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Lendas da Irlanda

Introdução e Ciclo do Ulster

Legends of Ireland

Background to Irish legends and Ulster Cycle.

Pesquisa, selecção e escrita / Research, selection and writing:


Alunos da escola de St. Michael, Galway / St. Michael’s Boys School
Coordenação e nota introdutória / Coordination and introductory notes:
Brendan O’Dwyer
Tradução / Translation:
Carlos Trincão
Introdução

Muitas das lendas irlandesas provêm de uma Cultura que remonta aos tempos
pré-cristãos, Cultura essa que se manteve praticamente intacta dado o facto de os
Romanos nunca terem chegado a instalar-se na Irlanda e, consequentemente, o idioma
ali falado não ter sido afectado pelo Latim. Também uma forte tradição oral e a
existência de várias escolas druídicas permitiam passar, intactos, de geração em
geração, ensinamentos e conhecimentos.
Quando, a partir do século V, o Cristianismo chegou à ilha, os copistas monacais
registaram não apenas as Sagradas Escrituras como também as antigas histórias
irlandesas que tão bem conheciam.
São quatro os diferentes grupos de histórias: o Ciclo Mitológico, o Ciclo do
Ulster, o Ciclo Feniano e o Ciclo Histórico, ou dos Reis.
O Ciclo Mitológico (pré-cristão) conta a história de um povo de semi-deuses
chamado Tuatha (povo) de Danaan∗ que combateu e venceu um outro povo de semi-
demónios, os Formorianos, que vivia nas ilhas que rodeavam a Irlanda. Posteriormente,
os Milesianos – os antepassados directos dos actuais irlandeses – derrotaram os Tuatha,
os quais se refugiaram no mundo subterrâneo e que reaparecem à superfície soba forma
de fadas (fêmeas e machos) com poderes mágicos. A palavra irlandesa para “fada-
fêmea” é “bansi”, que veio a dar, em inglês, “banshee”.
As histórias do Ciclo do Ulster (norte da Irlanda), que data do tempo de Cristo,
têm a ver principalmente com o grande rei Conor McNeasa e os seus valorosos
Cavaleiros do Ramo Vermelho, o mais famoso dos quais é Cúchulainn.
O Ciclo Feniano, ou de Fianna, é posterior aos Cavaleiros do Ramo Vermelho
em cerca de três séculos e conta a história de um grupo de guerreiros de elite que errava
por toda a Irlanda.
Finalmente, o Ciclo Histórico, ou dos Reis, trata dos Grandes Reis de Tara, na
região central irlandesa de Conny Meath, prolongando-se no tempo até cerca do ano
1000.

Brendan O’Dwyer


Nota do Tradutor: Segundo a Professora Laura Vasconcellos, em “Histórias da Mitologia Celta”,
Guimarães Editores, Lisboa, 2001, Tuatha de Dannan ou Povo de Dannan. Tuatha é a palavra gaélica para
“povo” e Dannan é a Grande Deusa-Mãe da Irlanda, considerada a mais antiga deusa celta por alguns
autores. A raiz “Dan” quer dizer “conhecimento”.
Ciclo do Ulster

As histórias seguintes
pertencem à saga “The Táin”,
deste Ciclo.

A maldição de Macha
A história de Setanta
Cúchulainn pega em armas
A morte de Connla
O touro castanho de Colley
A luta no vau
Morte de Cúchulainn
A maldição de Macha

Crunnchu era um fazendeiro muito rico, casado, com quatro filhos e muitos
serviçais, que vivia infelicíssimo há já muitos anos pois a sua mulher morrera logo após
ter dado à luz a última das crianças.
Um belo dia, quando Crunnchu estava a descansar numa confortável cadeira no
vestíbulo de sua casa, chegou uma estranha mulher que, sem uma palavra, se pôs
imediatamente a fazer os trabalhos da lida da casa. Pela hora de jantar, a mulher dirigiu-
se à cozinha e deu as ordens necessárias aos criados como se sempre tivesse morado ali.
A refeição foi passada em total silêncio e só no dia seguinte os dois começaram
a falar um com o outro numa conversa que se prolongou por horas e horas. O nome da
mulher era Macha; no fim da conversa, estavam apaixonados e em breve se casaram.
O tempo passou e Macha engravidou. Chegou, entretanto, a data da Grande
Feira do Ulster e Macha avisou o marido de que não deveria falar dela a ninguém sob
pena do seu amor terminar tragicamente. Crunnchu tomou boa nota do aviso e partiu.
Durante a Feira, era costume realizarem-se imponentes corridas de cavalos nas
quais participavam sempre os mais velozes animais do Rei; como em ocasiões
anteriores, os cavalos reais ganharam facilmente, o que deixou o soberano vaidosíssimo
e fez com que não se calasse, bravateando sobre o valor dos seus corcéis.
Incomodado com a arrogância do Rei, Crunnchu, sem pensar no que fazia e
esquecendo o aviso da mulher, disse ao monarca que a sua esposa Macha conseguiria
ser mais rápida que os próprios cavalos.
O rei ficou furioso com o atrevimento do fazendeiro e ordenou que Macha fosse à
Feira para participar nas corridas, enviando imediatamente dois mensageiros a sua casa.
Ali chegados, ouviram Macha pedir-lhes que não a obrigassem a ir por causa do
estado avançado da sua gravidez, mas eles não lhe facilitaram a vida e disseram-lhe que
o Rei mandaria matar o marido se ela não os acompanhasse.
Então ela foi e quando se encontrou em face do Rei repetiu-lhe o pedido que já
fizera aos mensageiros: que não a obrigasse a correr por causa do bebé que estava para
nascer; mas o rei foi irredutível na sua decisão e gritou-lhe:
– Corre, ou o teu marido será morto!
Então Macha respondeu:
– Muito bem. Farei como mandas, mas fica a saber, ó Rei, que amaldiçoo todos os
homens do teu reino, o poderoso Reino do Ulster: durante nove gerações, eles irão
sentir as dores de uma mulher quando está a dar à luz; e essas dores aparecerão quando
menos se esperar e mais o País precisar dos seus homens.
De seguida, Macha fez a corrida contra os cavalos do Rei, venceu e, quase de
seguida, por causa do esforço, deu à luz dois bonitos gémeos, morrendo na altura do
nascimento deles.
Quanto à maldição que invocara contra o Rei e os homens do Ulster, cumpriu-se
mesmo! Durante nove gerações, sempre que os homens iam para a guerra, era
precisamente durante as batalhas que as dores mais atacavam os guerreiros dando,
assim, vantagem aos inimigos.
A palavra Macha á ainda hoje usada no nome da grande fortaleza do antigo Ulster:
Emain Macha, que foi também a residência dos reis daquele território.
A história de Setanta

Em tempos que já lá vão, Conor MacNeasa era o Rei do Ulster. Um dia, Culann, o
Armeiro do Reino, decidiu dar uma grande festa, convidando toda a gente, incluindo o
próprio Rei que, por sua vez, decidiu dizer ao seu sobrinho Setanta que também fosse.
Setanta disse-lhe que sim, mas que só chegaria depois de terminado o jogo de hurling∗
que iria disputar naquele dia, no outro lado da floresta.
Assim que a partida terminou, Setanta atravessou a floresta a correr a toda a
velocidade, pois sabia que já estava bem atrasado para a festa. Entretanto, o armeiro
mandara fechar todas as portas de sua casa por pensar que todos os convidados se
encontravam já lá dentro, em total segurança.
Do lado de fora, um enorme mastim fazia a guarda da casa. Quando Setanta
chegou, o canzarrão atacou-o imediatamente saltando-lhe de encontro ao peito, não
deixando ao jovem outro remédio senão o de se defender, atirando-lhe, com quanta
força tinha (e era muita, como veremos e compreenderemos nas histórias seguintes) e
mais aquela que o seu bastão lhe acrescentou, a bola de hurling que trazia consigo. E o
cão, no mesmo instante em que levou com a bola, soltou um latido fraco e caiu morto.
Muito triste com o sucedido, Setanta apresentou as suas desculpas a Culann e
garantiu-lhe que apenas pretendia defender-se do ataque do cão; mas acrescentou que, a
partir desse momento, se manteria, ao serviço do Armeiro do Reino até que este
terminasse o treino de um novo cão.
Toda a gente que estava na festa achou a atitude de Setanta muito digna e
começaram a tratá-lo pelo nome por que ficou conhecido: Cúchulainn, que, em gaélico
(idioma da Irlanda), quer dizer “Cão de Culann”.


Nota do Tradutor: O hurling é um jogo de equipa tradicional da Irlanda que existe, supostamente, desde
tempos imemoriais e que consiste, basicamente, em jogar uma bola batendo-lhe com um bastão. Basebol,
hóquei (de campo, no gelo ou em patins) e críquete (ou ainda, mas com uma subtil diferença por a bola
ser lançada e não batida, a pelota basca) são jogos que seguem padrões semelhantes pois todos requerem
bolas batidas com bastões ou stiques. A bola que é batida chama-se sliotar, é muito sólida (a palavra
deriva do gaélico sliabh, montanha, e thar, através de), pouco maior que uma bola de ténis e compõe-se
de um enchimento de cortiça revestido por duas peças de couro fortemente cosidas. O stique do hurling
denomina-se hurley e apresenta uma ponta espalmada e curva. Segundo a lenda, esta forma foi a adoptada
pois correspondia à do bastão tosco com que Setanta jogava.
Cúchulainn pega em armas

Quando ainda tinha apenas sete anos, Cúchulainn encontrava-se, um dia, a jogar
hurling em Emain Macha enquanto, o outro lado do campo, se encontrava o Druida
Cathbad a dar as suas lições de magia a oito dos seus mais destacados alunos.
A certa altura, um deles perguntou ao Mestre quais os presságios, bons ou maus,
destinados para aquele dia, ao que Cathbad respondeu:
– Aquele que hoje pegar em armas pela primeira vez será o mais valoroso
guerreiro que a Irlanda jamais teve, ou virá a ter, e, embora a sua vida venha a ser curta
e fugaz, as histórias das suas façanhas serão contadas e relembradas para todo o sempre!
Ao ouvir isto, Cúchulainn dirigiu-se ao Rei, seu tio, Conor MacNeasa e saudou-o:
– Toda a honra ao Rei!
– Essa é a saudação interessada de quem quer um favor – respondeu o Rei.
– Quero pegar em armas e tornar-me guerreiro – retorquiu Cúchulainn.
– E quem é que te colocou essas ideias na cabeça? – perguntou Conor MacNeasa.
– Cathbad, o Druida.
O Rei reflectiu durante alguns momentos e disse:
– Meu rapaz, por certo Cathbad não te ária falsos conselhos – e imediatamente deu
a Cúchlainn duas lanças, uma espada e um escudo.
O jovem treinou com aquelas armas até que se partiram, obrigando o Rei a dar-lhe
um outro conjunto de armas… que também se quebraram! Catorze conjuntos de armas
foram sendo sucessivamente destruídos até que Cúchulainn disse ao Rei:
– Estas armas não são suficientemente boas para mim! Dá-me armas que estejam à
altura das minhas capacidades.
Então o Rei entregou-lhe as suas próprias armas. Cúchulainn experimentou-as
dobrando a lâmina até que a ponta tocasse o punho, e a espada aguentou a pressão;
depois, abanou fortemente as lanças para testar a sua resistência, e elas mantiveram-se
firmes; e o mesmo sucedeu com o escudo. Por fim, Cúchulainn disse:
– Estas sim. Estas são armas dignas de mim!
Satisfeito, o Rei Conor mandou chamar Ibar, o Palafreneiro Real, e ordenou-lhe:
– Aparelha o meu carro de guerra com os meus dois melhores cavalos e deixa que
Cúchulainn se sirva dele.
Como ordenado pelo seu Rei, Ibar entregou a Cúchulainn o carro devidamente
preparado, mas o jovem, tal como fizera com as armas, também quis experimentar o
carro antes de o usar: agarrou-o pelo eixo, levantou-o, balanceou-o violentamente e deu-
se por satisfeito pois a estrutura tudo aguentou sem se desconjuntar.
Cúchulainn e Ibar subiram então para o carro e partiram em direcção à torre-
fortaleza de Ath na Foraine, junto à fronteira com a Terra de Slieve Fuad. Pelo caminho,
avistaram, na floresta, uns cisnes que, segundo Ibar, ninguém conseguia caçar, e se
acaso o conseguia, não ia além de um único exemplar. Sem dizer palavra, Cúchulainn
apeou-se do carro, embrenhou-se na floresta em direcção às aves e regressou para
grande espanto do palafreneiro, com vinte cisnes.
Prosseguiram viagem e quando, por fim, avistaram o forte, Cúchulainn perguntou:
– A quem pertence?
– Este é o forte dos três filhos de Nechtan, que foi morto pelos homens do Ulster –
replicou Ibar. – Ainda hoje os três filhos continuam a vangloriar-se de, naquele dia em
que mataram o seu pai, eles, por seu turno, terem deixado em campo mais homens do
Ulster mortos do que vivos os que conseguiram fugir.
– Então vamos lá! – sentenciou Cuchulainn sem hesitar.
– Estás doido?! – assustou-se Ibar. – Depois da morte do pai deles, qualquer
homem do Ulster que se atreva a ali ir não regressa vivo!
Ainda assim, Cúchulainn dirigiu-se ao forte e, sem hesitações disse-lhes que
estava ali para os matar! Os três irmãos largaram-se a rir ao verem um adversário ainda
tão criança.
Cúchulainn enrubesceu de raiva, atacou os três homens e matou cada um com um
único golpe de espada, decapitando-os. Depois, atou as cabeças ao carro e regressou a
Emain Macha onde, assim, granjeou a admiração e o respeito de todos os guerreiros
mais velhos.
A morte de Connla

Quando chegou a hora de deixar a Escócia para regressar ao Ulster e poder,


finalmente, casar com Emer∗, depois de ter passado muito meses em treinos com a
valente guerreira Scathach, como lhe tinha sido ordenado, Cúchulainn teve que deixar a
bela Aoife, irmã daquela, que, nessa altura, estava grávida dele. À despedida,
Cúchulainn entregou a Aoife um anel de polegar para o filho deles e recomendou-lhe
que, quando nascesse, ele tivesse o nome “Connla” e que, quando fosse suficientemente
crescido, deveria ir treinar-se no quartel da sua tia, a guerreira Scathach. Disse-lhe ainda
que o garoto não deveria nunca dizer o seu nome a quem quer que fosse a não ser ao
guerreiro que o conseguisse derrotar.
Sete anos depois, Connla chegou ao Ulster. Durante a viagem de travessia do mar
entre as duas ilhas, treinava-se com a funda: acertava em aves marinhas com toda a
precisão, apanhava-as inconscientes, esperava que acordassem e soltava-as para que
pudessem continuar a voar em liberdade.
A notícia de que o rapaz estava para chegar espalhou-se rapidamente, chegando
aos ouvidos dos mais importantes guerreiros e heróis do Ulster, os quais decidiram não
o deixar desembarcar enquanto não ficassem a conhecer o nome dele.
À chegada, esperava-o Conall Cearnach, um dos mais valentes guerreiros do
Ulster, que lhe ordenou:
– Diz-me o teu nome!
– Nem penses! Não direi o meu nome senão a quem me vencer em combate!
– Assim seja. Lutemos então – concordou Conall Cearnach.
Assistiu-se, então, ao inacreditável: uma criança a combater com um dos mais
temíveis guerreiros do Ulster!
Connla colocou uma pedra na sua funda e fê-la rodopiar com tal força que se
levantou um ruído imenso, como se fosse o som de uma ventania; e o barulho e a


Nota do Tradutor: Há um hiato entre esta história e a anterior, pelo que convém proceder a um resumo
do que se passou entretanto. Não esquecer que as lendas do Ciclo do Ulster, nas quais esta história se
integra, são sequenciais. Emer era uma rapariga do Ulster, filha de pai poderoso, por quem Cúchulainn se
apaixonara. Ora, apesar de todo o valor que já demonstrara, Cúchulainn não caíra ainda nas boas graças
do pai da rapariga que, não querendo impedir o rapaz de casar com a filha por ser quem era (sobrinho de
rei), impôs, para dificultar, que ele tivesse que passar por treinos de aperfeiçoamento militar no talvez
mais famoso campo militar, ou quartel, daquela época. Tal campo-quartel situava-se na Escócia, na ilha
vizinha da Irlanda, o qual era comandado pela valorosa Scathach. Foi para aá que Cúchulaiin teve que se
dirigir e passar muitos meses em treinos. Mas Scathachac tinha uma irmã belíssima, Aoife, a cujos
encantos Cúchulainn não resistiu…
deslocação do ar foram tão fortes que fizeram com que Conall Cearnach caísse, o que
Connla habilmente aproveitou, correndo para ele, ainda desorientado, e amarrando-o
com as correias do seu próprio escudo.
Como será fácil imaginar, os companheiros de Cearnach ficaram
envergonhadíssimos. Então, o Rei do Ulster ordenou a Cúchulainn que fosse combater o
rapaz. Mas Emer, apercebeu-se do anel que a criança trazia no seu polegar e
reconheceu-o como sendo do seu marido, o que a fez pensar que aquele poderia muito
bem ser filho pelo, pelo que tentou evitar a luta. Porém, Cúchulainn não lhe deu ouvidos
pois aquele rapaz tinha acabado de envergonhar os grandes heróis do Ulster e
começaram a lutar sem que nenhum soubesse do seu parentesco com o outro.
Lutaram com espadas, primeiro, mas nenhum vencia o outro combatessem onde
combatessem: em cima de colunas de pedra ou dentro de água, na parte menos profunda
do lago. A certa altura, quando Connla se preparava para atacar de frente o seu pai,
Cúchulainn arremessou a Gae Bolga∗∗, trespassando e esfacelando com ela o corpo de
Connla que, moribundo, deu, por fim, a conhecer o seu nome. Cúchulainn desfez-se em
lágrimas ao saber que havia matado o seu próprio filho!
Ao saber-se quem era o rapaz, todo o reino do Ulster chorou a sua morte e durante
os três dias de luto ninguém ousou aproximar-se de Cúchulainn.

∗∗
Nota do Tradutor: Arma mítica e única do seu género. Trata-se, segundo a lenda, de uma arma
arremessável, em forma de pequeno arpão, com trinta pontas aguçadas, feita com ossos de um monstro
marinho. O arremesso desta arma tanto podia ser efectuado com as mãos como com os pés.
O touro castanho de Colley

Medb era a orgulhosa e obstinada rainha de Connacht, casada com Aillil. Uma
noite, antes de adormecerem, puseram-se a conversar sobre as riquezas que cada um
tinha, comparando-as, incluindo as mais simples de todas, como roupas, e concluíram
que havia apenas uma única diferença: Aillil era possuidor de um belíssimo touro, a que
chamava “Cornos Brancos”, e Medb nada tinha de comparável.
Então, a rainha enviou mensageiros ao Ulster para tentar obter do Chefe Daire a
oferta do seu fantástico e famoso touro, o “Touro Castanho de Cooley”. Daire
concordou e os mensageiros, muito satisfeitos, foram celebrar o acontecimento numa
festa que foi oferecida em honra do acordo.
Todavia, durante os festejos, os mensageiros beberam mais do que deveriam e,
sob os efeitos do vinho, começaram a dizer disparates. Chegaram, inclusivamente, a
dizer que se Daire não lhes tivesse dado o touro, o levariam à força.
Está claro que quando Daire ouviu aquilo disse imediatamente que a oferta ficava
sem efeito e os mensageiros tiveram que regressa de mãos vazias.
Medb ficou irritadíssima e decidiu que conseguiria o touro, fosse de que maneira
fosse, começando logo a organizar um poderoso exército com soldados seus e de outras
zonas da Irlanda para atacar o Ulster.
A luta no vau

A Rainha Medb, de Connacht ficou furiosa quando soube que os do Ulster tinham
recusado dar-lhe o Touro Castanho e começou a preparar um exército para os atacar.
Como o exército do Ulster ainda estava sob o efeito da Maldição de Macha, os
soldados não tinham força e sentiam muitas dores. Ora, Cúchulainn era o único
guerreiro que não estava afectado e, por isso, tinha condições para lutar, pelo que a
Rainha Medb aceitou que em vez de uma batalha normal entre dois exércitos, a luta
fosse sempre entre Cúchulainn e os adversários em combates homem a homem.
Em cada dia Cúchulainn derrotava mais de cem, ou porque os matava ou porque
fugiam. Então, Medb mandou o mais famoso guerreiro de Connacht, Ferdia, mas ele
recusou porque Cúchulainn era seu irmão de leite e o seu melhor amigo.
Passados alguns dias, porém, Medb conseguiu persuadir Ferdia dizendo-lhe que o
seu amigo andava a insultá-lo e a chamar-lhe cobarde. Cúchulainn ficou muito
surpreendido quando Ferdia chegou para lutar e, de início, não quis combater com ele;
contudo, pensando melhor, chegou à conclusão de que não deveria colocar em risco a
sua lealdade ao Reino do Ulster por causa de uma amizade pessoal.
No primeiro dia, lutaram com espadas, mas nenhum venceu o outro e, não
esquecendo a sua amizade, nessa noite jantaram juntos; no dia seguinte, lutaram sem
armas e, novamente, nenhum venceu; finalmente, no terceiro dia, Cúchulainn quase
morreu e, por isso, teve que utilizar a Gae Bolga, o seu dardo mágico trespassando, do
peito às costas, o corpo do seu melhor amigo!
Antes que Ferdia caísse, Cúchulainn ainda o agarrou e chorou convulsivamente,
tal era a tristeza que sentia.
Preocupado com a reacção dos outros guerreiros de Medb, Ibar (o Palafreneiro
Real do Rei Conor que estava ao serviço de Cúchulainn) aconselhou-o a sair dali antes
que fosse atacado pelo exército inteiro e assim o herói do Ulster partiu com o coração
carregado de infelicidade.
Morte de Cúchulainn

Quando atingiu os vinte e sete anos de idade, Cúchulainn tinha já muitos inimigos,
dos quais a Rainha Medb era uma. Tinha também já matado muita gente,
inclusivamente Calitin∗ e vinte dos seus filhos, restando seis para, juntamente com a sua
mãe, para conseguirem vingança.
Medb acolheu-os e transformou-os em excelentes guerreiros, aliando a arte da
guerra com as artes da magia, que já possuíam. Então, Medb voltou a invadir o Ulster e
o Rei Connor MacNeasa convocou Cúchulainn para defender a capital do reino, Emain
Macha, e o castelo.
Os filhos de Calitin desafiaram Cúchulainn para um combate e começaram a
provocar, com a sua magia, ilusões que faziam parecer que o castelo estava a ser
atacado; porém, o Druida do Rei Connor, Cathbad (que já conhecemos de outra
história), deu conta do engano e impediu-o dizendo-lhe que não deveria lutar durante
três dias, isto é, o tempo que duraria o efeito da magia maligna.
Para tal, Cathbad foi ter com uma das antigas namoradas de Cúchulainn, a bela
Niamh, pedindo-lhe que o convencesse a esconderem-se juntos, durante aquele tempo,
numa das grutas do Vale dos Surdos. Não muito satisfeito, Cúchulainn anuiu.
Entretanto, os filhos de Calitin conseguiram dar com o paradeiro dos dois e
urdiram um plano: um deles atraiu Niamh para fora do Vele e outro, por artes mágicas,
tomou a forma dela e convenceu Cúchulainn a sair para a batalha.
Então, Cúchulainn ordenou ao seu palafreneiro, Ibar, que arreasse “Cinzento de
Macha”, o seu portentoso cavalo, para poder dirigir-se para o campo de batalha. Quando
chegou perante Cúchulainn e a falsa Niamh, o cavalo apercebeu-se de um inexplicável
perigo e recusou-se a galopar. Só ao fim de muita insistência foi possível fazer com que
o animal começasse a deslocar-se. Nessa altura, chegou a verdadeira Niamh que,


Nota do Tradutor: Calitin (Cailitín Dána, Cailitin or Calatin) era o Druida-Chefe da Rainha Medb e de
seu marido Ailill, sendo muito conhecido pela luta que manteve com Cúchulainn, em Táin Bó Cuailnge.
Cailitin tinha muitos filhos e filhas e toda a família era conhecida como o “Clã Cailitin”, descritos como
druidas mal-formados. Caitilin e todos os seus filhos, mais um sobrinho (ou neto?, não é clara a lenda)
invadiram o Ulster juntamente com o exército de Medb (ver a história anterior). Imediatamente antes do
combate singular entre Cúchulainn e Ferdia (Fer Díad Mac Damann), Calitin e os filhos tinham travado
uma luta desigual contra Cúchulainn pois cada um deles empunhava uma lança envenenada que, mesmo
que o nosso herói não morresse da ferida, o mataria com o veneno após nove dias de agonia. Ora,
Cúchulainn conseguiu apanhar todas as lanças com o seu escudo, mas a superioridade numérica dos
adversários só foi ultrapassada com a ajuda de outro guerreiro do Ulster, Fiachu Mac Fir Fhebe, que, de
um golpe, cortou os braços direitos dos membros do Clã Calitin. Ainda assim, houve filhos de Calitin que
sobreviveram e que se envolveram, posteriormente, na morte de Cúchulainn, com o recurso a artes
mágicas que enganaram o herói e o levaram a enfrentar o exército de Medb, o tema desta história.
preocupadíssima, tentou fazer com que Cúchulainn voltasse à razão, mas este, com o
espírito tolhido pela magia, não lhe deu ouvidos.
Quando chegou ao campo de batalha, foi ao seu encontro um druida desconhecido
que o exortou a combater, apesar de a batalha que estava perante os olhos de
Cúchulainn não existir pois, tal como o druida desconhecido, não passava da ilusão
criada pelos filhos de Calitin.
Por três vezes Cúchulainn enfrentou e matou os mesmos guerreiros; e de cada vez
que tal sucedia, o Druida pedia-lhe a sua lança.
Da primeira vez, embora relutantemente, entregou a lança por recear que, se o não
fizesse, o seu nome seria desonrado. Assim, arremessou a lança em direcção ao druida,
trespassando-o a ele e a mais nove imaginários homens, indo cravar-se no solo, mesmo
em frente a um dos filhos de Calitin, responsável pela ilusão mágica. Este pegou na
lança e arremessou-a de volta, contra Cúchulainn, mas falhou, acertando antes em Ibar,
o Palafreneiro Real, matando-o. A primeira lança acabara de matar o mais importante
dos palafreneiros do Ulster!
Da segunda vez, Cúchulainn deu a lança ao falso druida por temer que, se assim
não fosse, seria o nome do Ulster a ficar desonrado. Então, uma vez mais, Cúchulainn
lançou o dardo que, como anteriormente, atravessou o druida e os nove homens
imaginários, indo cravar-se no chão, em frente a um dos outros filhos de Calitin. Este
arremessou a lança contra Cúchulainn, mas falhou e acertou no cavalo do herói. A
segunda lança tinha acabado de matar o melhor cavalo de toda a Irlanda!
Finalmente, foi o receio de ver desonrado o nome da Irlanda que fez com que
Cúchulainn lançasse a lança pela terceira vez, repetindo-se o que havia acontecido antes
com o druida e os guerreiros imaginários. E como anteriormente, um terceiro folho e
Calitin pegou na lança e arremessou-a contra Cúchulainn, acertando-lhe no estômago,
ficando expostas as entranhas dele.
A gravidade da ferida provocou uma sede imensa aCuchulainn, que se dirigiu ao
lago, para a saciar. Na margem, amarrou-se fortemente a uma coluna de pedra que ali
estava, pois havia jurado a si próprio que, quando morresse, morreria de pé
empunhando a sua espada.
Assim ficou por três dias, sem que alguém ousasse aproximar-se, embora todos os
seus adversários soubessem que estava em grande agonia. Por fim, Cúchulainn
arregalou os seus olhos e morreu.
Só quando um corvo pousou no ombro do herói é que se ficou a saber da sua
morte. Então, Erc disse a Lugaid (dois irmãos, filhos de Calitin) que lhe fosse cortar a
cabeça, mas no momento em que Lugaid se aproximava, a mão sem força de
Cúchulainn, mas com a espada ainda agarrada, caiu e a lâmina da arma decepou a mão
de Lugaid.
Mesmo morto, o herói do Ulster ainda atacava os seus inimigos!
Por fim, os filhos de Calitin conseguiram cortar a cabeça de Cúchulainn e levá-la
para Tara∗, como troféu. Quanto ao corpo de Cúchulainn, ficou na margem o lago, atado
ao pilar de pedra.


Nota do Tradutor: O Monte de Tara, ou Temair em Gaélico, é o marco do antigo poder da Irlanda.
Também conhecido por Trono dos Reis, é o local onde se diz terem reinado, ou sido investidos, 142 reis
irlandeses. Na mitologia, era a morada dos deuses e a entrada para o mundo subterrâneo (para saber mais,
consultar www.mythicalireland.com).

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