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Um plano cheio de mortos, com três papas enterrados. Sem eco, nada
reverbera, nada mais que uma acústica a espera. Um copista entra com as
partituras, transita por entre as estantes, distribuindo e organizando o espaço-
vazio. Violinos, viola, clarinetes, tímpanos.
- A última roda de um carro! – ele mesmo, o copista, que assim designa sua
função, como o derradeiro movimento de um contorno.
*
Mestre e Doutorando em Educação (UFRGS) / Bolsista CAPES.
Fones: 92155707, 32683633. Endereço: Rua Victor Silva, 125, Bairro Tristeza, Porto
Alegre
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Filme Violinista no Telhado - Fiddler on the Roof – EUA, 1971.
Mas eis que entram os músicos, preenchendo os espaços, humanos,
demasiado humanos. Homens. Assumem seus lugares de trombonista,
violinista, contrabaixista (...) cada qual com o seu instrumento – primeiro
recorte do plano. Mesmo antes de preencher o espaço, uma segunda estria já
se faz presente: a família. Uma orquestra é composta de quatro naipes ou
“famílias” de instrumentos: cordas, madeiras, metais e percussão. Dentro de
cada família distribuem-se uma série de instrumentos. Este corpo-orquestra-
estriado constitui-se, portanto, através de relações intra/interfamiliares. Que
falem os próprios personagens3:
Singular, sua voz grave parece advertir docemente mas pode ser
muito cômico. Só lembrar os palhaços de circo. É também
instrumentos dos anjos – já notaste que nos quadros da
renascença os anjos sempre tocam trombone? A voz de um
trombone é a voz de uma criatura solitária; gosto de ouvi-la à
beira-mar, no inverno, quando não há ninguém.
(O trombonista)
- Não estou aqui para lhe fazer cortejos, estou aqui para tocar! - diria
mais um musicista da orquestra.
Ôpa, mudou-se o tom e a intensidade da voz. Partimos para o plano de
expressão, onde os sons começam a ser executados. Um “corpo-outro” impõe
gradualmente sua presença, embaralhando aquilo que anteriormente garantia-
lhe identidade. Lugares, famílias... O violinista pisa em falso no telhado.
3
Todas as falas dos músicos e maestro foram obtidas do filme Ensaio de Orquestra
Os instrumentistas começam a se aquecer. Uma aranha, presa no alto do
teto, move-se com o sopro dos metais, indo de um lado para o outro. Dança o
espírito do resssentimento – Nietzsche certamente balançaria os dedos ao som
desse murmurinho4.
É verdade que existe simpatia e antipatia entre instrumentos? Deixaremos os
tambores falarem:
4
Deleuze, em Nietzsche, Lisboa: Edições 70 (1994), traz a aranha como espírito do
ressentimento, tendo como arma a teia, o fio da moral.
irradia,
por todos os seus poros,
estourados.
(ARTAUD, In: Deleuze e Guattari, 1976, p.17).
Sobre este cenário caótico um Lá contínuo começa a ser executado pelo oboé,
instrumento que consegue atingir maior estabilidade e sustentação da nota.
Cenário pronto para o spalla5, que, sobre o lá confiável do oboé, executa a
mesma nota no seu violino, orientando os demais instrumentos quanto à
afinação. Por um ínfimo momento ouve-se apenas esta voz, como uma
trombeta que anuncia a batalha que está porvir. Constante e duradoura, a voz
torna-se referência para as demais vozes. Sobre esta única voz, todas as
demais se agenciam. Um ritornelo territorial, dando pinceladas a um centro
que se abre frente à ameaça de um caos quase desfragmentário. É o instante
da afinação, palco para infra-agenciamentos.
5
O spalla é o primeiro violino da orquestra. A origem da palavra é italiana e significa
"ombro", ou, melhor adaptando, "apoio", pois o spalla nada mais é do que o apoio do
maestro, servindo-lhe, geralmente, para dar o tom a todos os outros insrtumentistas
da orquestra.
Com um centro gravitacional, o nosso corpo-orquestra-estriado-caos pode
girar, configurando outras disposições espaciais. Com centro e espaço, cria-se
a idéia de um espaço íntimo, onde as forças germinativas interiores são
protegidas, selecionadas e filtradas por este muro sonoro, a serviço de uma
obra a ser feita. “Fechem a porta”, as primeiras palavras de Plato Divorak6,
antes de começar o concerto. Mas o corpo gira apenas ao redor do seu próprio
eixo. Só agora entra o maestro:
6
Plato Divorak e Frank Jorge, em Amnésia Global, disco gravado ao vivo, no Instituto
Goethe (POA).
7
Da capo: o mesmo que “desde o inicio”, quando se deve repetir a peça desde o
começo.
o seguíamos, felizes e trêmulos, para cumprir o rito da
transubstanciação, para mudar vinho em sangue, pão em carne!
(O maestro)
8
Nietzsche, em Ecce Homo: como alguém se torna o que é, São Paulo: Companhia
das Letras (2000) – Por que sou um destino I - apresenta a Grande Política como a
derradeira e afirmativa luta de espíritos, responsável pela transmutação de todos os
valores. A vida como criação é, portanto, uma luta.
Uma tensão constante parece circular por entre todo o corpo-orquestra que,
com centro e circunferência, circula por planos vizinhos. Mas, como
percebemos, este centro não é único e dominante, está igualmente em
movimento. Algo como uma pátria desconhecida, fonte terrestre de todas as
forças, amistosas ou hostis, donde tudo se decide. É quando forças-do-fora
entram em conjunção com este corpo, nesta música-multidão que se atualiza a
cada encontro. Como se o dentro mais próximo do corpo-orquestra se
confundisse com o fora longínquo da platéia. Por “dentro” entendemos este
ethos musical, bloco espaço-temporal nativo. Mas este se encontra envolvido
nesta dança-guerreira, abrindo brechas para aquilo que acompanha os
movimentos do outro lado do muro, deste fora, que Deleuze e Guattari
chamam de forças do Cosmos9. Por entre estes dois meios (interno e externo)
existe um meio intermediário, como a membrana de uma célula. Falamos
deste muro, onde as relações entre a pátria conhecida e o estranho íntimo se
dão. É neste entre-dois que nasce o ritmo, sempre crítico e dinâmico, sempre
na passagem entre um meio e outro.
Vi a harpa pela primeira vez num sonho. Eu devia ter uns quatro
ou cinco anos e não sabia o que era aquela espécie de gaivota
dourada tão pequena. (...)É uma presença humana, uma coisa,
eu digo, não poderia viver em um apartamento onde ela não
estivesse comigo. Às vezes tenho a sensação de que as mãos a
tocam. Eu ouço tocar, talvez seja o vento.
(O harpista)
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Plato Divorak, em 1-3-4 O´clock (Álbum Amnésia Global).
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Comentário de Tom Zé contido no DVD Jogos de Armar (Trama), sobre a música
Passagem de Som. Tom Zé nos apresenta três níveis de acontecimentos numa mesma
música (simultâneos e concomitantes) – um nível aristotélico (racional e cartesiano),
um nível musical (com todas as especificações que compõem a arte musical) e um
nível emocional (ligado ao “fogo da vida” daquele que escuta).
Não ao metrônomo! Nós decidiremos a música, o ritmo, as
cadências! Foi-se o tempo de tocar a música que não gostamos.
Nós decidimos. Queremos criá-la e regê-la. É proibido reger!
Morte ao metrônomo! (Os músicos)
Referências Bibliográficas
PARDO, José Luis. Y cantan en llano. In: Revista Archipiélago 97, 67-76.