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Ilustrações Andrea Costa Gomes

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aprendizagem

Circuito duplo de aprendizagem


em organizações Uma intervenção para
alcançar práticas renovadas

por Maria LÚcia Goulart Dourado, Maria Conceição


Lacerda e Marta Pimentel

Em relatórios recentes, a revista Business das demandas. As organizações estão ansiosas por
Week anunciou que os programas customizados de inovações através de um verdadeiro processo de
educação executiva estão crescendo de forma educação, que substitua a lógica de “eventos” ou
extraordinária no mundo. Também a revista Fortune cursos de capacitação.
divulgou uma pesquisa envolvendo as 500 maiores Existe hoje uma tendência de reinventar a
empresas do seu ranking anual, mostrando que as relação escola-professor-aluno com várias formas
organizações não aceitam mais o modelo tradicio- de inovação. Surgem tecnologias baseadas no
nal na transmissão de informações do professor “aprendizado contextualizado”, na prática, mes-
para o aluno, como se fosse um receptáculo vazio clando metodologias de aprendizagem a distância.
(conduto verbal/racional/cognitivo). Ou seja, o Considera-se um fluxo continuo, em que o virtual
ensino tradicional não se encaixa nas demandas de se mistura de forma harmoniosa e não invasiva
um tipo de mercado que parece estar crescendo. com o espaço presencial da sala de aula, tratado
Outras fontes vêm sinalizando que as fórmulas agora como “contexto capacitante”. As empresas
tradicionais se esgotaram e as empresas buscam têm ainda interesse na integração do rigor teórico
outras formas de aprendizagem, mais adaptadas com a relevância prática na educação executiva e
aos grandes desafios empresariais. no ensino aplicado, com base no estilo de pensa-
Nesse contexto, a busca é por um conheci- mento da ciência contemporânea pós-moderna,
mento cocriado na prática, abrindo espaço para desde que não sejam modelos baseados apenas
que possam emergir as experiências pessoais, em modismos, retóricas ou lições de autoajuda.
insights e conexões com conceitos já assimilados.
Nossa experiência na Fundação Dom Cabral é de CONCEITOS-CHAVE Entre as novas estratégias
buscar um diferencial, realizando programas que utilizadas, buscamos inspiração em teóricos que
mesclem sala de aula e modelos mais tradicionais pesquisam o conceito de aprendizagem indivi-
com abordagens que atendam às especificidades dual e organizacional. A maioria das soluções

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educacionais, oferecidas por empresas de consultoria esse modelo praticam o debate e o confronto e
ou escolas de negócio, define a aprendizagem de buscam identificar, em suas origens, as premissas
forma muito restrita, como uma simples resolução e valores praticados, o que faz emergir um círculo
de problemas, concentrada na identificação e corre- virtuoso de compreensão e aprendizado.
ção de erros do ambiente externo. Um dos autores Segundo Argyris, a maior parte das organiza-
considerados de vanguarda, Chris Argyris – há 39 ções se sai muito bem na aprendizagem de circui-
anos professor de aprendizagem organizacional na to simples, mas tem grandes dificuldades com a
Harvard Business School – desenvolveu dois con- de circuito duplo. Uma ilustração dessa lógica
ceitos-chave em suas pesquisas sobre aprendiza- pode ser vista na Figura 1.
gem organizacional: o single loop learning (circuito
simples de aprendizagem) e o double loop learning APLICAÇÃO DO MODELO CIRCUITO DUPLO A
(circuito duplo de aprendizagem). No primeiro, a Fundação Dom Cabral desenhou recentemente
organização é capaz de detectar e corrigir os seus um Programa de Desenvolvimento de Liderança
erros de forma a cumprir os objetivos delineados, em Gestão de Pessoas para o SEBRAE-PE, que
enquanto no segundo, ela se serve do esforço de envolve a aplicação prática da Teoria do Double
identificação e correção de erros para mudar as Loop, de Chris Argyris. A escolha dessa teoria
normas, políticas e objetivos que os causaram. de aprendizagem se baseou, inicialmente, na
Juntamente com seu colega Donald Schön, demanda da empresa. Seus gerentes tinham sólido
Argyris criou dois modelos organizacionais básicos: conhecimento técnico-gerencial, mas grande difi-
• Aprendizagem de circuito simples – modelo culdade com os processos de gestão de pessoas,
mental baseado na premissa de que tentamos o que resultava em práticas ineficazes, até então
manipular e moldar o mundo, conforme nossas resistentes a vários programas de capacitação e
aspirações e desejos individuais. Nas organizações melhoria.
que adotam essa solução, a identificação e a cor- No desenho de uma solução para essa deman-
reção do erro não levam em consideração as pre- da, entendeu-se que o Modelo do Double Loop
missas que o fundamentaram e o mantém. (circuito duplo de aprendizagem) seria o mais ade-
• Aprendizagem de circuito duplo – há uma quado. Como seu foco é clarificar as defesas da
identificação do erro organizacional e das premis- organização, aumentando a compreensão de
sas que o geraram, o que pemite sua correção de suas forças e fraquezas, esse modelo se opõe às
forma mais aprofundada. As organizações com abordagens usuais de treinamento, que partem do

Figura 1 |

Valores Fundamentais Ações Enganos ou Erros

Circuitos Simples de Aprendizagem

Circuito Duplo de Aprendizagem

Práticas gerenciais Práticas gerenciais


Atuais Renovadas

Premissas Premissas
Atuais Renovadas

conceitos
Fonte: Chris Argyris

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AS EMPRESAS BUSCAM UM
CONHECIMENTO COCONSTRUÍDO
NA APRENDIZAGEM
CONTEXTUALIZADA

principio de que as informações sobre modelos e de Prática). A prática é percebida como parte
teorias garantem uma efetiva mudança. essencial da aprendizagem, produção do conheci-
Na crescente demanda por programas custo- mento e inovação.
mizados, as empresas querem produtos cada vez Embora difundida nos anos 50, a Aprendizagem
mais singulares e únicos, feitos sob medida e per- de Ampla Repercussão, de Chris Argyris, ganha
sonalizados. Buscam um conhecimento coconstru- força como teoria de vanguarda, devido à sua abor-
ído na aprendizagem contextualizada, que leve em dagem avançada, baseada na Teoria Social do
consideração o que foi produzido internamente e Aprendizado, divulgada anos mais tarde com o
tenha como base sua própria prática empresarial. apoio da Sociologia e da Antropologia. Suas pre-
No programa da FDC, a solução foi trabalhada missas foram mais do que inspiração para inúme-
junto com o cliente, numa escuta comprometida ros outros estudos – de autores como Peter Senge
para entender sua verdadeira necessidade. (2000), David Garvin (1993), Daniel Kim (1993)
Partiu-se da premissa de que o Conhecimento: – que têm demonstrado os avanços no campo da
1) é um componente do processo “autopoiético” mudança e aprendizagem organizacional.
(conceito difundido pelos biólogos chilenos O Programa de Desenvolvimento de Liderança
Humberto Maturano e Francisco Varela, que tem foi elaborado a partir de premissas básicas da
como base um sistema organizado autosuficente), ciência contemporânea – a Aprendizagem
que está ligado à história do individuo e da organi- Contextualizada – que têm como eixo de susten-
zação, e depende dela; 2) é sensível ao contexto, tação o sentido do aprendizado (situado, social e
permitindo a identificação dos problemas e não distribuído). O processo envolve:
apenas sua solução imediata, feita pragmatica- • Complexidade – em oposição ao entendimen-
mente; 3) não é abstrato, está incorporado à práti- to linear causa/efeito, o programa teve como propó-
ca; 4) é produzido a partir do que aprendemos no sito provocar nos participantes a distinção de
encontro com o conhecimento do outro; 5) como o relações mais amplas.
saber não está separado do fazer, no contexto do • Variabilidade – em oposição à previsibilidade
trabalho existe o aprender. que trata as questões de ensino como objeto de
O programa tentou “costurar” o pensamento padronização. O processo foi construído a partir de
complexo com a prática cotidiana, que se liga aos um grande painel contendo as produções/elabora-
conceitos de atividade, significação, aculturação e ções feitas pelos participantes durante o programa,
identidade, presentes em estudos sobre as ampliadas com conceitos e teorias de vanguarda
Comunidades de Prática. O campo teórico da adequadas àquela realidade retratada.
Teoria Social do Conhecimento e do Aprendizado • Intersubjetividade – diferente da objetivida-
produziu construtos de grande valia para aplicação de baseada em aulas expositivas e peças de infor-
na produção de conhecimento, inovação e aprendi- mação. Ao provocar o participante a se implicar na
zagem nas organizações (entre eles, as Comunidades sua “própria realidade” e na “realidade do outro”,

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todos se tornam sujeitos singulares do processo de GRANDE PARTE DO
aprendizagem – os verdadeiros “atores e autores”
de sua aprendizagem. CONHECIMENTO EXISTENTE
NAS EMPRESAS SE ORIGINA
Grande parte do conhecimento existente nas
empresas se origina em histórias de conquistas, EM HISTÓRIAS DE CONQUISTAS,
ensaios/erros e desafios. As histórias são importan- ENSAIOS/ERROS E DESafios
tes para apresentar situações de forma mais orde-
nada e tornam-se ferramentas poderosas no enten-
dimento das múltiplas relações envolvidas. Sua
narração nos ajuda a descobrir novidades sobre o valores que foram ressignificados de forma com-
mundo e nos permite compartilhá-las, criando uma partilhada e fundamentados em novas premissas,
visão comum. O programa da FDC teve como base construídas à luz de conceitos atuais e contempo-
o relato de histórias sobre práticas na solução de râneos, fornecidos pelos professores.
problemas, em situação de mútua aprendizagem. Ao final do programa foi feita uma consolidação
O referencial teórico e técnico sobre gestão de e registro das práticas renovadas em níveis – no
pessoas foi utilizado para iluminar o relato das âmbito de atuação dos gerentes e no nível da dire-
práticas, envolvendo tópicos nos vários módulos do toria do SEBRAE-PE (processos e estrutura) – com
programa. o objetivo de estabelecer um diálogo entre os geren-
Do ponto de vista conceitual, no nível mais tes e a direção da empresa. Foi explicitado ainda
operativo foram trabalhadas questões ligadas à um terceiro nível, relacionado a questões mais ins-
cultura organizacional, visão de curto e longo prazo titucionais, para compartilhamentos. A proposta foi
do empreendimento e gestão estratégica de pesso- estreitar a comunicação entre os níveis, abrindo
as. Na temática central, foram abordados os espaço para futuras conversas, quando poderão
macroprocessos de Gestão de Pessoas (atração/ compartilhar compromissos com as práticas renova-
integração, desenvolvimento, monitoramento e das por parte das gerências e as expectativas da
manutenção/retenção de pessoas) como contexto direção nesse processo de mudança.
de identificação das práticas atuais, visando sua
renovação. Também foram apresentados os estilos
de liderança versus níveis de maturidade da equi- Maria Lúcia Goulart é professora da Fundação Dom Cabral. Doutora
em Ciência da Informação pela UFMG, foi professora de Aprendizagem na
pe, o conceito de premissas e seus impactos no FAE/UFMG durante 25 anos.
comportamento, com foco no entendimento das  
Maria Conceição Lacerda é professora associada da Fundação
“defesas empresariais”, e a partir daí, feito o Dom Cabral, sócia diretora da MCLacerda Consultoria Organizacional.
levantamento das premissas renovadas. Doutoranda em Administração pela UDE - Universidad de la Empresa
(Montevidéu).
Para completar a visão integrada, foram discu-
tidos os mecanismos de defesa e seus impactos na Marta Pimentel é professora da Fundação Dom Cabral e gerente de
dinâmica organizacional, como preparação do projetos, doutoranda em ciências empresariais pela Universidade do Porto
(Portugal).
radar da equipe. Ao visionar essas premissas à luz
de novos conceitos, o grupo tomou consciência do
que poderia ser mantido ou modificado. As práti-
cas renovadas surgem como consequência dos

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CONCLUSÃO

Como o programa ainda está em andamento, com a sustentação de coaching para os líderes
de equipes e o fortalecimento dos gerentes na Proposta de Desenvolvimento – “O líder SEBRAE-
PE como gestor de pessoas: sustentação” –, não podemos considerar a experiência finalizada, o
que impede uma avaliação mais crítica. No entanto, já é possível fazer algumas considerações
sobre a metodologia utilizada.
O uso da metodologia do Double Loop garantiu um alto nível de comprometimento dos parti-
cipantes, que acabaram se tornando verdadeiros “autores” do programa. “É a primeira vez que
vejo que o que falamos realmente foi considerado”, disse um deles, sobre a consolidação das
práticas/premissas atuais versus as novas, identificadas com foco na reorganização do trabalho
para atingir melhores resultados. Constatamos que a maior parte das ações designadas foi defini-
da no âmbito das gerências, o que demonstrou um alto nível de autonomia e responsabilidade
coletiva.
Ao optarmos por um programa com foco no aprendizado em grupo, percebemos que ele ocor-
re não apenas no nível comportamental, mas também como uma nova maneira de pensar. Como
os participantes têm linguagem e sistema comuns de comunicação, o aprendizado ocorre num
patamar que permite o compartilhamento de conceitos. Os níveis mais profundos do conhecimen-
to – que nos dão a essência da cultura – devem ser imaginados como conceitos ou suposições
básicas compartilhadas, uma cultura que focaliza práticas mais consistentes e sem sintomas de
“rotinas defensivas”. As premissas designadas e as práticas renovadas pela Gerência do SEBRAE-
PE mostraram amplo consenso e abertura.
A formatação dessa abordagem considerou ainda pressupostos de Edgar Schein, sobre “inter-
venção em processo” – encaminhamentos e soluções foram construídos em conjunto, com a par-
ticipação de dois profissionais de conteúdos e de processos, o que facilitou a condução e trata-
mento das resistências. Com a coconstrução, desde o início os gerentes puderam se perceber
como autores do programa, e não apenas como espectadores e consumidores do processo.
O fato de não ter sido apenas um encontro deu ao grupo a oportunidade de correlacionar os
temas abordados à sua prática cotidiana, além de resgatar e fortalecer vínculos de confiança, até
então bastante frágeis. Foi possível perceber alguns avanços na aprendizagem do grupo, como
processo de ampla repercussão. Estendido para outras práticas ainda com erros recorrentes, esse
aprendizado pode representar ganhos tanto para os gestores e equipes, quanto para todo o
SEBRAE-PE e, em consequência, para a sociedade.
Além da temática Gestão de Pessoas, é possível pensar na utilização do arcabouço metodoló-
gico de Chris Argyris em outros temas, como direção, liderança, inovação. Ou ainda aplicar a
lógica do double loop para entender, de forma mais ampla, a cultura de uma organização, como
tem feito o autor em inúmeros casos bem-sucedidos em análise de Conselhos de Administração
de empresas no mundo inteiro.

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