe Romero e Henrique Pinto.
A Arte do Violão pág 75

PROGRAMA XX – A ESCOLA RIO-PLATENSE DOS ANOS 70

Um dos conceitos mais artificiais que a crítica musical jamais cunhou é o de escola instrumental. Interpretação
musical é uma expressão de individualidade exacerbada, e um grande intérprete é sempre aquele que cria seu
próprio universo sonoro. Porém, num dado momento e num certo lugar, é possível perceber uma comunhão de
interesses e prioridades musicais: a bravura da escola russa de piano, a precisão dos metais americanos, as
qualidades arquitetônicas da regência alemã. No violão, aquilo que está mais próximo de constituir uma escola
não acontece na Espanha, mas bem perto de nós, na Argentina, Uruguai e Sul do Brasil, uma espécie de es-
cola rio-platense do violão.

BG – Tamboriles?
É uma geração de violonistas que tomaram o mundo musical de assalto nos anos 70, e que tem em comum os
professores argentinos Jorge Martinez Zarate e Abel Carlevaro. Eles freqüentaram os célebres Seminários de
Violão de Porto Alegre e desenvolveram seu rigor musical com o compositor Guido Santorsola. Eles comparti-
lham uma técnica límpida e natural, uma abordagem racional e analítica do texto musical e uma expressão
sóbria. São, de uma certa forma, os europeus da América Latina. Em 1975, o prestigioso concurso internacio-
nal da Radio France em Paris teve dois argentinos e dois uruguaios na final; todos os quatro desenvolveram,
posteriormente, uma carreira expressiva, mas o vencedor foi o argentino Roberto Aussel.

BG Aussel
Aussel nasceu em 1954, deu seu primeiro concerto aos 13 anos e já havia vencido os concursos internacio-
nais de Caracas e de Porto Alegre antes do sucesso em Paris. Hoje ele é um nome freqüente no panorama
internacional do violão e é professor na Escola de Música de Colônia, na Alemanha. Se, por um lado, seu tem-
peramento conciliador tende a uniformizar indevidamente o repertório romântico e moderno, por outro ele é
admirado por sua sonoridade líquida, que produz elegantes interpretações de obras barrocas, como esta suíte
de Weiss:

CD Roberto Aussel
Weiss: Suite no.23, L´Infidele: Entrée, Musette 6´30

[desanúncio] Weiss foi um contemporâneo exato de Bach e o alaudista mais admirado do séc.XVIII. Esta suíte
L´Infidele provavelmente deve seu título ao caráter beligerante à aparição de dissonâncias que eram conside-
radas “orientais” numa época marcada pelas invasões turcas. A tonalidade de lá menor era considerada apro-
priada para a expressão de um caráter majestoso, honesto e bem dosado, o que é uma descrição apropriada
para esta interpretação de Roberto Aussel.

BG
No mesmo concurso de Paris em 75, o segundo prêmio foi dividido. Um dos agraciados foi Miguel Angel
Girollet, um verdadeiro aristocrata do violão, que fixou-se em Madri antes de falecer prematuramente em 1996,
sem deixar uma discografia. O outro tornou-se o violonista mais conhecido deste grupo, Eduardo Fernández.

BG
Fernandez nasceu em 1952 e, além de ter estudado violão com Carlevaro, tem também uma sólida formação
como compositor e musicólogo. Como todos os violonistas desta geração, ele se serviu dos concursos interna-
cionais como plataforma para sua carreira; além do prêmio em Paris, ele foi vencedor dos concursos internaci-
onais de Porto Alegre e de Palma de Mallorca. Suas estréias em Nova York e Londres em 1977 arrancaram
superlativos da crítica e levaram a gravadora Decca a convidá-lo para uma série de CDs. Não é para menos,
as primeiras gravações de Fernandez já mostram um grau de maturidade incomum.

Villa-Lobos
Ginastera: sonata, 2o mov Scherzo 2.00

[desanúncio] Esta Sonata de Ginastera é um dos pilares do repertório do violão, mas Fernandez foi o primeiro
a grava-la e até hoje seu registro é uma referência. Com um virtuosismo coruscante ele consegue esculpir a
atmosfera alucinatória que é um dos ingredientes essenciais da arte de Ginastera.

BG
O que mais admiro em Eduardo Fernandez é sua cultura musical absolutamente impecável. Seguindo a tradi-
ção de Segovia e Bream, ele não se rende à pressão comercial e só inclui em seu repertório obras de primeira
ordem; freqüentemente ele ressuscita obras-primas esquecidas e realiza primeiras gravações de obras con-
temporâneas, além de visitar setores inteiros do repertório com acuidade estilística e sensibilidade para as
A Arte do Violão pág. 76

necessidades estruturais.

Fita: Legnani
Legnani: Caprichos em fa# menor e mi maior c.4

[desanúncio] Legnani é um contemporâneo exato de Paganini e esteve no centro da vida musical do séc. XIX;
freqüentemente ele dividiu o palco com os maiores artistas de sua época, como Liszt, Clara Schumann e
Moscheles. Seus 36 Caprichos são um compêndio do violão pré-romântico e estavam praticamente esqueci-
dos até a gravação de Fernández.

BG
Fernandez é conhecido por uma admirável acuidade mental. Além de ser capaz de analisar em profundidade
qualquer obra de seu repertório, ele é capaz de aprender obras inteiras de cor sem ter de tocá-las ao violão;
ele é versado em literatura e tem pleno domínio de várias línguas, inclusive o japonês. Pode parecer que isso
não tem nada a ver com o desempenho de um concertista, mas uma obra como a Sequenza de Berio exige de
um intérprete não só uma técnica poderosa, mas também cultura no mesmo patamar. Nela, Berio constrói uma
estrutura em que dois blocos de material contrastante são colocados em oposição logo no início; gradualmen-
te ele vai criando pontes entre eles, ampliando as possibilidades técnicas do violão com técnicas emprestadas
do flamenco e da guitarra elétrica.

CD Avant Garde
Berio: Sequenza XI 16.39

[desanúncio] Uma obra-prima que, devido à sua dificuldade, ainda não é tocada com freqüência. Fernández
tem uma técnica de notável fluência; Se há uma pequena coisa a criticar é a sua qualidade de som, que às
vezes resulta um pouco arenosa e sem lustro; ao vivo isso não é tão evidente, mas a engenharia de som de
suas gravações pela Decca não lhe faz nenhum favor.

BG
Pode parecer que ele só tem interesse por raridades e obras muy sérias, mas ele também é capaz de produzir
versões cintilantes de obras mais leves, como esta de Antonio Lauro, onde o compositor reproduz a sonorida-
de da harpa venezuelana. Os soldados de Bolívar provavelmente se divertiam tocando joropos como este. Não
admira que tenham vencido a guerra.

CD La Danza
Lauro: Seis por Derecho 4´?

[desanúncio] O sucateamento das grandes companhias discográficas levou Fernandez a abandonar a Decca
por uma gravadora menor, onde ele tem mais liberdade de escolha sem pressões comerciais. Sua total
imersão em qualquer obra que esteja tocando produziu o que considero a melhor gravação das obras de Bach
ao violão. Elas têm uma qualidade fundamental: coerência intelectual. A estrutura motívica é sempre articulada
de maneira uniforme, a ornamentação é historicamente perfeita, sem se sobrepor à concepção original de
Bach, e seu controle da dinâmica sempre respeita a macro-estrutura harmônica destas obras.

CD Bach
Bach: Suíte BWV 997, Prelude, Gigue, Double 2.40 1.24 1.22

[desanúncio] Mais recentemente, ele tem gravado o repertório do séc XIX com um instrumento de época, uma
cópia de um violão de 1830 que pertenceu ao compositor desta peça, Dionísio Aguado.

Eduardo Fernandez, Romantic Guitar, Fx


Aguado: Introdução e Rondo op.2 no.3 em ré maior 9´30´´

[desanúncio] O vencedor do Concurso de Paris em 1977 foi o uruguaio Álvaro Pierri.

BG
Ele também já havia vencido o concurso de Porto Alegre e morou no Brasil por vários anos, como professor na
Universidade de Santa Maria, no RS. Hoje ele divide seu tempo entre Montreal e Viena, e é o catedrático de
violão nas escolas destas duas cidades, além de ser um concertista bastante requisitado.
Pierri tem talvez a técnica mais sofisticada de todos os violonistas dessa geração, mas ela serve a uma perso-
nalidade musical bastante excêntrica. Ele tende a desenvolver à máxima potência algum aspecto estrutural
A Arte do Violão pág 77

das obras que escolhe, e o faz de maneira absolutamente obsessiva, muitas vezes desconsiderando até mes-
mo as indicações do próprio compositor e qualquer convenção interpretativa consagrada pela tradição.

BG
Neste prelúdio de Villa-Lobos, por exemplo, ele toca o acompanhamento sempre com um ligeiro harpejo, espa-
lhando as notas do primeiro acorde, exceto nos casos em que há um movimento cromático. O andamento
é consideravelmente mais lento que aquele a que estamos habituados, especialmente na seção central, mas
ele “desenha” o movimento melódico da peça com um controle de dinâmica digno de um ourives.

Fita Pierri
Brouwer: Villa Prelúdio no1 c.5´

[desanúncio] O caráter desta interpretação é totalmente diferente daquilo ao que o ouvinte está acostumado,
mas ao mesmo tempo é de total coerência. Talvez não seja a gravação mais indicada para quem nunca ouviu
a peça, mas para quem já a conhece é sempre instigante. É apropriado que um intérprete tão singular viva no
Canadá, a terra de Glenn Gould, o pianista que mais defendeu o direito de intervenção intelectual do intérpre-
te. Outro violonista argentino que tem suscitado bastante interesse nos últimos anos é Eduardo Isaac.

BG
Ele nasceu em 1956 e se escolou nos cursos ministrados por Carlevaro na Argentina e Porto Alegre. Ele é um
múltiplo vencedor de concursos internacionais, entre eles os de Porto Alegre, Madri e palma de Mallorca, e
tem se especializado no repertório do século XX. Além disso ele é catedrático de violão no conservatório de
Entre Rios, e alguns violonistas brasileiros têm se aperfeiçoado com ele nesta cidade fronteiriça.
O que mais admiro em Isaac é o bom gosto na escolha de obras contemporâneas, que ele toca com verdadei-
ra devoção, como esta sonata de Bogdanovich:

Cd 20th Century Guitar I


Bogdanovich: sonata I 1o mov 3.03

[desanúncio] Bogdanovich é um compositor sérvio que vive em San Francisco. Ele começou sua carreira como
um compositor folclorista, seguindo o exemplo de Bartok, e mais recentemente tem utilizado elementos de im-
provisação numa obra imensa e de alto interesse. Esta sonata é uma de suas primeiras obras.

BG
A palavra-chave para definir Eduardo Isaac é a estabilidade. Suas interpretações sempre primam por um per-
feito balanço entre inspiração e erudição, entre coração e cabeça. Sua sonoridade é algo opaca, mas ampla-
mente compensada pela sua claridade de fraseado, como neste prelúdio de seu mestre Abel Carlevaro:

CD Carlevaro
Carlevaro: Evocación 5.33

[desanúncio] Carlevaro aliás é um compositor interessantíssimo, e esta gravação de um de seus melhores alu-
nos é um tributo e uma referência.

BG
Quando eu tinha 15 anos de idade e estava começando a tocar profissionalmente, os colegas sempre pergun-
tavam “quando é que você vai sair?”, como se o único caminho para um concertista de violão sul-americano
fosse residir na Europa ou nos EUA. A verdade é que todos os intérpretes deste programa tiveram 100 % de
sua formação em casa, construíram suas carreiras vencendo concursos internacionais, são idolatrados no cir-
cuito internacional de violão e, no caso de Fernández e Isaac, continuam morando em seus próprios países.
Como o futebol, o violão sul-americano é referência mundial e artigo de exportação.
No próximo programa, a arte de Manuel Barrueco e David Starobin.
Agradecimentos Henrique Pinto, Eduardo Fernández e Gilson Antunes.
A Arte do Violão pág. 78
A Arte do Violão pág 79

PROGRAMA XXI – MANUEL BARRUECO E DAVID STAROBIN

A formação de uma prática reconhecivelmente norte-americana de música clássica evolveu gradualmente no


séc XX com a absorção de influências do teatro musical inglês e dos cantos e danças africanas, mas na arte
da interpretação musical a influência decisiva foi a chegada de milhares de professores oriundos dos escom-
bros da Alemanha e da Rússia, grande parte deles judeus, que se adaptaram a uma mentalidade de máximo
rendimento esportivo e tecnológico, e estabeleceram um alto padrão de brilhantismo técnico, especialmente no
piano e nas cordas. O violão se desenvolveu um pouco mais devagar, mas hoje podemos falar de uma manei-
ra tipicamente americana se tocar violão. Curiosamente, o violonista que epitomiza esta arte é um cubano:
Manuel Barrueco.

BG
Ele nasceu em Santiago de Cuba em 1952 e iniciou seus estudos no conservatório local; sua família evadiu-se
para os EUA quando ele tinha 15 anos, e lá ele estudou com outro cubano, Rey de la Torre, e poliu sua técnica
com Aaron Shearer, o maior didata do violão americano, em Baltimore, onde hoje ele é o catedrático de violão.
Em 1974 ele foi o primeiro violonista a vencer o importante concurso do Concert Artist´s Guild, e a partir daí
sucesso seguiu sucesso com estréias nos principais teatros. Suas primeiras gravações datam deste período e
já mostram a fórmula de seu êxito: uma técnica extremamente sólida e particularmente cristalina em passa-
gens rápidas e articuladas, uma expressão pouca dada a exageros e uma escrupulosa leitura dos mínimos
detalhes do texto musical:

Villa-Lobos: Estudo no.7

[desanúncio] Como ele mesmo disse, nesta gravação ele tentou ser bastante direto na sua leitura, sem tentar
forçar suas próprias excentricidades sobre a música, e encarando Villa-Lobos como um compositor sério ao
invés de vê-lo como um meio-termo entre a música popular e a música clássica. Este mesmo disco traz uma
das poucas gravações do Estudo no.1 de Camargo Guarnieri, uma mini-obra prima que ilustra a expressão
torturada e o finíssimo comando do contraponto do compositor brasileiro;

Guarnieri: Estudo no.1

[desanúncio] Barrueco é um dos violonistas mais estáveis da história. Cada uma de suas gravações é prepara-
da laboriosamente e retrata perfeitamente a solidez de sua atuação ao vivo. Em suas próprias palavras, “eu
tenho uma enorme negatividade, e isso é algo com que tenho de lutar. Sempre trabalho a partir de um tipo de
energia negativa, da suposição de que as coisas não vão funcionar... isso acaba me levando a trabalhar ainda
mais pesado. As pessoas pensam que tenho muita facilidade, mas eu sou dolorosamente auto-crítico e não há
nenhum aspecto de minha técnica ou musicalidade que eu não tenha trabalhado conscientemente”. Bem, ao
menos nas suas gravações de música espanhola esse conflito é bem ocultado, e seu Albéniz é fluido e vigoroso.

Albéniz: Cataluña

[desanuncio] Barrueco não é um inventor, é um consolidador. Não há nenhuma grande novidade na sua técni-
ca, sonoridade, abordagem musical ou repertório; ele se contenta em realizar versões supremamente polidas
daquilo que já foi explorado por outros intérpretes. O que mais chama a atenção num primeiro momento é a
vitalidade de sua pronúncia rítmica.

BG
Não importa a complexidade da música, seu pulso é constante e flexível, e percebemos um constante encurta-
mento da parte fraca dos tempos. Nesta obra, ao invés de uma execução quadrada e algo pesada [exemplo],
ele prefere executar as figuras curtas ainda mais curtas [ex.], produzindo uma sensação de leveza e facilidade.

Granados: Arabesca

[desanúncio] Num escrutínio mais atento, porém, nós percebemos também sua habilidade incomum em traçar
a forma da música com um aguçado controle da articulação. O que é articulação?

BG
Articulação em música é mais ou menos o mesmo que articulação na fala ou na anatomia: é o ponto de junção
entre dois elementos sólidos. É a maneira como músico sai de uma nota e atinge a outra, de forma mais fluida
ou ligada [ex.] ou de forma mais destacada e seca, com um pequeno espaço entre as notas [ex.]. Claro que os
maiores artistas têm ao seu dispor uma infinita variedade de nuances e combinações. Se compararmos a um
A Arte do Violão pág. 80

ator, é a arte de se fazer entendido, de dar granulação ao texto, o que, combinado com o controle do ritmo,
cria um sotaque. Nesta obra de Bach, há uma série de idéias recorrentes que exigem coerência na sua articu-
lação, sob pena do edifício musical simplesmente ruir. O intérprete tem várias opções igualmente aceitáveis:
articular com nitidez todas as notas [ex.], ou toca-las num único fluxo ligado [ex.] ou agrupa-las de duas em
duas [ex.], ou uma combinação destes procedimentos que torna o discurso mais complexo e estimulante [ex.].
Seja qual for a escolha, o intérprete tem de ser intransigente e fazer os maiores malabarismos para manter o
padrão em toda a obra, não importa a dificuldade técnica. Neste aspecto, Barrueco é um mestre.

Bach: Prelúdio BWV 1006

[desanúncio] Outra característica marcante é um soberbo controle da dinâmica ou do volume sonoro. Este é
um dos aspectos mais rebeldes da técnica do violão.

BG
Como o instrumento tem naturalmente um volume pequeno, o violonista está sempre correndo o risco de desa-
parecer quando toca suave, ou de explodir ou produzir um som bruto se toca forte demais. Com o cuidado de
evitar os extremos, é muito comum ouvir-se violonistas que trabalham somente numa faixa média, onde as
hierarquias musicais desaparecem e o efeito geral é de uma chatice incontornável. A saída é ajustar a qualida-
de do timbre, para separar a melodia do acompanhamento [ex.] e, em passagens extensas, de acúmulo de
tensão, modular a dinâmica a prestações. Nesta passagem, por exemplo, é possível fazer uma sucessão
crescendos seguidos de pequenos relaxamentos, com picos cada vez mais altos que se desencadeiam num
ponto culminante [ex.Ponce]. Isto exige técnica perfeita, acuidade auditiva, e muito trabalho por parte do intér-
prete, e isso Barrueco tem de sobra.

Falla: Danza de la Molinera

[desanúncio] O repertório espanhol é o forte de Barrueco. Sua gravação da maior obra de Rodrigo, Invocación
y Danza, é modelar, e imbuída do senso de mistério e claustrofobia herdado de Manuel de Falla através de
uma rede de citações.

Rodrigo: Invocación y Danza

[desanúncio] O trabalho árduo que lhe é característico rende frutos no repertório barroco também. Nesta obra
do barroco francês, a sua sonoridade algo metálica sugere com perfeição o efeito da guitarra barroca. É um
instrumento de cinco cordas duplas, algumas das quais afinadas em oitavas, que criam uma infinita gama de
recursos para o harpejo, ou seja, o espalhamento das notas de um acorde. Ao mesmo tempo, a diferença de
afinação dificulta uma execução convincente no violão moderno, mas Barrueco toca com um senso infalível de
estilo, ornamentação e elegância.

De Visée: Ouverture La Grotte de Versailles

[desanúncio] A pressão pelo perfeccionismo pode criar um efeito adverso num artista. Especialmente nos EUA,
uma sociedade tecnológica e guiada pela ética das máquinas e do sucesso a qualquer preço, uma carreira
exclusivamente baseada na ausência de erros faz com que o público não atente às conexões musicais mais
profundas. Isso é uma tremenda pressão negativa para o músico, que associa sucesso à eficiência num pro-
cesso narcisístico que abdica da vitalidade, uma qualidade essencial para uma experiência musical plena.

BG
Nesse sentido, eu vejo que Manuel Barrueco corre o risco de se tornar uma vítima do sistema: suas apresenta-
ções são invariavelmente perfeitas, mas ao mesmo sente-se um distanciamento, uma tensão interna mal-resol-
vida e uma atitude desengajada e temerosa. Sua sonoridade é cristalina, mas ao mesmo tempo pode tornar-se
estranhamente impessoal, enfim, um artista impossível de não admirar, mas muito difícil de amar. Quiçá a re-
cente turbulência política dos EUA possa ter ao menos um efeito positivo, o de levar os artistas a resgatarem
seu eu e se disporem a comungar com o público de forma mais intensa, como Barrueco faz nesta magnífica
obra cubana.

Brouwer: Rito de los Orishas ou


Angulo: Cantos Yoruba de Cuba

[desanúncio] Um outro fruto da escola americana de Aaron Shearer é David Starobin.


A Arte do Violão pág 81

BG
Nascido em Nova York em 1951, cedo em sua carreira ele resolveu enveredar pela via da música contemporâ-
nea, participando de toda sorte de formações camerísticas e encomendando obras dos
compositores mais destacados. Ao mesmo tempo, uma outra vertente de interesse é a mal-explorada música
do século XIX, que ele tem tocado em instrumentos originais.

BG sobe
Hoje Starobin é um dos violonistas mais respeitados dos EUA, catedrático de violão na Manhattan School de
Nova York e incansável promotor da música contemporânea através de sua própria gravadora, a Bridge
Records. Ele é possivelmente o violonista contemporâneo que mais significativamente contribuiu para a cria-
ção de um repertório sério e de qualidade. Encomendou e estreou centenas de obras de compositores do por-
te de Elliott Carter, Poul Ruders, George Crumb e Milton Babbitt. Desta extensa lista, aquela que parece desti-
nada a ocupar um lugar perene no repertório é Changes, de Eliott Carter. Nela ouvimos duas características
marcantes deste que é possivelmente o maior compositor americano do séc. XX: o atematismo, ou seja, um
consciente evitar de qualquer recorrência de idéias, o que dá à obra um caráter sempre mutante; e a modula-
ção rítmica, em que o andamento da peça pode passar disso [ex.] para isso [ex.] gradualmente através de alte-
rações matemáticas da proporção rítmica. É uma obra de extrema dificuldade de leitura e Starobin, sem ser um
virtuose, consegue toca-la como se fosse sua.

Starobin:
Carter: Changes

[desanúncio] O violão passa por uma época interessantíssima nos EUA, e no próximo programa mostraremos
mais dois grandes originais do violão americano: Sharon Isbin e Eliot Fisk.
Agradecimentos.
A Arte do Violão pág. 82
A Arte do Violão pág 83

PROGRAMA XXII – ELIOT FISK E SHARON ISBIN

“Se você nunca ofende ninguém, não é possível que esteja fazendo algo importante. Se você não defende
nenhuma causa, não suscita controvérsia. Eu não suporto esta idéia de arte enlatada. Especialmente no mun-
do da música clássica, as coisas se tornaram tão enlatadas, o estilo de vida de vários músicos tem se tornado
tão burguês e somente dirigido ao conforto pessoal. Suas vidas freqüentemente são tão ilhadas da realidade
do mundo que sua música não possui mais nenhum elemento visceral”. Eliot Fisk

BG
De todos os violonistas em atividade hoje, o americano Eliot Fisk é certamente um dos mais interessantes,
cultos e engajados, um dos poucos que se preocupam em fazer do violão um participante ativo da sociedade
como um todo, e ao mesmo tempo um dos mais controversos e enervantes. Ele nasceu em Filadélfia em 1954
numa família cujos antepassados pertenciam à seita religiosa dos Quakers, o que explica, segundo ele, seu
interesse por questões sociais. O fato de seu pai ser um professor de marketing talvez também explique seu
talento para a auto-promoção. Desde cedo um aluno brilhante, ele ganhou várias bolsas para estudar com lu-
minares como Oscar Ghiglia e Alirio Diaz. Na Universidade de Yale, estudou musicologia com o grande
cravista Ralph Kirkpatrick e, mais tarde, tornou-se um protegido de ninguém menos que Andrés Segovia, que
declarou: “Considero Eliot Fisk um dos mais brilhantes, inteligentes e dotados jovens artistas de nosso tempo,
não somente entre os violonistas, mas no mundo da música como um todo”. O apadrinhamento de Segovia e
algumas controversas aparições em concursos chamaram a atenção do público e logo ele lançou suas primei-
ras gravações, entre elas uma instigante versão dos 12 estudos de Villa-Lobos.

Fita – V-Lobos
Estudos nos. 2 e 3 cerca de 4’

[desanúncio] Uma gravação onde já ouvimos a assinatura de Fisk: potência, energia, vitalidade, idéias inespe-
radas. Se no programa anterior percebemos em Manuel Barrueco uma obsessão por auto-controle e eficiência
industrial, em Eliot Fisk, seu exato contemporâneo, ouvimos um outro lado da mentalidade norte-americana: a
auto-confiança missionária dos fundadores, a necessidade de ser sempre o mais rápido, o mais forte, o mais
musical, o mais intenso, o mais isso ou aquilo ao invés de ser somente adequado. Eu particularmente acho o
resultado às vezes revoltante, mas freqüentemente sublime. O que não é possível é lhe ficar indiferente.

CD Guitar Vistuoso
Scarlatti ou Bach

[desanúncio] Nesta gravação percebemos uma mentalidade iluminista: ele investiga a obra por dentro, explora
ao mesmo tempo o intenso violonismo de seu mentor Segovia e as noções de articulação e ornamentação da
moderna pesquisa histórica. Uma frase nunca é tocada duas vezes da mesma maneira, e há sempre uma cer-
ta tensão interna de quem está tocando no limite de sua capacidade técnica e mental. Estamos a um mundo
de distância da técnica imaculada hoje em voga: Fisk toca como se o mundo fosse acabar amanhã e não tem
tempo para detalhes pedantes.

BG – Maw
Sem sombra de dúvida, o que escreverá seu nome na história é o trabalho com os compositores contemporâ-
neos. Estamos ouvindo um trecho de Music of Memory de Nicholas Maw, uma das inúmeras obras inspiradas
pela enorme vitalidade de Fisk. É um monumento de mais de 20 minutos e uma das obras máximas do séc XX,
que infelizmente não poderemos exibir na totalidade. Uma outra obra seminal escrita para Eliot fisk é a
Sequenza XI de Luciano Berio, que já ouvimos em outro programa, mas um trabalho hercúleo é sua versão
das Caprice Variations de George Rochberg, originalmente escritas para violino. São nada menos que 50 vari-
ações sobre o famoso Capricho no.24 de Paganini, onde Rochberg aplica sua teoria da “expansão estilística”,
onde elementos pertencentes a todos os períodos da história da música se entrelaçam de forma às vezes har-
moniosa, às vezes conflitante, exigindo do ouvinte uma constante suspensão do senso de tempo histórico.
Algumas variações são verdadeiras colagens de obras de Beethoven, Brahms, Mahler ou Webern. O intérpre-
te pode tocar quantas variações quiser, na ordem que preferir, desde que, segundo o compositor, mantenha o
estranhamento estilístico que é a essência da obra.

CD Caprice Variations Faixas 1, 5, 16, 24, 15, 29, 4, 13, 3, 9, 47, 48, 50, 51
Rochberg, Caprice Variations c.22’

[desanúncio] Uma obra extremamente significativa para nossa época de sincronicidade. Esta vocação de Eliot
Fisk para super-herói produziu um sem-número de trabalhos interessantíssimos, como sua transcrição dos 24
A Arte do Violão pág. 84

Caprichos de Paganini para violão. Outros violonistas, como o brasileiro Geraldo Ribeiro, já haviam tentado
transpor as imensas dificuldades desse emblema do virtuosismo diabólico, mas Fisk não só gravou todos eles,
mas o fez nas tonalidades originais, uma missão quase impossível. O Capricho no.5 impressiona pela bravura
e velocidade, além de suas escalas executadas com a mão esquerda solo, mas o no.6 é um momento de pura
poesia, onde os tremolos executados com uma suavidade extraordinária criam um verdadeiro brocado:

CD Paganini
Faixas 5 e 6 – Caprichos no 5 e 6 c. 6

[desanúncio] Pode parecer, a julgar por estas gravações, que Eliot Fisk é um especialista em punições auto-
impostas, mas Fisk tem verdadeira idolatria por Andrés Segovia, seu mentor musical, e absorveu como poucos
a essência de seu estilo romântico, que ele continua transmitindo como um brilhante professor no Mozarteum
de Salzburgo e no Conservatório de Nova Inglaterra em Boston; alguns verão uma espécie de caricatura na
sua abordagem, mas Fisk é capaz de tocar obras despretensiosas com extraordinária ternura e refinamento
segovianos, sem abdicar de sua originalidade.

CD Segovia
Franck: 2 Peças de L´organiste 2´58

[desanúncio e comentário] Curiosamente ele busca isso num violão notoriamente neutro, construído pelo
luthier americano Thomas Humphrey, um projeto inovador que levanta a escala do violão como se fosse um
violino, deixando-a em um ângulo em relação ao tampo, o que aumenta a potência do instrumento e melhora o
acesso às notas mais agudas. Uma outra violonista bastante original que usa um violão Humphrey é Sharon Isbin.

BG
Ela é exata contemporânea de Fisk, Barrueco e Starobin, nascida em Minneapolis em 1956 numa família judai-
ca. Ela estudou também com Oscar Ghiglia e Alirio Diaz, e fez um estudo particularmente profundo das obras
de Bach com a renomada pianista Rosalyn Tureck.

BG sobe
Nos anos 70, o concurso internacional de maior prestígio era organizado trienalmente em Toronto, no Canadá.
A edição de 1975 é por muitos chamado de “concurso do século”. Sharon Isbin foi a vencedora, Manuel
Barrueco segundo colocado e Eliot Fisk ficou em terceiro. Ela também venceu os concursos internacionais de
Munique e de Madri, e estabeleceu-se como uma das artistas mais respeitadas dos EUA, inclusive é hoje a
chefe da cátedra de violão na Juilliard School de Nova York.

BG sobe
Uma das características mais marcantes de Sharon Isbin é seu ecletismo. Ela toca bem qualquer tipo de músi-
ca e é particularmente interessada em projetos multi-culturais, tendo já realizado gravações de música latino-
americana, oriental, tradicional americana, etc. Mas a sua maior contribuição para a história do violão é, de
novo, a colaboração com compositores, principalmente no repertório para violão e orquestra. A lista é imensa,
e inclui nomes do porte de Lukas Foss, Tan Dun, Schwantner, Christopher Rouse e Aaron Jay Kernis, mas a
obra mais interessante, para mim, é o concerto Troubadours de John Corigliano. Nesta obra o compositor de-
monstra sua obsessão pela relação da música atual com o passado. A orquestra cria uma nuvem de lembran-
ças da qual o violão emerge como uma fantasmagoria da época dos trovadores. A obra é uma fricção entre
técnicas contemporâneas e o aroma da música medieval, num diálogo onde o violão parece representar a for-
ça de um passado que continua a nos nutrir.

Fita
Corigliano: Troubadours. C.22

[desanúncio] Por mais que os artistas americanos tenham de ceder às armadilhas de uma sociedade voltada
para o consumo, onde tudo tem um preço, mas quase nada tem um valor e a obra de arte facilmente se trans-
forma em mercadoria ou auto-ajuda, nós temos de nos sentir esperançosos pelo fato de que ainda seja possí-
vel que artistas vitais como Eliot Fisk e Sharon Isbin possam dar plena vasão à sua visão de um violão origi-
nal, integrado ao meio musical como um todo e com um papel a cumprir na sociedade contemporânea. Ade-
mais, Eliot Fisk tem de ser parabenizado pelo trabalho de sua Fundação, que procura a humanização através
da música, desenvolvendo projetos de inclusão social levando concertos a escolas, orfanatos, presídios, asilos
e áreas carentes.
No próximo programa, a arte de David Russell.
Agradecimentos.
A Arte do Violão pág 85

PROGRAMA XXIII – DAVID RUSSELL, PAUL GALBRAITH, RAPHAELLA SMITS

Num documentário recente, o grande pianista e regente Daniel Baremboim faz um comentário bastante afiado
ao comparar Alfred Cortot e Artur Rubinstein. Ele diz que o público muitas vezes não vê distinção entre a per-
sonalidade de um grande artista como algo incomum, o que é verdade, e algo anormal, o que não é necessari-
amente verdade. De fato, alguns intérpretes abordam a música sob o viés da anomalia, do conflituoso ou do-
entio, exagerando os aspectos depressivos e os contrastes inesperados de maneira excêntrica. Outros, como
era o caso de Rubinstein, abordam a música de uma forma sadia, e sempre buscam organizar os conflitos do
discurso musical mantendo um fio condutor, uma espinha, uma atitude resoluta. No violão, há um violonista
escocês que é um modelo do segundo tipo de artista: David Russell

BG
Vivaldi: Sonata R.46 Allegro 2´15
David Russell nasceu em Glasgow em 1953, mas passou boa parte de sua infância na ilha espanhola de
Menorca. Depois de estudos com José Tomás, um assistente de Segovia, ele completou sua formação na
Royal Academy of Music em Londres e passou vitorioso pelo moedor de carne dos concursos internacionais,
com primeiros prêmios no concurso Tarrega em Benicasim e no concurso Segovia de Mallorca. Seus primeiros
CDs foram algo tímidos, mas no início dos anos 80 ele lançou um CD de compositores esquecidos do séc.XIX
que marcou época.

CD 19th Century Music FX 5


Mertz: Fantasie Hungroise 6´05

[desanúncio] Nesta obra vemos a aplicação mais doméstica, para o âmbito do violão, do estilo virtuosístico de
Liszt e Thalberg então em voga. Aqui o potencial de Russell já está plenamente desabrochado: é uma sonori-
dade clara, bem timbrada e absolutamente imaculada, onde os ruídos das unhas da mão direita ou do atrito
contra as cordas são praticamente eliminados, num grau de pureza técnica que não se ouvia praticamente
desde o Duo Abreu nos anos 60. Não há sofrimento nem conflito: tudo é despachado de maneira franca,
descomplicada, sem exageros, mas ao mesmo tempo com uma desenvoltura, propulsão e elegância que lhe
são únicos.

BG Bach
Apesar de sua afinidade com o sentimental repertório original do séc. XIX, suas gravações mais impressionan-
tes são as de música barroca. Ele adotou a técnica de ornamentos em cordas cruzadas, que já ouvimos no
programa sobre o duo Presti-Lagoya, mas com um método diferente. Seus trinados são executados com uma
alternância constante dos 4 dedos ativos da mão direita, o que lhe dá um ganho de velocidade e de possibili-
dades de enunciação. Claro, o espaço entre duas cordas do violão é bem estreito, e obviamente é bem difícil
encaixar os 4 dedos dentro de um espaço tão exíguo, mas Russell o faz com precisão milimétrica e produz
versões cintilantes e equilibradas de Bach, Scarlatti e Haendel:

CD Baroque Music FX 6
Haendel: Passacaille 5´49

[desanúncio] Nesta obra em que muito do interesse está no acúmulo de tensão gerado pela aceleração dos
elementos composicionais, Russell gradua o volume e o andamento de maneira admirável, investindo a músi-
ca de Haendel com uma característica nobreza e pompa. Em obras do barroco francês, entretanto, a meticulo-
sidade e exatidão criam um caráter meio coquete, totalmente apropriado.

CD Baroque Music II FX 1
Loeillet: Suite no 1 Allemande 3´26

[desanúncio] A partir destas gravações, Russell tornou-se uma figura muito querida no circuito do violão em
todo o mundo. Em parte por força das circunstâncias, em parte por escolha pessoal, sua carreira não
extrapolou os limites dos festivais e sociedades de violão, e preferiu se concentrar no seu prazer pessoal de
tocar sem pressões de ordem comercial. Uma das críticas mais freqüentes a seu respeito é o repertório: ele
tende a render melhor em música de segunda categoria, no repertório de salão do séc XIX, ou na música mais
leve e sem maiores conseqüências do séc.XX. Eu não vejo problema nisso. O repertório de Russell encaixa
com as aspirações e com o nível de cultura musical do vasto público de estudantes e amadores do violão, e
A Arte do Violão pág. 86

ele consegue freqüentemente tornar muito deste repertório bastante apreciável e divertido. Ouçamos esta obra
de Tarrega, de gosto mais que duvidoso, que ele despacha com elegância e humor.

CD Tarrega I FX 21
Tarrega El Carnaval de Veneza 8´56

[desanúncio] Além de ser um virtuose absolutamente inatacável, Russell é daquelas poucas pessoas ilumina-
das, acessíveis, bem humoradas mesmo depois de horas de espera em aeroportos, capazes de fazer qualquer
pessoa se sentir especial com um par de frases, enfim, um verdadeiro príncipe. Isso faz de dele também um
admirado professor, e a combinação destes fatores faz dele, hoje, talvez o violonista mais requisitado dos pal-
cos de todo o mundo.

BG
A partir dos anos 90, ele mudou um pouco o formato de seus CDs e hoje, normalmente, ele se concentra em
fazer panorâmicas de faixas específicas do repertório. Algumas destas leituras não são tão interessantes, de-
vido a uma abordagem formulaica e a uma mesmice de fraseado, mas seu CD de obras de Barrios é bastante
admirado. Sua leitura das obras de Agustín Barrios são bem diferentes do que o compositor faria, mas como
Russell mesmo disse uma vez em um masterclass, “eu entendo que é normal, para este repertório, tocar de
forma mais incandescente, mas, sabe... eu sou escocês, não está na minha natureza”. A ausência de combus-
tão é amplamente compensada pela naturalidade de seu fraseado e por seu tremolo perfeito.

Cd Barrios FX 1
Barrios: Un Sueno en la floresta 7´09

[desanúncio] Alguns intérpretes têm uma natureza mais dramática, dada a contrastes mais acentuados, tem-
pestade e ímpeto. Russell é, essencialmente, um intérprete lírico, onde o mundo é visto um pouco através de
lentes cor-de-rosa, como ouvimos neste Barrios. O que não quer dizer que ele não possa ter uma técnica de
extraordinário brilhantismo, solidez e velocidade quando é necessário. Neste pouco conhecido concerto de
Rodrigo, ele toca de forma tão flexível e relaxada que o ouvinte nem se dá conta da verdadeira punição técni-
ca pela qual ele está passando.

CD Rodrigo FX 10
Rodrigo: concierto para uma fiesta – allegro moderato 6´48

[desanúncio] Os outros dois concertos de Rodrigo são mais que conhecidos, especialmente o concierto de
Aranjuez, mas o concierto para uma fiesta, seu terceiro e talvez o melhor de todos, provavelmente ainda não
se popularizou devido à natureza extrema de sua dificuldade técnica.
Uma outra intérprete de essência lírica, que chegou até a gravar dois discos em duo com David Russell, é a
belga Raphaella Smits.

BG
Nascida em 1957, ela seguiu o padrão desta geração de violonistas ao completar seus estudos com José To-
más e a lançar sua carreira com o auxílio dos prêmios em concursos internacionais. Seguindo o que talvez
seja um padrão no mundo do violão, ela também é uma pessoa encantadora, ponderada e acessível, e ensina
no Conservatório de Antuérpia. Sempre voltada à faixa mais lírica do repertório, ela tem, recentemente,
adotado a prática de instrumentos originais e gravado muito da esquecida música romântica original para vio-
lão com um instrumento de 7 cordas feito por Vicente Arias em 1899. Esta é uma de minhas gravações favori-
tas; superficialmente, sua realização é leve, sutil, sem extremos de expressão, mas numa escuta mais atenta e
profunda vemos que isso é alimentado por um autêntico delírio artístico e intensidade emocional.

Cd Raphaella Smits FX 5
Manjon cuento de Amor 7´30

[desanúncio e comentário] Um outro artista escocês que merece a máxima atenção é Paul Galbraith.

BG
Nascido em Edimburgo em 1964, Galbraith é um dos violonistas de mais abrangente cultura musical em
atividade, e um poderoso intelecto voltado às mais profundas associações musicais. Sua formação foi algo
convencional, mas dada a drásticas guinadas. Ainda adolescente ele atraiu enorme atenção em dois importan-
tes concursos musicais na Inglaterra, talvez os equivalentes do Prêmio Eldorado aqui no Brasil, e embarcou,
talvez cedo demais, numa carreira internacional, marcada por algumas gravações algo convencionais. Perce-
A Arte do Violão pág 87

bendo que isso era uma barca furada, ele limitou seus compromissos e passou vários anos re-elaborando
seus conceitos musicais sob a orientação do pianista grego George Hadjinikos. Ele re-emergiu anos depois
com uma abordagem holística do fazer musical, com efeitos drásticos em sua técnica e até em seu instrumento.

BG sobe
No início dos anos 90, Galbraith já estava tocando com o violão numa posição totalmente vertical, usando um
espigão à maneira do cello, o que, segundo ele, lhe permite total liberdade de ação para moldar a música com
sua mão direita. Este espigão é conectado a uma caixa de ressonância, que funciona como um amplificador
acústico. Neste ponto Galbraith resolveu se dedicar somente à música que realmente mais lhe importa, o que
o levou a transcrever obras de Bach, Haydn, Grieg, e este Brahms que estamos ouvindo.

BG sobe
Não satisfeito com isto, ele resolveu ampliar os recursos do instrumento e projetou, com auxílio do luthier
David Rubio, um instrumento de 8 cordas. Isto não é novidade, afinal Narciso yepes tocava num instrumento
de 10 cordas e já no séc XIX a 7a e 8a cordas mais graves já eram exploradas, como ouvimos na gravação de
Raphaella Smits. A novidade de Galbraith é que ele expande o limite superior da tessitura do violão com uma
corda mais aguda. Desta forma, temos uma ampliação em ambas as direções, com uma corda mais aguda e
outra mais grave, mantendo o instrumento em perfeita simetria.
Este é o instrumento que ele tem usado em seus concertos e gravações, e que lhe permite uma abordagem
totalmente original. Sua gravação das obras para violino de Bach teve enorme repercussão e foi nominada
para um Grammy.

BG Bach
Nela, Galbraith adota um princípio holístico em que a compreensão estrutural da obra é informada por um pro-
fundo entendimento dos aspectos teológicos da música de Bach e por um senso de proporção, equilíbrio e
continuidade derivados do classicismo grego. Ele encara todo o ciclo de 6 sonatas e partitas como uma só
obra, que ele executa sem interrupção, preenchendo de forma ornamental todos os momentos de silêncio, na
busca de uma líquida continuidade sonora. Esta visão unificada é evidenciada pela escolha dos andamentos,
em que uma única unidade de pulso é mantida, em proporção matemática, por todo o ciclo. Por exemplo, se o
ouvinte tentar marcar o tempo nesta 1a partita, verá que todos os movimentos obedecem a praticamente uma
só unidade de pulso:

EX. Galbraith
CD Bach FX 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12
O resultado é radical, drástico, provoca estranhamento, mas ao mesmo tempo a verdadeira fé que Galbraith
deposita nestas obras é absolutamente sublime.

CD Bach FX 14
Bach Fuga BWV 1003 5´41

[desanúncio] casado com uma alaudista brasileira, Paul Galbraith reside em São Paulo há vários anos e rara-
mente se apresenta no Brasil. Promotores de concertos, por favor, acordem!
Agradecimentos
A Arte do Violão pág. 88
A Arte do Violão pág 89

PROGRAMA XXIV – DUO ASSAD E MARCELO KAYATH

Poucos artistas brasileiros podem se gabar de ter uma carreira verdadeiramente internacional. Dois irmãos
nascidos no interior de São Paulo construíram de forma gradual e a duras penas uma sólida carreira internaci-
onal e são, hoje, unanimemente considerados o maior duo de violões do mundo, dividindo o palco regularmen-
te com celebridades como YoYoMa e Gidon Kremer: o Sérgio e Odair Assad.
BG música do Sérgio
A atividade do duo Assad emana do ambiente doméstico, onde a música e o violão se confundem com os la-
ços afetivos: o pai, seu Jorge, é um ótimo violonista e bandolinista de choro; a mãe, d. Ika, é uma respeitável
cantora, e a irmã mais jovem, Badi Assad, é uma cantora/instrumentista de extraordinários recursos. Os filhos
e filhas de Sérgio e Odair também começam a se profissionalizar na música. Nos anos 60, a família se mudou
para o Rio para que os irmãos pudessem estudar com a célebre Adolfina Távora, que era professora dos ir-
mãos Abreu, que ouvimos num programa anterior. Em 1973 eles ganharam o concurso de jovens solistas da
Sinfônica Brasileira e começaram a ocupar um espaço no cenário musical do país. Compositores nacionalistas
começaram a escrever para eles e aquele a cujo nome estão indissociavelmente ligados é Radamés Gnatalli.

LP
Gnatalli: Corta-jaca, da suíte Retratos 4’32’’

[desanúncio] Quando o duo começou sua carreira nos anos 70, o ambiente musical no Brasil ainda era muito
sisudo e segmentado. Eu me lembro de um conhecido pianista tocar algumas peças de Ernesto Nazareth e
dizer ao final: “deixe-me tocar agora um pouco de Bach, para limpar o ambiente”.

BG – Concerto de Gnatalli na fita


Sérgio Assad me contou que, ao entrar no curso superior de música no Rio de Janeiro, parou de compor: a
prática de composição era totalmente voltada para a vanguarda européia e tratava a música nacionalista como
se ela não existisse, o que o fez se sentir deslocado. Em SP, não era diferente: quando os vi, pela primeira
vez, em 1982, havia, claro, respeito pela perfeição e musicalidade, mas ainda se ouvia comentários do tipo
“que pena que eles desperdiçam o talento com estas musiquinhas”.

BG sobe
O fato é que, já nos anos 70, eles estavam à frente dos acontecimentos e buscavam desenvolver um conceito
sonoro próprio, que combinava o repertório tradicional, compositores como Gnatalli e Marlos Nobre e arranjos
sofisticados de Piazzolla ou Gismonti, o que hoje chamamos de cross-over. Nos últimos anos, a maioria dos
artistas clássicos tem feito cross-over de uma forma ou de outra, seja por curiosidade ou por pressão comerci-
al. O duo Assad tem minimizado a barreira entre o clássico e o instrumental popular, tratando um com os méto-
dos do outro, há 30 anos, por inclinação natural e pelo respeito à prática do choro, da qual eles mesmos ema-
naram. Esse jeito de tocar a um tempo brincalhão e detalhado, essa leveza e swing, não é algo fabricado: é o
próprio código genético do duo Assad. O público europeu percebeu isso logo nas primeiras apresentações do
duo e, a cada recital novos convites apareceram, até que, no início dos anos 80, eles se viram forçados a resi-
dir no exterior para atender à demanda por mais e mais concertos.

BG sobe e fade
[desanuncio] Outro compositor bastante próximo deles é Marlos Nobre. Suas obras para violão são do mesmo
escol de Villa-Lobos, com um vigor e ímpeto controlados por uma técnica composicional de primeira linha

LP Marlos Nobre
Nobre: 2o ciclo Nordestino, op.13 bis 4’20’’
Batuque, praiana, carretilha, seca, xenhenhem

[desanúncio] onde ouvimos que eles são capazes de evocar a atmosfera da caatinga nordestina, sua aspereza
e ritmos másculos com igual eficiência.

BG
No início dos anos 80, quando o duo ainda não era conhecido fora do Brasil, mostrei a um colega argentino
uma gravação que eles haviam feito de um arranjo de Piazzolla. Ele me falou “não sei quem é, mas posso as-
segurar que são argentinos”. Claro que o duo gosta de Piazzolla desde criancinha, mas Sérgio diz que, como
os contrastes dramáticos faltam à música brasileira, Piazzolla preenche uma lacuna em seus programas.

CD saga dos Migrantes


Piazzolla: Bandoneon, da suíte troileana 8’12’’
A Arte do Violão pág. 90

[desanúncio e comentário] Fala-se muito que swing é um talento natural, difícil de ser ensinado. Talvez seja
uma percepção aguçada para alguns elementos da pronúncia musical, que não são normalmente prioritários
para músicos treinados exclusivamente na música clássica.

BG
É uma percepção para o elemento coreográfico, dinamogênico da música. A música latino-americana de ori-
gem dançante tende a valorizar os contratempos; todavia se forem pronunciados com muita ênfase e de forma
quadrada, medida com a régua, criam um efeito pesado, paquidérmico.

BG
O duo Assad trata o ritmo com imenso desvelo: é uma intricada combinação de pequenos acentos, pequenos
desvios da norma quadrática do ritmo e de controle da articulação. A medida dos compassos é absolutamente
regular, entretanto, dentro deles, um ligeiro espichar e contrair da distância entre as notas é feito de maneira
imprevisível.

BG
Um acento não é necessariamente um golpe na nota; um contratempo pode ser levantado, “iluminado”, por um
desvio do padrão de articulação. O duo Assad subverte o quadrado rítmico inserindo algumas notas em
staccatto, ou seja, curtinhas, dentro de um padrão essencialmente legato, contínuo. O efeito é ao mesmo tem-
po marcado e leve, de grande complexidade auditiva e de uma graça felina.

Fita
Piazzolla: Tango suíte, 3o. mov c.6’00’’

[desanúncio] Piazzolla ficou estupefato ao ouvir o duo Assad pela primeira vez e lhes dedicou esta suíte, uma
de suas melhores obras, que eles tocam com um virtuosismo alucinante e com um formidável controle de dinâ-
mica na seção final.
Esta leveza e ritmo faceiro fazem deles intérpretes ideais também da música barroca francesa. Esta minúcia
nas mínimas inflexões do fraseado e da ornamentação cria um efeito de rendilhado, de textura complexa e
sofisticada, na música de Couperin.

CD Barroco
Couperin: Le Carrillon de Cythère 3’28’’

[desanúncio] Sérgio Assad, ademais, é um compositor de primeira linha e, felizmente, o duo cada vez mais tem
incluído suas obras em suas apresentações pelo mundo afora. Um outro violonista brasileiro que teve uma
curta, mas extremamente bem-sucedida carreira internacional nos anos 80, foi Marcelo Kayath.

BG
Nascido em 1964, ele foi aluno de Leo Soares e Jodacil Damaceno no Rio de Janeiro, e ainda adolescente já
havia vencido os maiores concursos nacionais no Brasil. Sua ascensão aos palcos internacionais foi
meteórica: em 1984, com apenas 20 anos e enquanto ainda cursava a faculdade de engenharia, ele foi vence-
dor, num intervalo de poucos meses, dos dois maiores concursos internacionais de violão de então, o concur-
so de Toronto, no Canadá, e o respeitado concurso da Radio France, em Paris. Em poucos meses, ele se tor-
nou um convidado freqüente dos palcos internacionais e fez o que considero uma das mais impressionantes
estréias em disco em toda a história do violão.

LP
Nobre: Prólogo e toccata op.65 5’45’’

[desanúncio] Tudo que gosto de ouvir num violonista, Marcelo Kayath tem de sobra: uma sonoridade opulenta,
portentosa, variada, um discurso rítmico vigoroso e direto, técnica imaculada, imaginação, poesia e rigor
estilístico. Nesta obra de Albeniz, que até Segovia tocava com um certo desconforto, ele consegue não só fa-
zer com que não nos demos conta das dificuldades, mas toca cada artéria das frases com uma voz própria e
cria uma aura de sonho no acompanhamento ao mesmo tempo em que mantém uma robusta sustentação nos
baixos.
A Arte do Violão pág 91

CD Spain
Albeniz: Granada 4’45’’

[desanúncio] Acho que o segredo de Marcelo Kayath é se ater ao essencial: nesta pequena peça de Barrios,
escutem como ele pronuncia o ritmo com uma graça sem paralelo e nos dá a ilusão de três planos distintos de
sonoridade. Isso tudo num andamento cômodo e sem o exibicionismo típico dos vencedores profissionais de
concursos.

Cd Barrios e Ponce FX 2
Barrios: Danza Paraguaya no.3 2’15’’

[desanúncio] O público muitas vezes tem a ilusão de que o estilo de vida de um concertista internacional é
uma sucessão de eventos glamurosos e paparicação, mas poucos imaginam o que é a pressão de estar sem-
pre em plena forma em longas turnês, que freqüentemente se resumem a teatros e quartos de hotel, espera
em aeroportos e a solidão de se encontrar gente desconhecida diariamente, onde a música e o carinho do
público são muitas vezes a única compensação. No início dos anos 90 Marcelo Kayath percebeu essa vida
não era para ele e abandonou os palcos. Fez um MBA em economia na Califórnia e hoje vive em São Paulo,
onde é um bem-sucedido executivo no mercado financeiro. Na minha opinião, uma perda para o violão da
mesma magnitude dos irmãos Abreu ou de Ida Presti. Mas ao menos podemos ouvir um registro de sua inteli-
gência musical e nobreza de expressão nas 6 gravações que deixou, a maior parte delas de obras curtas de
caráter romântico.

CD Barrios e Ponce FX11


Ponce: Preâmbulo e Allegro 4’25’’

[desanúncio] Marcelo Kayath, bem como o Duo Assad, Barbosa Lima, o duo Abreu e Turíbio Santos são a pon-
ta do iceberg, a face internacional da história de amor do violão com o Brasil, que é o tema de nosso próximo
programa.
Agradecimentos: Marcelo Kayath
A Arte do Violão pág. 92
A Arte do Violão pág 93

PROGRAMA XXV - O VIOLÃO NO BRASIL

Como o café e o futebol, o violão está indissociavelmente ligado a uma visão sócio-cultural do Brasil, e nossa
identidade musical é impensável sem a sua presença. E não é para menos.Instrumentos da família do violão
foram já trazidos pelos jesuítas e usados na catequese. Dessa forma, desde o primeiro encontro que define
nossa identidade cultural, o violão está presente. Os instrumentos trazidos pelos jesuítas provavelmente foram
as vihuelas, alaúdes e violas – as quais, simplificadas, tornaram-se guitarras barrocas - que, levadas ao interi-
or do país pelos bandeirantes, foram adotadas como o instrumento folclórico nacional por excelência: a viola
caipira.

BG - Viola
Isto, conjugado à marcada diferença cultural entre as classes sociais no período imperial, estigmatizou o vio-
lão – como acontecia na Espanha – como o instrumento do populacho, dos capadócios e da marginalidade,
em oposição ao piano, que realizava um ideal de bom tom das famílias urbanas mais abastadas.
Até a metade do séc. XIX há uma certa confusão entre a viola e o violão, mas depois de 1850 já fica clara a
diferença entre a viola, um instrumento tipicamente sertanejo, e o violão, ou a guitarra francesa (como era cha-
mada nos métodos à venda no Rio de Janeiro), instrumento favorecido no acompanhamento do cancioneiro
popular de tradição urbana.

BG violão
O violão também foi adotado como baixo-contínuo dos incipientes grupos de choro. Os primeiros defensores
sérios do violão como instrumento de concerto, como o engenheiro Clementino Lisboa, o desembargador
Itabaiana e o professor Alfredo Imenes, heroicamente se sujeitaram ao ridículo público ao se apresentarem,
por exemplo, no Clube Mozart, centro musical da elite carioca.

BG sobe
Os primeiros concertos de violão solo documentados no país foram oferecidos pelo violonista cubano Gil
Orozco em 1904 e não chegaram a atrair muita atenção. O violão como instrumento de concerto no Brasil tem
até data de nascimento: maio de 1916, quando o crítico do jornal O Estado de São Paulo ouviu e se rendeu à
arte do virtuose e compositor paraguaio Agustín Barrios (1885-1944), que residiu no Brasil em decorrência de
seu sucesso. Meses depois, apresentou-se no Conservatório Dramático e Musical, com notável êxito, aquele
que podemos apontar como o primeiro concertista brasileiro; ele não sabia ler música e tocava com o violão
invertido, mas com as cordas em posição normal: Américo Jacomino, o “Canhoto” (1889-1928).

Fita Canhoto
Abismo de rosas? C.3’

Como vemos, talvez surpreendentemente, o violão como instrumento de concerto ainda não completou 100
anos no Brasil, o que faz da vulcânica personalidade de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) um fenômeno ainda
mais singular. As contingências sócio-culturais fizeram com que seu instrumento público fosse o violoncelo e
que o violão fosse somente um laboratório de fundo-de-quintal, que ele utilizava para penetrar nas rodas de
choro. Seria absolutamente impensável a realização desta obra, um divisor de águas na história do violão,
dentro do contexto acanhado no Brasil dos anos 20.

Cd Villa-Lobos
V-Lobos choros no.1

A distinção entre o violão de concerto e o violão popular foi gradualmente se acentuando nos anos 1930, 40 e
50 e alguns dos músicos de maior visibilidade construíram quase que a totalidade de suas carreiras à sombra
da Era do Rádio. Um dos mais importantes foi Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto

CD Garoto FX 6
Tristezas de um violão

[desanúncio e comentário] Um colega de Garoto, que chegou a fazer duo com ele e mais tarde fixou-se como
jazzista nos EUA foi Laurindo de Almeida. [comentar Laurindo]

Fita Laurindo

Por um lado, o rádio enfraqueceu as distinções de classe através do gosto musical e transformou-as numa
A Arte do Violão pág. 94

massa indistinta chamada “ouvinte”, disposta a ouvir o violão sem preconceitos; em 1928, o interesse pelo
instrumento é vasto o suficiente para o surgimento de uma revista, “O Violão”, no Rio de Janeiro. E o rei do
violão na Era do Rádio foi Dilermando Reis (comentar Dilermando, rádio, seresta, Juscelino)

Dilermando
Lp Gnatalli?? Ou fita abismo de rosas?

Por outro, ainda faltava uma metodologia que permitisse o surgimento de um número significativo de
concertistas de violão que preenchessem um vazio só ocasionalmente quebrado por raras visitas de artistas
internacionais como Regino Sainz de la Maza, Andrés Segovia (a partir de 1937) e Abel Carlevaro (nos anos
40).
O desenvolvimento desta metodologia veio com o uruguaio Isaías Sávio (1902-1977), que se estabeleceu em
São Paulo nos anos 30. Sávio foi um concertista de modestos recursos, mas um devotado professor e autor de
mais de 100 peças originais para violão, algumas das quais, como a Batucada das Cenas Brasileiras, perdu-
ram no repertório. Ele teve um papel considerável na promoção do violão dentro do establishment musical do
país, publicou dezenas de métodos e arranjos, e formou gerações de violonistas que prontamente se estabele-
ceram como professores em outras capitais, com destaque para Antonio Rebello (1902-1965) no Rio de Janei-
ro. A Sávio também devemos a criação do curso oficial de violão nos conservatórios e, pouco antes de falecer,
nas universidades.

Fita Sávio
Escuta Coração ou Sonha Iaiá

Sávio teve a sensibilidade de ver a afinidade do violão com a alma brasileira e confirmar o violão como uma
ponte ideal da transição entre a formação clássica e a música popular de qualidade. Entre seus alunos conta-
mos não só com Barbosa Lima e Antonio Rebello, mas também Luís Bonfá e Toquinho. Os anos 60 e 70 mar-
cam não só uma extraordinária expansão do ensino do violão popular com o advento da bossa-nova, mas tam-
bém a consolidação da carreira internacional de uma geração: Carlos Barbosa Lima (n.1944), Turíbio Santos
(n.1940), Sérgio (n.1948) e Eduardo Abreu (n.1949), Sérgio (n.1952) e Odair Assad (n.1956). Uma outra violo-
nista brasileira que teve expressiva carreira no exterior e hoje é catedrática de violão no conservatório de Ge-
nebra é Maria Lívia São Marcos.

LP Maria Lívia

Um outro violonista brasileiro de enormes recursos foi Geraldo Ribeiro (comentar).

Cd Geraldo
Barrios

Um fenômeno, pois não outra forma de chamá-los, foram os Índios Tabajaras (comentar).

LP Índios
Chopin Fantasia

A popularidade de Dilermando Reis e a bossa nova foram um fator crucial na divulgação do violão no Brasil.
Nos anos 60 o violão era uma verdadeira febre, e o violonista que define o papel do violão nos novos movi-
mentos musicais, absorvendo a harmonia da bossa nova e uma vigorosa pegada derivada dos ritmos africa-
nos, e que, para muitos, define o som do violão brasileiro é Baden Powell (comentar).

LP Baden?

O ensino do violão no Brasil, depois de Sávio, profissionalizou-se. Hoje é presente em conservatórios, faculda-
des, etc. No Rio de Janeiro, um dos professores que mais formaram alunos de sucesso foi Jodacil Damaceno.

CD Jodacil.

Em São Paulo, este papel coube a Henrique Pinto. É incalculável a contribuição de Henrique etc. (comentar0

LP Violão câmara trio


A Arte do Violão pág 95

Fenômeno dos discos independentes, alunos de Henrique, mudança da filosofia de repertório e gama que vai
dos extremos do clássico ao popular, com todas as nuances.

LP Trio op.12

Extremo ortodoxo

Everton Gloeden
LP Bach

Grande personagem saído do choro, com formação clássica, grande acompanhador: Rafael Rabello

Mini CD Rafael ou CD

Era do CD. Benefícios de inteligência musical e qualidade administrativa

CD Quaternaglia
A Arte do Violão pág. 96
A Arte do Violão pág 97

PROGRAMA XXVI – O VIOLÃO NO SÉC. XXI

Nesta série A Arte do Violão, tentei dar ao ouvinte um retrato daqueles violonistas que contribuíram, com sua
inteligência e paixão, para o estabelecimento do violão como instrumento de concerto no séc. XX.

BG Bream
Cada um deles, à sua maneira, criou um universo musical particular e conquistou seu espaço no coração do
público. Como poucas exceções, são também os violonistas que pessoalmente gosto de escutar. Mas as pes-
soas me perguntam: e no séc XXI, quem será o novo Segovia, Barrios ou Julian Bream? Eu não sou muito
apto para a profecias, mas acho que, agora, uma figura central deste porte não tem mais lugar. Como disse
meu professor, Henrique Pinto, o violão não é mais uma curiosidade ou aberração, ele é um instrumento que
tem repertório, músicos bem formados, e um papel a cumprir no cenário musical.

BG sobe
Isto, eu penso, leva a uma diluição, onde uma figura central dá lugar a um cenário múltiplo, onde cada um
pode, à sua maneira, manifestar sua individualidade artística. Ao invés de apontar erroneamente aqueles mú-
sicos que podem ou não cair no favor da mídia e da indústria cultural, eu mostrarei um pouco do que eu, parti-
cularmente, ouço com admiração e prazer.
Uma tendência que, acho, tende a se fortalecer, é a da música de câmara com violão.

BG LA Guitar Quartet
Por duas razões: o violão, um instrumento delicado e distante, raramente atrai as personalidades
comunicadores, um atributo essencial do grande solista. Já um grupo de instrumentos investe uma apresenta-
ção com um elemento substitutivo: a interação artística. A outra razão é mais mundana: é mais fácil que 3 ou 4
violonistas trabalhem de forma coordenada para uma carreira, que se fazer isto sozinho.

BG sobe
Dos muitos grupos de violões em atividade no momento, um dos mais impressionantes é o LA Guitar Quartet.

CD LA Guitar Quartet – FX 5
Holst: St Paul´s Suite: Dargason 3´09

[desanúncio e comentário] Uma outra tendência é a do compositor-violonista. O violão naturalmente atrai per-
sonalidades introspectivas e rapsódicas, e é apenas natural que estes exploradores queiram basear sua
atividade exclusivamente em composições próprias, muitas vezes no limite entre a música clássica, o jazz e a
música étnica. Um dos mais tocados e apreciados é Carlo Domeniconi.

CD Kytarovy Festival – FX 15
Domeniconi: Koyunbaba 4o Mov. 4´02

[desanúncio] Isto não quer dizer que o mundo do violão virou um festival de música étnica, porque muita gente
ainda tem muito a acrescentar dentro de um formato mais convencional. Na Espanha, onde julgaríamos brota-
rem violonistas-toureiros a cada esquina, têm surgido uma geração de músicos refinados e de estilo cálido e
sutil, influência, talvez, do ensino de David Russell. Uma de minhas preferidas é Margarita Escarpa, uma intér-
prete de enormes recursos, invariavelmente mantidos sob o controle de uma técnica imaculada.

CD Margarita Escarpa – FX 9
Mompou: suíte Compostelana Prelúdio 3´39

[desanúncio] Um outro intérprete de sumo interesse, de caráter dinâmico e efervescente, mas também com um
perfeito acabamento técnico, é Marco Sócias.

CD Elogio de la Guitarra – FX 3
Rodrigo: sonata Giocosa, allegro 3´03

[desanúncio] A Espanha parece produzir bons violonistas aos cântaros, e uma das estréias mais impressionan-
tes dos últimos anos é a de Anabel Montesinos, que se mostra incrivelmente apta para a música do séc. XIX.
Ela tem tudo o que este repertório pede: imaginação, elegância de fraseado, capricho nas terminações de fra-
se, técnica límpida e calor humano. E isto com apenas 19 anos.
A Arte do Violão pág. 98

CD Anabel Montesinos – FX 10
Llobet: Scherzo-Vals 3´48

[desanúncio] Um outro celeiro de grandes violonistas é a Alemanha. Os alemães combinam rigor de preparo
com potência, fecundidade, e uma imaginação delirante. Dentre eles, Franz Halasz tem tudo o que gosto de
ouvir num violonista: preferência pelas obras primas escritas para o instrumento, virtuosismo a toda prova, e a
capacidade de se envolver inteiramente com o universo da música que toca. Vamos ouvir duas facetas de sua
arte, primeiramente esta vibrante, arrasadora interpreatção deTurina;

CD Franz Halasz – FX 1
Turina: Rafaga op.53 2´33

[desanúncio] O outro lado de Halasz é o respeito pela arquitetura da obra e uma escrupulosa leitura dos míni-
mos detalhes do texto musical, como nesta inptrospectiva gravação de takemitsu.

-CD All in Twilight – FX 15


Takemitsu: In the woods, 1st mov Wainscot Pound after Cornelia Foss 2´58

-CD Bach – Hoppstock FX 1


Bach – BWV 995 prelude/presto 2´33

-CD Nora Buschmann FX 1


Kellner – Phantasia em la menor 2.42
-
CD Pavel Steidl FX 11
Mertz: Romanze 3´44

-CD Asencio FX 15
Asencio: La gaubança 1´53

-CD Ana Vidovic FX 1


Bach Prelúdio BWV 1006 3´22

-CD Fragments FX 7
Kampela Estudo Percussivo no.1 4´30

-CD Stefano Grondona FX 5


Tansman Preludio 3´15

-CD Aniello Desiderio FX 10


Dyens: Fuoco: Libra sonatina 3´14

-CD Graham Devine??

-CD Pablo Márquez FX ?


Milano

-CD Pablo Marquez II


Piazzola: compadre 3´00

You might also like