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SURPRESAS DO GÊNIO NESSA INCRÍVEL ARTE DE SE REPETIR

Berta Waldman, IstoÉ, São Paulo, 4 jan. 1978

No Apocalipse, um anjo ordena a João que devore um livro, advertindo- lhe que este seria
doce na boca, porém amargo nas entranhas. Assim também A Trombeta do Anjo Vingador,
o último livro do contista curitibano Dalton Trevisan. O leitor certamente fruirá a leitura
das narrativas com um meio sorriso provocado pela insinuante malícia das situações
criadas, mas simultaneamente, se dará conta de que estas situações estão aprisionadas num
espaço sem saída, o que lhes confere um traço amargo. O estigma da repetição obsessiva do
sempre igual percorre toda a obra de Dalton Trevisan, inclusive esta. Na relação homem-
mulher, a destruição é a única alternativa de convívio possível, transformando o cotidiano
em espaço de penitência onde os homens estão condenados “a crucificar um ao outro na
mesma cruz”(Meu Pai, Meu Pai”, pág, 28) , numa corrida em que não há vencedores.
Exaurir o outro é torná-lo igual a si, vampirizando-o, é o único gesto que o intercâmbio
perpetra. É essa igualdade que justificará a exploração de temática homossexual enfatizada
em Abismo de Rosas (penúltima obra do autor) , onde a busca do outro do mesmo sexo
reverte num desejo último de projeção do eu e numa autosexualidade mecânica e solitária.
E é ainda a igualdade que determinará a repetição no plano da construção das narrativas.
Também elas se debruçam umas sobre as outras e parecem contar sempre a mesma história.
Assim, como os seus personagens, a palavra de Trevisan está aprisionada.
A palavra Em “Mister Curitiba”, narrativa que abre esta coletânea, a palavra fala de seu
destino em meio ao gesto interrompido do herói: “Ajudado por ela, puxou-lhe a calça
comprida e as meias que combinavam com a blusa. Inclinou-se para beijar o pezinho. . . E
nunca chegou lá. Você procura uma palavra no dicionário, distrai-se com outra e já não se
lembra da primeira”. (pág. 12) A obsessão de quem profere a palavra recoloca-a ainda
obscuras, não exploradas e, quem sabe, o eco de outras vozes, de outras entoações.
Uma Segunda alusão ao dicionário aparece no conto “Meu Pai, Meu Pai”, em que o filho
renega o pai bêbado mas aos poucos se vai tornando igual a ele. “O rapaz folheando o velho
dicionário, ali na bonita letra; Faz hoje dez anos que larguei o vício. Ao pé da página: Duas
pessoas que nada mais têm a se dizer e toda noite se dão as costas no mesmo leito”. (pág,
31 – o grifo é do autor).
É do interior do dicionário, onde a palavra se acha amarrada, arquivada, que surge também
amarrada, a história do pai que é a história antecipada do filho. Contar e ser contado, ver e
ser visto passam a ser procedimentos que rompem as regras do jogo dialético para,
juntamente com a matéria de que tratam compor um universo opaco de indiferenciação e
morte. Por isso, também no interior das narrativas, o diálogo se apresenta não como um
ponto de encontro nem de divergência entre duas falas, mas como o espaço que marca a
neutralidade de um eu face a um tu igualmente neutro, transformando-se numa espécie de
monólogo-a-dois. “Quebrei um dente. Só na papinha. Me dá fraqueza. Gosto é de carne. ”
Sem perder o sorriso: “Carne branca, não é, doutor? Como ia falando. Ela me arreta. Daí
tiro a calcinha. Só puxar o elástico”. “Eu guardo de lembrança”. (“Seu João é um velho
sujo”, pág. 119). Sexo e culpa. A fala de seu João, velhinho tarado que atravessa as obras
de Dalton Trevisan, não tem como interlocutor o doutor; ela apresenta-se antes como um
discurso acabado, que não suporta no seu interior nenhum nível de interferência. Sua meta é
relatar as façanhas eróticas.
Também como discurso acabado, o erotismo, amplamente trabalhado, o erotismo,
amplamente trabalhado em A Trombeta do Anjo Vingador, não suporta o nível do diálogo
de corpos que se atraem, agenciando um sexo alienado que, ao alcançar um certo prazer
obscuro, à sombra do pecado, provoca simultaneamente a culpa. Na escalada noturna a
bares e prostíbulos, o sentimento de transgressão ligado ao sexo persegue os reis da noite,
que tanto na prática heterossexual como na homossexual não conseguem mais que a
reiteração do mesmo movimento, pretexto de afirmação de uma potência nem sempre
confirmada, mas só possível pela humanidade do outro. “Aí, o vampiro não havia perdido o
canino. Que se enterrou mais fundo na nuca. Ó não senhor. Começar nu de novo? Só
porque o chamou de Mister Curitiba?”(pág. 15)
Esta fala híbrida é a do narrador e a do personagem praticamente fecha o conto “Mister
Curitiba” e revela muito bem o tédio daquele que se vê forçado a retomar sempre a peleja
amorosa. Associado ao prazer, o pecado faz que a sombra da esposa entre em circuito na
relação que Mister Curitiba estabelece com sua nova conquista (“Mister Curitiba”) ; que o
adolescente depois de uma prática homossexual, pense na mãe que, certamente, ao olhar
para ele, saberia de tudo (“O Caçador Furtivo”) ; que o marido pague à mulher em cheque a
culpa de sua traição (“Durma, Gordo”) e mesmo, num processo de projeção, que o marido
sonhe que sua mulher havia ido a um hotel com outro homem (“O Despertar do Boêmio”).
É ainda este mesmo sentimento de culpa que, como uma ameaça, faz proliferar na obra a
imagem do dragão vermelho e de São Jorge, de anjos que, com suas trombetas, anunciam o
Apocalipse, e das pragas que, só no conto “As Sete Pragas da Noiva”, conduzem, de vinte e
uma maneiras, à aniquilação de João. Uma faca no coração poderia pôr fim às andanças do
vampiro, mas isso significaria liberá-lo das penitências a que está preso o seu cotidiano. Por
isso, como personagem de um seriado, ele retoma sempre o seu lugar na narrativa. Só
mesmo a persistência e a técnica apurada de Dalton Trevisan podem sustentar o difícil
equilíbrio entre a repetição e a originalidade que caracterizam toda a sua obra.

IstoÉ, 1979...
Duas antologias destinadas a públicos diferentes. Independentemente disso, porém, ambas
ilustram o transcurso de uma obra que começou a ser publicada em jornais, revistas,
folhetins, nos anos 40, e em forma de livro só na década de 50. Em ambas estão marcados
os passos do autor, o caminho de seus contos e de sua linguagem inquieta. Ao lado disso,
destaque-se a fidelidade do autor com relação à matéria escolhida para ser representada
literariamente (o sofrimento, a frustração e a alienação da classe média curitibana) e
também com relação à busca de uma linguagem cada vez mais concisa.
Na ação de selecionar, destacar e reunir, inerente à antologia, pode-se ver o empenho em
contar uma história, em oferecer ao leitor um caminho de decifração e interpretação.
Chama a atenção de todo o fato de Trevisan reescrever incansavelmente os mesmos contos.
Mas, nesse processo, ele imprime mudanças tais que os antigos passam a ser outros. Não se
trata apenas de mudanças no registro estilístico de quem quer atualizar a sua linguagem,
omitir repetições etc. Algumas são de tal porte que levam a pensar que se está presente a
um princípio de construção. Por trás do qual há um autor que se recusa a enxergar o seu
conto como um produto acabado.

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