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Série Cris

Noite Estrelada
Título original: Starry Night
Tradução de Elizabeth Gomes
Editora Betânia, 1997
Digitalizado por SusanaCap
Revisado por deisemat
WWW .PORTALDETONANDO.COM.BR/FORUMNOVO/
Noite
Estrelada
8
Robin
Jones
Gunn

À minha irmã, Julie Ann Jones Johnson, que permaneceu ao meu


lado, junto ao meu coração, muitas vezes enquanto eu contava
estrelas. Um agradecimento especial a Rich Mullins, Margaret
Becker e Bryan Duncan, que, brilhantemente, criaram músicas
para os pensamentos de uma noite estrelada que inseri nesta
história.
Jornada nas Estradas:
A Próxima Geração
1

— Nada de risos, disse Katie, de dezesseis anos, à sua melhor amiga,


Cris Miller. Continue dirigindo e não ria.

— Não estou rindo, replicou a outra, pisando no freio para entrar no


estacionamento do shopping. — Sério, não estou rindo.

Cris jogou seu cabelo cor-de-noz-moscada para trás e olhou a amiga


com o canto do olho.

— Está bem se eu estacionar atrás da loja de animais?

— Claro. Você acha que alguém vai nos ver? Quero dizer, alguém
que a gente conheça? perguntou Katie, os olhos verdes vasculhando o
estacionamento.

— Provavelmente não, disse Cris, sentindo na voz um tom de riso.

Estacionou, desligou o motor, e em seguida indagou:

— Você vai vestir o resto da fantasia no carro ou quando entrar no


prédio?
— Você não vê a hora, não é mesmo? Vai rachar de rir a qualquer
instante. Confesse. Nem todas nós temos bons empregos em lojas de
animais como você.

Katie tirou da mochila um par de sapatilhas de feltro e calçou-o. As


pontas do calçado eram curvadas para cima, e tinham guizos.

— Mas de qualquer jeito é um emprego, não é? defendeu-se Katie,


pegando um chapéu de feltro e ajustando-o de modo que o guizo ficasse do
lado direito.

Em seguida pegou um par de orelhas pontudas de plástico e colocou-


o no lugar.

— E se quiser saber mais, continuou, tenho orgulho de ser um dos


anõezinhos do Papai Noel, tá bem?

Cris mal continha o riso com a aparência de Katie. Virou o espelho


retrovisor para si mesma.

— Tem alguma coisa no meu olho, disse, tentando abafar o riso preso
na garganta.

Mirando seus olhos azul-esverdeados percebeu que o riso reprimido


escapava em forma de pequenas lágrimas. Enxugou-as rapidamente e
tentou se controlar por amor da auto-imagem de sua amiga.

— Deixa eu ver, disse Katie, virando o espelho na sua direção e


abaixando a cabeça para ver a imagem toda do chapéu verde e das orelhas
pontudas. Que espécie de amiga você é? Por que não me disse que pareço a
noiva do Spock-enstein?
As duas meninas romperam em risadas incontroláveis.

— Transporte-me para cima, Noel! brincou Katie.

Cris mal conseguia respirar, de tanto rir. Katie pegou um lenço e,


com um sotaque diferente, continuou:

— Não posso continuar segurando mais, Capitão. Acho que ela vai
estourar!

Com isso, colocou o lenço no nariz e fingiu assoar tão forte, que uma
das orelhas caiu.

— Pare com isso, Katie! Vamos nos atrasar para o trabalho.

— Está bem, está bem. É melhor eu não me atrasar no primeiro dia


que vou trabalhar na casa do Papai Noel.

Cris segurou o fôlego e, colocando o espelho no lugar, deu um


retoque na maquiagem dos olhos.

— Vamos lá, Katie! Você vai ser a melhor ajudante de Papai Noel
deste shopping! Está pronta?

— Estou mais pronta que nunca.

Katie pegou a bolsa, saiu do carro e imediatamente entrou de novo.


Com um grito abafado, abaixou-se bem e sussurrou:

— Abaixe! Abaixe imediatamente. Talvez ele não tenha me visto.

— Quem? perguntou Cris, seguindo as ordens de Katie e en-


colhendo-se no chão do carro.
Antes que ela respondesse, Cris ouviu uma batidinha no vidro. Olhou
para a amiga que tinha uma expressão apavorada, enquanto Katie
murmurava:

— Tarde demais!

Cris virou-se e viu o rosto sorridente de Rick Doyle olhando para


dentro do carro.

Sentando-se depressa, sorriu e apertou o botão para baixar o vidro.


Não funcionou porque o motor estava desligado. Sem pensar, abriu a porta
do carro, que bateu nos joelhos do rapaz.

Sempre atleta, Rick absorveu o baque como se ela lhe tivesse dado
um tapinha de leve.

— Ah, desculpe! Você está bem, Rick?

— Claro, respondeu ele, desviando os olhos da Cris e espiando o


"anãozinho" agachado no chão no lado de passageiro. Pensei ter visto a
Katie aqui.

— Rick, falou Katie aprumando-se, animada, com a cabeça um


pouco virada para o lado, e um ar de boba. Eu... hã... perdi uma lente de
contato!

— Parece mais foi que perdeu contato com seu planeta-pai, brincou
ele.

— Ah, ah, ah! Tinha esquecido de como você é engraçado, Rick


Doyle.
Katie nunca fora muito fã do Rick. Mesmo quando ele foi votado o
"mais popular" do colégio, no ano passado, Katie escrevera "Não" na foto
dele, no álbum do ano.

— É, sou muito engraçado mesmo. Pena que eu não tenho uma calça
colante verde e umas orelhas de alienígena para ficar tão engraçado quanto
você.

— Acontece que sou ajudante do Papai Noel, replicou a garota,


juntando as coisas e abrindo a porta. E me orgulho disso. Além disso, já
estou atrasada. Então, se me der licença... e assim dizendo bateu a porta e
correu para dentro do shopping.

— Eu também preciso estar no trabalho, disse Cris, jogando a alça da


bolsa no ombro.

Rick manteve aberta a porta do carro e ela saiu. Estava só a poucos


centímetros dele. Era a primeira vez que chegavam pertinho um do outro
depois que terminaram o namoro havia alguns meses.

Por que de repente o Rick está assim tão amigável? O que será que
está querendo? pensou Cris.

— Se importa se eu caminhar do seu lado até o trabalho? Ou isso a


incomodaria?

— Não, tudo bem.

Por que ele está perguntando se me sinto incomodada? Por que está
me olhando assim.... com tanta ternura?
— E então, o que traz você por essas bandas? Compras de Natal?
Faltam apenas catorze dias, não sabe?

— Na verdade, eu estava voltando para passar o final de semana em


casa, e me lembrei de que você trabalha aqui às sextas-feiras. Dei uma
passada para ver se a encontrava.

— Bem, estou aqui, disse Cris, percebendo o quanto se sentia


nervosa e ridícula.

Mas como deveria interpretar essa atitude do Rick, que aparecia de


repente, como se não houvesse silêncio e tensão entre eles desde que
haviam terminado o namoro?

O rapaz sorriu e abriu a porta do shopping, e ela entrou. Não tinha


coragem de fitar os seus olhos cor-de-chocolate. Prendeu a respiração para
não sentir o conhecido cheiro do pós-barba que ele usava, evitando assim
que um turbilhão de lembranças viesse à tona. Ela seria forte. Resistiria.

Já estavam perto da loja, e Cris andou depressa. Uma vez próxima da


porta, ela estaria na zona de segurança e ele não conseguiria mais
confundi-la.

Que loucura! O que é que estou pensando? Há semanas estou di-


zendo para a Katie que queria ter oportunidade de sentar-me e conversar
com o Rick e resolver tudo. Mas agora, que ele está aqui pertinho, estou
fugindo dele, como fiz desde o dia em que o conheci.

Com repentina ousadia, ela virou-se para ele e disse:


— Preciso trabalhar agora, mas tenho um intervalo lá pelas seis.
Pode vir encontrar-me aqui a essa hora? Rick sorriu, mas estava surpreso
com a coragem de Cris.

— Obrigado pelo convite, mas já tenho planos para hoje. Mas quero
me encontrar com você uma hora dessas. Conversar...

— Eu também, sussurrou ela.

— Então, combinado. Vamos nos encontrar qualquer dia desses e


conversar.

— Foi por isso que você parou aqui pra me ver? Pra ver se a gente
podia marcar uma hora pra conversar?

— Na verdade, disse ao Douglas que eu a lembraria dos brownies


que você prometeu fazer para nós, falou ele e enfiou as mãos nos bolsos
com um jeito meio sem graça. O Douglas é meio, bem... doido por
brownies, daqueles que você sabe fazer. Já o vi entrar em "crise" por causa
desse bolo de chocolate.

Cris riu da piadinha. Douglas era um cara muito legal. Quando os


dois se tornaram colegas na mesma república, ela tivera esperanças de que
ele exercesse uma boa influência sobre o Rick. E parecia que estava tendo.

— O Douglas queria também que eu convidasse você para o jantar


do grupo de estudo bíblico dos "Amigos de Deus" no domingo à noite. É
das seis às nove. Se você quiser ir, eu desenho um mapa, mostrando como
se chega lá.

Ela não sabia como interpretar o convite. Será que era o Douglas ou
o Rick que a convidava? Sabia que seus pais não aprovariam que ela fosse
dirigindo sozinha até San Diego, numa viagem de quarenta e cinco
minutos.

— Não sei se poderei ir. Gostaria! Desde que o Douglas mencionou o


seu grupo, tenho tido vontade de assistir, mas acho que meus pais não
deixariam que eu fosse até lá sozinha.

Cris esperava que ele entendesse a dica e se oferecesse a vir buscá-la.


Seria a oportunidade perfeita para conversarem.

— Ah, é! Esses seus pais severos. Quase me esqueci. Mas você pode
convidar a Rodolfa, anãozinho de cabelos ruivos, para ir junto.

Tirando um pedaço de papel do bolso, Rick estendeu-o a Cris.

— É o número do nosso telefone. O Douglas pediu que eu lhe desse.


Ele vai ficar lá o final de semana todo. Ligue para ele se você resolver.
Tenho de ir embora. Vejo você depois.

— E a gente conversa depois, certo? indagou Cris, esperando ao


mesmo tempo não dar a impressão de estar forçando demais a barra.

— É isso aí, replicou Rick, dando passos para trás, como quem
estivesse sendo sugado por um grande vácuo do shopping. Vamos
conversar um dia desses. Ergueu o braço direito num aceno típico de
jogador de futebol, a mão bem alta, e se foi.

Cris deu um suspiro e se dirigiu ao lugar onde se sentia segura: atrás


da caixa registradora. Jon, seu chefe, atendia um freguês. Mais dois
aguardavam na fila.
— Que bom que você chegou, senhorita Miller, disse Jon, sem olhar
para ela, e, virando-se para o freguês, disse: São dezessete dólares e
cinqüenta e três centavos.

Cris olhou o relógio e fez uma careta. Quinze minutos de atraso. Jon
tinha cerca de vinte e cinco anos, usava um rabo de cavalo e, em geral, era
bastante tranqüilo. Mas gostava de que ela fosse pontual.

— Me desculpe, Jon. Quer que eu cuide disso?

— Claro, respondeu ele, afastando-se e deixando que ela recebesse a


nota de vinte dólares do freguês.

Cris contou e entregou o troco. Já havia mais duas pessoas esperando


na fila.

Tinha a impressão de que não iria ter o intervalo das seis horas.
Talvez a Katie desse um pulo até lá, e ela ficasse sabendo como ia andando
o negócio de ajudante de Papai Noel. Mas a Katie só apareceu na loja de
animais à hora de fechar. Estava radiante.

— Pode me dar os parabéns. Ganhei um bônus de dez por cento hoje


à noite.

— Ótimo! Como foi que conseguiu?

— Eles disseram que nos dariam um bônus se vendêssemos um


determinado número de pacotes de fotografia. Meu trabalho é ajudar a
assentar as criancinhas no colo do Papai Noel e fazê-las sorrir. É claro que
os pais ficam olhando, e quando vêem os filhinhos sorrindo tão bonitinhos
encomendam mais poses. Hoje conseguimos um número recorde de
vendas.
— A ajudante de Papai Noel mais bem-sucedida do mundo! E pensar
que eu a conheci quando era apenas uma estudante do colegial!... exclamou
Cris, elogiando a amiga.

— Parabéns, Katie, disse Jon, fechando a porta externa de metal para


trancar a loja. E no que se baseia o seu bônus de dez por cento?

— No que se baseia? perguntou Katie.

— Sim, em que base? Você vai receber dez por cento de quê? Katie
enrubesceu.

— Não sei. Não perguntei. Acho que fiquei animada demais.

— Procure saber amanhã, sugeriu Cris. Fico contente por você ter se
saído tão bem no seu primeiro dia.

— Foi perfeito, a não ser pelo asqueroso Rick, comentou Katie,


seguindo Cris até o fundo da loja. Ele foi até a casa do Papai Noel e ficou
lá mais de meia hora, só sorrindo.

— O Rick foi lá? Por que será que faria uma coisa dessas?

— Pra me deixar louca, só pode ser.

Jon, com a bandeja da caixa em mãos, tinha chegado à sala dos


fundos. Cris notou que ele estava com um sorriso maroto. Ele murmurou:

— É o velho truque "mexa com a melhor amiga dela". Deu certo


algumas vezes comigo também.

— O quê?
— Acho que não queremos saber, comentou Cris, puxando a Katie
até a porta dos fundos. Boa noite, Jon. Até amanhã.

Chegando ao carro de Cris, Katie perguntou:

— Então, quando é que nós vamos fazer os brownies? Podemos fazer


no domingo à tarde, aí levamos para o estudo bíblico à noite.

— O quê?

— Sabe, o grupo dos "Amigos de Deus" no apartamento do Rick e


Douglas. Nós vamos no domingo, não vamos?

— Katie, quando é que você soube de tudo isso?

— O Rick me contou.

— Quando?

— Bem, eu conversei um pouco com ele no meu intervalo. Ele me


falou dos planos para o final de semana. Por quê? Ele não lhe falou?

Cris olhou para a amiga com ar incrédulo.

— Quer dizer que o Rick ficou esperando até a hora do intervalo, e aí


vocês conversaram?

— Sim, e daí?

— E ele a convidou para a reunião dos "Amigos de Deus" e você está


com vontade de ir?

— Claro. Você não? Acho que vai ser ótimo. Quero conhecer esse
Douglas de que tanto ouço falar.
Katie enfiou o chapéu e as sapatilhas de feltro na sacola e olhou para
Cris, que estava imóvel no assento de motorista, chaves na mão.

— O que foi? indagou ela.

— Nada, replicou Cris, engolindo a surpresa e a confusão de uma


vez. Absolutamente nada.

Enfiou a chave na ignição, e o motor deu um arranque barulhento.


Então ela se forçou a dizer com calma:

— Então, quando vamos fazer os brownies!


Salvando Pedaços de
Chocolate
2
— Então, que foi que seus pais disseram? perguntou Katie na manhã
seguinte pelo telefone. Você vai à reunião dos "Amigos de Deus"?

— Ainda não perguntei, replicou Cris, dando um suspiro. Acho que


já sei o que vão dizer...

— Fala pra eles que eu vou, insistiu a amiga. Os meus pais disseram
que posso ir. Falaram até que posso ir com nosso carro, e só preciso estar
de volta em casa às onze. Talvez, se você disser que eu vou dirigindo, eles
deixem você ir.

Cris sentiu uma pontada de inveja da liberdade que Katie gozava.


Sabia que não devia fazer comparações. Mas aquilo não lhe parecia justo.

— Eu estava pensando, disse Cris. Talvez fosse melhor a gente ir no


outro domingo, porque já vamos estar de férias e não vai ter aula na
segunda. Nesta segunda-feira ainda tem aula e no domingo meus pais
querem que eu esteja em casa antes das nove.
— Por que não vamos nos dois domingos? Ou pelo menos tentamos?
Eu estou querendo muito e gostaria que você fosse comigo. Cris percebeu
que Katie tencionava ir, quer ela fosse quer não. Isso doía. Afinal de
contas, o Rick e o Douglas eram amigos dela, Cris. Por que a Katie tinha
de se sentir tão à vontade com o grupo sem a Cris junto?

— Tenho de me aprontar para o trabalho, falou de supetão. Não


quero me atrasar como ontem, disse meio ríspida, como se quisesse que a
Katie entendesse que fora sua culpa ela ter se atrasado na véspera.

— Você tem razão! Já passam das dez e ainda não me vesti. Ei! Quer
me encontrar na praça de alimentação na hora do seu intervalo?

— Está bem. Geralmente meu horário de almoço é a uma hora.

— Ótimo. Encontro você na loja de donuts a uma, a não ser que eu


não consiga folgar. Tchau! disse com voz animada antes de desligar.

É, ou se o Rick asqueroso não aparecer por lá para perturbar você


de novo. Cris pensou na conversa com o Rick uma dúzia de vezes. Não
fazia sentido. Ela acreditava que o Douglas pedira que o Rick a convidasse
para a reunião dos "Amigos de Deus", mas por que ele ficou por lá e jantou
com a Katie? E principalmente, por que dissera a Cris que não podia
encontrar-se com ela no seu intervalo?

Entrou no banho, abriu o chuveiro e lavou depressa a cabeça,


debatendo consigo mesma se deveria pedir aos pais para ir com a Katie a
San Diego agora cedo ou se deveria esperar até a noite. De qualquer jeito
eles diriam não. Para que tentar falar?
Acabou levando meia hora para se aprontar, e assim teve de voar
porta afora, gritando aos pais:

— Tchau pra vocês!

A manhã transcorreu em ritmo frenético. Não acreditava que já fosse


uma hora, quando Jon perguntou-lhe se queria fazer o horário do almoço.

Cris chegou na lanchonete de donuts às 13:05h. Nenhum sinal da


Katie. Depois de esperar dez minutos, percebeu que, se não entrasse na fila
para fazer seu pedido, seu horário de almoço se esgotaria. Estava morrendo
de fome e não teve dificuldade para resolver o que queria — pizza de pão
francês — embora a fila fosse bem comprida.

Enquanto esperava e depois ao sentar-se para comer, correu os olhos


pelo lugar à procura da Katie, pensando que talvez o Rick aparecesse
também. Não viu nenhum dos dois e afinal deu a hora de voltar para a loja
de animais. Se tivesse mais tempo, teria ido à casa do Papai Noel para ver
como a Katie estava se saindo. Ou talvez até pudesse ver o Rick por lá.

Pare com isso! repreendeu a si mesma. Por que ficar pensando


assim sobre o Rick e a Katie? Tira a cabeça da fossa, menina! Aí tá
fedendo!

Desde o momento que voltou para a loja até a hora de ir para casa, às
seis da tarde, as vendas não pararam. Cris ficou contente porque assim o
tempo passou depressa. Já que Katie não aparecera, ela achou melhor dar
uma passada por lá antes de ir para casa.

A fila na casa do Papai Noel dava volta em torno do grande cenário


de neve. No meio, havia uma casinha de três lados, completa, com neve
artificial, pingentes de gelo e anões mecânicos que embrulhavam presentes
e pintavam listras vermelhas em balas com formato de bengalinha.

Cris achou engraçada a neve nesse shopping da Califórnia, onde a


maioria dos fregueses andava de short. O Papai Noel, alegre e gorducho,
achava-se sentado no trono com uma máquina fotográfica bem à sua frente.

Ao lado da máquina, Katie saltitava e pulava. No colo do bom


velhinho, estava uma criancinha de cerca de um ano, que seguia com olhos
alegres as peripécias da Katie.

— Olhe o Rodolfo! disse Katie numa voz esganiçada, levantando um


fantoche de mão de uma rena de focinho vermelho. Ele vai voar!

Katie fez o fantoche "voar" para frente, chegando o focinho do


boneco ao narizinho do garoto e apertando-o para "buzinar". No momento
em que o flash disparou, gravando em filme o imenso sorriso da criança,
ela se abaixou.

Não é de admirar que o Rick tenha ficado por aqui. Eu também seria
capaz de ficar olhando para ela horas a fio. Ela leva jeito. Por que eu
estava ficando invejosa e preocupada de ver o Rick interessar-se pela
Katie? Isso é ridículo!Enquanto a criança seguinte se aproximava do trono,
Cris chamou a atenção de Katie, e lhe disse:

— Vou pra casa agora. Me ligue, está bem?

— Estamos superocupados! Vou ter de ficar mais uma hora. Quer


fazer os brownies na minha casa hoje ou amanhã à noite? indagou Katie.

Percebendo o olhar de impaciência do fotógrafo, Cris deu de ombros


e disse:
— Ligue quando chegar em casa, está certo?

Katie acenou que sim, enfiou a mão numa cesta que havia ao lado da
máquina, tirou um boneco de neve e voltou à rotina de fazer o nenê sorrir.

Finalmente, às 9:30h, ela telefonou, animadíssima, para a Cris.

— Acabei de chegar em casa, e você não vai acreditar! Sabe o


fotógrafo? Ele me ofereceu emprego. Ele é fotógrafo de crianças e, depois
do Natal, quer que eu trabalhe no estúdio dele. Disse que sou a melhor
assistente que ele já teve! Escute mais: vai me pagar o dobro do que estou
ganhando agora!

— Maravilha, Katie! Isso é muito bom!

Cris desejou que seu tom de voz fosse leve e doce, mas não se sentia
assim. Ninguém nunca lhe dissera que era a melhor em alguma coisa, nem
lhe oferecera o dobro de seu salário!

— E o melhor de tudo é que não vou ter que usar essa fantasia
ridícula, falou Katie, rindo. Eu disse a ele que as orelhas eram de verdade,
e ele respondeu que na empresa dele não discriminam orelhas grandes.
Estou tão contente! Nem acredito que ele tenha me contratado assim.

— Isso é ótimo, Katie!

— Desculpe-me por ter demorado tanto a chegar a casa. Sei que é


tarde para fazer os brownies hoje, mas que tal fazê-los logo depois da
igreja amanhã? Vê se você pode vir.

— Espera aí. Vou perguntar à minha mãe.


Cris cobriu o bocal do telefone e chamou a mãe, que estava em outro
quarto.

— Mãaaaaaee! Posso ir pra casa da Katie amanhã depois da igreja


fazer brownies!

— Claro, não há problema. Tenho manteiga e pedaços de chocolate


no freezer que você pode levar.

Na tarde seguinte, enquanto as meninas começavam a assar os


brownies, Cris viu que fora bom ela ter levado os pedaços de chocolate.
Katie, que confessou que não podia estar no mesmo ambiente com
qualquer tipo de chocolate sem devorar tudo, já tinha desfalcado o
suprimento de sua própria casa.

— Então faz de conta que não tem nada aí, aconselhou Cris, e meça a
farinha de trigo.

— Você está pedindo que eu ignore esses chocolates? indagou Katie


olhando com uma vontade louca o pacote de pedacinhos. Olhe só essas
bolinhas de chocolate. Estão dizendo: "Deixa a gente entrar na sua
barriguinha quentinha!"

Com a expressão mais sofrida, Katie implorava a Cris:

— Como pode ser assim cruel e deixar esses chocolatinhos aí fora,


passando frio?

— Está bem, replicou Cris, pegando o saco e torcendo a parte de


cima para fechar o resto dos chocolates. Pegue só esses que caíram no
balcão. Os outros são meus. Vou guardá-los presos aqui até você acabar de
medir a farinha.
— Muito, muuuito obrigada! Sabia que você tinha um coração de
ouro. Venham cá, chocolatinhos... disse Katie, pegando-os. Venham
passear de tobogã. Pronto? Vamos!

Ela enfiou um punhado na boca e ficou a emitir uns sons


ininteligíveis.

— O quê? indagou Cris.

Katie acabou de engolir, lambeu os beiços e repetiu:

— Agora eles já estão melhor. Cris abanou a cabeça.

— Sabe, Katie, você devia fazer teatro. Vai ser uma Lucille Ball ou
uma Carol Burnett*. Sei que vai.

— São meus cabelos ruivos. Quando a primeira frase que a gente


ouve é "cabelinho de fogo", compreende logo que seu futuro não é ser
Miss América.

— Ah é? Mas não foi isso que o Glen parecia estar pensando hoje
cedo na igreja. Não foi a primeira vez que ele realmente sentou ao seu lado
na igreja?

— Você notou, hein?

— Notei? Como não! Ele parecia achar que você era a única pessoa
presente na classe de jovens da escola dominical. Eu diria que esse cara já
progrediu e muito!

— Ainda vai demorar muito. Ele vai embora logo que a escola entrar
em recesso. Os pais dele têm de fazer uma viagem de duas semanas para

*
Notáveis comediantes do teatro e do cinema americano. (N. E.)
arranjar mantenedores. Depois vão voltar para o Equador no começo do
ano que vem.

— Então ele não vai estar aqui no Natal.

Cris sentia um pouco de pena da Katie. Glen era um ótimo rapaz, e


Cris achava que os dois fariam um belo par. Mas ele era a timidez em
pessoa.

— Ontem comprei uma fita pra ele na livraria evangélica, disse Katie
despejando a farinha de trigo na tigela. Ia dar hoje cedo, mas ele não
comprou nada pra mim, e fiquei sem jeito de dar-lhe um presente, então
não dei.

— Espere aí, disse Cris, parando com a batedeira. Se me recordo


direito, no Natal passado foi você que me convenceu de que eu deveria dar
um presente ao Rick, mesmo sabendo que eu mal o conhecia. Acho que é
sua vez de dar uma lembrança para um cara no estacionamento da igreja.

— Não, não, não! É que você nos ofereceu uma excelente ex-
periência de aprendizagem no ano passado. Aprendi com você a
experiência de passar vergonha, e assim não preciso repetir o mesmo erro
que você cometeu por nós duas.

— Certo. Você é mesmo covarde, Katie. Primeiro, o Glen não é o


Rick, e assim, não será o mesmo tipo de erro. Segundo, é provável que o
Glen não lhe tenha dado um presente porque não tem dinheiro, certo? E
terceiro... aqui Cris parou. Esqueci o que é o terceiro. Mas ainda acho que
deveria considerar a fita como oferta missionária e dá-la para o Glen. Ele
terá algo que escutar na viagem até o Oregon.
Katie pensou por um instante e disse:

— É, parece que você, como sempre, tem razão. O Natal é para a


gente dar, não receber presentes, certo? Detesto quando a gente gosta de
um "gato" e nem sabe se ele gosta da gente!

— Acredite, eu sei como você se sente. Você deve fazer o que disse
que eu deveria fazer: ser sincera com seus sentimentos e ver o que
acontece.

— Está bem, vou dar a fita para o Glen. Mas quando? Ele vai viajar
sexta-feira.

— Geralmente ele vai à igreja no domingo à noite, não vai? Por que
não entrega o presente hoje à noite?

— E a ida a San Diego?

— Katie, confessou Cris, eu não posso ir a San Diego. Nem cheguei


a falar com meus pais. Sabia que eles diriam que não podia.

— Pensei que já estava tudo combinado!

— Não, mas eu queria fazer os brownies assim mesmo. Achei que


pudéssemos mandar para os rapazes, pelo correio. Ou, se você for sozinha,
você os entrega em mãos.

Katie tirou as assadeiras do armário e jogou-as com força sobre o


balcão.

— O que você está realmente dizendo é que não queria que eu fosse
sozinha, porque o Douglas e os outros são todos seus amigos. Como você
não pode ir, prefere que eu também não vá. Não é isso?
— Não é isso, não, Katie, principiou Cris, mas de repente percebeu
que ia dizer uma mentira e corrigiu-se. Bem, talvez, em parte, seja isso. Eu
me sinto como quem foi deixado de fora, mas só conheço o Douglas e o
Rick. Não conheço mais ninguém lá. É que eu queria que nós duas
fôssemos juntas. Só isso.

Katie estivera olhando para o chão enquanto Cris falava. Ergueu o


rosto para ela e seus olhos verdes faiscavam.

— Está certo. Espero até você poder ir junto. E hoje à noite dou a fita
para o Glen.

— Tem certeza?

— Absoluta!

— Obrigada, Katie. Você é a amiga mais compreensiva que existe!

— Espere, tem uma condição. Se eu posso fazer tudo isso, então


você pode pelo menos perguntar a seus pais se deixam você ir a San Diego
domingo que vem.

— Está certo. Eles vão dizer não, mas pelo menos eu pergunto.

— Cris, você só vai saber depois de perguntar.

Duas horas mais tarde, quando Cris entrava pela porta da frente de
sua casa com um prato cheio de brownies na mão, o telefone tocou.

— Eu atendo! gritou ela, pegando o fone e colocando os brownies


em cima do balcão. Alô?

— Olá, Cris! É o Douglas.


— Douglas, olá! Adivinhe o que eu fiz pra você?

— Espero que sejam brownies.

— Isso aí! Eu e a Katie os fizemos hoje à tarde. Vou mandar pelo


correio amanhã cedo.

— Tinha esperança de que vocês mesmas os trariam hoje à noite.


Rick disse que lhe deu o recado.

— Ele me falou, mas não posso ir. Sinto muito. Eu queria e espero
poder ir outro dia, e aqui ela baixou a voz. Meus pais não permitem que eu
vá tão longe, de carro e à noite...

— Se eu soubesse, poderia ter ido buscar você.

— Não faz mal, Douglas. É meio longe pra você vir e ter que trazer
de volta.

— Não tem importância. Na verdade, eu devia ter ligado antes. É que


hoje é a última reunião antes das férias. Vamos ter outra só no começo do
próximo semestre, lá pelo fim de janeiro.

— Ah! eu não sabia. Sinto muito. Agora fiquei mais chateada.

— Eu devia ter telefonado mais cedo. Mas olhe só! Temos um longo
recesso de Natal, começando semana que vem. Podemos ir para qualquer
lugar e fazer qualquer coisa. Você vai para a casa de seus tios em Newport
que nem no ano passado?

— Ainda não sei o que vamos fazer. Provavelmente eu poderia dar


um jeito no trabalho e perguntar a minha tia se posso ficar com ela.
Cris pensou em como seria divertido rever os amigos da praia de
Newport. No Natal passado ela tomara o café da manhã na praia com o
Ted.

Ted era diferente de qualquer outro rapaz que conhecia. Os últimos


dois anos de sua vida estavam repletos de recordações dele: seu primeiro
beijo, uma viagem à Disneylândia no seu aniversário, as férias do ano
anterior quando tinham ido a Maui, longas conversas e muitos altos e
baixos. Lembrou-se do último Ano Novo, quando ela e o Ted foram a uma
festa na casa de sua amiga Helen. À meia noite, o Ted lhe dera a pulseira
de chapinha de ouro, gravada com as palavras "Para Sempre",
acompanhada de um beijo.

Quando namorava o Rick, ele "pegara emprestada" a pulseira de ouro


e a trocara por uma de prata pesada, com a inscrição "Rick". Seu
relacionamento com ele teve um período de águas claras, mas, quando ela
descobriu que ele tinha roubado a pulseira do Ted e a vendera, terminou
com ele imediatamente.

Cris pagou fielmente a joalheria, de modo que pudesse reaver sua


pulseira de ouro. Um dia foi fazer um pagamento e descobriu que alguém,
que queria permanecer anônimo, havia quitado o débito.

Ainda não sabia quem fora. No começo pensara que fosse seu chefe,
Jon. Perguntou-lhe, mas ele negou. Katie achou que talvez fosse o Rick,
tentando compensar o papelão que fizera. Por algum tempo, Cris pensou
que talvez o próprio Ted tivesse descoberto o fato e pago tudo.

Olhou a pulseira, presa no seu pulso direito, e perguntou ao Douglas:


— Tem notícias do Ted? Ele disse quando voltaria do Havaí?

— Não, não ouvi nada, disse o Douglas com voz lenta. Mas temos
que estar orando por ele, porque nas próximas duas semanas tem a grande
competição em Waimea. Aí ou ele entra no circuito de surfista profissional
ou cai fora.

— Será que se ele não entrar, é possível que volte pra casa?
perguntou Cris, receosa de alimentar muita esperança.

— Quem sabe. Talvez ele continue na Universidade do Havaí no


próximo semestre. Ou talvez esteja num avião agora mesmo voltando para
cá. Em se tratando do Ted, nunca se sabe.

Falou bem, Douglas. Você disse uma coisa muito certa. Realmente,
em se tratando do Ted, a gente nunca sabe.

Olhando novamente para a pulseira, pensou: Talvez ele esteja num


avião agora, voltando pra cá. Nunca se sabe!

Os Opostos Não se Atraem,


Não é Mesmo?
3
Na manhã de segunda-feira, Cris acordou com dor de garganta e
pensou que seria maravilhoso se pudesse ficar na cama o dia todo. Mas
sabia que, faltando só cinco dias para o início do recesso de Natal, não
podia faltar a nenhuma prova, nem atrasar-se nos trabalhos.

Então pensou consigo mesma: Vou tomar um bom banho quente, e se


eu não me sentir melhor depois disso, volto para a cama.

Com o chuveiro, sentiu-se mais desperta e foi para a escola, levando


na bolsa uma caixinha de pastilhas para a garganta. Na verdade, ficou bem
até a hora do almoço, quando contou a Katie sobre o telefonema do
Douglas.

— Então perdemos nossa única oportunidade, disse Katie, chateada.

— Eles recomeçam em janeiro, justificou Cris. Eu não sabia que era


a última reunião do ano.

— Não estou culpando você. Só estou chateada. Estava me sentindo


tão feliz por ter sido convidada para uma atividade no campus
universitário, e ser aceita no nível "deles".

— Era por isso que você estava louca para ir?

— Claro! Isso não faz a gente se sentir mais adulta... sabe... como se
o pessoal mais velho estivesse dizendo "mandem a Katie e a Cris para cá".

— Na verdade, nem pensei nisso, mas entendo o que você quer dizer.
Não me enforque, mas por uns momentos pensei que você quisesse ir por
causa do Rick.
Katie largou o chocolate que comia sobre o saquinho de lanche e
perguntou:

— Cris, como você teve coragem de pensar uma coisa dessas de


mim?!

— Sei lá. Talvez porque conheço o Rick. Ele gosta de desafios. Você
sabe disso. Acho que depois que conversamos com ele, no estacionamento
do shopping, você tornou-se uma espécie de desafio pra ele.

— Desafio ou não, você sabe que não morro de amores pelo Rick.

— Eu sei.

— Eu e o Rick somos opostos demais, disse Katie, dando uma


mordida no chocolate.

Cris murmurou para si:

— Às vezes os opostos se atraem.

— Eu ouvi isso! Agora, vamos mudar de assunto, como o abraço que


o Glen me deu ontem à noite, quando lhe entreguei a fita.

— Katie, desculpe! Eu pretendia lhe perguntar o que aconteceu. Me


conte!

— Não tem muito pra contar. Eu lhe dei a fita depois do culto e ele
me deu um abraço e disse: "Obrigado!" A mãe dele estava por perto. Não
foi grande coisa.

Os olhos de Cris examinaram o rosto de Katie, à espera de mais


detalhes.
— Foi só isso mesmo, falou Katie. Fiquei contente por ter lhe dado a
fita, mas não escreveria um soneto de amor sobre a experiência. E por falar
em sonetos, você já leu aquele de treze páginas para a aula?

Cris balançou a cabeça e tomou devagar seu suco de laranja pelo


canudinho. Estava surpresa de ver que a Katie não se achava mais
entusiasmada com o Glen. Não parecia mais tão interessada nele como
estava um mês atrás.

Durante o resto da semana Cris ficou a observar Katie. Ela não


mencionou o Glen uma vez sequer. Cris achou melhor esperar a hora certa
de mencionar o nome dele de novo.

Foi uma pesada semana de estudo com três provas finais, e tarefas
sem fim. Já na sexta, Cris estava tão ansiosa para que tudo acabasse que
passou a última aula escrevendo cartões de Natal e compondo a lista de
presentes que tinha de comprar.

Metade da classe cabulou, e o professor sentou na beira da mesa,


fazendo alguns truques com baralho para alguns alunos na frente. Cris
queria terminar todos os seus cartões de Natal naquela tarde para colocá-
los no correio do shopping. Faltava só uma semana para o Natal, e ela
esperava que chegassem a tempo. O cartão de Alissa ia para Boston, e o de
Paula para Wisconsin, mas o resto dos amigos estavam na Califórnia,
portanto, eles deveriam receber o cartão antes do grande dia.

Mas o que deveria fazer quanto ao Ted? Tinha enviado um cartão


para ele em Oahu, mas será que ele o receberia se estivesse surfando a
semana toda, como dissera o Douglas?
E um presente? No ano passado ela tinha pintado uma camiseta com
um desenho de surfista. Provavelmente, ele gostara, porque ela o vira
usando-a diversas vezes. Mas pintar outra camiseta neste ano parecia
bobagem para a Cris, admirada por ter achado isso uma idéia tão
maravilhosa no ano anterior. Seria melhor mandar apenas um cartão.
Talvez fosse tarde demais para enviar qualquer coisa para o Havaí. Devia
ter pensado nisso há mais tempo.

A campainha do encerramento das aulas tocou, e todo mundo deu


vivas e brincou dizendo que veriam os outros no próximo ano. Cris enfiou
os cartões na bolsa e encontrou-se com Katie no corredor dos armários.

— Pronta? Quero sair um pouco mais cedo para o trabalho, para dar
uma passada no correio, e mandar os cartões de Natal.

— Estou com tudo aí. Vamos. Obrigada pela carona outra vez. Se
meu irmão não consertar logo o carro dele, vou dizer a meus pais que lhe
dêem um ultimato. Ele nem pede emprestado; simplesmente pega meu
carro como se eu não tivesse nada que fazer.

— Por que você não pede a seus pais que mandem consertar o carro
dele como presente de Natal?

— Boa idéia! E a propósito, o que você vai dar para o Rick este ano?

— Rick? Nada!

— Nem um cartão?

— Bem, talvez mande um cartão. Eu ia mandar um para o Douglas e


pensei em acrescentar o nome do Rick. Quero conversar com ele cara a
cara e resolver tudo entre nós. Acho que um cartão só não resolve.
— Você está certa, disse Katie, cantarolando para si o resto do
caminho até o shopping.

Mas agora Cris estava curiosa. Ao entrarem no shopping, perguntou:

— Katie, por que você perguntou se eu iria mandar um cartão para o


Rick?

— Por nada, por nada...

Cris não se convenceu. Ficou encafifada pelo resto da noite. Ainda


não estava tranqüila com o fato de o Rick ter ficado por lá, conversando
com a Katie na sexta passada, sem querer conversar com ela sendo que
tinham tempo para isso.

Talvez ela devesse "arranjar" esse tempo. Ela tinha o número dele em
San Diego e da casa dos seus pais. Podia ligar pedindo-lhe que ele viesse
falar com ela. Mas até chegar ao trabalho, toda a determinação de Cris
evaporou-se, convertida em apatia, a mesma que sentia desde que haviam
terminado. Esperaria que ele ligasse.

Na manhã seguinte, para surpresa de Cris, ele ligou.

— Olá! disse ela sem saber bem o que conversar. Deixou que ele
falasse.

— É bom esse recesso de Natal, não é?

— Sim. Muito bom.

— E então, vai trabalhar a semana toda?

— Trabalho o dia todo na quarta-feira, mas folgo o resto da semana.


— Então, segunda-feira seria um bom dia para a gente conversar.

O jeito do Rick falar era mais uma declaração do que uma pergunta.

— Acho que sim. A que horas?

Rick ficou em silêncio por uns instantes. Cris pensou que talvez não
devesse ter perguntado aquilo. Para dar certo, aquilo tinha de partir do
Rick. Ela não queria dar motivo para ele pensar nela como uma das muitas
ex-namoradas dele que estavam sempre tentando "voltar".

— Sei lá. Eu lhe telefono.

— Está bem. Ele desligou.

Ela ficou zangada com a maneira abrupta como ele agira. Mas
depois, pensou em como ele estava se esforçando para conversar com ela
normalmente. Desde que ficara conhecendo o Rick, ele sempre tinha o que
dizer, cheio de promessas e bajulações. Talvez ele não soubesse conversar
sem segundas intenções. Ou talvez estivesse mesmo mudando e um novo
lado, mais tímido, estava surgindo. Será que ele queria mesmo conversar
com ela, ou fazia isso só para agradá-la? Seria tão difícil assim para ele
passar de namorado para amigo, e continuar o relacionamento apesar de
não exercer controle sobre ela?

Acho que vou ficar sabendo na segunda-feira.

Chegou à loja de animais por volta das dez e quarenta e cinco. Dava
para perceber claramente que a correria de Natal começara. Cris registrou
vendas uma atrás da outra durante duas horas. A maioria delas era de
artigos em promoção, como meias de gatinhos cheias de erva-de-gato e
chifres de rena para pôr na cabeça de cachorros. Não achava ruim trabalhar
tanto assim. Entrou no espírito da coisa e dizia "feliz Natal" a cada freguês
que atendia ao entregar-lhe as compras.

Por volta de uma da tarde, Beverly, a outra funcionária da loja, veio


aliviá-la na caixa registradora.

— Jon disse que quer falar com você lá atrás.

Êpa! Será que entrei numa enrascada?! pensou.

Quando Cris chegou à sala dos fundos, Jon estava abrindo uma caixa.

— Queria falar comigo?

— Sim, sente-se. Quero lhe falar sobre o jeito como você anda
dizendo "feliz Natal" aos fregueses.

— É?

— Bem, Cris, nem todos os nossos fregueses celebram o Natal. Você


poderia ofendê-los.

— Só estou querendo ser educada. Ninguém pareceu ficar chateado.


A maioria retribuiu-me o cumprimento. Acho que gostam de ouvir.

— Não fique na defensiva, Cris. Passe a dizer "boas festas", e aí


ninguém se ofende, está bem?

Cris ia concordar com o chefe quando percebeu que, no fundo, não


estaria bem.

— Tudo bem?

— Não. Na verdade, não.


Jon pareceu surpreso e esperou que ela explicasse. Cris tomou
coragem e pôs em palavras seus pensamentos.

— Lembra que uma vez você disse que se alguém acredita numa
coisa deve expor sua posição de forma clara em vez de "camuflar" o que
crê?

— Lembro. É, realmente eu disse algo assim. Mas tenho certeza de


que não estava me referindo a isso.

— O que você falou se aplica a isso, disse Cris com firmeza,


enquanto ainda tinha coragem. Pelo menos, para mim. Não estou apenas
celebrando as "festas". Estou comemorando o nascimento de Cristo, o
Natal. Todo mundo sabe disso. Como poderia ofender alguém?

— Cris, você acredita no Natal, mas nem todos crêem.

— Se não crêem, por que não podem pelo menos aceitar que eu creia
e retribuir o meu "feliz Natal" dizendo "boas festas"?

— Está bem, está bem! Você ganhou. Você acredita nisso, e toma
uma posição clara. Tenho de confessar, admiro isso. Continue. Pode dizer
"feliz Natal". Não deve ofender tanto não.

— Obrigada, Jon.

— Tudo bem. Acho que pode fazer seu horário de almoço agora.
Você trabalhou sem parar hoje. Se não sair agora, talvez nem consiga sair.

Cris estava prestes a sair quando se deu conta de que, devido ao


movimento, o próprio Jon não tinha parado para almoçar.
— Vou comprar um lanche e trazer para comer aqui. E você, o que
quer que eu lhe traga? Eu pago.

Jon olhou para cima, surpreso com o oferecimento dela.

— Está falando sério?

— Claro que estou. Recebi o pagamento hoje, lembra? E então, o que


quer?

— Bem, sabe aquele restaurante chinês na praça de alimentação?

Cris sabia.

— Vá até lá e procure o Yun. Diga-lhe que o Jon quer o de sempre.


Para levar, disse Jon, pegando a carteira.

— Está bem. Ei! Guarde o dinheiro. Sou eu quem paga dessa vez,
lembra? É o meu presente adiantado de Natal!

Ela enfatizou a palavra Natal e fitou o chefe, à espera de uma reação.

Por alguns segundos seu olhar fixou-se no dela e ele sorriu.


Guardando a carteira, ele respondeu:

— Obrigado, Cris. E feliz Natal para você também.

Cris sentiu-se bem com a reação do Jon. Foi depressa à praça de


alimentação. A fila no restaurante chinês estava bastante comprida.

Nos cinco minutos que teve de esperar até chegar sua vez, ela
esqueceu o nome da pessoa a quem devia pedir. Frustrada, tentou vasculhar
a cabeça tentando lembrá-lo. Já estava diante do atendente.

— Olá! Conhece o Jon?


Um rapaz de cabelo escuro olhou de um jeito engraçado e disse
"Egg-Fu-Young"?

— Não, da loja de animais. Sabe, o gerente da loja de animais. O


nome dele é Jon.

Percebeu que não estava conseguindo nada. Um homem magro, de


rosto simpático, veio por trás do atendente e perguntou:

— Há algum problema?

Ela imediatamente viu o nome dele no crachá.

— Yun! Você é o Yun.

O homem olhou para o balconista e para a Cris e disse:

— Sim, sou o Yun. Desde que eu nasci.

Cris deu uma risada, aliviada por não ter estragado sua "boa ação".

— Eu trabalho na loja de animais e quero encomendar o de sempre


para o Jon.

— Ah, Jon! falou Yun, o rosto iluminando-se. Claro. Vou buscar.


Mais alguma coisa?

Cris não tinha pensado no que iria pedir para si.

— Acho que vou comer um bolinho de primavera. Ah, espere! Vocês


têm aqueles... hã... como é que se chamam?

O balconista ficou parado olhando-a, e ela percebeu a impaciência


dos que estavam na fila atrás dela.
— Esqueça o bolinho. Vou comer o camarão agridoce. E um arroz.
Pequeno. Arroz e camarão agridoce, pequenos. Por favor.

O balconista deu-lhe uma ficha e, indicando a direita, disse:

— Pode pagar ali.

E virando-se para um funcionário perto dele, disse algo que fez o


outro moço cair na gargalhada.

Não preciso de tradução para isso. Eu reconheceria "boboca" em


qualquer língua.

Cris pagou o pedido, tentando ficar calma e agir educadamente


enquanto Yun lhe entregava a sacola.

— Aqui está. E deseje um "feliz Natal" ao Jon por mim. Cris sorriu.
Adoraria dizer ao Jon que o Yun lhe desejava um feliz Natal.

Ao tomar de volta o caminho para a loja, ficou indecisa sem saber se


voltaria correndo ou se desviaria para ver a Katie. Era o que havia
planejado fazer no horário de almoço. O cheiro da comida quente ajudou-a
a decidir. Veria a Katie depois do trabalho.

Quando entrou na loja, fez sinal para o Jon, levantando a sacola e


virando a cabeça um pouco para o lado da sala dos fundos.

— Pode ir pra lá. Vou lá daqui a um minuto.

Ela arrumou a comida chinesa sobre uma mesinha dobrável. Sentiu o


cheiro delicioso daquele "banquete". Estava com tanta fome que seria
capaz de comer tudo sozinha.

— Eu lhe trouxe uma visita para o almoço, disse Jon ao entrar.


Cris virou-se, pensando que veria a Katie.

— Douglas!

— Olá, Cris! falou ele, dando-lhe um de seus famosos abraços.


Parece que cheguei na hora certa.

Cris estava sem palavras, de tanta surpresa.

— Almocem vocês dois aí, disse Jon.

E, batendo de leve no ombro do Douglas, acrescentou:

— Sirva-se à vontade. Hoje é a Cris que está pagando. Douglas


puxou uma cadeira e disse:

— Eu já almocei. Está bem cheiroso. Talvez eu experimente um


pouco desse arroz. Só dei uma paradinha de um segundo. Vim passar o
feriado em casa e queria ver se podíamos organizar alguma coisa para a
semana que vem.

Olhou dentro duma das caixas e perguntou:

— Que é isso?

— Não sei. É "o de sempre" do Jon. Este aqui é camarão agridoce, e


esse aqui é arroz. Quer um pouco?

— Claro! replicou Douglas, pegando um prato descartável para a


Cris colocar arroz e camarão.

Ela dividiu a comida para os dois e ia dar a primeira garfada quando


Douglas perguntou:

— Quer orar?
— Claro, disse ela, baixando a cabeça e esperando que o amigo
começasse a oração como o Ted sempre fazia.

Silêncio.

— Vamos lá. Ore você, disse Douglas.

— Ah, eu!

Cris baixou a cabeça de novo e agradeceu depressa a Deus pela


comida. Quando ergueu os olhos, o Jon estava a poucos metros.

— Não quero incomodar, disse ele, e pegou uma caixa de ração de


cachorro.

O que será que o Jon pensa de tudo isso? De eu e o Douglas orar-


mos, e tudo mais?

— Lembra como no ano passado fomos patinar no gelo? Você acha


que seria uma boa irmos de novo?

Cris se lembrava claramente daquele dia maluco cheio de confusões.


Lembrou-se também de haver patinado com o Douglas, supostamente para
provocar ciúmes no Ted. Acabou descobrindo que o Douglas patinava
muito bem. Os dois se divertiram muito, e o Ted nem ligou.

— É, seria divertido patinar. Ou podíamos ir ao cinema, ou talvez a


Helen queira fazer outra festa de reveillon.

— Ei! Sabe o que seria "massa"? disse Douglas, engolindo outra


garfada de arroz. Nós podíamos ir todos ao "Desfile das Rosas"!

— Seria legal! replicou Cris, o rosto abrindo-se num largo sorriso. Lá


no Wisconsin, nós sempre assistíamos ao "Desfile das Rosas" pela
televisão. Eu sonhava em vê-lo ao vivo um dia. É engraçado ver todo
aquele sol, quando a gente ali está toda agasalhada e a neve não pára de
cair. Dá impressão de que a Califórnia é o Paraíso.

— O desfile é muito bonito. Uns dois anos atrás nossa turma foi e
tivemos de dormir na rua para conseguir um bom lugar. Já está na hora de
ir de novo. Isso resolve o problema do programa para o Ano Novo. E o que
mais vamos fazer semana que vem? Vamos nos reunir na segunda? Seria
divertido andar de trenó nas montanhas.

O que o Douglas está querendo mesmo? Será que está pensando


numa atividade de grupo, ou está me convidando para sair com ele? O
Rick queria conversar comigo na segunda. O que é que eu digo?

— Segunda?

Douglas fez que sim e pegou um pedaço de aipo agridoce.

— Por acaso você e o Rick conversaram sobre isso? Ele falou


qualquer coisa sobre conversar comigo na segunda. Vocês estavam
pensando em algo para fazermos todos juntos?

— Não; na verdade, não.

O rapaz parecia meio decepcionado.

— Eu não sabia que você e o Rick estavam... bem, ...voltando. Não


sabia que já tinham feito planos.

— Não fizemos, não. Ele apenas sugeriu que nos encontrássemos na


segunda para conversar, mas talvez quisesse dizer todos juntos, como você
está dizendo. Podíamos passear de trenó.
Cris não tinha muita certeza de que estava agindo certo, abrindo mão
da chance de conversar com o Rick. Mas veio-lhe a idéia de que, se a Katie
lhe fizesse companhia, podia dar certo com o Douglas; os dois poderiam
ficar juntos, e ela conversaria com o Rick.

— Eu passo na casa dele quando sair daqui. Vamos ver o que


arrumamos. Rick disse que você tem uma amiga chamada Katie.

— É. Eu queria convidá-la para sairmos todos juntos. Tudo bem?

— Ótimo! Quanto mais gente, melhor! Quero conhecê-la. Douglas


era realmente um rapaz de valor. Bonito também.

Alto como o Ted mas com ombros mais largos e uma cara de
menino. Tinha o cabelo loiro-areia, curto nos lados, e parecia sempre ter
acabado de pentear-se. Tinha um sorriso amigo e dentes perfeitamente
alinhados. Quanto mais Cris pensava no assunto, mais achava que o
Douglas e a Katie dariam um par perfeito.

— Eu ligo para você amanhã à tarde e lhe digo o que vamos fazer,
está bem? Quando você vem para Newport?

— Ainda não sei. Vou ficar sabendo amanhã, e depois ligo pra você.

Naquele instante, Jon entrou e Douglas levantou-se para sair.


Cumprimentou o Jon e disse que fora um prazer conhecê-lo.

Deu um aperto no ombro de Cris e disse:

— Eu ligo amanhã. Até!

Jon sentou-se e olhou a comida.

— Cadê os biscoitos da sorte?


Cris remexeu na sacola e tirou os dois biscoitos.

— Aqui.

Jon pegou os "pauzinhos" e se pôs a comer seu macarrão, o "de


sempre", com grande habilidade.

— Leia o seu primeiro, disse ele. Cris abriu o biscoito e leu:

"Você não reconhece o que tem diante de si."

— Besteira, comentou ela. O que tenho diante de mim? Um prato de


comida chinesa. Acho que sou capaz de reconhecer isso.

Jon fez que não com a cabeça, a boca cheia de miojo. Apontando os
pauzinhos para a Cris, falou:

— Não é o que está diante de você neste exato momento. É o que


estava sentado diante de você, e que já foi embora.

— O Douglas? perguntou Cris com olhar incrédulo. Não reconheço


quem é o Douglas? Claro que o reconheço. É simplesmente o Douglas.
Está sempre aí. O que eu deveria reconhecer?

Jon ergueu as sobrancelhas e fitou-a com o canto do olho. Não disse


palavra, mas continuou olhando-a enquanto enfiava os pauzinhos no miojo
e os levava à boca, chupando um fio.
"Não Estou Sonhando
com um Natal Branco"
4

Domingo, depois do culto, a família de Cris sentou-se para almoçar.


A mãe assara um frango. Fazia tempos que eles não se sentavam assim
para um almoço tradicional de família, no domingo. Todo mundo estivera
atarefado com diversas atividades, principalmente a Cris.

— Eu e seu pai temos uma comunicação a fazer, disse a mãe dela,


passando-lhe o espinafre. Conversamos com seus tios Bob e Marta ontem à
noite e eles nos convidaram para passar um "Natal branco" * com eles!

*
"Natal branco": um Natal com neve. (N.E.)
— O quê? exclamou Cris, deixando cair o garfo. Quer dizer que
vamos passar o Natal em Wisconsin? Não podemos! Tenho de trabalhar e
tem uma porção de outras coisas acontecendo. Por que não podemos ir de
novo para a casa de Bob e Marta em Newport como no ano passado?

— Cris, dê tempo para sua mãe explicar! ordenou o pai.

Ele era um homem grande, com cabelo e sobrancelhas cor-de-


ferrugem, mãos grandes, voz rude e coração terno.

— Não, não vamos ao Wisconsin, embora sua avó esteja querendo


muito. Talvez possamos ir no ano que vem. Este ano, vamos a um chalé
que o Bob e Marta alugaram nas montanhas, e passaremos seis dias na
neve.

— Seis dias! murmurou Cris. É quase metade do recesso!

A mãe de Cris, baixa, gorducha, de rosto bem simples, lançou um


olhar de desaprovação.

— Sim, seis dias. Vamos passar as festas juntos, a família toda. Seus
amigos e seu trabalho ainda estarão aqui quando voltarmos. Esta é a
primeira folga que seu pai vai tirar neste ano.

Cris conhecia o olhar de sua mãe. Calada, fitou a comida à sua


frente.

Esse vai ser o pior Natal de minha vida. Não vou nem conseguir
conversar com o Rick. Não vou conseguir ir ao "Desfile das Rosas" com a
turma do Douglas. Isso é horrível.
— Legal! exclamou David, o irmãozinho de Cris. Ainda temos o
trenó velho? Cris, lembra como a gente escorregava naquele morro perto
do campo do Sr. Jansen? Você não quer mais escorregar no gelo?

Cris lançou um olhar de desprezo disfarçado para o irmão de dez


anos.

— Mãee! A Cris olhou pra mim! reclamou ele.

— Cris! repreendeu o pai com voz firme.

— É que não estou interessada mais em andar de trenó, nem


escorregar no gelo, só isso.

E a mãe replicou:

— Pode ser que demore um pouco para você acostumar-se com a


idéia, mas vai ser um Natal maravilhoso.

— Está bem, disse Cris sem levantar os olhos.

Um ano atrás ela teria tentado reclamar e dar um jeito de não ir.
Agora sabia que era melhor concordar com os planos deles, mesmo que
não fosse seu maior desejo.

— Tente melhorar sua atitude, aconselhou a mãe.

— Eu estou com uma atitude ótima, interveio David. Que dia vamos?

O garoto se parecia cada vez mais com o pai.

— Quarta-feira, respondeu a mãe. Estou contente por você estar


feliz, querido.
— Eu não posso ir na quarta, interrompeu Cris, enquanto a mãe
elogiava o David. Tenho de trabalhar na quarta. Combinamos de trabalhar
um dia inteiro na semana dos feriados, e o meu dia é a quarta-feira.

— Troque com alguém, disse seu pai. Descubra quem está


trabalhando na segunda e vê se consegue trocar com ela. Aí você pode
ajudar sua mãe a arrumar as malas na terça.

— Mas pai, não posso trabalhar na segunda! Já tenho um programa


para esse dia.

— Que espécie de programa?

— Com a Katie e mais algumas pessoas. Nós íamos andar de trenó


na neve. Eu ainda não tinha pedido para vocês, mas ia pedir.

Os pais se entreolharam com aquele tipo de expressão que só os pais


têm.

— Você acabou de dizer que não queria andar de trenó comigo,


interveio David de novo.

E batendo exageradamente na testa, continuou:

— Mulheres! Não se pode viver com elas, não se pode viver sem
elas!

O pai sorriu e Cris olhou para a mãe em busca de apoio.

— Mãe, você ouviu o que o David disse? Como deixa que ele fale
uma bobagem dessas? Eu nunca pude falar esse tipo de coisa quando tinha
a idade dele.
— David! advertiu o pai, abanando a cabeça em sinal de
desaprovação.

Cris achou que o pai parecia estar rindo por dentro.

— Está certo, escutem aqui, disse a mãe, procurando acalmar as


coisas. Por que não liga para o trabalho e vê se consegue trocar o dia? É o
primeiro passo. Depois disso a gente resolve sobre essa saída com o grupo
para passear de trenó.

— Tudo bem, replicou Cris, suspirando e pediu licença para sair da


mesa.

— Mas você não terminou, terminou? Quase não comeu nada.

— Não estou com fome. Me dão licença?

— Está bem, disse a mãe. Vá ver o que consegue fazer sobre a


mudança do seu dia de trabalho.

Cris telefonou para o Jon e explicou-lhe a situação. Pela barulheira


que vinha de lá dava para notar que havia muita gente na loja. Talvez não
fosse a melhor hora para conversar, pensou ela.

— Amanhã, disse Jon. Você pode trabalhar amanhã. Preciso de você


aqui das dez às seis. Até lá! e desligou antes que ela tivesse a oportunidade
de perguntar sobre outras opções.

Lá se foi a minha segunda-feira...

Voltando para o quarto, Cris fechou a porta e se jogou sobre a cama


ainda desfeita, onde podia fazer beiço sem que os outros vissem.
Por que essas coisas acontecem comigo? A Katie nunca passa por
isso. Ela faz o que der na telha. Meus pais são severos demais! Agora não
vou conseguir conversar com o Rick. E todo mundo vai se divertir amanhã
enquanto eu tenho que trabalhar. Isso não é justo!

O telefone tocou, e um minuto depois sua mãe gritou:

— Cris, é para você.

Ótimo! Provavelmente é o Douglas querendo falar dos planos para


amanhã e vou ter que lhe dizer que não poderei ir.

— Alô?

— Olá, sou eu! era a voz de Katie. Adivinhe quem acaba de me


telefonar?

— Glen?

— Não, ele já foi faz tempo para o Oregon. O Rick.

— Rick? O meu Rick? Quer dizer, o Rick Doyle?

— Seu Rick?

— Foi sem querer. Sabe o que quero dizer, explicou Cris, e, mudando
de assunto, perguntou: E então, o que ele queria com você?

— Disse que tentou falar com você mas o telefone estava ocupado,
respondeu em tom defensivo.

— Só por três minutos.

— O que há com você? Por que está tão irritada? Foi o Rick? Está
zangada porque ele telefonou pra mim?
— Não, não é isso. Eu nunca pensaria que ele ia ligar pra você, mas
ele tem direito de conversar com quem quiser. Não foi isso que me deixou
irritada.

— Então o que foi? Eu lhe fiz alguma coisa?

— Não, é a minha família. Fizeram planos de passar o Natal nas


montanhas e vamos ficar lá seis dias, a partir de quarta-feira. Eu não queria
ir, mas não tenho outra escolha.

Falava baixinho para ninguém na casa escutar.

— Não vai ser tão ruim assim, Cris. Provavelmente vocês vão se
divertir bastante. Vai estar de volta para o Ano Novo, não vai? O Rick disse
que vamos todos ao "Desfile das Rosas" e dormiremos na rua. Estou numa
animação! Sempre quis fazer isso!

— Vou estar de volta até lá, mas não sei se consigo convencer meus
pais a deixar que eu vá, principalmente com essa idéia de dormir na rua.

— Você ainda não pediu, não é mesmo?

— Ainda não.

— Tem que começar a pedir esse tipo de coisa, Cris. Um dia desses
eles vão lhe fazer uma surpresa e dizer "sim" a algum pedido seu. Mas se
você não pedir, nunca saberá. Escute aqui. Tenho um plano. Fale primeiro
do passeio de trenó amanhã. Foi sobre isso que o Rick ligou. Resolveram ir
ao Big Bear, e vamos nos encontrar na casa dele às oito. Vai ser o dia todo.

— Não posso ir.

— Como sabe? Você ainda não pediu.


— Pedi, mas eles não me deram resposta, pois amanhã tenho de
trabalhar das dez às seis. Tive de trocar a minha quarta-feira, porque vamos
às montanhas na quarta. A única opção que o Jon me deu para trabalhar foi
amanhã.

— Ah!

— Está vendo? Não tem jeito! Você consegue fazer tudo que deseja
sempre que quer, e eu nunca consigo nada.

— Cristina Juliet Miller, não acredito que você tenha falado isso!
Quem foi a Palm Springs e Newport Beach e ao Havaí? Foi a Katie
Weldon? Acho que não! Quer tentar adivinhar?

Cris continuou calada.

— A única coisa interessante que já fiz em toda a minha vida foi ir à


lagoa Tahoe com o clube de esqui no Dia de Ação de Graças. Agora, de
repente, tenho uma oportunidade de visitar San Diego e Big Bear e você
fica com raiva.

— Não estou com raiva.

— Então está com inveja. Por quê? Porque seus amigos estão sendo
agradáveis comigo e me convidam! Isso é tão difícil assim de aceitar?

— Não, não é nada disso! Estou contente por você estar conhecendo
alguns dos meus amigos da praia. São uma turma superlegal e sei que vão
gostar de você. Só que você está participando enquanto eu não estou.

— Não é de propósito, Cris. Nós duas fomos convidadas. Só que


você não pode ir.
— É isso que me chateia. Eu queria mais liberdade. Queria que meus
pais confiassem mais em mim. Não quero estar presa ao emprego. E acima
de tudo, não quero todas essas responsabilidades.

Katie ficou em silêncio um instante e em seguida disse:

— Em suma, você quer ser tratada como adulta, enquanto ainda tem
liberdade de agir como criança.

— É. Mais ou menos isso. Dá certo pra você.

— Às vezes. Talvez seja o que acontece quando a gente é a caçula.


Provavelmente é mais difícil pra você, por ser a mais velha. Você é a
primeira e tem de "romper as barreiras". Para o David vai ser mais fácil.

— Nem me fale do David. Ele pode dizer as piadinhas mais


estúpidas. Se eu tivesse dito certas coisas na idade dele, meus pais teriam
me mandado de castigo para o quarto.

— Como eu lhe disse, é mais fácil para os filhos mais novos...

— Mas não é justo.

— E o que é justo na vida?

— Sei lá. Parece que não existe muita justiça.

— Deus é justo, disse Katie com seriedade. As coisas que nos


acontecem por vezes não nos parecem justas da nossa perspectiva, mas, no
final, Deus acerta tudo quando a gente deixa os resultados com ele.

— Está certo.
— Vamos lá, Cris! Saia dessa! Você precisa ajustar sua atitude,
menina. Depressa!

— Muito obrigada. Agora você está falando que nem minha mãe.

— Então apague da memória. Você não precisa ajustar sua atitude.


Precisa é de uma amiga. Acontece que sou essa amiga.

Cris deu um sorriso que tomou o lugar do bico de antes. Como a


Katie não pôde ver a mudança dela pelo telefone, continuou a falar-lhe de
amizade.

— Lembra? Somos tesouros peculiares, eu e você. Temos que ficar


juntas. E eu resolvi que, já que você tem de trabalhar amanhã, também não
vou ao Big Bear.

— Não, Katie, você deve ir. Vá, sim! Com sinceridade. Você deixou
de ir a San Diego por minha causa e aquilo acabou sendo um erro. Não
perca essa oportunidade. Vá e divirta-se.

— Tem certeza?

— Claro. Absoluta. Mas você me faz um favor?

— Qualquer coisa.

— Faça uma enorme bola de neve e jogue na cara do Rick por mim!

— Nossa! Estamos ficando um pouco nervosas, não estamos? Pensei


que o Rick não tivesse mais poder sobre os seus sentimentos.

— Está certo. Esqueça. Vá e divirta-se, e esqueça que eu falei


qualquer coisa sobre o Rick. Finja que eu nem o conheço.
— Fingir que não conhece a quem? Rick? Que Rick? Não me lembro
de alguém ter mencionado um cara com esse nome.

Cris deu uma risada.

— Obrigada, Katie.

— Não, eu é que agradeço por você me convidar para participar do


seu grupo.

Cris estava prestes a dizer que a idéia de convidar a Katie para o


grupo dos "Amigos de Deus" fora do Rick, mas aí estaria mencionando
mais uma vez aquele nome, e tinha um pouco de vergonha na cara.

— E vamos juntas ao "Desfile das Rosas". Você vai ver. Eu ligo


amanhã quando voltar. Se você ainda estiver no trabalho, dou uma passada
por lá.

— E o seu trabalho? Pensei que você também tivesse de trabalhar


esta semana.

— E vou. Mas como trabalhei todas as tardes e noites da semana


passada, me deram domingo e segunda de folga.

Claro, murmurou Cris consigo, após desligar o telefone. Katie não


tem problema em folgar na segunda! Ultimamente, ela é que está com a
bola toda. Por que Deus está prestando atenção especial a ela e me
deixando de lado? Não que ela não mereça, mas eu também não mereço
ser feliz?

Até que não estava tão ruim o serviço na segunda-feira. Cris passou a
maior parte da manhã nos fundos, marcando preços das ofertas especiais de
Natal. Era um trabalho fácil, e ela não tinha de atender aos fregueses. Mas
ainda sentia um pouco de autopiedade, ao pensar que os amigos estavam se
divertindo enquanto ela trabalhava.

Tinha levado um lanche de casa e continuou na sala dos fundos


quando Jon lhe disse para fazer o horário de almoço. Sentada à mesinha
com o sanduíche de Amendocrem e mel, Cris pegou uma revista na pilha de
correspondência do Jon.

Sem perceber, tinha apanhado uma revista sobre surfe. A capa


anunciava: "Este mês, grande torneio de Waimea." Havia uma foto de uma
onda gigante com no mínimo uma dúzia de pranchas de surfe
miniaturizadas. Era como se um imenso punho azul estivesse prestes a
enroscar os dedos e esmagar os surfistas, que mais pareciam formigas.

Abriu no artigo de capa e examinou as fotos e os detalhes da


competição de surfe que ocorreria naquele mês, na costa norte de Oahu.

Ted. Ele está lá neste momento! O Douglas disse que era nesta
semana. O Ted está surfando em ondas como esta!

Voltou à capa e tentou imaginar o Ted na sua prancha cor-de-laranja,


nas garras da assustadora onda-monstro. Era de dar medo. Ele poderia
morrer, ao tentar pegar uma onda dessas. Poderia morrer, e passariam
semanas antes que soubessem.

Ó Deus, guarde-o! Proteja o Ted e não permita que se machuque.


Quero que o Senhor o traga de volta! Mas não o faça por mim. Faça o que
for melhor para o Ted. Mas guarde-o, proteja-o, por favor!
Cris Fotografada
5

Cris olhou o relógio de parede que havia atrás do balcão.

Seis horas. Hora de sair daqui. Onde será que o Jon se meteu? Não
posso deixar a caixa enquanto ele não chegar. Será que devo tocar a
campainha ou só esperar? Ele sabe que eu saio às seis.

Havia dois fregueses na fila. Resolveu registrar depressa as compras


dos dois, esperando que mais ninguém entrasse na fila. O primeiro estava
levando um aquário grande, e Cris teve dificuldade para enfiá-lo na sacola.

— Está seguro? perguntou ao colocá-lo nos braços do freguês.

— Agora sim. Muito obrigado.

— Às ordens. Feliz Natal!

— E um feliz Natal para você, replicou ele.


O freguês seguinte jogou um saco de painço sobre o balcão e
murmurou:

— Você conseguiu demorar bastante.

Cris o reconheceu. Era um homem que sempre estava comprando


alguma coisa ali, mas parecia gostar de reclamar. Ela e Jon referiam-se a
ele como "Oscar Rancudo".

Apertando rapidamente os botões da caixa, Cris virou-se para ele


com o melhor dos sorrisos e disse:

— São $5.78, por favor.

O cliente deu-lhe uma nota de cinco e uma de um e remexeu nos


bolsos.

— Espere aí. Tenho três moedas de um centavo aqui em algum lugar.

Mas só encontrou duas moedas e um botão.

— Espere um pouco, disse ele, ainda mais irritado.

Cris lembrou que tinha uns trocados no bolso do seu jeans. Enfiou a
mão e achou uma moeda, que deu ao "Oscar" com um sorriso.

— Aqui, eu tenho um centavo para o senhor.

Ele fez cara feia mas parou de procurar. Cris fez rapidamente o troco
e colocou o painço num saquinho. Entregou-lhe com mais um sorriso e
disse:

— Feliz Natal, Oscar!

Ah não!
Entrou em pânico quando percebeu o que havia dito. O homem
fungou e saiu do shopping como quem não ouvira ou não se importava.

Cris sentiu o rosto quente, e virou-se para o freguês seguinte, pronta


para registrar a compra. Para sua surpresa, era o Douglas.

— Olá! Nem vi você entrar. Como foi o passeio de trenó no Big


Bear?

As faces de Douglas estavam avermelhadas, por efeito do vento.


Estava vestido com uma camisa de flanela xadrez vermelha e macacão de
jeans que lhe davam um jeito de criança que esteve brincando na neve o
dia todo.

— Radical! Nos divertimos bastante. Todo mundo está na pizzaria


aqui perto. Katie disse que você saía do trabalho às seis e pensei em
arriscar e ver se você podia vir comer uma pizza conosco.

— Ela adoraria, disse Jon, chegando atrás do balcão e pegando o


telefone. Sim, disse para o fone, temos quatro peixes lutadores japoneses e
estão com preço promocional até o Natal.

Cris sorriu para o Douglas e disse:

— Parece que meu chefe disse que tenho de ir embora. Vou buscar
minhas coisas. Volto já.

Passou pelo Jon e foi ao fundo buscar a bolsa. O que realmente


precisava era ligar para seus pais para saber se poderia ir, e o telefone dos
fundos lhe daria maior privacidade. Assim que teve certeza de que o Jon
havia desligado, Cris ligou para sua casa. Sua mãe atendeu.
— Oi! Estou saindo agora do serviço, e queria saber se podia comer
uma pizza com a Katie e mais alguns amigos.

Pronto. Não foi tão difícil assim. Por que eu acho tão difícil per-
guntar se posso sair? O que será que ela vai dizer? Pelo menos foi ela e
não o pai que atendeu.

Sua mãe perguntou onde estaria e com quem; aí disse:

— Parece que seria muito bom, querida. Você volta para casa até as
nove?

— Sim. Então, tudo bem?

— Claro, divirta-se. Tranque o carro e não dê carona para ninguém.

Cris desligou e foi até o canto da sala, tirou um espelho e deu uns
retoques rápidos no rosto. Achou maravilhoso o Douglas havê-la
convidado.

Talvez agora tivesse oportunidade de conversar com o Rick. Se não


pudesse ser na pizzaria, talvez ele sugerisse encontrá-la no dia seguinte,
antes que ela viajasse para as montanhas. Não queria passar o Natal sem
resolver o relacionamento. Guardando o espelho e pegando o casaco, Cris
foi encontrar-se com o Douglas na frente. Ele e Jon riram juntos.

— Meu carro está estacionado daquele lado, disse ela, apontando


para trás. Quer que o encontre na pizzaria?

— Por que não vamos na minha caminhonete? Estacionei bem na


entrada do estacionamento. Depois eu a trago até aqui para pegar o seu
carro.
— Tudo bem, disse Cris, percebendo claramente o olhar de
aprovação do Jon.

— Feliz Natal, Jon! disse Cris para o chefe no momento em que um


freguês chegava ao balcão. Eu o vejo no ano que vem!

— Certo, você só trabalha no sábado depois do Ano Novo. Espere


um pouquinho só.

Ele somou e registrou a venda que fazia naquele instante para uma
freguesa e entregou-lhe o troco. No momento em que a mulher se afastou
do balcão, Jon tirou um envelope da caixa registradora e entregou-o a Cris.

— Que nunca se diga que sou um "Tio Patinhas". É seu bônus de


final de ano, Cris.

— Muito obrigada, Jon!

Ela sentiu-se sem graça por não ter comprado nada para ele de
presente de Natal. Mesmo uma caixa de biscoitos teria sido bom.

— Ah! E só para você ficar feliz, disse Jon pigarreando.

E olhando em volta para certificar-se de que ninguém o escutava a


não ser a Cris e o Douglas, concluiu:

— Tenha uma feliz comemoração do nascimento do seu Deus.


Totalmente surpresa, Cris olhou para o Douglas e depois para o Jon.

— Muito obrigada, Jon. E que você tenha uma feliz celebração do


nascimento do meu Deus!

Aproximou-se mais dele, tocou-lhe o braço e disse baixinho:


— E que ele se torne o seu Deus também!

Jon sorriu-lhe em sinal de reconhecimento. Ela acenou e saiu do


shopping, repleto de gente, com o Douglas a seu lado e o olhar de Jon
seguindo-os.

— Você é surpreendentemente irresistível! disse Douglas.

— O quê?

— Para o Jon. Existe algo de misterioso e muito atraente numa


pessoa que conhece a Deus e não esconde isso. Dá para notar que você e o
Jon já conversaram sobre Deus, e ele sabe que você é amiga de Deus. Isso
se torna irresistível para as pessoas que não conhecem a Deus.

— Nunca pensei nisso dessa forma. Jon sabe o que penso sobre o
relacionamento com Deus. Sabe também que oro por ele. Acho que isso o
deixa meio nervoso.

— Radical! exclamou Douglas enquanto abria a porta da camioneta


amarela de tração nas quatro rodas.

Cris sorriu e sentou-se enquanto Douglas corria para o outro lado e


se sentava ao volante.

— Que foi?

— Não acredito que você ainda diga "radical". É uma das primeiras
coisas que notei em você quando nos conhecemos na praia. Para você, tudo
era "radical" ou "massa".
Ele riu-se. Tinha uma risada contagiante, como se viesse de um
ribeirinho borbulhante que corria dentro dele, e quando se extravasava
comunicava uma sensação de frescor a todos quantos a ouviam.

— Muitas coisas são radicais, quando se pensa nelas. É porque Deus


é radical. Não conheço palavra melhor.

Cris sorriu. Era bom estar na companhia de um velho amigo. Dava-


lhe um sentimento de segurança, de contentamento.

— E quem foi com a turma hoje?

— Sua amiga Katie, Rick, Helen, Trícia e um cara chamado Mike,


amigo do Rick. Divertimo-nos demais! A Katie é muito divertida. Por que
você nunca a levou para Newport?

— Nunca deu certo. Foi bom ela ter podido ir com vocês. Parece que
se encaixou direitinho na turma.

— E foi mesmo. Ela tem um senso de humor fantástico!

As palavras do Douglas provaram ser verdade no momento que


entraram no restaurante e viram a turma numa mesa grande nos fundos.
Katie tinha algo nas orelhas e o resto da turma rachava de rir com suas
gracinhas.

Quando Douglas e Cris se aproximaram, esta viu que Katie havia


tirado os fundos de dois copos de isopor e colocado um copo em cada
orelha. Com sua voz de ajudante de Papai Noel, ela estava tentando
convencê-los a sorrir para a máquina fotográfica.
— Olá! disse Douglas, cumprimentando o grupo alegre. Rick e Mike
quase nem notaram. Trícia e Helen, duas das amigas de Cris da praia de
Newport, pareciam contentes de vê-la, mas estavam tão ocupadas,
gargalhando, que apenas se ajeitaram mais no banco para que ela se
sentasse e assistisse ao show. Douglas puxou uma cadeira para a cabeceira
da mesa.

Katie continuou, sem constrangimento algum, aparentemente sem


perceber como estava ridícula. Cris jamais faria uma coisa dessas.

— Ah! fez Katie dando um gritinho esganiçado e dirigindo-se a Cris.


Minha assistente de guarda-roupa. Me empreste os seus brincos?

Com todos os olhares sobre ela, Cris tirou os brincos. Eram


pequeninas caixinhas de presente, de cor verde, com fitinhas vermelhas.
Havia minúsculos sinos que tilintavam quando ela mexia a cabeça.

Entregou-os a Katie com certa relutância. Não eram de grande valor,


mas ela os comprara com seu próprio dinheiro e temia que Katie talvez
inventasse de desembrulhar os "presentes" só para dar risadas, e aí seria o
fim de seus brincos.

— Perfeito, falou Katie, com uma vozinha infantil, e colocando os


brincos na beira dos copos de isopor. Pendurou-os em suas orelhas de
anãozinho e os sinos tilintavam quando ela balançava a cabeça. Estava tão
engraçada, que a própria Cris caiu na gargalhada.

De repente, sem mais nem menos, apareceu um rapaz do colégio


delas e tirou uma fotografia de Katie. Cris, Katie e Rick o reconheceram.
Era o Fred, o fotógrafo do anuário do colégio.
— Fred! exclamaram em uníssono.

— Excelente! Acho que o jornal da escola vai querer usar este


instantâneo na capa de janeiro. Já imagino a manchete: "O que fiz nas
férias de Natal", Katie Weldon, a ajudante de Papai Noel.

— Me dê essa câmara! gritou Katie do seu cantinho. Quero que


destrua o filme! Pegue-o pra mim, Rick!

Rick ficou de pé e conversou em voz baixa com o Fred. Este sorriu e


fez que "sim" com a cabeça. Antes que Cris se desse conta do que estava
acontecendo, Rick sentou-se perto dela, e, quase sentado no seu colo,
colocou o braço em seu ombro e chegou o rosto junto do dela. Nesse
instante, Fred bateu a foto e saiu correndo.

— Rick! gritou Cris, empurrando-o do banco. Ele vai colocar a foto


no anuário!

Rick se levantou e voltou-se para o seu lado, oposto ao cubículo da


mesa.

— É isso que quero, "de matar".

Cris ficou furiosa. Queria ralhar com o Rick naquele momento. Ele
não tinha o direito de forçá-la como se fosse seu dono. Todo mundo a
olhava, esperando sua reação. Mesmo o Mike, que ela ainda não conhecia,
parecia divertir-se com a situação.

— Vamos lá, disse Douglas, agarrando de repente o pulso de Cris e


fazendo-a levantar-se. Nós ainda não pedimos pizza. Gosta de lombo
canadense com abacaxi?
Cris levantou-se e deixou o Douglas conduzi-la ao balcão. Lágrimas
lhe afloraram aos olhos, e toda a sua ira pelo que Rick fizera veio à tona.
No momento em que estavam longe do grupo, Douglas colocou as duas
mãos nos ombros dela, e perguntou baixinho:

— Você está bem?

Ela piscou os olhos para desfazer as lágrimas, olhou para o amigo e


respondeu que achava que sim.

— O Rick gosta muito de você. Sabe disso, não sabe, que uma moça
crente e espiritual é irresistível? Você é absolutamente irresistível para ele.
Ele não sabe como agir perto de você porque você é muito diferente das
outras garotas que ele conhece. Não teve a intenção de ofendê-la. É
verdade!

— Eu queria acreditar nisso!

Douglas passou um dedo no rosto dela para limpar uma lágrima.

— O problema é que vocês dois precisam conversar para acertar as


coisas. Eu sei que você deve se sentir muito mal por não ter resolvido esse
relacionamento. Como eu convivi com o Rick esse semestre, sei que ele
estava se corroendo todo. Vocês dois precisam conversar.

— Eu queria, mas ainda não houve jeito. Já lhe disse que quero
conversar, mas parece que ele não consegue marcar uma hora para isso.
Era pra gente conversar hoje.

— Talvez ainda possam, disse o Douglas, dando-lhe um abraço de


irmão. Relaxe e deixe tudo com o velho "tio" Douglas.
Muito Obrigada,
Tio Douglas!
6

Quando Cris e Douglas voltaram para a mesa, as duas primeiras


pizzas tinham chegado e todo mundo estava comendo como se nada tivesse
acontecido. Katie tirara as orelhas grandes, e os brincos, intactos, estavam
sobre um guardanapo no lugar da Cris.

— Pena que você não pôde estar conosco hoje, disse Helen a Cris.
Nos divertimos tanto! Esses caras são malucos!

— Ah, sei! disse Rick, pegando mais uma fatia de pizza. E vocês três
não pareciam umas doidas, gritando freneticamente ao deslizarem por entre
as árvores?!

Helen, magrinha e loira, riu-se e descreveu para Cris a corrida sobre


as escarpas nevadas. Tinham saído do caminho e ido em direção a um
arvoredo. Afinal conseguiram manobrar e passar entre as árvores e
chegaram ao pé do morro sem um arranhão sequer.
Entre uma fatia de pizza e outra, o grupo tagarelava, comparando
histórias aloucadas e revivendo os eventos do dia. Parecia que todos
haviam se divertido muito.

Cris sentia que estava por fora. Finalmente chegou a pizza que ela e
Douglas haviam pedido. Ouvindo todo mundo rir, deu uma dentada no
queijo quente e derretido que lhe queimou o céu da boca.

Pegando um copo de água, bebeu depressa. Só ajudou um pouco. O


céu da boca ainda parecia em chamas. Ninguém notou o que havia
acontecido, o que fazia com que se sentisse ainda pior. Se não estivesse ali,
a festa teria a mesma animação.

Então começaram as brincadeiras. Rick chamou Katie de "Veloz", e


todos riram. Cris não sabia por que achavam aquilo tão engraçado. Na
segunda vez que a chamou de "Veloz", Katie enrubesceu.

Dava para notar que Katie estava adorando a atenção. O nome tinha
algo a ver com uma corrida que Rick e Katie tinham feito juntos sobre uma
bóia.

Agora Cris realmente estava sentindo-se ferida. Rick a chamara de


"olhos de matar" durante mais de um ano. Era o apelido que ele lhe dera, e
parecia que ele não encontrara ninguém mais tão querida assim para dar-
lhe um nome especial. Agora não. Agora ele dera aquele apelido a Katie.

Passaram a conversar sobre os planos para o "Desfile das Rosas".


Rick anunciou que levaria um hibachi * para preparar o lanche, uma caixa
de isopor e seu saco de dormir de edredom.

*
Hibachi: mini-churrasqueira japonesa. (N. da T.)
— As garotas ficam encarregadas de levar os cobertores a mais e os
acompanhamentos: batatinhas, chips, chocolates, etc, disse ele.

— Brownies! disse Douglas, concordando. Que as meninas tragam


bastante brownies!

— E aí, "Veloz"? perguntou Rick a Katie dando um dos seus grandes


sorrisos. Acha que pode fazer mais daqueles brownies de matar?

Ótimo. Meu apelido agora foi mudado para brownies e a "Veloz" ali
do lado está recebendo os elogios pela última fornada que fizemos, que
não teria um pedacinho sequer de chocolate se eu não tivesse interferido!

Quanto mais o grupo conversava, mais os planos ficavam


empolgantes. Cris realmente queria ir. Teria de dar um jeito de convencer
os pais.

Douglas se inclinou para ela e perguntou-lhe se precisaria de uma


carona.

— Ainda não sei. Primeiro tenho de convencer meus pais a me


deixarem ir, explicou, sorrindo para o Douglas, e apreciando seu interesse.

— Quer então que eu fale com eles? ofereceu-se ele. Posso lhes
contar como tudo foi bem na última vez que fomos.

— Obrigada. É melhor eu lhes falar primeiro. Depois lhe digo a


reação deles. Vamos passar alguns dias num chalé nas montanhas na
semana que vem. Eu ligo quando voltar.

— Num chalé? Parece um negócio radical!

— É, deve ser.
Vendo a sinceridade de Douglas, Cris percebeu o quanto estava
sendo chata.

Você está agindo como criança, Cris! Saia dessa! Divirta-se com
eles em vez de sentir pena de si mesma!

Ela estava começando a se livrar dos sentimentos negativos quando


Helen disse:

— Detesto quebrar esse clima bom, pois o dia foi tão maravilhoso!
Mas eu e Trícia temos de ir embora, pois nossa "viagem" é longa.

Aos poucos foram saindo e Douglas disse:

— Mike, você pode vir comigo. E Rick, você se importa de deixar a


Cris no shopping? O carro dela está lá.

Rick se posicionou perto da porta, abriu-a e ficou a segurá-la com o


braço bem alto para que as meninas passassem por baixo dele. As três
primeiras passaram com risadas e sorrisos. Mas Cris gelou-se. Não queria
entrar no jogo. Uma lembrança nítida deixou-a sem ação.

Ela estivera nessa mesma pizzaria antes com Rick e Katie, cerca de
um ano atrás, num domingo após o culto. Naquela vez também Katie tinha
sido o centro das atenções. Cris lembrou-se de que estivera quieta e
absorvida pelo Rick. Ao sair, passara sob o braço dele na porta e olhara
para cima, fitando seus olhos castanhos. Teve a impressão de que se
derreteria. Ele a fascinava profundamente.

Agora ela temia passar por essa ponte imaginária, para que ele não
lançasse uma rede invisível em seu coração e ela se deixasse novamente
prender por ele. Ele percebeu claramente sua recusa silenciosa, pois olhou
firme para ela e soltou a porta, fechando-a na cara da Cris. Ela abriu a
porta com raiva e saiu, juntando-se aos demais no estacionamento. Não
deixaria o Rick afetá-la desse jeito.

Por que ele não concorda em que tenhamos um relacionamento


intermediário? Por que tem de ser tudo ou nada?

— Então você leva a Cris de volta ao shopping para pegar o carro


dela? repetiu Douglas para o Rick.

— Claro, concordou ele, fitando a moça por cima do ombro e


jogando-lhe as chaves do carro. Entre!

Ele deu a ordem de forma leve, mas a mensagem era clara: Rick
tinha de estar no controle das coisas.

Será que ele tem alguma idéia do quanto isso é insultante? Será que
está fazendo isso comigo de propósito? Ou o Douglas está certo, e o Rick
realmente se interessa por mim, mas não pode demonstrar isso, já que
terminamos o namoro?

Obedientemente, ela destrancou a porta do carro e sentou-se no


confortável banco do passageiro do Mustang vermelho do Rick, que já
conhecia bem. Colocou a chave na ignição e olhou pelo pára-brisas, vendo
o Rick despedir-se de Helen e de Trícia. Depois abraçou Katie.

As três meninas chegaram até a janela do lado da Cris e lhe fizeram


sinal para abaixar o vidro. Absorvida demais no confronto com o Rick ela
tinha se esquecido de despedir-se das amigas.

Trícia estendeu os braços pela janela aberta e deu-lhe um abraço.


— Ligue pra mim, está certo? Helen acenou um adeus, dizendo:

— Estou aflita para a gente se encontrar no Ano Novo! Aí vamos pôr


a conversa em dia, tá bom?

Cris acenou um adeus enquanto saíam. Katie abriu a porta e disse:

— Chega mais pra lá que eu vou atrás.

Como uma onça protegendo seu território, Cris nem se mexeu. Fitou
a amiga desprovida de desconfiômetro e com um rosnado baixo disse:

— Por que você não vai com o Douglas e o Mike?

Katie ficou boquiaberta. Então, percebendo a situação, disse:

— Sabe, adoro ficar sentada no banco da frente daquela camioneta,


comendo sanduíche entre dois "gatos" lindos, as pernas delicadamente
enroscadas naquele câmbio. Muito melhor do que andar no banco de trás
dessa banheira.

Chamou os dois rapazes que se despediam:

— Ei Douglas! Espere aí! Sou o Amendocrem!

Rick aproximou-se do seu Mustang com passos largos, expressão


severa. Cris sentiu o coração batucar. Talvez não fosse uma boa idéia,
afinal.

Ele entrou e bateu a porta. Sem dizer palavra, pegou a chave. Já sabia
que Cris a colocara na ignição, como fizera tantas vezes quando
namoravam.
O carro deu um arranco e Cris segurou-se, enquanto Rick saía a toda
do estacionamento. Olhando para o Douglas, ele buzinou e acenou ao
ultrapassá-lo. Cris notou um carro pequeno entrando no estacionamento
pelo lado em que eles saíam.

— Cuidado! gritou.

O outro carro virou-se para a esquerda e Rick jogou o seu para o lado
direito. Os pneus cantaram. Com mais um solavanco, ele virou-se e
acelerou, saindo do estacionamento. Mudou duas vezes de pista, e afinal
parou em um sinal ao lado do shopping.

Cris ficou muda. Ouvia a respiração pesada do rapaz e sabia que ele
estava furioso. Sem dizer nada, foi até o lugar onde o carro de Cris estava
estacionado. Havia uma vaga ao lado dele. Com uma cantada feia de
pneus, Rick entrou nela, pisou no freio e desligou o motor, tudo num só
instante.

De repente ficou tudo silencioso. Muito silencioso. Horrivelmente


silencioso.

A vontade de Cris era sair correndo do carro, e entrar em seu próprio


veículo, onde estaria segura. Aí ela também poderia fazer os seus pneus
cantarem quando saísse em disparada.

Mas não podia fazer isso, porque chegara o momento que ela
esperava havia alguns meses. Uma oportunidade de conversar com o Rick.
Não sabia que iria acontecer desse jeito, nem que as emoções dos dois
estariam tão abaladas quando finalmente se comunicassem. Desse modo,
não seria bom conversarem. Não era o momento certo. Ela deveria esperar
uma ocasião melhor.

— Você queria conversar? perguntou Rick. Sobre o que você quer


falar?

Cris sentia-se péssima.

— Sobre nós, sussurrou. Mas não assim. Não quero conversar


estando nós dois tão irritados.

— Eu não estou irritado, retrucou ele com rudeza. Você quer


conversar, desembuche!

— Eu... eu não sei se consigo...

Ela sentia a garganta inchada e não conseguia falar mais nada. Com
enorme esforço, reprimiu as lágrimas que queriam descer. Por alguns
minutos guardaram silêncio. Cris não ousava nem se mexer, por temer que
as lágrimas jorrassem. Rick deu um suspiro profundo e disse, numa voz
mais calma:

— Eu vi o carro que vinha vindo, Cris. Eu não ia trombar.

— Eu sei. Desculpe.

— Você não confia em mim. Nunca confiou.

— Isso não é verdade.

— É sim. Você não confia em mim, e tem tido medo de mim desde o
dia em que nos conhecemos. Nunca quis de fato aprofundar nosso
relacionamento.
Cris ficou a imaginar que resposta daria. De certa forma, era verdade.
O jeito dominador de Rick assustava-a simplesmente por ele ser o Rick.
Como lhe explicar isso?

— Pode falar. Confesse que nunca houve um lugar para mim no seu
coração.

Cris abanou a cabeça, procurando as palavras certas. Rick se


impunha tão vigorosamente! Ele a fazia sentir coisas que nunca sentira
com o Ted. Ted nunca a encurralaria num canto assim. Por que ela não
conseguia conversar com o Rick da maneira como falava com o Ted? Ted
entendia seus sentimentos.

— Você nunca me deu uma chance, não é mesmo? Vamos, diga!


Você não confia em mim.

— Não é verdade. Eu confio em você, Ted.

Tudo gelou.

Ted! Não! Eu o chamei de Ted! O que foi que eu fiz? O Rick jamais
entenderá!

Rick endureceu o queixo e se afastou dela como se tivesse levado um


tapa na cara. Calmamente, abriu a porta do carro e com passos firmes,
iguais, caminhou para o lado de Cris e abriu a porta. Parou a poucos
centímetros dela, e disse:

— Eu sou o Rick, não o Ted.

Chocada por ter cometido um erro tão grave, ela seguiu as instruções
silenciosas do Rick. Saiu do carro dele e entrou no seu.
— Eu... eu sei, Rick. Desculpe. Hoje no trabalho chamei um senhor
de Oscar, explicou.

A verdade é que nada que dissesse iria melhorar a situação. Ele agiu
como se não a tivesse escutado. Como se dominasse a situação, disse:

— Enquanto você não tirar o Ted da sua vida, jamais haverá nela
espaço para mim ou outro cara qualquer.

Ele fechou a porta do carro de Cris e foi para o seu próprio carro e
entrou, ligando o motor em seguida. Antes que ela pudesse impedir, ele
arrancou depressa e, com as rodas cantando de novo, foi embora.

A cabeça de Cris estava a mil, pensando no que deveria fazer. Por um


lado, tinha vontade de segui-lo, forçá-lo a escutá-la. Queria achar um jeito
de fazê-lo entender e perdoar-lhe a gafe. Por outro lado, queria desistir de
vez do Rick e nunca mais fugir dele, nem correr atrás.

Com mãos trêmulas, ela dirigiu com cuidado até sua casa, receosa de
suas próprias emoções. O que mais a assustava era que não conseguia
chorar. A dor era demais para lágrimas.

Talvez o Rick estivesse com a razão. Talvez ela estivesse segurando


demais os sonhos com relação ao Ted. Como poderia tocar a vida em
frente, se ela estava repleta de lembranças do Ted? Antes de chegar a casa,
Cris já sabia o que faria.

Entrou pela porta da frente, cumprimentou os pais e foi até a


garagem onde procurou, e achou, uma caixa do tamanho certo. Sorridente e
dizendo "boa noite" aos pais, foi para seu quarto, onde se trancou.
Arrancou o pôster que havia atrás de sua porta. Era do Havaí. Era
uma certa ponte memorável sobre uma cachoeira. Ela jogou o presente do
Ted na caixa e foi direto à cômoda pegar a lata decorativa, que continha
uma dúzia de cravos brancos já bem ressequidos, as primeiras flores que
recebera de um rapaz. O coco que Ted lhe enviara do Havaí foi a vítima
seguinte que jogou na caixa. Logo depois veio a caixinha de música: um
bonde de San Francisco. A seguir, outro presente do Ted, uma miniatura de
vidro da fada Sininho que ele comprara na Disneylândia. Em seguida tirou
da gaveta uma camiseta com os dizeres: "Sobrevivi à estrada de Hana".

Cris pegou seu urso Puf na cama e ia jogá-lo na caixa quando parou.
Segurando o bichinho gorducho de pelúcia, disse:

— Sinto muito, mas você também tem que ir.

Olhou as lembranças do Ted na caixa e explicou para o Puf.

— Não posso deixar vocês ficaram aqui sussurrando pra mim,


contando histórias românticas sobre o Ted. Agora sou uma moça. Não
posso mais acreditar em contos de fadas. Entendeu? O que aconteceu hoje
com o Rick foi culpa minha. Eu já devia ter mandado todos vocês embora
muito tempo atrás.

Com um último beijo, Cris colocou o Puf na caixa e fechou a tampa.


Uma lágrima quente escapou quando ela enfiou a caixa embaixo da cama,
tirando-a do coração.
Guerra de Neve
7

Na manhã seguinte, Cris acordou sentindo tristeza e solidão. Tomou


o café da manhã e voltou para o quarto, onde se pôs a arrumar a mala para
a viagem. Quando o carteiro chegou, sua mãe lhe trouxe três cartões. Ela
examinou os endereços de remetente e abriu o que vinha de Escondido,
onde morava.

Era um cartão de Natal da Teri Moreno, uma garota da escola, que


Cris conhecera no ano passado quando treinava para ser chefe de torcida.
No cartão, vinham as palavras:

"Que a sua comemoração do nascimento do nosso Salvador seja


repleta de alegria!"

Cris colocou o cartão de lado, com certo sentimento de culpa por


estar tão desanimada. Abriu o cartão seguinte, que era da Alissa, outra
garota que ela conhecera na praia dois anos antes. Nele havia um longo
bilhete numa folha de papel. Cris sentou-se para ler:
Querida Cris,

Estou gostando tanto dos preparativos de Natal aqui em Boston!


Como esse é o primeiro Natal desde que me converti, tudo tem muito mais
significado do que antes. Minha mãe está indo bem. Já se vão três meses
que ela não bebe uma gota sequer. E ela e a minha avó têm ido a igreja
comigo! Mandei um presente para a Samantha ontem. Penso nela o tempo
todo e sinto demais a falta dela. Sei que ela pertence aos seus pais
adotivos, e sei que eles a amam tanto quanto eu. Sempre que começo a me
sentir triste pensando nela, Deus me dá uma paz inexplicável, e sinto
forças para prosseguir. Oro por você todo o tempo, Cris. Espero que seu
Natal seja repleto de amor, alegria e paz.

Sempre sua amiga,

Alissa.

Cris fitou a carta, maravilhada. O pai de Alissa morrera. A mãe dela


era alcoólatra, mas estava em recuperação. Alissa tivera uma filha que teve
de entregar para ser adotada. O pai da criança tinha morrido num acidente
quando estava surfando. Se havia alguém com razão para estar deprimida,
era ela.

Comparada com a vida dela, a de Cris era tranqüila. Mas era Cris que
estava deprimida e Alissa parecia transbordante de alegria e esperança.
Pelo menos na carta.

Tinha de admitir que no ano passado, quando, sentada ao lado da


jovem na praia, Cris a ouvira pedir a Deus que lhe perdoasse e entrasse em
seu coração, tivera dúvidas de que era mesmo para valer. Agora Alissa
estava demonstrando mais confiança em Deus do que a própria Cris.

Quem sabe é esse meu problema? Não tenho orado muito sobre as
coisas que andam acontecendo na minha vida.

Ainda não se sentindo disposta a orar, Cris abriu o terceiro cartão.


Era de Paula, sua amiga de infância do Wisconsin. Do envelope caíram
umas fotos. Tinham sido tiradas nas férias, quando ela e Cris tinham ido ao
Havaí com a mãe de Cris, David, os tios e o Ted. A primeira foto era duma
cachoeira com uma ponte em cima. A mesma cachoeira do pôster que ela
acabara de arrancar da porta. A foto seguinte era do Ted na praia, segu-
rando uma prancha de surfe. Do outro lado da prancha, estava o David,
tentando imitar o jeitão tranqüilo do Ted. O céu e a água no fundo
pareciam puros, azuis e convidativos.

Cris ficou longo tempo fitando as fotos, revivendo as recordações


que cada uma lhe trazia.

O cartão de Paula dizia simplesmente:

''Pensei que você talvez quisesse uma cópia dessas. Aloha e feliz
Natal! Paula."

Cris tentou imaginar como Paula estaria, e pelo bilhete achou que ela
não estava querendo falar muito de sua própria vida.
Colocou os três cartões na cômoda onde antes estavam as
recordações do Ted. Sentiu que aquelas fotos só iriam fazer com que
pensasse mais nele. Então tirou a caixa de sob a cama e colocou-as dentro
dela.

Com um suspiro pesado, sussurrou:

Sei que não estou muito entusiasmada com teu aniversário, Jesus.
Vou procurar pensar mais em ti e confiar mais em ti para solucionar todos
os meus relacionamentos.

Durante a viagem de duas horas até as montanhas, Cris se esforçou


bastante para ser boa com o irmãozinho. Fazia com ele um jogo de placas
de automóvel até que as curvas começaram a aumentar tanto, que seu
estômago ficou afetado pelo balanço do carro.

— Estamos chegando? perguntou David. Cadê a neve?

— Pelo que diz o guia turístico, falta uma meia hora para chegarmos
ao desvio Blue Jay. Devemos ver neve em breve, disse a mãe.

— Ali tem um pouco! exclamou David, apontando para uma pequena


área no declive de um morro.

Quando chegaram ao chalé, o chão estava coberto de neve e David


vibrava. Foi o primeiro a descer do carro. Formando uma bola de neve com
as mãos, ainda sem luvas, jogou-a no pára-brisa, e logo preparou outra para
jogar no pai, no momento em que ele descesse do carro.

— Primeiro vamos tirar as coisas do carro. Parece que Bob e Marta


já chegaram.
— Bem-vindos! exclamou tio Bob pela porta aberta.

Cris entrou e ficou boquiaberta com o luxuoso sobrado


completamente mobiliado que os tios haviam alugado. Não era exatamente
uma casinhola de toras de madeira, como ela imaginara. Devia saber. Seus
tios eram ricos e estavam acostumados com as coisas mais finas da vida.
Isso significava que aonde fossem, teriam todos os confortos de casa.

Marta estava numa pequena escada ao lado da lareira, zelosamente


colocando enfeites de Natal sobre uma árvore que chegava até o teto.

— O que acham? perguntou, afastando-se um pouco para admirar


seu trabalho. Este ano são "papais noéis".

A árvore estava carregada de enfeites de Papai Noel de todo tipo. No


ano passado, Cris lembrou-se, o tema eram ovelhas. Marta era a única
pessoa conhecida de Cris que todo ano tinha um tema diferente para sua
árvore de Natal.

— Está lindo! Já terminou? Precisa de ajuda?

— Acho que terminei, querida. Espere só para ver com as luzes


acesas. Este ano usei luzes vermelhas. Dá um maravilhoso tom festivo à
sala.

O pai carregava uma mala em cada mão e pediu:

— Cris, pode ajudar sua mãe a trazer as malas menores? Onde vamos
pôr nossas coisas, Marta?

Marta desceu de seu pedestal e apontou a escada que dava para o


segundo andar.
— Você e Margaret vão ficar no quarto das "ipoméias". É o segundo
a direita. Acho que vão gostar dele. David fica no quarto das "margaridas",
no final do corredor, e Cris fica ao lado dele, no quarto das "violetas".

— Os quartos têm nome? perguntou Cris, curiosa por saber se a casa


já tinha esses rótulos ou se isso era coisa da tia.

— Ah sim! Isso aqui é uma pousada. Bob conhece os donos, que


foram passar as festas natalinas em Londres. Alugou deles por uma
pechincha. Vocês vão gostar muito das acomodações, creio eu. Uma lareira
em quase cada quarto!

— Estou doida pra ver o meu, disse Cris.

— Não esqueça de me ajudar a levar a bagagem, lembrou sua mãe,


ao que Marta acrescentou:

— Depois eu e sua mãe temos de dar um pulo ao supermercado para


comprar comida para a semana.

Cris apressou-se a buscar a bagagem e a levá-la para dentro e disse


tchau à mãe e à tia, que saíram para as compras. Pegou suas coisas e foi
procurar o quarto das "violetas". O primeiro à direita devia ser de Bob e
Marta. No meio havia uma cama de dossel, da qual caía um tecido
vaporoso, cobrindo os lados. Tudo era decorado com rosas vermelhas e a
mobília em cerejeira escura.

Continuou pelo corredor, pisando macio o grosso tapete. O quarto


seguinte era o das "ipoméias", o de seus pais. Havia uma trepadeira de
flores azuis pintada que parecia subir pelas paredes. A colcha, o tapete, as
toalhas e as cortinas azuis davam um ar alegre ao quarto. Cris sabia que
sua mãe iria gostar.

Fechando a porta do quarto deles, ela atravessou o corredor, pé ante


pé, como se estivesse explorando um grande castelo. A porta à esquerda
dava para seu quarto "violeta". Cris perdeu o fôlego quando o viu.

Parecia tirado de um conto de fadas. No canto, havia uma lareira


acesa, e contra a parede uma cama esmaltada branca de ferro com um
coração no centro, e sobre ela um grosso edredom. Ele era todo decorado
com violetas. No papel de parede, eram buquês de violetas atadas com fita
cor-de-rosa. Sobre a penteadeira, violetas secas no vidro. Um cobertor
macio com violetas bordadas estava sobre um baú antigo ao pé da cama.
Havia até um tapete oval com uma grande penca de violetas no centro,
perto da porta.

Mas o que mais encantou Cris foi a janela ampla, com um sofazinho
para sentar e sonhar. Era encantador demais para ser verdade! Largou as
sacolas no chão e aproximou-se lentamente do móvel, como se ele fosse
fugir se ela chegasse muito depressa ou o assustasse. Tocando com carinho
o estreito assento almofadado e passando os dedos sobre a renda das
almofadas cobertas de violetas, viu que era de verdade e seria seu durante
os próximos seis dias.

— É do seu agrado o quarto, senhorita? perguntou Bob de pé junto à


sua porta.

— Você me assustou! Sim, é maravilhoso. Adorei!


Naquele instante ouviram gritos de alegria lá fora. Cris chegou o
rosto na janela e viu David jogando bolas de neve no pai. Bob aproximou-
se de Cris para observar a guerra prestes a romper.

— Vamos lá! disse ele, puxando-a pelo braço. Podemos passar pela
cozinha e chegar por trás, numa emboscada.

— Deixe-me procurar minhas luvas.

Ela remexeu as sacolas e calçou depressa as luvas, enquanto descia


as escadas atrás do Bob.

Como dois exploradores índios, Bob e Cris andaram furtivamente


pelo lado da casa até chegar onde o pai e David, com movimentos rápidos,
jogavam bolas de neve um no outro.

— Olha, eu tenho um plano, falou Bob. Precisamos de um bom


estoque de munição antes de atacar. Vamos fazer uma dúzia cada um,
estocá-las aqui, e depois carregamos quantas conseguirmos enquanto
jogamos.

Cris fez continência para o tio, brincando, e começou a fazer a sua


dúzia de bolas de neve. Em seguida, ela e Bob encheram o braço esquerdo.

— Quando eu der o sinal... disse Bob, levantando a mão direita e


esperando um intervalo na luta entre David e o pai. Agora, vá! gritou,
batendo a mão e correndo para o meio da batalha, jogando bolas de neve
como se fosse um garoto de dez anos.

Cris o acompanhou, jogando a primeira bola no seu pai. Ele foi pego
de surpresa, e o "míssil" atingiu-lhe a orelha direita. A surpresa do pai e do
filho permitiu que o tio e a sobrinha conseguissem dar mais dois excelentes
"tiros" antes que o "inimigo" devolvesse as boladas. A batalha estava sendo
travada, gélida e cheia de risadas, enquanto Cris e seu pai se revezavam
correndo ao canto da casa, para apanhar mais munição. Num gesto ousado,
David cortou as linhas, encontrou o estoque secreto e atirou as últimas
bolas sobre eles. Afinal Bob conseguiu lançar uma braçada de neve nas
costas do David, e então o pai pediu trégua.

Naquele instante, o carro com Marta e mamãe entrou na rampa.

— Depressa! Todo mundo se esconde; vamos dar boas-vindas às


duas!

David e o pai se esconderam, atrás do carro, enquanto Bob corria


para trás de uma árvore. Sem saber aonde ir, Cris foi para o lado da casa,
mas tinha certeza de que sua mãe e a tia a tinham visto. Resolveu ficar fria
e agir como se tivesse saído para caminhar.

— Esconda, Cris! cochichou o David com voz rouca, quando Marta


estacionou o carro e desligou o motor.

A mãe abriu a porta e perguntou a Cris:

— Está gostando do ar puro?

— Estou, respondeu Cris, pegando um punhado de neve limpa com a


mão enluvada e lambendo-a como se fosse sorvete.

Marta saiu do carro, pegou uma sacola de compras no banco traseiro


e perguntou:

— Onde está o Bob?

Cris hesitou e depois achou que a sinceridade seria a melhor política.


— Está emboscado atrás daquela árvore ali.

— Cristina! repreendeu Marta. De onde você tira essas idéias? Os


adolescentes fazem curso de respostas sarcásticas hoje em dia?

Quando Marta estava bem próxima, Cris mostrou seu punhado de


neve e disse:

— Tem alguma coisa errada com essa neve. O cheiro não está bom.

— Que é que você quer dizer, o cheiro não está bom? Cris cheirou o
punhado de neve e disse:

— Não sei explicar, mas o cheiro é diferente da neve do Wisconsin.

A mãe carregava duas sacolas de compras e disse:

— Então, por favor, não coma a neve, Cris! Ela não devia ter cheiro
algum!

Cris olhou para a tia e perguntou:

— O que acha? Você também não acha que é estranho? Marta se


inclinou para, delicadamente, cheirar a neve branquinha. Cris empurrou o
punhado de neve na cara da tia, pegando-a totalmente de surpresa.

O pai, David e Bob entenderam isso como um sinal para sair do


esconderijo, gritando alto, fazendo com que Marta deixasse cair sua sacola
de compras e corresse aos gritos para dentro de casa.

A mãe largou as sacolas no chão e começou a jogar no marido


algumas bolas meio fracas. David chegou por trás e jogou um punhado de
neve dentro do casaco da mãe.
Com um grito estridente, sua mãe pegou mais neve com as duas
mãos e retribuiu-lhe o gesto com uma chuva de bênçãos.

Mamãe, papai, Bob e David riam e limpavam a neve do rosto quando


Cris ouviu Marta chamá-la da janela da casa, lá em cima.

Cris olhou para o alto e Marta jogou sobre ela um copo de água.
Antes de poder se mexer, Cris sentiu o rosto molhado e gelado.

— Estamos quites, tia Marta, disse ela, acenando para a tia, que
exibia no rosto um ar de satisfação.

— É assim que eu gosto, retrucou Marta.

Cris foi para dentro se trocar e encontrou-se com a tia no corredor.

— Não resisti à chance, disse Marta. Você não perde a esportiva,


Cris!

— Você também não. Deve ter sido bem cheia de vida quando tinha
minha idade.

— E era mesmo! Pergunte a sua mãe! Agora, vista uma roupa seca e
venha para baixo. Vamos tomar um chocolate quente.

Marta desceu correndo a escada e Cris pensou: Coitada da pobre da


mãe dela!

Sentada no balcão da cozinha, já de roupa trocada, Cris perguntou:

— Você acha que vamos poder fazer algumas compras por aqui hoje
ou amanhã? Ainda me falta comprar um presente.
Não queria mencionar que ainda não tinha comprado presente para
sua tia, uma pessoa que tinha tudo.

— O único lugar para compras é no vilarejo de Lagoa Arrowhead.


Não quero ir lá amanhã, por ser véspera de Natal. Vai estar muito
movimentado.

— Eu levo você, disse Bob, tranqüilo. Se gosta de lojas de presentes,


vi uma a uns oitocentos metros daqui. Posso levá-la até lá, se quiser.

— Eu posso ir a pé, já que são só 800 metros, replicou Cris, pegando


uma caneca de chocolate quente que o tio lhe oferecia.

— O que são só 800 metros? perguntou a mãe.

— Uma loja de presentes. Ainda tenho de comprar um presente.


Posso dar uma caminhada até lá?

— Sozinha?

— Mãe, é nesta rua mesmo.

— É, então acho que sim. Obrigada Bob, disse a mãe de Cris,


aceitando uma caneca de chocolate. Mas não demore. Já passa das duas.
Aqui nas montanhas escurece depressa, portanto é melhor estar de volta
antes das quatro.

— Está certo. Vou agora mesmo.

— É capaz do David querer ir com você, disse a mãe.

— Mãe! Por favor, deixe-me ir sozinha! Ele não é o tipo de menino


que fica à vontade em uma loja de presentes finos.
— É, você tem razão. Mas tome cuidado.

— Está bem, mãe. Vou só lá, volto antes das quatro e prometo não
conversar com estranhos.

Cris correu para o quarto para buscar o casaco e a bolsa. Bob a


esperava junto à porta da frente.

— No final de nossa entrada de carro, vire à esquerda. Vá descendo a


rua toda a vida. A loja é do lado direito. Acho que chama "Presentes
Alpinos". Quer que a busque daqui a uma hora?

Cris já ia recusar a oferta, mas lembrou-se de que na ida caminharia


morro abaixo, seria rápido e fácil, mas na volta teria de subir.

— Claro. Minha mãe, provavelmente, ficará mais tranqüila também.

— Estarei lá dentro de uma hora.

Cris desceu logo a rampa para que David não visse que estava
saindo. Virou à esquerda e caminhou direto rua abaixo de onde a neve fora
retirada. Era bom ter essa oportunidade de pensar e orar, enviando suas
petições junto com as pequenas nuvens de "fumaça" da respiração e
ouvindo a resposta no ranger do cascalho e do gelo na rua, sob seus pés.

Quanto mais pensava e orava, mais se convencia de que queria ser


amiga do Rick e resolver toda aquela tensa situação entre eles. E não
queria ter ciúmes de Katie por ter mais liberdade que ela e por ser o centro
das atenções o tempo todo. Ela queria voltar a se relacionar com o Ted, ou
melhor, queria que ele quisesse esse relacionamento. Queria sentir o braço
dele em volta de sua cintura, não na prancha de surfe. E queria, acima de
tudo, sentir-se próxima de Deus.
É possível ter tudo isso ao mesmo tempo? Talvez eu precise ordenar
as minhas prioridades e mudar a lista, para que Deus esteja em primeiro
lugar, e o Rick, Katie, e Ted em segundo.

E em meio ao ar gelado, ela orou: Eu me entrego ao Senhor, Pai.


Faço isso muitas vezes, não é mesmo? Alegro-me porque o Senhor não se
cansa de me perdoar por não haver confiado completamente. Não quero
correr na frente daquilo que o Senhor quer para mim. Quero caminhar
passo a passo com o Senhor. Quero ouvir tua voz e sentir tua mão de
bênção sobre a minha cabeça.
Um Céu Cheio
de Diamantes
8

Cris encontrou a loja "Presentes Alpinos" como Bob lhe explicara e


entrou. A loja estava aquecida e perfumada. Seu nariz e suas orelhas
precisavam descongelar. A pequena loja estava ligada a uma pousada. Cris
notou que a música de fundo era um suave hino de louvor. Começou a
olhar as amostras de presentes, todas encantadoras. Vendo quadros com
versículos bíblicos e camisetas com mensagens cristãs, ela concluiu que o
dono devia ser crente em Jesus. Sentiu-se bem e completamente à vontade.

Gostava de presentinhos cheios de frufru e detalhes delicados, como


papel de carta enfeitado com flores silvestres. Havia uma seção de livros e
um baú antigo repleto de bichinhos de pelúcia.

Uma chaleira branca elegante chamou sua atenção. Tinha um


açucareiro e um porta-creme combinando-se, mas o dinheiro de Cris não
dava para comprar o conjunto todo. Sentiu também que ela gostaria de
ganhar aquilo, mas talvez a tia, não.

Próximo à porta dos fundos da loja, havia uma coleção de anjos que
lhe, deram uma idéia. Ela escolheu um enfeite de árvore que parecia ter
sido feito com um antigo lenço de renda.
Um ano desses talvez Marta resolvesse enfeitar a árvore com anjos, e
assim já teria um. O preço estava bom, e Cris sentia-se alegre por ter
encontrado algo diferente e interessante.

Levou o artigo até a caixa registradora e uma senhora de sorriso


doce, cabelo loiro, curto e encaracolado, registrou a compra. Cris sorriu
para ela, certa de que ela era cristã, mas sem saber o que dizer para
identificar-se como tal. Quem sabe dando aquele sorriso lhe transmitiria a
irmandade em Cristo?

— Quer que embrulhe para presente? indagou a caixa.

— Sim, será excelente. Cobram a mais para isso?

— Não, é praxe da casa, explicou a senhora. Virando-se para uma


adolescente alta e bonita que se achava sentada numa cadeira atrás, disse:

— Amanda, pode ir lá em cima procurar uma caixa para isso? A


garota tinha cabelo loiro comprido, amarrado num rabo-de-cavalo, e usava
óculos azul-claros que ficavam muito bem no seu rosto. Levantou-se do
seu confortável lugar e subiu a escada estreita até o andar de cima.

Cris aguardou com paciência, sorrindo de novo para a senhora e


notando como a moça e a senhora se pareciam. Talvez fossem mãe e filha.

— São uma gracinha de anjos, não são? comentou a mulher. É minha


mãe que os confecciona. Ela vai ficar contente por termos vendido mais
um.
Amanda voltou com a caixa, e a senhora colocou o anjo nela com
todo cuidado, sobre um leito de papel de seda.

— Quer que eu busque uma fita, mãe? perguntou a moça. Cris


pensou como seria legal mãe e filha trabalharem juntas numa loja de
presentes assim. Eram cristãs. Pelo menos podiam dizer "feliz Natal" aos
fregueses sem serem repreendidas. Ela agradeceu a mãe e a filha e estava
prestes a sair quando disse:

— Espero que tenham uma comemoração maravilhosa do


nascimento do nosso Deus e Salvador!

Amanda olhou para a mãe e em seguida para Cris, com ar surpreso, e


depois respondeu:

— Obrigada; você também.

Bob já esperava Cris no carro quando ela saiu, deixando o perfume


de especiarias e o ambiente quentinho da loja. Comentou com Bob como a
loja era bonita, acrescentando que era dirigida por uma senhora e a filha.

Imaginou como seria bom se ela, sua mãe e a Marta fossem sócias
numa loja. Mas quanto mais pensava no assunto, menos agradável o
quadro ia ficando. Mamãe e tia Marta eram muito diferentes. A primeira
era simples, mas firme, e a outra era complicada e cheia de modismos.

Na noite seguinte Cris notou de forma ainda mais clara as diferenças


entre sua mãe e Marta. Era véspera do Natal, e a família toda jantou à luz
de velas. O pai leu a história de Natal do Evangelho de Lucas. Bob e Marta
respeitaram essa tradição da família de Cris, embora pela expressão do
rosto demonstrassem não acreditar no milagre da história.
Cris sorriu, pensando que em Belém, na noite em que Jesus nasceu,
havia muita gente como Bob e Marta, ocupada com seus afazeres, alheia à
chegada de Deus ao mundo.

Quando o pai leu sobre os anjos que apareceram aos pastores,


trazendo-lhes "boas novas de grande alegria", Cris pensou:

Uma cidade inteira cheia de gente importante e influente, e Deus


escolheu acordar uns humildes pastores no campo para anunciar-lhes sua
chegada.

Ela olhou para a tia, de tipo mignon, elegante, quieta mas pronta para
ir em direção à árvore e aos presentes no instante em que o pai encerrasse a
leitura.

Eu preferiria ser um daqueles pastores, pensou Cris, sentindo que ela


e Deus tinham um segredinho em comum.

— Este aqui é para a Cris, anunciou David alguns minutos depois,


correndo em volta da árvore, e entregando os presentes de cada um.

Era uma caixa de tamanho médio, presente dos tios. Cris


desembrulhou e viu que era uma máquina fotográfica complicada e cara.

— Muito obrigada, disse ela, incerta de como responder diante de


presente tão caro.

— Sua mãe disse que você se matriculou no curso de fotografia para


o próximo semestre, e eu achei que seria bom se você tivesse o melhor
equipamento possível, explicou o tio. Mais tarde eu lhe mostro como
funciona. É fácil.
Mais uma vez Cris agradeceu. Não sabia mais o que dizer. Quanto ao
curso de fotografia, fora quase sem pensar que se matriculara nele. Parecia
melhor do que ter aula de Ciências ou Matemática. Agora possuía uma
máquina mais "inteligente" que ela. Quem sabe com ela poderia tirar notas
melhores.

— Outro para a tia Marta, disse David, entregando-lhe uma caixa


dourada, comprida.

— Bob, não precisava, protestou Marta. Eu lhe disse que tudo que
queria neste Natal era neve — um Natal com neve. Você já me deu isso.

Ele sorriu com seu jeito bem-humorado:

— Pensei que você iria gostar de ter alguns flocos de neve o ano
inteiro.

— Robert! Você é o marido mais maravilhoso do mundo! Com as


longas unhas de acrílico, Marta arrebentou a fita dourada que atava a caixa.
Abriu-a. Arfante, exclamou:

— É simplesmente linda! Que maravilha!

Cris sentia-se como se estivesse assistindo a um comercial de


televisão, vendo Marta remover da caixa uma pulseira de brilhantes e
segurá-la ao clarão das luzinhas vermelhas de Natal, para que todos lhe
notassem a cintilação.

Bob olhava todo orgulhoso, contente com a reação da esposa.

— Estou perdoado pela emboscada das bolas de neve? perguntou


com um sorriso maroto.
— Sim. Mil vezes, sim!

Pelo canto do olho, Cris notou a expressão de seu pai. Ele trabalhava
em uma companhia de laticínios, e não era um empresário milionário, dono
de imobiliárias, como o tio Bob.

Quando seus pais se casaram, eram tão pobres, que seu pai dera à
mãe uma simples aliança de ouro, e nunca tinha conseguido dar-lhe sequer
um anel de brilhante de noivado.

Como é que a mãe conseguia agir de modo tão nobre? Nunca tivera
um pequeno diamante em toda a vida, mas olhava para a irmã, feliz de vê-
la contente com uma pulseira cravejada de diamantes. Encostou-se no
marido, colocou a mão — onde estava apenas a aliança simples — sobre a
perna dele, e cochichou-lhe algo ao ouvido. Ele virou-se para ela. Foi
como se estivessem comunicando um ao outro uma mensagem de amor
com os olhos. Era lindo!

Ninguém mais notou o que se passara entre eles, porque Marta, Bob
e David estavam tentando apertar o fecho da pulseira no braço de Marta.
Cris sentiu-se um pouco constrangida, como se não devesse ter
presenciado aquele momento íntimo de seus pais. Contudo, ao mesmo
tempo, isso lhe dava satisfação e senso de segurança.

— Continuem, pessoal. Que outra pessoa abra o seu presente!


ordenou Marta.

— Eu vou abrir o meu! disse David e correu para uma caixa grande,
que tinha o jogo de vídeo game que ele mencionara ao tio Bob.

Outra rodada de gritos e mais abraços no tio.


Depois de abrirem todos os presentes, guardarem os papéis de
embrulho enfiado em sacos de lixo, e tomarem uma última rodada de
chocolate quente, todo mundo foi dormir.

Cris levou seus presentes para cima: um par de sapatilhas e um


espesso roupão cor-de-pêssego que ganhara dos pais. Seu tio já estivera no
seu quarto e o fogo da lareira crepitava, enchendo o cômodo de um brilho
de âmbar.

Cris vestiu o pijama e sobre ele o roupão novo. Sentia-se envolvida


de calor e carinho, pronta para sentar-se no sofazinho junto à encantadora
janela.

Nessa hora, não estava nevando. O céu se achava límpido, e ela


enxergava as estrelas. Sentada por cima das pernas dobradas, Cris abriu a
tranca e escancarou a janela.

A brisa gelada da noite corria a cumprimentá-la. Cris pôs a cabeça de


fora, para melhor contemplar as estrelas..

Essas estrelas são os teus diamantes, não são, Deus? São lindas!
Lembram brilhantes espalhados sobre um pano de veludo negro. Por que
tão espalhadas? Deveriam estar juntas para encher tua coroa, e não
espalhadas pelo chão do céu.

Ficou um bom tempo na frente da janela aberta, espiando as estrelas,


respirando o gelado ar noturno com as mãos nos bolsos do roupão felpudo.
Sentia-se pequena, comparada com a imensidão celeste que se estendia
diante de seus olhos. Os sentimentos dos últimos dias pareciam abrandar-se
e perder a importância quando comparados com os pensamentos sobre a
eternidade.

Será que quando nasceste, viste aquela estrela brilhante no céu de


Belém? Dava para vê-la do teu berço na manjedoura? Sabias que ela
brilhava por tua causa?

No silêncio do quarto, algo tocou o coração de Cris, algo estranho,


que nunca sentira antes. Sentiu-se amada com amor profundo, como se
alguém a estivesse chamando pelo nome, mas sem voz. Foi uma
comunicação invisível de amor, como quando seus pais haviam se
comunicado apenas com os olhos.

— Estou aqui! sussurrou ela como que respondendo.

E foi só. Não vieram anjos, nem ela viveu uma grande experiência
celestial. Eram só as estrelas no céu e a firme certeza, no fundo de seu ser,
de que Deus a amava. Era a noite de Natal e, assim como os pastores, Cris
se sentiu envolvida num grande e eterno mistério: Deus está conosco!

No dia seguinte, quando Cris acordou, lembrou logo que era o dia de
Natal e ela estava no encantador quarto, no chalé das montanhas.
Recordou-se dos sentimentos maravilhosos que experimentara na noite
anterior.

Tentou colocar os pensamentos em palavras, como se estivesse


escrevendo um relato do evento. Mas não dava para descrever. Além do
mais, ninguém precisava saber daquilo. Era entre ela e Deus. Uma
experiência preciosa e sagrada. Na noite anterior, Deus a chamara pelo
nome, e ela respondera com amor.
Ouviu movimento no andar de baixo, e resolveu colocar o robe e as
sapatilhas e ir para lá. Encontrou o tio Bob na cozinha, fazendo rosquinhas
de canela.

— Feliz Natal! disse ela saudando-o. Quer ajuda?

— Claro, "olhos brilhantes"! Essa panela que está no fogão já está


quente. Pode colocar o bacon nela? perguntou-lhe colocando uma bandeja
de rosquinhas no forno.

Instantes depois o aroma de bacon e de roscas de canela enchia a


casa.

— Melhor fazer café, disse ele. Esses cheiros são capazes de acordar
o resto do pessoal. O café está daquele lado, no saquinho branco. Quer me
dar?

Cris pegou o saquinho de café gourmet e cheirou-o antes de entregar


ao tio. Adorava o aroma de café, mas nunca apreciara o gosto.

— Hoje é o aniversário de Jesus! exclamou de repente para o tio.

Ele sempre se esquivava de qualquer conversa sobre Deus. Mas


nessa manhã ela não conseguia ficar calada, pois ainda estava
transbordando da presença de Deus.

Bob não respondeu.

— Já pensou que maravilha Deus ter deixado de lado todo o seu


poder e glória para vir nos buscar aqui, em nosso próprio nível? Ele era
Deus, no entanto se fez uma criança.
Bob se manteve atento ao que fazia. Mediu o café no filtro branco e
ligou a cafeteira automática. Cris continuou:

— Um amor tão grande assim me deixa pasmada. Ele tinha tudo, e


deixou de lado para vir ao território inimigo salvar aqueles que amou! Não
é incrível?

Ela não se importava de o tio não estar respondendo. Sentia o amor


de Deus de forma muito clara, e estava empolgada.

— E a maioria das pessoas a quem Deus ama nem se importa com


ele. Mas ele veio assim mesmo, porque nos amou.

Bob virou-se para a sobrinha com um sorriso meio sem graça e disse:

— Você faz essa história parecer tão romântica, mocinha!

— E acho essa história romântica mesmo. Jesus é o Príncipe por


excelência que nos salvou e virá montado num cavalo branco!

— Suponho que você seja a princesa.

— Isso mesmo! respondeu Cris de cabeça erguida. Sou sua princesa


e ele me salvou.

— E esta aqui? perguntou Bob, retirando um jornal do material que


estava ali para acender a lareira.

Mostrou o retrato de uma menina pequena com olhos grandes e


estômago inchado. As manchetes davam estatísticas de quantas crianças
morreram de fome naquela semana no país daquela criança, que estava
sendo devastado pela guerra.
— Por que o seu Jesus não chegou para salvar esta princesinha aqui?
indagou ele.

Cris sentia as lágrimas chegando aos olhos. Chorava pela menina e


por si mesma. A pergunta do Bob estragara a aura de amor em que ela,
vibrando, se envolvera.

Aparentemente, o tio reconheceu que sua pergunta fora in-


conveniente. Jogou o jornal sobre a lareira e se aproximou da sobrinha.

— Não me entenda mal, Cris. Existe a sua doce fantasia, e existe a


realidade. Não quero que você misture as duas.

— Deus não é fantasia, tio. O amor dele é mais real do que qualquer
outra coisa.

Bob fez que não com a cabeça e virou o bacon na panela.

— Se o seu Deus é um Deus de amor, por que ele permite que aquela
criança inocente sofra?

— Eu... eu não sei.


Secagem por
Centrifugação
9

Vamos embora! gritou o pai, levando duas malas grandes ao carro


para a viagem de volta. Cris saiu do chalé tendo na mão um vidro de
xampu e disse a Marta, que já estava sentada no carro:

— Achei esse xampu no seu banheiro.

— Ah, jogue fora para mim, faz favor! O vidro está molhado e já
fechei minha mala.

Como o frasco estava quase cheio e era um xampu caro, daqueles


que só se compra nos salões mais chiques, Cris apertou bem a tampa e
"jogou fora" no porta-malas do carro de seu pai.

Bob aproximou-se trazendo a última mala e colocou-a no carro.

— Parece que trouxe tudo, disse, dando a mão ao pai de Cris em


despedida.

E, virando-se para dar um beijo no rosto de Cris, perguntou:

— Quando é que você irá visitar-nos?

— Quando vocês querem que eu vá?


— Bem, você ainda tem folga na semana que vem?

— Só nesta semana. Só volto a trabalhar depois do Ano Novo.

— É mesmo? indagou e virou-se para o pai de Cris. Será que ela não
pode ir conosco hoje? Vocês poderiam ir passar o Ano Novo em nossa casa
e a gente assistiria ao jogo de futebol no meu televisor de telão. O que você
acha, Norton? O pai franziu as sobrancelhas.

— Não sei, Bob. Tem certeza que a Marta não se importa?

— Nem um pouco. Queremos que vocês vão lá a qualquer hora. E


você sabe como Marta se sente quanto a Cris. Ela é a filha que não
tivemos.

— Suponho que daria certo. Podíamos ter conversado sobre isso


antes, evitando assim fazê-lo tão em cima da hora, já que estamos de saída.

Bob e Norton discutiram as possibilidades, como se Cris não


estivesse ali perto. Não que ela achasse ruins os planos que eles estavam
fazendo por ela, principalmente porque iria a Newport. O problema era o
"Desfile das Rosas". Ainda não tinha mencionado o assunto para os pais e
precisava da permissão deles antes de fazer qualquer plano com os amigos
da praia de Newport.

— Pai, quero pedir-lhe uma coisa.

O pai pareceu surpreso, como se acabasse de notar que ela estava ali,
de pé. Naquele instante a mãe aproximou-se.

— Você e mamãe me permitem ir com a Katie e alguns amigos ao


"Desfile das Rosas"?
O pai ficou meio espantado.

— Quando foi que você inventou isso?

— Meus amigos começaram a pensar no assunto na semana passada,


mas eu estava esperando uma hora apropriada para falar com vocês.

Bob deu sua aprovação.

— Parece uma idéia excelente! O "Desfile das Rosas" é muito


divertido para os jovens. Eles acampam a noite toda na rua. Isso é uma
tradição entre a garotada da Califórnia.

— Eles dormem na rua? perguntou sua mãe, descrente.

— Claro. Não tem problema, não. É como se fosse uma festa de Ano
Novo a noite toda, explicou Bob.

Notando que estava sendo deixada de fora, Marta deixou o


aconchego do carro para juntar-se ao resto da turma, e ver do que estavam
tratando.

— Sinto muito, Cris, disse o pai com firmeza, tradição ou não, você
não vai dormir na rua para assistir a uma parada.

O rosto de Cris não disfarçava sua decepção, e ela estourou.

— Eu sabia! Nem sei por que me dei o trabalho de pedir. A Katie vai.
Ela foi passear de trenó. E tive de trabalhar aquele dia, lembra? Katie
queria ir ao estudo bíblico em San Diego com Rick e Douglas, e os pais
dela deixaram. Mas eu nem perguntei a vocês, porque sabia que não iriam
deixar. Sempre dizem não.

Parou um instante para recuperar o fôlego. Nisso, Marta interveio:


— Pois eu acho que ela devia ir. Afinal de contas, Cris já tem
dezesseis anos e é de confiança. E conheço a maioria dos seus amigos —
são todos gente muito fina. Se você for rígido demais com uma jovem
dessa idade, ela se rebelará, sabe?

Cris achou engraçado sua tia, que nunca teve filhos, meter-se a dar
palpites na criação dela e de seu irmão. Seus pais se entreolharam.
Pareciam ter chegado à mesma conclusão, sem trocar palavra alguma.

— Vamos ceder um pouco desta vez, Cris, disse o pai com o


sobrolho de novo carregado. Você pode ir ao "Desfile das Rosas", mas não
vai passar a noite na rua. Eu ou sua mãe a levaremos até lá na manhã do
desfile, ou, se Bob quiser, ele poderá levá-la.

— Sem problema, disse Bob. Terei prazer em levá-la.

— Mas ela vai perder a farra com o resto dos jovens! protestou
Marta. A festa da noite anterior é que é o melhor.

Cris teve vontade de dizer: Cale a boca, tia Marta! Vamos aceitar a
proposta que vier.

— É arriscado demais, disse a mãe. Talvez quando você for mais


velha...

— Ótimo! falou Cris dando um pulo antes que Marta tivesse tempo
de dizer mais alguma coisa. Muito obrigada por vocês me deixarem ir. Isso
é uma coisa que sonhei em fazer desde que era menina.

— Sim, eu sei, comentou o pai. Estou contente por você ter essa
oportunidade. Talvez possamos planejar para o ano que vem todos nós
irmos juntos.
— Ah, Norton! interveio Marta novamente. Que jovem quer ser visto
acompanhado dos pais num lugar desses? É, estritamente falando, uma
festa da moçada.

Virando-se para Cris, acrescentou, empolgada:

— E por falar em festas de jovens, acho que tenho a solução perfeita.


Você poderia convidar todos os seus amigos para vir em casa após o
desfile, assistir ao jogo de futebol com seu tio. Eu encomendo alguma
coisa para comermos e assim compensamos o fato de você não poder
dormir na rua.

O pai de Cris já tinha retirado a mala dela do seu carro, levando-a


para o porta-malas do de Bob.

— Telefonaremos tão logo tenhamos terminado os planos, disse


Marta à sua irmã, e conduzindo Cris para o seu carro.

— Até logo para todos! bradou ela por cima do ombro, e entrou no
carro aquecido. Acho que vou encomendar daquelas bandejas de queijos e
frios, continuou, uma vez acomodada no carro. São ótimos para uma turma
de rapazes famintos.

Cris acenou um adeus aos pais e observou o David surgindo da


floresta onde estivera brincando. O irmão apontou para ela com ar
chateado. Ela imaginou que ele estivesse choramingando porque ela ia com
Bob e Marta, e ele não. Talvez houvesse mesmo algumas vantagens em ser
mais velha.
Bob dirigiu o carro na descida íngreme e estreita da estrada enquanto
Marta falava sem parar sobre seus planos para a festa. Cris perguntou a si
mesma se a festa era para ela ou para a tia.

Duas horas mais tarde chegaram à luxuosa casa de Bob e Marta, que
dava frente para a praia, e Cris levou sua mala até seu velho conhecido
quarto de hóspedes. Era segunda à tarde e faltavam três dias para a véspera
do Ano Novo. Ela tinha alguns planos próprios. Primeiro, ligaria para Katie
contando que estava em Newport e que seus pais haviam permitido que ela
fosse ao desfile. Depois ligaria para Trícia, para verificar se elas podiam se
encontrar nos próximos três dias. Talvez ligasse para o Douglas também. E
se sentisse muita coragem, telefonaria ao Rick, tentando resolver suas
diferenças por telefone, de modo que, ao avistá-lo no desfile, as coisas não
estivessem tão tensas entre eles.

Marta tinha outros planos para Cris nessa semana. Antes que a moça
desfizesse a mala, a tia já estava batendo suas unhas de acrílico na porta,
pedindo permissão para entrar.

Armada com um bloco e uma caneta, Marta se plantou na cama de


Cris, dizendo:

— Vamos fazer a lista de convidados. Quantos você imagina que


virão, querida?

— Não tenho certeza. Talvez seis ou sete.

— Ah! Vamos lá! Certamente você deseja convidar mais que isso!

Cris não sabia quantos estariam lá, e então inventou um número:


dezessete.
— Está bem, dezessete convidados. Eu encomendo a bandeja grande
e várias saladas de acompanhamento. A maioria das pessoas gosta de
maionese, não gosta?

— Sim, tenho certeza que gostam.

— Agora, quanto a bebidas, vamos encher os tambores de gelo de


refrigerantes e cerveja.

— Cerveja?

— Para os rapazes da faculdade, explicou Marta. Eles vão querer


cerveja com os salgados, enquanto assistem à televisão, não acha?

— Tia Marta, você conhece os meus amigos. Eles não bebem.

— Nenhum deles? Nem uma cervejinha?

— Não! Além do mais, eu não me sentiria à vontade dando uma festa


com bebida alcoólica. Não quero cerveja nessa festa.

— Está bem, disse Marta em tom defensivo. Eu só estava querendo


ajudá-la a dar uma festa de sucesso onde todos se divertissem.

— Eu sei, e aprecio demais o que você faz por mim, com


sinceridade. Mas para os meus amigos, só de estarmos juntos já é uma boa
festa.

— Sabe, Cristina, você é uma jovem muito especial. Eu era tão


diferente de você na sua idade! Caso não lhe tenha dito isso antes, admiro
muito sua personalidade forte. Creio que você vai se dar bem, vai ter uma
vida muito marcante.
— Obrigada. E obrigada também pela festa. Eu aprecio tudo que
você faz por mim.

Olhando de novo no bloco, Marta continuou:

— Vejamos. Precisamos de coisinhas para "beliscar". Tem alguma


preferência? Chips? Doces? Podemos fazer uma lista e eu mando o Bob ao
supermercado amanhã.

A elaboração da lista durou quase meia hora. Cris estava ansiosa para
acabar logo com aquilo, para poder telefonar. Mas no momento que Marta
terminou a lista, Bob chegou com a dele.

— Estes são os filmes que estão passando hoje na cidade, e os


horários, explicou, mostrando à Cris uma longa lista. Se nenhum deles lhe
atrai, podemos alugar uma fita. Também pensei que podíamos sair para
jantar fora, já que estamos com poucas provisões em casa. Isto é, a não ser
que vocês já tenham feito planos para a noite.

— Não, jantar num restaurante será excelente. Por que não fazer
reserva no Five Crowns? Acho que ainda não levamos a Cris lá.

— Ótimo! Vocês duas podem se aprontar para daqui a uma hora?

— Claro, disse Marta. E Cris, você pode separar sua roupa suja?
Provavelmente, já acabaram as limpas. Pensando melhor, é capaz de você
só ter as roupas de montanha. Amanhã cedo temos que ir às compras para
você ter o que vestir no "Desfile das Rosas".

— Vou ligar para o restaurante, disse Bob. Verifique a lista de


cinema, Cris, e me diga o que prefere.
— Tenho que me arrumar, disse Marta, saltando da cama. Não se
esqueça das roupas sujas e tente achar alguma coisa mais chique para hoje
à noite. Esse restaurante aonde vamos é bem elegante. Agora pode tomar
seu banho.

Com isso ela fechou a porta, deixando Cris num silêncio repentino.
Ela permaneceu sentada por um momento, a cabeça ainda girando com
tantas informações recebidas em tão pouco tempo. Cris pensou:

Tem horas que eu queria que meus tios ficassem pra lá, e me
deixassem em paz!

Desistiu da idéia de telefonar naquela hora, reconhecendo que não


podia se queixar de estar sendo levada a um bom restaurante ou cinema.
Ligaria no dia seguinte. Tomou banho e remexeu suas coisas à procura de
uma roupa para usar. Optou por uma blusa de tricô rosa e o novo colete que
tia Marta lhe dera, preto com um toque de rosa. Ficou satisfeita de ter
encontrado alguma coisa bonita e em ordem na trouxa de roupa suja que
estava trazendo das montanhas.

Infelizmente, Marta, vestindo um conjunto de seda, não teve o


mesmo entusiasmo da sobrinha.

— Essa blusa não serve, não. É muito esporte. Você não tem outra?
Eu não lhe disse que vamos a um bom restaurante?

— Eu gostei, tia. Acho que combina perfeitamente com o colete que


você me deu.

Bob interveio.
— Vocês duas estão lindas! Se quisermos chegar na hora que
reservamos, às cinco, temos que sair agora.

— Está certo, concordou Marta a contragosto. Mas amanhã, quando


formos às compras, levaremos o colete para arranjar uma blusa que
combine melhor com ele. Talvez de seda.

Cris resolveu que um sorriso seria sua melhor resposta. Afinal, como
podia reclamar da generosidade da tia? Além do mais, já aprendera a
protestar apenas com relação às coisas mais importantes, como a
declaração do tio de que Deus não podia ser amor se deixava a criança do
jornal morrer de fome. Cris ainda não tinha resposta para a pergunta que o
tio lhe fizera na manhã do Natal. Mas sabia que ele estava enganado, e um
dia mostraria por quê.

De qualquer forma, era duro pensar na criança morrendo de inanição


enquanto ela se fartava de um jantar caríssimo. Cris tinha certeza de que o
dinheiro que Bob estava gastando hoje daria para alimentar uma pessoa de
outro país durante mais de uma semana.

Talvez isso fosse parte da resposta que daria ao Bob. Talvez Deus,
em seu amor, tivesse dado a alguns em abundância, mas esses não
compartilharam com os necessitados, e as coisas foram piorando até o
mundo chegar ao estado atual.

Cris gostou dessa resposta, mas não se sentiu disposta a lançá-la em


rosto do tio.

— E então, resolveu que filme ver?


— Nenhum da lista me parece interessante. Será que podíamos
alugar uma fita?

— Excelente idéia, disse Marta. Fico bem mais confortável em casa


do que num cinema. Além do mais, com o televisor novo do Bob, com
telão e som estereofônico, nossa sala fica ainda melhor que um cinema.

Marta tinha razão. O efeito da tela gigante e o som vindo de todas as


direções eram impressionantes. Cris selecionara um dos seus filmes
prediletos: "O Homem do Rio das Neves". Os cavalos pareciam estar logo
atrás dela e ela adorou ver a paisagem australiana na tela grande. Quando
terminou o filme, Cris foi para a cama, cheia de sentimentos agradáveis e
românticos.

Na manhã seguinte, lavou o rosto, puxou o cabelo para trás numa


fivela e vestiu a mesma roupa da noite anterior. Pegando a pilha de roupa
suja, foi para o andar de baixo.

No momento que o pé tocou o degrau de baixo, a campainha soou.


Cris continuou em direção da lavanderia, com a trouxa, mas percebeu que
ninguém atendia à porta. Talvez Bob e Marta ainda não se tivessem
levantado.

Voltando atrás, Cris inclinou-se, estendeu a mão para a maçaneta da


porta e abriu o suficiente para ver quem estava lá. Ouviu uma risada
contagiante antes de ver quem era, olhando por cima da trouxa de roupas
nos braços. Era o Douglas, à porta, dando risadas.

— Pensei que você fosse a empregada.


— Sou, sim, senhor! disse Cris numa voz esganiçada, escondendo o
rosto atrás das roupas sujas. A quem deseja ver, senhor?

Douglas pigarreou.

— Poderia dizer à Senhorita Cris que o Sr. Douglas veio lhe fazer
uma visita de cortesia?

— Sim, senhor, disse Cris, tentando se curvar ao dar um passo para


trás.

Mas não sabia que o tapete do corredor estava revirado. No terceiro


passo, perdeu o equilíbrio e escorregou. Douglas estendeu a mão para
segurá-la, mas era tarde demais. Os braços dela voaram por cima de sua
cabeça, jogando as roupas todas para o ar. Enquanto tombava, seu pé
esquerdo se prendeu atrás da perna direita do Douglas, fazendo com que
ele perdesse o equilíbrio e também caísse sobre ela.

Cris deu um grito e caiu na risada no momento em que todas as


roupas sujas choveram sobre eles. Uma de suas meias de lã veio pousar na
cabeça do Douglas. Silenciosamente, Cris agradeceu a Deus por ter sido
uma meia e não uma calcinha que o "coroara".

— Machucou? perguntou Douglas com um borbulho de risos,


virando os olhos para ver a meia sobre sua testa.

Cris ria tanto, que não conseguia responder.

— O que está acontecendo aí? perguntou Marta de cima da escada.

Bob surgiu da cozinha, escumadeira na mão, com a mesma pergunta.

Cris e Douglas riam tanto, que não conseguiam falar.


Marta correu para o lado de Cris e se pôs a pegar as peças mais
pessoais que tinham voado na colisão. Douglas abanou a cabeça para
derrubar a meia e se levantou. Ofereceu a mão a Cris para ajudá-la a
levantar-se. Ela ainda estava rindo e tinha certeza de que, se tentasse ficar
de pé, suas pernas não agüentariam.

— Espere um minuto, disse, tentando se compor. Estendeu o braço e


tomou a mão do Douglas. Ele a colocou de pé e caiu de novo na
gargalhada.

— O que foi que aconteceu? indagou Marta.

— A campainha tocou e eu estava com os braços cheios de roupa,


conseguiu dizer Cris, dando mais risadas incontroláveis.

— E então, o que é isso? perguntou Bob. O ciclo de secagem por


centrifugação?

Cris e Douglas se entreolharam e caíram mais uma vez na


gargalhada.

— Sinceramente!... murmurou Marta, juntando o resto da roupa e


levando-a para a lavanderia.

— Quando vocês dois estiverem enxergando direito, tem uns ovos


mexidos prontos, disse Bob, erguendo a escumadeira no ar e voltando
como que a galope para a cozinha.

Cris respirou fundo. Limpando as lágrimas de riso, perguntou na sua


voz de empregada:

— Senhor Douglas, aceita tomar um desjejum?


— Claro, respondeu ele, sob uma condição.

— E qual é?

Ele se inclinou, e antes que Cris percebesse o que ele ia fazer,


colocou um braço nas suas costas e outro debaixo de seus joelhos,
levantou-a e carregou-a até a cozinha.

— Desta vez, você deixa-me andar por nós dois.


Apenas Amigos
10

— E então? Como soube que eu estava aqui? perguntou ela ao


Douglas uma vez instalada na cadeira junto à mesa da cozinha.

— Liguei para sua casa ontem à noite. Sua mãe me disse. Ela falou
também que você vai ao "Desfile das Rosas" conosco.

— Para o desfile, sim. Não para passar a noite.

— E como vai chegar a Pasadena?

— Meu cozinheiro predileto vai me levar, disse Cris no momento


que Bob colocava ovos mexidos e duas lingüiças no seu prato. Ah, tio Bob!
Já conhece o Douglas? Douglas, este é meu tio Bob.

— Prazer em conhecê-lo, Douglas. Diga quando chega, falou Bob e


começou a pôr ovos no prato dele.

Cris ficou a observar o prato cobrir-se de ovos. Afinal ele disse:

— Aí está bom. Muito obrigado.

— Seis dessas lingüicinhas lhe parecem o suficiente para começar?


perguntou Bob. Posso fazer mais. Ainda tem torradas também.

— Me parece ótimo, muito obrigado.


Douglas colocou pimenta sobre os ovos, e depois virando-se para
Cris, continuou:

— Sabe? Eu estava pensando em ir de carro a Pasadena de


madrugada. Você podia vir comigo, se quiser. Ou melhor, se seu tio não se
importar.

— Pode me chamar de Bob, disse ele, colocando um prato de


torradas à frente dos jovens. Não me importo, não, mas depende da Cris.

Ela olhou para o tio e depois para o Douglas.

— Você estava mesmo pensando ir de manhã, Douglas? Não estava


planejando passar a noite na rua, não?

— Ah, eu fiz isso uma vez antes. É legal. Mas faz muito frio e a
gente não dorme nada. E ficar comendo hambúrgueres e cachorro-quente
só é bom nas primeiras quatro horas. Quando começa o desfile, todo
mundo já está um tanto exausto. Prefiro ir de carro, de manhã. Podemos
sair cedo, tomar café na estrada e depois ir nos juntar aos amigos que a
essa altura estarão famintos e rabugentos. Que é que você acha?

— Acho que você está propondo isso só para ser bonzinho.

— E então, eu sou bonzinho. Quer ir comigo?

— Claro, concordou Cris finalmente. Tenho de pedir aos meus pais


para verificar se eles permitem.

Douglas sorriu e colocou mais uma garfada de ovos na boca. Cris


olhou para o tio. Ele deu uma piscada e ela compreendeu que ele estava se
vendo como um verdadeiro "cupido". Ela se lembrou do Jon e do biscoito
da sorte que dizia que ela não sabia o que tinha à sua frente.

Será que o Douglas estava mesmo interessado nela, visando a algo


mais que simples amizade? Ela não sabia se queria pensar na idéia.

Marta chegou em grande estilo, o cabelo penteado e a maquiagem


perfeita. Cris apresentou os dois e Marta disse:

— Tenho certeza que já vi você por aqui. Não foi você que veio
numa camioneta amarela ano passado, logo depois que eu e Cris chegamos
do cabeleireiro?

Puxa, tia Marta! Você devia trabalhar para o FBI! Eu tinha me


esquecido completamente. Você não perde uma, não é mesmo?

— Pode ter sido eu, disse Douglas.

Obviamente, não era uma lembrança de grande valor para ele.

Cris se lembrou de que tinha acabado de fazer permanente, e ela e o


Douglas estavam no quintal da frente. Douglas havia dito que o cabelo dela
tinha cheiro de maçãs e tinha se chegado mais perto para cheirá-lo no
instante em que o Ted passava de carro. Cris teve certeza de que o Ted a
vira, naquela posição, perto do Douglas.

As coisas mudam tanto num ano. Eu fiquei tão envergonhada! Mas


hoje o Douglas cai em cima de mim e eu acho engraçado. Será que
mudei? O Douglas mudou? O que é que está diferente?

Ela se lembrou de mais um incidente que acontecera naquele dia, um


ano atrás. Douglas tinha lhe dito que estava saindo com a Trícia. Cris sabia
que ele e a Trícia tinham namorado muito pouco tempo, mas continuavam
sendo bons amigos, como ela queria ser com o Rick.

Resolveu que logo que conseguisse se livrar dos planos da tia Marta,
iria procurar a Trícia e perguntar como ela conseguira continuar sendo
amiga do Douglas.

— Pensei em sairmos logo cedo às compras, Cris, disse Marta. E


Bob, tenho uma lista pronta de provisões para a festa e... Ah! Douglas, que
falta de educação a minha!

— Como? perguntou ele. Tem uma tarefa na sua lista para mim
também?

— Claro que não! Eu me esqueci de convidá-lo para a minha festa.


Quer dizer, para a festa da Cris. Vamos dar uma festinha para a Cris no dia
de Ano Novo, logo após o "Desfile das Rosas". Espero que você possa vir.

— Claro! Parece ótima idéia.

— Todos os seus amigos são convidados, e vai ter muitos comes e


bebes.

— E futebol no meu telão novo, acrescentou Bob.

— Pode contar comigo, disse Douglas, terminando seu último


pedaço de torrada.

Cris não acreditava que ele tivesse comido tudo que lhe serviram.

— Maravilha! disse Marta, pegando seu bloco no balcão. Posso


marcar uma confirmação da minha lista de convidados. Ou melhor, lista da
Cris.
Cuide de sua vida, tia Marta!

— Parece que está com planos para um dia cheio. Não quero
interromper, disse Douglas, afastando a cadeira. Mas queria lhe perguntar,
Cris, se não tiver programa para hoje à noite, quer jantar comigo lá na casa
da Trícia?

Por um instante ela pensou que ele ia convidá-la para jantar fora com
ele e começou a se apavorar, sem saber o que responder.

— Tem certeza de que está tudo bem com a Trícia e a mãe dela?
perguntou, quando percebeu que o convite era para ir à casa da Trícia.

— Claro! Disse a ela, ontem à noite, que você estava aqui, e ela me
pediu para convidá-la.

— Quero mesmo me encontrar com ela. Se você tem certeza de que


está tudo bem, então, quero ir, sim.

— Ótimo! Eu pego você lá pelas 5:45.

— Você quer dizer pegá-la no seu carro ou pegá-la no colo, do jeito


que fez hoje quando a trouxe para a mesa do café? perguntou Bob com ar
brincalhão.

Douglas se afastou da mesa e sorriu para Cris.

— O que for preciso. De preferência, só na minha camioneta. Cris


começou a pôr-se de pé. Douglas estendeu a mão para impedi-la.

— Por favor, não se preocupe em me levar até a porta. Prefiro que


minha saída seja um pouco mais tranqüila do que a minha chegada.

Ela sorriu e retrucou.


— Como queira, senhor.

— Mais uma vez, muito obrigado pelo café.

Douglas acenou para Bob e Marta. Apontando para Cris, disse:

— Eu a vejo hoje à noite.

Bob e Marta olharam para Cris com sorrisos enigmáticos parecendo


dar a entender que havia alguma coisa entre eles, enquanto observavam o
Douglas caminhar até a porta da frente.

No momento em que a jovem ouviu a porta fechar-se, exclamou:

— Já sei o que os dois estão pensando. Não é nada disso! Podem


parar agora mesmo!

Bob e Marta se entreolharam com ar inocente e deram de ombros.

— Ele é apenas o Douglas, continuou Cris. E somos apenas amigos.


Ele só estava sendo educado comigo. Parem de me olhar desse jeito!

Bob retirou a mesa em silêncio. Marta escreveu alguma coisa nos


seus bilhetinhos. Depois, erguendo os olhos com o rosto sério, perguntou:

— Então, vamos fazer algumas compras?

Obediente, Cris seguiu a programação estabelecida pela tia,


esperando o dia todo que ela mencionasse o nome do Douglas. Mas Marta
nada disse, o que foi um ponto a seu favor.

Ficaram quatro horas no shopping, e Cris escolheu dois conjuntos,


ambos em oferta. Voltaram para casa, ela terminou de lavar e secar sua
roupa e deu uma ajeitada no seu quarto. Até aí, Marta nada dissera. Bob
convidou Cris para dar uma breve caminhada na praia, no final da tarde.
Ela tinha certeza de que ele teria algumas "palavras de sabedoria" para lhe
dizer sobre o Douglas. Mas não, Bob também não disse nada.

Cris sentiu-se aliviada quando o Douglas chegou. Agora podia parar


de ficar imaginando explicações. Ele abriu para ela a porta da camioneta e
ela entrou, vestindo um dos conjuntos novos e sentindo-se bem a com a
liberdade de ir e vir sob os cuidados irrestritos de Bob e Marta. Havia
algumas cartas no assento do motorista, e Cris as pegou para que ele
entrasse sem sentar em cima delas.

— Alguma coisa empolgante na correspondência de hoje? perguntou.

Na verdade, ela queria saber se ele tinha notícias do Ted, mas sabia
que era pouco provável.

— Ah! desculpe isso aí, disse ele, colocando as cartas no bolso


lateral da porta.

Pegando uma carta, disse:

— Na verdade, tem. Hoje recebi uma carta do Joabe. Douglas


entregou-lhe um pedaço de papel diferente, meio marrom, escrito a lápis.
Era difícil de ler.

— Quem é Joabe?

— É um garoto do Quênia. Olhe aqui! Tenho um retrato dele na


carteira.
Douglas abriu o porta-luvas, tirou a carteira e mostrou uma fotografia
de um menino magro, negro, de uns dez anos. Tinha uma expressão séria
no rosto e vestia algo parecendo uniforme escolar.

— Como você o conheceu?

Cris percebeu que o menino tinha o mesmo olhar desesperado da


menina do jornal. Só que Joabe parecia ter mais saúde.

— Nosso grupo "Amigos de Deus" começou a apadrinhá-lo no início


do ano letivo. Colocamos um vidro grande perto da porta do apartamento e
todo mundo jogava ali os seus trocados. Passado mais ou menos um mês,
juntei as moedas. Havia quase trinta dólares, mais do que suficiente para
comprar alimento para ele durante um mês. Ele não é um garoto legal?

— Douglas, isso é maravilhoso! Quero apadrinhar também! Como


você fez para escolher esse garoto?

— Tem um monte de boas organizações que oferecem


apadrinhamento. Olhe aqui! disse ele, estendendo-lhe o envelope da carta
de Joabe. Pode ficar com isso. O endereço está aí.

Cris guardou o envelope na bolsa. Era uma forma de retribuir um


pouco do que Deus lhe dera em bênçãos. Talvez ate mesmo pudesse
convencer Bob e Marta a apadrinhar uma criança. Por que só uma? Bob
podia financiar um orfanato inteiro.

A mãe de Trícia tinha feito lasanha. Douglas serviu-se várias vezes.


Quando já ia pela quarta vez, Trícia cutucou a Cris por baixo da mesa e
elas se entreolharam admiradas. Após o jantar, o pai de Trícia e Douglas
saíram para jogar um pouco de basquete no quintal. A mãe disse que
cuidaria da louça; então Trícia e Cris se retiraram para o quarto da Trícia.

— Onde será que ele enfia tudo aquilo? E como ele ainda consegue
bater bola por aí depois de comer daquele jeito?

— Eu sei, disse Trícia entre risadas. Uma vez, no ano passado, eu e o


Douglas saímos para jantar e fiquei muito envergonhada porque ele pediu
ao garçom para trazer pão não sei quantas vezes. Acho que ele comeu umas
duas bisnagas, além de muita comida.

— Quanto tempo vocês namoraram? Quer dizer, quanto tempo


estiveram oficialmente "comprometidos"?

— Não sei se namoramos oficialmente. Foi estranho. Bem, você se


lembra, você estava aqui. Saímos durante uns dois meses, talvez menos.
Não foi nada sério, não.

— Foi mais ou menos o tempo que eu namorei o Rick. Mas eu e ele


mal nos falamos agora. Como você e o Douglas conseguiram manter a
amizade depois?

Trícia parecia confusa.

— Já éramos amigos antes de eu ter aquelas idéias doidas de que era


preciso "oficializar" o namoro. A parte do namoro foi a mais difícil. Ter
amizade com o Douglas sempre foi fácil.

— Com o Rick é diferente. Com ele é tudo ou nada. E agora é nada.

Cris estava deitada de bruços na cama da Trícia, cabeça e braços de


lado.
— Já vi que vocês dois não conseguiram conversar naquela noite,
depois da pizza.

— Não. Eu atrapalhei tudo. Chamei-o de Ted.

— Você chamou o Rick de Ted?!

— Bem, ele estava assim, tentando dominar tudo, me pressionando, e


dizendo que eu não confiava nele. Eu estava pensando que o Ted jamais me
trataria desse jeito; aí me descuidei e o chamei de Ted.

Trícia rolou e ficou deitada de costas permanecendo calada alguns


instantes. Afinal indagou:

— Posso lhe fazer uma pergunta pessoal? Se não quiser, não precisa
responder.

— Pode. O quê?

— Você já beijou o Rick?

— Sim, um monte de vezes. Ou melhor, ele me beijou. Não fizemos


nada além disso, se é o que quer saber. Por quê? Você e o Douglas não se
beijaram quando estavam namorando?

— Não.

— Não? Vocês namoraram quase dois meses e ele nunca a beijou?

— Douglas nunca beijou menina alguma.

— Está brincando! Que idade ele tem?


— Fez vinte anos mês passado. Você não sabia disso? Ele quer que a
primeira garota que ele venha a beijar seja sua esposa, no dia do
casamento.

— Verdade? Eu não sabia dessa!

— Achei que ele e o Ted tinham feito uma espécie de pacto de


castidade e que você soubesse.

Trícia se ergueu com um movimento brusco.

— Espere aí! falou. Você quer dizer que o Ted já a beijou? Cris
aprumou o tronco, sentindo-se um pouco sem graça.

— Só umas três ou quatro vezes, e sempre perto de outras pessoas.

Trícia tinha um certo brilho nos olhos quando fitou a amiga.

— Estou admirada! Isso é muito significativo, Cris. Tenho certeza de


que você é a única garota que o Ted já beijou.

Naquele momento, Cris se sentiu uma garota muito especial, mas


esse sentimento diminuiu quando se deu conta de que o Ted não fora o
único rapaz que ela tinha beijado. Nesse instante teve vontade de nunca ter
namorado o Rick Doyle. Se pudesse voltar atrás e viver de novo os últimos
meses, teria agido de outro modo. Nem o Rick nem outro rapaz qualquer a
pressionariam para ser diferente do que ela era em seu coração.

— Não fique assim tão séria. Ei! Sabe o que dizem por aí, não sabe?
Às vezes é preciso beijar uns sapos para que o príncipe encantado apareça.
O Desfile das
Rosas Brancas
11

Quando Douglas chegou às cinco da manhã no primeiro dia do ano,


Cris atendeu a porta, pronta para sair, com um cobertor numa das mãos e
um saquinho com os brownies na outra. Não dava para enxergá-lo do
mesmo jeito que antes. Douglas era o único rapaz de vinte anos que ela
conhecia e que alimentava crianças famintas na África e estava se
guardando para a futura esposa. Essa espécie de atitude era, como dizia o
próprio Douglas, irresistível.

— Minha carruagem aguarda por ti, ó linda princesa, disse ele


curvando-se ligeiramente.

— Já estou indo! gritou para os tios em meio ao silêncio da manhã.

— Esperem um pouco! pediu Bob da cozinha.

Daí a pouco, ela vinha de lá com uma cesta de piquenique repleta do


desjejum que ele preparara.

— Não sei se vão achar muitos restaurantes abertos no feriado,


explicou. Achei que isso poderia ajudá-los a agüentar a barra até
encontrarem comida de verdade.
— Obrigada, disse Cris.

Pegando a cesta, Douglas ecoou o mesmo agradecimento:

— Muito obrigado!

— Veremos vocês e a turma depois do desfile, replicou Bob.


Divirtam-se!

Cris deu um tchauzinho para o tio e foi seguindo o Douglas até a


camioneta. Ele deixara o motor e o aquecimento ligados, e dentro do
veículo estava quentinho. A viagem de cerca de hora e meia até Pasadena
acabou sendo um piquenique. Cris ia colocando bolinhos de mirtilhos na
boca do Douglas e segurava a caixa de laranjada para ele beber sem tirar as
mãos do volante, nem os olhos da estrada. Bob tinha mandado um farto
banquete, e Douglas, como de costume, devorava tudo.

— Falei com o meu tio sobre o Joabe, disse Cris, e lhe dei o endereço
e disse que eu quero apadrinhar uma criança. Eu lhe disse que achava que
ele também deveria apadrinhar algumas.

— E qual foi a reação dele?

— Boa. Não disse muita coisa. No Natal nós tivemos uma discussão.
Ele indagou como Deus podia ser um Deus de amor e deixar pessoas
morrerem de fome no mundo. Ontem falei pra ele que achava que Deus lhe
dera bastante dinheiro para ele poder ajudar a solucionar o problema da
fome no mundo, mas ele tinha que se dispor a repartir seus bens com
outros.

— Puxa, Cris! Você atacou de frente, hein!


— Eu tenho opiniões muito firmes a esse respeito, e queria que meu
tio soubesse que estava falando sério. Ele sempre me deu liberdade de
dizer-lhe tudo o que penso.

Douglas deu um sorriso.

— Você tem razão nessa questão de compartilhar com outros o


dinheiro que temos. Mas é difícil pensar como Jó e dizer: "Deus deu, Deus
tirou, bendito seja o nome do Senhor."

Cris pensou um instante e perguntou:

— Jó? Foi aquele cara da Bíblia que passou por todo aquele
sofrimento, não foi?

— Foi. Ele perdeu tudo que tinha, mas permaneceu firme e não
culpou a Deus por seus problemas. No final, Deus o abençoou muito,
dando-lhe mais do que ele tinha anteriormente.

— Não sei se eu teria uma fé assim, confessou Cris.

— Eu sei que eu não teria, comentou Douglas. E Deus também sabe,


porque não fez comigo o que fez com Jó. Deus parece ter uma medida
específica para cada pessoa e só dá a dose certa a cada uma. É radical, não
acha?

— Mas será mesmo que Deus dá uma dose imensa de sofrimento


para as crianças que estão passando fome, e que elas conseguem suportá-
la?

Cris não estava muito convencida da explicação dada pelo Douglas.


— Não sei, disse Douglas, deixando a rodovia e entrando numa
estrada secundária. Sei que ele conhece a cada uma pelo nome, e promete
sustentar a todos que criou. Também sei que nós agimos como crianças
mimadas, e nem nos damos conta disso. Queremos que Deus seja nosso
escravo pessoal e nos dê o que queremos quando tocamos a "campainha"
da oração. Devia ser o contrário. Ele é Deus. Ele é tremendo. Pode fazer o
que quiser. Ele é o Senhor. Nós é que devíamos ser os servos, os servos
dele.

Cris reconheceu que já agira como uma menina mimada, mais de


uma vez. Sabia que também tinha tratado a Deus desse jeito, como se ele
fosse seu escravo para fazer a sua vontade.

— E então, como é que nos tornamos servos de Deus?

— Entregando-nos a ele. Oferecendo-nos a ele.

— Parece que estou sempre tendo que fazer isso.

— Ah! Eu também. É um ato constante. Temos que estar sempre


decidindo se serviremos a Deus ou a nós mesmos. Geralmente, é mais fácil
servir a nós mesmos.

— Ainda bem que ele não fica fazendo contas, procurando me


mostrar quantas vezes tenho de pedir perdão.

— Sei bem o que você quer dizer. Deus é mesmo tremendo, radical,
não acha?!

Cris concordou. Olhando de sua janela os carros estacionados na rua,


acrescentou:
— Realmente, gostei muito de você ter me trazido aqui, Douglas.

Começou a imaginar como seria se namorasse o Douglas, e saísse


mais vezes com ele. Ele era um rapaz muito legal. Afinal, Bob, Marta e até
mesmo o Jon achavam que ela precisava reconhecer que ele era um
tesouro.

— Ainda bem que deu certo. Você é como uma irmãzinha para mim,
Cris, e gosto de ficar de olho em você para o Ted, comentou Douglas, e em
seguida deu-lhe uma olhada significativa, como se não devesse ter dito
aquilo.

Cris sentiu-se um pouco sem jeito, não sabendo se deveria sentir-se


ofendida. Era muito constrangedor ter pensamentos românticos sobre um
rapaz que se via apenas como seu guarda-costas.

— Posso lhe fazer uma pergunta? indagou Cris falando


apressadamente para não perder a coragem. Você está interessado em mim
porque sou sua amiga ou o Ted lhe pediu que me vigiasse ou coisa parecida
enquanto ele estivesse longe?

— O que eu disse lhe pareceu indelicado?

— Não entendi direito o que você estava querendo dizer.

— Gosto da sua companhia, Cris, e acho que você é uma irmã em


Cristo maravilhosa. Mas nunca pensaria em namorá-la a sério, enquanto
essa pulseira estivesse no seu braço. O Ted é meu melhor amigo e eu nunca
o trairia.

Cris olhou a pulseira e naquele momento se deu conta de que ela era
a única coisa do Ted que não tinha guardado naquela caixa.
— Mas o Ted me pediu para fazer isso? Não. Eu quero estar com
você porque você é você e valorizo nossa amizade. Eu não sou mesmo de
namorar muito. A Trícia, provavelmente, lhe contou que sou melhor como
amigo do que como namorado, não contou?

Cris apreciava a sinceridade do Douglas, e compreendeu que ambos


estariam melhor mantendo o relacionamento exatamente como era. Mas
não conseguia deixar de imaginar se essa relação teria sido diferente, se o
Ted não tivesse conquistado um lugar no seu coração.

Conhecera os dois no mesmo dia. Por que será que ela e Ted eram
tão próximos, enquanto ela e Douglas eram "apenas amigos"?

— Ótimo! Tem uma vaga ali.

Ele entrou numa área de chão batido, parou ao lado de outros carros
e desligou o motor. Ele e Cris pegaram cobertores, uma pequena caixa de
isopor e, é claro, o saco de brownies que tinham guardado, e saíram com os
braços cheios.

Andaram vários quarteirões até a avenida Colorado, onde se viam


centenas de pessoas nas calçadas, sentadas em cadeiras de praia com o saco
de dormir puxado até o queixo. Numa esquina, passaram por um banheiro
móvel, com uma longa fila à porta.

Cris notou uma casa antiga com uma ampla varanda e uma enorme
árvore no jardim da frente. Haviam colocado uma rede entre a varanda e a
árvore, e dois meninos da idade do seu irmão estavam juntos na rede,
enfiados sob cobertores e parecendo um imenso casulo suspenso no ar frio
da manhã.
Tio Bob tinha razão. Todo mundo dorme na rua esperando a parada.
Se meus pais pudessem ver isso, iriam compreender que não havia perigo
em me deixar passar a noite aqui também.

Alguns metros para a frente, Cris notou uns rapazes de idade


universitária brincando com uma bola de futebol americano tipo "Nerf", na
rua fechada.

— Me parece o Rick, disse Cris. Não sei quem é o cara que está com
ele.

O rapaz que recebeu a bola do Rick vestia um agasalho de moletom


azul-marinho de capuz puxado por cima da cabeça, o que tornava difícil
determinar sua identidade.

— Você não acha que... Douglas começou e parou.

— O quê?

— Ah, bobagem! Por um instante pensei que fosse o Ted. Ele tem um
moletom desses.

De repente Cris sentiu uma forte emoção, como se tivesse acabado


de descer a montanha russa de olhos vendados. Não pode ser o Ted. Pode?
E se for?

— Olá, Rick! gritou Douglas, acenando para eles. Rick segurou a


bola e olhou à sua volta.

— Aqui! gritou Douglas.

Rick o avistou e acenou também. O outro rapaz correu com ele, e


Cris tentou ver quem era. O jeito de correr não era do Ted.
O cara abaixou o capuz do agasalho, revelando um cabelo ruivo,
flamejante, que só podia ser da Katie.

— Olá! cumprimentou ela com entusiasmo.

Cris suspirou fundo e sentiu o estômago dar outro salto mortal.

— Onde você arranjou esse moletom?

— É do meu irmão. Por quê?

— Só fiquei imaginando, disse Cris, tentando acalmar a amiga. E aí?


Cadê o resto do pessoal?

— Não os encontramos ontem à noite.

— Quer dizer que você e o Rick ficaram aqui a noite inteira, só os


dois?

No momento em que falou, percebeu que parecera uma censura.

— Puxa! O que aconteceu com você hoje cedo? Levantou no lado


errado do ano novo?

— Não, desculpe! Retiro tudo que eu disse. Vamos começar de novo.


Katie! Estou tão contente de ter encontrado você! Como vão as coisas?

Katie lançou-lhe um olhar questionador e disse:

— O Rick queria esperar vocês dois chegarem para depois a gente


sair procurando o resto do grupo, já que combinamos nos encontrar nesta
esquina.
Rick e Douglas, sobraçando os pertences do Rick e da Katie, se
juntaram às duas garotas. Rick entregou a Katie a mochila e o cobertor
dela.

— Pronto para um safári? perguntou Douglas. O resto do grupo tem


que estar em algum lugar por aqui.

Sentindo-se como uma refugiada, Cris saiu caminhando atrás do


Douglas e Katie atrás do Rick. Os rapazes as conduziram à rua onde era
mais fácil andar sem esbarrar em ninguém.

— Tenho a sensação de que todos estão nos olhando, como se


estivéssemos desfilando, comentou Cris com Katie. Espero que
encontremos logo a turma. Essas coisas estão ficando pesadas.

— Olhe ali! falou Katie apontando para o outro lado da rua onde um
moço montava uma câmera de televisão sobre uma plataforma ajustável de
metal. Olá, mamãe! exclamou ela, acenando para a câmera. Feliz Ano
Novo!

Apreciando mais do que a Cris a idéia de estar no meio da rota do


desfile, Katie começou a fazer gracinhas, dando tchau para as crianças que
estavam aguardando o desfile.

— Bom dia, meus amiguinhos! disse com sua voz de anãozinho.


Levantem-se e brilhem! A grande parada está prestes a começar!

— Pare com isso! repreendeu Cris por brincadeira. Elas estão


começando a acenar para você. Acham que você faz parte do desfile.

Katie riu-se e exclamou:


— A gente tem que aceitar os fãs onde eles aparecem! Ouviram então
alguém chamar:

— Olá, Cris! Douglas! Olhem aqui, gente!

Os quatro atravessaram a rua e encontraram Trícia e Helen. Um


grupo de cerca de uma dúzia de pessoas que Cris conhecia de reuniões na
praia estava acampado perto da rua. Nos dez minutos seguintes, houve uma
série de abraços, apresentações e explicações.

Uma vez instalados, e com os cobertores arranjados no espaço de que


dispunham, Cris, sentada ao lado de Trícia, disse:

— Sinto-me como uma daquelas mulheres pioneiras que viajaram


seis meses para chegar a Califórnia. De alguma forma, esse "Desfile das
Rosas" pareceria mais glamuroso se eu estivesse confortavelmente
instalada na frente de minha televisão.

— E então? Conseguiu conversar com o Rick?

Antes de Cris responder, o Rick apareceu e perguntou:

— Alguém falou o meu nome?

— Oh! exclamou Trícia que se assustara com ele. Olhou para a Cris e
para o Rick e disse:

— Eu estava perguntando à Cris se vocês dois tiveram tempo de


conversar.

Cris desviou o olhar para não ver a expressão do rapaz.

— Não sei. Tivemos oportunidade de conversar, Cris? perguntou ele.


— Não exatamente.

— Então, talvez você deva dar uma passada no meu escritório, disse
ele, dando-lhe a mão para que ela se levantasse.

Cris olhou para a Trícia como quem pergunta: "Como você teve
coragem de fazer isso comigo?"

Rick foi andando com Cris afastando-se da multidão e desceu uma


rua fora do circuito do desfile. Parou num muro baixo de blocos de
cimento, em frente de uma casa, sentou-se e fez sinal para que ela se
sentasse do lado dele.

Ela se lembrou da vez em que, no ano passado, Rick se sentara com


ela num muro de blocos de cimento da escola, convencendo-a a candidatar-
se a chefe de torcida. Agora sentia o frio úmido do muro passando através
do jeans, e tremia.

— Está com frio? perguntou Rick, despindo-se do casaco com a letra


bordada do time da escola e colocando-o sobre os ombros dela, antes que
ela pudesse replicar.

O agasalho tinha o cheiro de Rick. Parecia que os braços dele


estavam mais uma vez em volta de seus ombros. Ele estava sendo amável,
gentil e olhava para ela com ternura. Finalmente, chegara o momento de
conversar, e ela não sabia o que queria dizer para ele.

— Sabe, você é a única menina com quem fiz isso, disse ele, com um
meio-sorriso.

— Fez o quê?
— Ter uma conversa depois de terminado o namoro. Você é a
primeira. Às vezes as amigas delas me procuravam, geralmente para dizer
que eu tinha sido um cafajeste com a amiga.

Esse era o lado vulnerável do Rick que, como ela percebia, ele não
mostrava muito. Fitou-o como que a dizer-lhe que continuasse.

— Desde o primeiro grau, sempre que eu saía com uma garota e


depois terminava com ela, a gente nunca mais se falava. Agora na
faculdade, conheço uma porção de garotas que são apenas boas amigas.
Mas, veja só, você está no meio. Não é nem como as meninas que eu
namorei no colégio, e nem como as garotas da faculdade ou do nosso
estudo bíblico universitário. Não sei o que faço com você.

Sentindo o casaco a aquecê-la e aquela atmosfera tão terna entre eles,


Cris teve vontade de dizer: "Tome-me nos braços e me abrace! Serei como
você quiser que eu seja, Rick!" Felizmente, ela se lembrou dos seus
sentimentos feridos, das tensões e insegurança que experimentara nos
meses em que namoraram. Lembrou-se da arrogância e ousadia dele
quando lhe tomara a pulseira do Ted.

— Deixe que eu seja uma de suas amigas, como as garotas do estudo


bíblico, falou Cris, baixinho. Quero ser sua amiga, como sou do Douglas e
desses outros rapazes. E quero que você seja amigo da Trícia, Helen e
Katie. Quero que a gente possa fazer coisas juntos sem nos sentirmos mal
por causa do que aconteceu no passado.

— Eu também quero isso, disse ele, pegando-lhe a mão e apertando-


a. Amigos?
— Amigos, concordou ela, apertando-lhe também a mão. Você tem
certeza de que está tudo bem?

— O que você quer dizer?

— Na última vez que tentamos conversar, você me disse que achava


que eu não confiava em você e que eu nunca quis de fato aprofundar nosso
relacionamento. Você ainda pensa assim?

Ele deu um grande suspiro.

— Você sabe muito bem que sempre tive ciúme do lugar que o Ted
ocupa em sua vida. Talvez haja lugar para nós dois, talvez não. É você
quem vai ter que decidir. Não vejo mal algum em sermos amigos e em
você ser amiga do Ted, enquanto for só isso. Amizade.

Cris gostou da idéia, apesar de haver algo na voz do Rick que lhe
dava a impressão de que ele queria mais que isso no relacionamento. Mas,
por enquanto, ele parecia disposto a esperar e ser apenas amigo,
exatamente o que ela queria dele. Era difícil acreditar que era o mesmo
Rick que a deixara no estacionamento do shopping uma semana antes.
Fosse lá o que fosse que o tinha amaciado, Cris estava satisfeita e mais
aliviada. Finalmente, podia entregar completamente esse relacionamento
ao Senhor.

Um vendedor ambulante passava pela rota do desfile, levando um


tabuleiro de rosas.

— Vamos levar uma dessas, disse o Rick. Quanto custa?

— Cinco dólares cada, disse o homem, mostrando uma variedade de


cores de botões de rosas.
Rick tirou umas notas amassadas do bolso:

— Me dê uma vermelha, pediu.

— A vermelha significa amor, disse o homem com um sorriso de


satisfação, pegando o dinheiro e entregando-lhe o botão.

Cris lembrou-se das rosas vermelhas que Rick lhe dera quando
namoravam. Assim que haviam murchado, ela as jogara fora. Rick olhou
de novo o tabuleiro e perguntou:

— Qual é a que simboliza amizade?

— Amarela, disse o moço, trocando a amarela pela vermelha na mão


do Rick.

— E o que a branca simboliza?

— Pureza de coração.

— Vamos ficar com a branca, disse Rick.

Assim que o vendedor foi embora, ele virou-se para Cris e disse:

— Você é a primeira garota a quem dou uma rosa branca. Você ouviu
o que ele disse? Significa pureza de coração, e é isso que você é, "olhos de
matar".

Cris aceitou a rosa branca com um nó na garganta. Foi o maior elogio


que o Rick lhe fizera desde que se conheceram. Essa rosa ela guardaria.
"Katie, Você Não
Pode Ter Feito Isso!"
12

Quando Cris e Rick voltaram para onde estava o resto do grupo,


Douglas foi o primeiro a notá-los. Estendeu ao amigo o saquinho com os
brownies que Cris tinha feito e disse:

— Rick, você tem de provar esses brownies. São os melhores que já


comi!

Trícia aproximou-se de Cris e perguntou-lhe:

— E então, como foi?

— Bem, respondeu Cris num sussurro, acho que tudo, finalmente, se


resolveu, e estou me sentindo bem.

— É o que eu desejava ouvir. Desculpe-me ter forçado a barra um


pouco.

— Ainda bem que você forçou. Acho que se não fosse assim, não
teríamos conversado. Você fez o que era certo. Obrigada, Trícia.

Como ela fitasse a rosa branca na mão da amiga, Cris acrescentou:

— Foi o Rick que me deu. Um presente de amizade.


Trícia sorriu.

— Ainda bem que está tudo resolvido. É um bom jeito de iniciar o


ano novo.

Durante a hora seguinte, o grupo comeu e conversou, e os rapazes e


Katie jogaram futebol na rua. Mais vendedores apareceram, oferecendo
lembranças. Cris limitou-se a ficar sentada sobre o cobertor, atenta à
agitação em derredor. A manhã começou a esquentar e ela tirou o casaco
pesado.

Afinal, os guardas especiais do "Desfile das Rosas" começaram a


aparecer, caminhando apressados pela rua, obrigando a multidão a recuar
para as calçadas. As pessoas se apertavam mais, fazendo com que Cris e
Trícia ficassem mais juntas. Os espectadores esticavam o pescoço para
verem se vinha subindo alguma novidade pela rua. Ouviram sirenes. Um
grupo de guardas de motocicleta abria caminho e os carros oficiais dos
dignitários começaram a passar, seus ocupantes acenando para todos.

— Quem são eles? perguntou Cris depois que o primeiro conversível


passou.

— Quem sabe? Alguém importante. Simplesmente acene pra eles.

Trícia e Cris acenavam e riam como crianças sentadas na calçada.


Um dos homens importantes retribuiu-lhes o aceno.

Seguiu-se o desfile da guarda naval, com a banda dos fuzileiros


iniciando sua exibição musical. A música era tão estridente que ela teve
vontade de tampar os ouvidos com as mãos, mas não o fez porque ninguém
mais estava tampando. O som dos tambores parecia fazer o chão vibrar e
seu coração batia forte. Ela já tinha estado em desfiles antes, mas nenhum
era igual a esse.

O primeiro carro alegórico passou, deixando-a maravilhada. Era um


imenso dragão verde soltando fumaça pelas narinas. O monstro girava pela
rua e estava a poucos metros da Cris. Ela observou de perto as camadas de
flores sobrepostas ao arcabouço do carro. A variedade de cores e tipo de
flores era surpreendente. As escamas do dragão pareciam de verdade.

— Olhe! falou Trícia rindo e apontou para as pernas do dragão. São


de brócolis!

— Está brincando!

— Verdade. E olhe, o rabo do dragão também é de brócolis. Ele é


vegetariano!

O grupo em volta da Trícia e da Cris caiu na gargalhada. Douglas,


sentado do outro lado da Trícia, disse:

— Eu dou nota oito. Ergueu oito dedos e assobiou.

Rick, que estava na ponta, concordou com ele e também levantou


oito dedos. Cris notou que Katie estava plantada em frente da cadeira de
praia do Rick, apoiando as costas nas pernas dele. Pareciam muito à
vontade, sentados assim juntos.

Apareceu o carro seguinte, e Douglas e Rick, com óculos de sol


iguais, descansaram as lentes sobre o nariz e se entreolharam como se
fossem os juizes oficiais do desfile. Rick levantou cinco dedos e Douglas
deu nota seis.
— Esse carro merece mais do que cinco ou seis! exclamou Cris,
voltando-se para a Trícia.

Parecia um campo de relva com flores silvestres gigantes e um


imenso livro de histórias no meio. Do livro saíam algumas borboletas
mecanizadas e havia um leve arco-íris sobre o campo, fazendo chover
purpurina colorida em cima dos espectadores.

— Eu dou nove e meio, disse Cris, levantando nove dedos e meio


mindinho.

— Não, respondeu Douglas. É só um seis. Espere chegar um dos


premiados. Aí você vai ver.

Assim que apareceu o carro seguinte, Cris levantou sete dedos, aos
quais Katie respondeu erguendo três dedos acima da cabeça de seus
amigos. Rick deu quatro, e Douglas cinco.

— Vamos lá, gente. Esse foi muito bom! exclamou Cris.

— Eu também daria sete, disse Trícia.

— Mas não estou vendo seus dedos indicando isso. Trícia enfiou sete
dedos no rosto de Cris.

— Tá vendo agora?

A seguir passou a banda de um colégio do Minnesota, e Rick se pôs a


assobiar alto, tentando chamar a atenção de uma das meninas que tocava
flauta na primeira fila.

— Esse rapaz não dá folga, hein! falou Trícia bem alto, em meio ao
som da música.
— Acho que não devo virar-lhe as costas, comentou Cris, abanando a
cabeça. Pelo menos é o que diz o Jon, o meu chefe.

Cris e Trícia falavam em voz tão alta, que o Douglas as ouviu.

— Você devia ter visto o Rick no semestre passado com uma garota
que morava no nosso bloco de apartamentos. Não lhe dava folga, e ela
mandou-o sumir em pelo menos quatro línguas.

Trícia olhou para a Cris para ver-lhe a reação. Cris manteve a


expressão séria, e continuou olhando para o Douglas como se estivesse
interessada na história dele, e ansiosa para que ele prosseguisse. Ele
começou a rir de algo que lembrara. E chegando mais perto da Trícia e da
Cris, explicou:

— O Rick sabia o dia em que ela lavava sua roupa. Acho que era
toda terça à tarde. Ele ia até a lavanderia com um cesto de roupa suja e a
esperava, fazendo de conta que era "por acaso" que ele estava lá dobrando
suas roupas. Depois voltava para o apartamento com as roupas sujas todas
bem dobradinhas.

— E ela nunca saiu com ele?

— Ela nunca nem lhe disse o seu nome! Esse cara não sabe levar um
fora.

— Ei! gritou Rick. Vamos ver as suas notas!

Ele estava dando sete, e Katie tinha erguido cinco dedos. O resto do
grupo se pôs a dar as notas. Douglas olhou rápido para o carro alegórico e
deu "seis".
Cris não sentia mais vontade de brincar. Obviamente sabia que na
faculdade o Rick conheceria outras garotas e provavelmente ficaria de
namorico com alguma. Mas nos dois primeiros meses ele ainda era seu
namorado. Sentiu uma dor na boca do estômago, pensando que enquanto ia
com ela à praia, no final de semana, ficava correndo atrás de outras garotas
na lavanderia, durante a semana.

— Ei! Você está bem? indagou Trícia dando-lhe um cutucão no lado.

Cris fez que sim, mas Trícia sabia que não era bem assim.

— Não fique chateada por causa do que o Douglas falou do Rick.


Agora vocês são apenas amigos, lembra? Não deixe os sentimentos ruins
atrapalharem a festa pra você.

— Eu só estava pensando que a garota da faculdade é mais


inteligente que eu. Não caiu na lábia do Rick. Eu me sinto uma idiota.

— Por quê? Por ter gostado de um cara e saído algumas vezes com
ele? Não vejo mal algum nisso. Agora vocês são apenas amigos. Não tem
nada de idiotice nisso.

— Me sinto idiota porque acreditei em tudo que ele dizia. Então


como vou acreditar no que ele me disse hoje cedo? Por que aceitei esta
rosa que ele me deu?

— Você tem que começar de algum jeito. Não dê tanta importância a


isso! Olhe só esse carro — sem dúvida merece dez!

Trícia levantou os dez dedos e assobiou com os demais.


Ela tem razão. Eu não devia fazer tanto caso das coisas. O que o
Rick faz e com quem ele sai não têm nada a ver comigo.

Quando o carro seguinte se aproximou, Cris entrara novamente na


brincadeira de dar notas. Outra banda surgiu e depois um carro alegórico,
que Cris considerou o melhor de todos.

Era uma Cinderela numa carruagem de abóbora, puxada por cavalos


de verdade. A carruagem estava totalmente coberta de rosas e exalava um
delicioso perfume ao passar. O carro era pequeno, não tinha ganho nenhum
prêmio, e a Cinderela parecia cansada de sorrir e acenar por aquele longo
trajeto.

Rick deu um, Katie deu dois, Douglas e Trícia deram três, e bateram
as mãos em cinco por terem dado a mesma nota. A princípio, Cris não quis
levantar as mãos. Mas depois, lembrando-se de que estava entre amigos e
deveria ser livre para expressar sua opinião, ergueu as duas dando um dez
perfeito, declarando a todos que acreditava em contos de fadas.

Rick notou e, pensando que era piada, deu um dez junto com o de
Cris, ficando de pé e assoviando para chamar a atenção da "Cinderela". A
moça nem olhou para ele, e Cris tentou dizer a si mesma que também não
deveria ligar para ele. Achava mesmo que merecia nota dez. E daí se o
Rick estava debochando dela? O que ele entendia de contos de fadas?

Após o carro da Cinderela, houve uma pausa no desfile. Alguém


atrás deles comentou que provavelmente algum dos carros tinha quebrado.

— É o momento perfeito para visitar o banheiro das meninas, disse


Trícia, pondo-se de pé. Quer ir comigo?
Cris também se pôs de pé e instruiu o Douglas:

— Guarde nossos lugares. Não deixe ninguém sentar aqui, está bem?

Douglas esticou as pernas compridas sobre o cobertor delas e


colocou sobre ele, no canto, seu isopor de refrigerantes, para marcar o
terreno.

— Se eu estiver dormindo quando vocês voltarem, me acordem.

As duas meninas se dirigiram para o banheiro. Katie e outra menina


do grupo, chamada Katrina, também foram.

— Foi uma piada engraçadinha a sua, Cris, disse Katrina. Quer dizer,
dando nota dez para o último carro.

— Não acho que era piada, disse Katie. Acontece que a Cris é a
pessoa mais romântica do mundo. Você achou mesmo que merecia um dez,
não foi, Cris?

— Achei.

— Bem, eu também gostei bastante, admitiu Katrina. Mas eu não


queria que os rapazes soubessem disso!

— Por que não? Eles só são rapazes. Alguns deles são tão românticos
quanto nós, talvez mais.

— Quem? indagou Katie. O Rick?

— Não, eu me referia ao Douglas, replicou Cris.

Ela abaixou a voz e as outras três inclinaram a cabeça para ouvir


melhor.
— Sabia que o Douglas tem vinte anos e nunca beijou uma garota?
sussurrou.

— Sem essa! exclamou Katie.

— Verdade, confirmou Trícia. Ele diz que vai dar o primeiro beijo na
esposa dele, no altar, no dia do casamento.

— Não é mesmo romântico?

— Pode imaginar como a mulher dele vai se sentir importante?


perguntou Katrina, os olhos arregalados de espanto. Provavelmente ela vai
querer nunca ter beijado outro rapaz.

— Eu sei, disse Cris. Pensei a mesma coisa. Tive vontade de nunca


ter sido beijada.

— Eu também, disse Trícia.

— E eu também, concordou Katrina.

Cris sabia que a Katie nunca tinha sido beijada, mas, em vez de sair-
se com uma de suas piadinhas feito "não ter esse tipo de problema", ela se
afastou um pouco das outras.

— Katie? chamou Cris.

Katie não olhou para ela. Querendo ser engraçada, Cris disse:

— Não tem nada a dizer, Katie? Você é a única de lábios virgens.

— Sei lá! murmurou Katie.

A porta do banheiro móvel se abriu e Katie entrou.


— Não acho que a Katie seja tão inexperiente como quer dar a
entender, disse Katrina baixinho.

— Claro que é, disse Cris. Sei tudo a respeito dela. Nunca teve um
namorado e nas poucas vezes que saiu com um garoto não houve nada.
Glen, o cara da igreja, de quem ela gosta, lhe deu um abraço, mas foi só
isso.

Katie saiu do banheiro e Cris parou de falar, esperando a Trícia, que


foi a segunda a entrar. Não olhou para a Cris, mas dirigiu-se a Katrina.

— Vou voltar pra lá.

Cris sentiu-se incomodada. Obviamente, envergonhara a Katie em


frente dessas garotas que ela mal conhecia. Parece que quando dissera
"lábios virgens" a frase não tivera aquele tom honroso que ela pretendeu
dar. Tentou imaginar como se sentiria se nenhum rapaz estivesse
interessado por ela, e sua melhor amiga fizesse uma piadinha sobre isso em
público.

Quando as três garotas voltaram para o grupo, Cris pensou em


chamar Katie de lado e pedir desculpas. Parecia impossível, porém, passar
entre a multidão sem chamar atenção. Katie estava sentada no mesmo lugar
de antes, encostada nas pernas do Rick.

Trícia foi até seu cobertor, abrindo caminho para a Cris. As pessoas
que se achavam atrás delas não pareciam felizes de deixá-las reassumirem
seus lugares na primeira fileira. Douglas aprumou-se quando elas
chegaram no seu pequeno ninho e disse:

— Vocês não perderam nada. Passaram uns dois cavalos, só isso.


Finalmente, chegou o carro seguinte, puxado por um caminhão de
reboque.

— Viva o rebocador! gritou Rick, batendo palmas.

Cris notou que dessa vez Katie não imitara as piadinhas do Rick.
Parecia estar chateada. Vários outros carros passaram, e Cris ficou olhando
para ver se Katie tinha saído dessa, mas a amiga parecia perdida em
pensamentos distantes. Perto do final do desfile, Cris viu o Rick inclinar-se
e dizer algo ao ouvido da Katie. Seu sorriso alegre voltou imediatamente, e
ela deu um soco brincalhão no braço dele. Parecia a mesma Katie de
sempre, e Cris respirou aliviada.

Quando o grupo começou a juntar as coisas para ir embora, Cris


disse aos amigos:

— Vocês todos sabem da festinha que vai haver na casa dos meus
tios, não sabem?

Todo mundo disse "sim".

Alguns perguntaram como se chegava lá e uma garota indagou se


deveria levar algum prato.

— Não, replicou Cris. Tenho certeza de que minha tia tem bastante
para alimentar um exército.

— Sua tia não sabe o quanto esses rapazes comem.

— Na verdade, acho que sabe, sim. Ela já viu o Douglas em ação,


respondeu Cris, sorrindo para o Douglas, que ouvira o comentário.

— Está bem. Estaremos lá. Obrigada pelo convite.


— Você vem comigo, não vem? perguntou ele à Cris.

— Acho que sim, respondeu enquanto olhava à sua volta, procurando


a Katie. Dá para levarmos a Katie conosco?

Cris queria aproveitar a viagem de volta para pedir desculpas à amiga


por seu comentário indelicado.

— Claro, se uma de vocês não acha ruim ir no meio.

— Eu vou no meio. Vou perguntar a ela.

Cris "costurou" por entre a multidão e tocou o braço de Katie, que


estava ao lado do Rick.

— Katie, quer ir comigo e o Douglas?

Ela olhou para o Rick e depois para a Cris.

— Sei não. Pensei em ir com o Rick, já que minhas coisas estão no


carro dele.

— Ah!

Rick interveio com seu meio sorriso, dizendo:

— Se quiser, pode vir conosco. O banco de trás fica todinho para


você.

Algo em seu modo de falar soava como uma bofetada em Cris. Por
que dava a entender que Katie ia na frente com ele e ela ficaria no banco de
trás? Por que assumia um ar protetor em relação a Katie?

— Obrigada, disse Cris, forçando um sorriso para ambos. Vou com o


Douglas, para ele não ficar sozinho.
— Está certo. Nós a veremos na casa do Bob e Marta, replicou Rick
colocando a cadeira de praia debaixo do braço e tomando a caixa de isopor
com refrigerantes da mão de Katie. Eu sei como se chega lá.

Como ele estava de óculos de sol, não dava para ver sua expressão,
mas tinha um tom confiante demais. Não era mais o mesmo rapaz terno
que conversara com ela no muro de cimento naquela manhã.

— Pronta? perguntou ele a Katie.

Os dois desceram a rua, com o Rick carregando quase tudo. Katie


nada disse, nem olhou para a Cris. Caminhou no passo do Rick, o cabelo
vermelho brilhando ao sol do fim da manhã.

Havia algo estranho. Cris não conseguia perceber o que era. Foi
caminhando, pisando no lixo que as pessoas haviam deixado pela rua e
juntou-se a Douglas e Trícia. Trícia tinha apanhado um saco de papel vazio
e estava juntando um pouco do lixo.

— Vamos embora. Eles contratam gente para fazer isso, disse


Douglas.

— Mas deixamos tanta bagunça! Pelo menos vou catar o do nosso


grupo.

Cris acompanhou a Trícia no projeto "limpeza" e em poucos minutos


o saco estava repleto de latas de refrigerante e invólucros de chocolate.

— Não acredito quanta sujeira algumas pessoas deixam atrás!


Erguendo a cabeça, Trícia percebeu que o resto do grupo havia ido embora
e só estavam os três.
— Parece que vou precisar de uma carona, disse ela a Douglas.
Ainda bem que vocês dois estão aqui.

Cris pegou outro saco vazio e depois de catar um pouco de lixo para
sentir que tinha feito sua boa ação do dia, disse:

— É melhor nós irmos embora senão todo mundo vai chegar antes de
nós.

— Você está certa, disse Douglas, temos uma caminhada a fazer até a
camioneta, e a estrada estará muito movimentada. Acha que pode deixar
essa de gari para os profissionais pagos, Trícia?

— Tudo bem, já estou indo. Cadê meu saco de dormir?

— Aqui, respondeu Douglas mostrando o saco enrolado debaixo do


seu braço.

Tinha também uma caixa de isopor, com gelo, uma cadeira de praia,
dois cobertores e o casaco da Cris.

— Vamos lá, Tarzã, disse Trícia, rindo-se. Pelo menos deixe que eu e
a Cris levemos os cobertores.

Douglas dividiu seu fardo com as garotas e saíram. Caminharam


quase dois quilômetros até a camioneta. Os pés de Cris estavam doendo.
Antes que ela entrasse, Trícia colocou-se no meio, apertada, ajeitando as
pernas curtas para o lado do câmbio. Cris ia protestar, mas Trícia realmente
era menor e cabia melhor ali do que ela.

Como o Douglas predisse, a estrada parecia um estacionamento com


os carros abarrotados a perder de vista. Ele ligou o rádio e relaxou,
aparentemente disposto a levar tudo na esportiva. Trícia colocou a cabeça
para trás e fechou os olhos, sentindo que a aventura de passar a noite toda
na rua a deixara exausta.

Cris olhou para fora e pensou que Rick e Katie estavam no Mustang
vermelho em algum ponto dessa confusão. Eles tinham estado juntos a
noite toda, só os dois, e a Katie não abrira o bico sobre o que aconteceu.

Um casal de jovens estava no banco de trás da camioneta ao lado. A


garota parecia tentar dormir, a cabeça encostada na janela, rosto virado
para o sol. Um sinal fechado forçou-os a parar, e o rapaz começou a fazer
cócegas na garota, sem piedade alguma. Ela brincava com ele também,
dando-lhe soquinhos no estômago. Então ele a abraçou e beijou. O sinal
abriu e quando eles saíram, Cris notou que a garota colocara a cabeça no
ombro do rapaz, acomodando-se para mais uma soneca.

Cris lembrou-se do jeito com que Katie se colocara na frente da


cadeira do Rick, dando-lhe uns dois socos de brincadeira durante o desfile.

De repente, ela entendeu por que Katie não dissera que nunca tinha
sido beijada.

— Não, Katie, você não pode ter feito isso! disse Cris em voz alta.

— O quê? perguntou Trícia, despertando de um cochilo. O que


houve?

— Nada, disse Cris. Desculpe-me tê-la acordado. Não ia dizer nada.


Só me lembrei de uma coisa.
A Trícia voltou a dormir e o Douglas batia os dedos no volante,
acompanhando o ritmo do rádio. Cris gritou em silêncio para si mesma:
Katie, não me diga que você o beijou!
A Festa de Marta
13

— Vamos entrando! Vamos entrando! disse Bob recebendo Cris,


Douglas e Trícia à porta da frente, quase duas horas mais tarde. Parece que
a maioria dos seus amigos chegou primeiro. Tiveram algum problema?

— Eu parei para abastecer e depois houve um acidente na estrada


que nos fez atrasar. Parece que os outros conseguiram sair antes do
acidente.

— Ah! Chegou! falou Marta aparecendo na entrada. Quatorze,


quinze, dezesseis, continuou ela contando os três últimos. Temos dezesseis
convidados. Você disse que esperava dezessete, Cristina.

— É provável que sejam só esses mesmos, tia Marta. E os meus pais


e o David, já chegaram?

— Não, resolveram não vir. Conversei com sua mãe sobre a festa e
ela achou melhor não vir. Disse a ela que você poderia voltar para
Escondido com o Rick.

Excelente. Era exatamente o que eu precisava. Assistir do banco de


trás ao romance que está nascendo entre ele e a Katie.
— E a propósito, disse Marta tomando Cris pela mão e conduzindo-a
para a sala cheia de convidados, quem é aquela ruiva que chegou com o
Rick? Eles estão namorando agora? Formam um belíssimo casal.

— É Katie, a minha melhor amiga, explicou Cris, livrando-se do


abraço da tia e deixando o barulho da sala o mais depressa que podia.

Dirigiu-se para a cozinha. Helen era a única pessoa que se


encontrava lá; estava colocando dois enormes sanduíches num prato. A
seleção e quantidade de frios para o preparo de sanduíches que Marta
colocara sobre o balcão era gigantesca. Parecia que daria para 117 pessoas.

— Não sei por que deixei aqueles rapazes me convencerem a lhes


preparar esses sanduíches. E eles já estão repetindo. O que pensam que
sou? Sua empregada particular?

— Então peça que venham aqui fazer cada um seus próprios


sanduíches, sugeriu Cris, ao que Helen deu sua risada característica:

— Na verdade, eu não me importo. É até divertido. Além do mais, se


eu quiser ser grande no reino de Deus, preciso ser serva de todos, não é
mesmo?

Cris pegou um refrigerante e concordou:

— É, desde que os rapazes saibam que esse versículo se aplica a eles


também. Eles devem retribuir o serviço!

— É um bom ponto, concordou Helen, equilibrando o prato de papel


e dirigindo-se à porta. Acho que vou mencionar isso no intervalo do jogo.
Cris foi até a pia, pegou um copo e colocou água até a metade. Em
seguida, pôs nele a rosa branca do Rick. Depositou-o no centro da mesa da
cozinha, sentou-se numa cadeira e mordiscou umas batatas fritas de um dos
seis sabores abertos à sua frente. Pensou no que Helen dissera sobre ser
serva e lembrou-se de que o Douglas dissera que devíamos ser servos do
Senhor, e não tratá-lo como se ele fosse nosso escravo particular. Douglas
disse que o segredo disso era uma entrega pessoal.

Está certo, Deus, orou ela baixinho. Mais uma vez eu me entrego.
Pensei que fosse acontecer algo entre mim e o Douglas, mas ele me vê
como uma irmãzinha. Pensei poder acertar a situação com o Rick e me
sentir bem sobre tudo, mas agora estou chateada porque ele gosta da
Katie. Desisto! Não consigo fazer as coisas darem certo como eu queria.
Entrego ao Senhor todas essas pessoas.

Nesse instante, Helen reapareceu, sorridente.

— Êpa! exclamou. Me esqueci de pegar alguma coisa para tomar!

Pegou uma garrafa de água tônica, dando um adeusinho a Cris para


voltar à sala-de-estar. Já tinha quase passado da porta quando parou, virou-
se, olhou para a Cris e perguntou:

— Você está bem?

— Claro! Por que a pergunta?

Helen voltou-se e sentou-se à mesa, em frente da amiga.

— Por nada. Só que esta festa é sua, todo mundo está na outra sala e
você está aqui sentada sozinha.
— Eu precisava pensar um pouco.

— Sobre o Rick e a Katie e o que está rolando entre eles?

— Como você descobriu?

— Deduzi pelas circunstâncias. A última vez que vi você com o


Rick, você tentava se convencer de que estava contente por namorá-lo.
Depois, na semana passada, eu o vi no trenó com a Katie e percebi
depressa que havia uma estranha competição entre eles.

— É mais ou menos isso, disse Cris suspirando.

— Aí, naquela pizzaria, na outra noite, deu para perceber claramente


que você tinha terminado com ele. Ele estava chateado e usando todas as
suas gracinhas de rapaz imaturo para chamar a sua atenção.

Helen tomou mais um gole de refrigerante e continuou:

— Sabe, sinceramente, pensei que aquela noite, quando vocês saíram


juntos, iam fazer as pazes e voltar.

— Aconteceu o contrário. Eu afastei mais o Rick de mim. Sem


querer. Acabou acontecendo assim.

— Vai ver que isso significa que no fundo você queria mesmo
mandá-lo "passear". Queria terminar seu relacionamento com ele, disse
Helen, procurando ver se Cris concordava.

— Nada disso, Helen! Você disse a mesma coisa quando concordei


em namorar o Rick. Lembra, no banheiro da casa da Trícia quando eu
estava chorando porque não tinha certeza se queria mesmo namorá-lo?
Você disse que se eu concordei em namorá-lo era porque no fundo eu
realmente queria.

— E então, não era?

— Não sei. Eu queria nunca ter saído com ele.

Uma garota entrou e pegou dois refrigerantes, e elas ficaram caladas.

— Nem sempre sou a melhor pessoa para dar conselho, disse Helen
calmamente. Mas sei que você tem de largar o passado para trás, e seguir
em frente, rumo ao futuro. Não é um conselho meu. É da Bíblia, portanto
sei que é certo.

Cris lembrou-se do versículo. Ficava em Filipenses.

— É verdade. Tenho de prosseguir olhando para a frente. Afinal de


contas, estamos começando um novo ano, não é mesmo?

— Exato. E se alguma coisa está pintando entre o Rick e a Katie,


talvez o melhor seja que siga seu curso natural. Nunca se sabe. Talvez eles
dêem certo um com o outro. Dizem que os opostos se atraem.

— É o que dizem. Você está certa, Helen. Quando comecei a namorar


o Rick, Katie me deu a maior força. Na verdade ela não concordava muito
com o namoro, e de vez em quando me dizia isso. Mas nunca parou de me
tratar como sua melhor amiga. Talvez agora seja a minha vez de servir e
tratá-la como melhor amiga, mesmo que eu não esteja vibrando com a
idéia de vê-la sair com o Rick.
— E você pode falar isso com ela com toda sinceridade. A Katie não
escondeu sua opinião sobre o Rick quando você o namorava. Seja sincera
com a Katie sobre o que você pensa.

— É isso mesmo que vou fazer. Obrigada, Helen. Você sempre


aparece na hora certa. Gosto muito de você.

Helen sorriu.

— Ainda bem, porque esse foi meu voto de Ano Novo, disse ela.
Aprender a servir a todos. Que bom que pude ser útil a você!

Cris sentiu-se aliviada e já mais disposta a encarar a turma na sala,


quando de repente a porta da cozinha abriu-se, invadida pelos cabelos
ruivos da Katie. Da sala, veio uma voz meio gritada que lhe dava
instruções:

— Eh, "Veloz"! Desta vez não se esqueça da mostarda.

— Sim, "Mestre"! respondeu Katie, fazendo uma curvatura com ar


de brincadeira.

Virou-se com um largo sorriso que desapareceu no momento em que


viu Cris. As duas amigas fitaram-se.

Helen ergueu-se e disse:

— Sabe, Katie, eu ia fazer um sanduíche para mim. Posso fazer um


para o Rick também. E você pode fazer outra coisa, como, por exemplo,
sentar-se onde eu estava e ajudar a Cris a vigiar essas batatinhas fritas.

— Presunto de peru com todos os molhos, inclusive mostarda, disse


Katie, entregando o prato a Helen.
Ainda olhando para Cris, Katie foi até a mesa e disse:

— Já sei o que vai dizer.

— Não sabe, não.

— Sei sim!

— Sabe não! Você não sabe o que vou lhe dizer.

— Está bem. O que é que você quer me falar?

— Primeiro, quero pedir perdão. Minha piadinha sobre "lábios


virgens" no desfile foi uma besteira e me arrependo de ter falado aquilo.

Katie desviou o olhar.

— Por favor, me perdoe!

— Tudo bem, disse Katie, sem olhar para a amiga. Não pense mais
nisso.

— Tem mais. Você é minha melhor amiga. Temos que ficar firmes,
juntas.

Helen saiu com o prato de sanduíches e os refrigerantes. Antes de


sair porta afora fez sinal de positivo para a Cris. Cris julgou ver uma
lágrima cair dos olhos da Katie, e continuou:

— Se você gosta do Rick, está tudo bem comigo. Conversei com ele
hoje cedo e acho que ficou tudo resolvido entre nós. Somos apenas amigos.
Ele pode se interessar por quem quiser, e se for você, ótimo!

Katie ergueu o rosto. Seus olhos estavam marejados de lágrimas.

— Você está falando sério?


— Sim, com toda sinceridade. É difícil, porque não quero ver Rick
ferir seus sentimentos, como aconteceu comigo. Mas eu e você somos
diferentes em muitas coisas, e pode ser que dê tudo certo entre vocês. Pode
ser que você combine bem com ele, e ele com você. Não sei. Não quero
atrapalhar nada entre os dois. Sua amizade vale muito mais para mim.

Katie apertou os lábios e parecia engolir a seco para não chorar. Em


voz baixa ela disse:

— Ele me beijou, Cris.

— Eu sei.

De repente os olhos verdes de Katie ficaram vivos como que em


chamas.

— Como você soube? Ele lhe contou, o crápula?

— Não, ele não me contou. Eu simplesmente percebi isso. Conheço


você, Katie, e deu para notar. No começo não, mas depois consegui
perceber.

— Não foi como você pensou. Eu não sabia que ele ia me beijar. Era
Ano Novo. Todo mundo na rua estava fazendo uma enorme farra, e à meia
noite estávamos fazendo a contagem regressiva e de repente o Rick me
beijou. Todo mundo estava se beijando. Era a passagem de Ano Novo!

— Sei, Katie. Não precisa explicar nada. Está tudo bem!

— Mas não está não! Ele veio tão rápido e com tanto ímpeto que eu
não soube como reagir. O pior é que você estava certa quando falou em
lábios virgens, até ontem à noite. Eu nunca tinha sido beijada. Eu tinha
tanta inveja de você, Cris! Nunca pensei que um cara quisesse me beijar,
muito menos o Rick.

Cris pegou um guardanapo e o entregou a Katie para enxugar as


lágrimas.

— Katie, você merece o melhor cara do mundo.

— Sabe? Foi horrível achar que nunca poderia contar à minha


melhor amiga que afinal eu recebi meu primeiro beijo!

— Tenho certeza de que meu comentário sobre "lábios virgens" ainda


piorou a situação!

— Não foi isso. Foram os sentimentos confusos que tive. Queria me


sentir querida, mas nem por sonho eu nunca imaginei que um cara como o
Rick fosse me beijar, e então ele me beijou. E depois me senti horrível.

— Não se sinta assim, Katie. Tente ver a coisa desta maneira. Foi seu
primeiro beijo, e isso é maravilhoso. Era Ano Novo e não há nada demais
num beijo rápido à meia noite.

Cris examinou o rosto de sua amiga para ver se ela confirmava o que
Cris dizia e perguntou, meio tímida:

— Foi só isso, não foi? Um beijinho curto? Quer dizer que vocês não
passaram a noite num amasso ou coisa parecida?

— Claro que não! exclamou Katie parecendo ofendida. Ficamos a


noite toda sentados jogando cartas com umas pessoas que estavam perto de
nós e contando piadinhas bobas. Foi a passagem de ano mais divertida que
já tive em toda a minha vida.
— Então não há por que se sentir chateada.

— Eu não estava chateada por isso. Mas depois vocês começaram a


fazer aqueles comentários sobre o Douglas nunca ter beijado uma garota.
Acho que ele é um pouco exagerado demais. Quer dizer, será que não
existe um meio-termo em que se pode beijar de vez em quando sem que
isso signifique que a gente virou garota de programa?

— Não sei. Acho que sim. Mas eu admiro o Douglas. Ele vai fazer a
esposa dele se sentir muito especial.

— É, na noite de núpcias deles ela vai se sentir muito especial, disse


Katie. Mas imagino que se ele não a beijar, durante o namoro e o noivado,
ela se sentirá meio desvalorizada. Quero dizer, não vejo nada errado em dar
beijos moderados para demonstrar afeto. São as outras coisas que eu acho
que a gente deve guardar para o casamento.

— Concordo com você. E pode ser que você tenha razão quando ao
fato de que o Douglas é um pouco extremista. Logo ele, que gosta tanto de
estar abraçando os outros, a gente esperaria que ele gostasse de beijar
também. Mas eu o admiro por essa decisão e garra que ele tem em cumpri-
la. Além do mais, parece que ele e a Trícia não tiveram problema para
voltar a ser só amigos, porque não tinham que tentar esquecer a parte física
do relacionamento.

Katie pegou uma frita e parecia que já se sentia bem melhor.

— Eu também admiro isso. Admiro você e o Ted, e acho que o fato


de ele ter beijado você algumas poucas vezes não facilitou nem dificultou
as coisas pra vocês quando ele foi para o Havaí. Esse cara está no seu
coração, Cris. Acho que você sentiria o mesmo por ele, mesmo que ele
nunca a tivesse beijado.

— Talvez você tenha razão.

— Claro que tenho! Se quiser saber a minha opinião, você devia


seguir seu próprio conselho, Cris, e esperar um cara muito legal, seja lá
qual for o estado dos lábios dele, virgens ou não. Cris riu-se e concordou:

— Está bem, desde que você siga o mesmo conselho e espere um


também. Não estou dizendo que o Rick não seja esse cara. Pode até ser.
Mas prometa que você não se contentará com nada a não ser com o melhor.

O sorriso alegre de Katie voltou, concordando e fazendo a Cris


sentir-se muito melhor também. Lembrando sua oração de entrega, Cris
pensou:

Esse negócio de ser servo talvez não seja assim tão difícil, afinal
Deus tem um jeito de fazer as coisas cooperarem para o bem quando o
permitimos.

— Vamos nos juntar ao resto do pessoal? perguntou Cris no momento


em que ouviram um rugido muito alto na sala.

— Deve ter sido um gol muito bem feito, disse Katie, pegando um
saco de batatas fritas e procurando uma Coca-Cola.

— Escute só! É a Marta gritando e ela nem liga para futebol. Trícia
também está dando urras. Devem estar tendo uma luta de travesseiros lá
dentro.
— Escute só! Agarre os chocolates e vamos mostrar a esses caras o
que é uma verdadeira briga de travesseiros.

Cris pegou o saco gigante de balinhas de chocolate e no momento


que iam sair da cozinha, a porta se abriu e o Bob apareceu, o rosto
vermelho de animação. No seu pescoço havia um lei* havaiano de
plumerias** que não estavam mais brancas, mas meio marrons e gastas de
viagem.

— Acho melhor você vir aqui fora, Cris. Parece que o convidado
número dezessete acaba de chegar!

*
Lei: um colar feito de flores com que os havaianos presenteiam os amigos ao chegarem
ou ao viajarem. (N. da T.)
**
Plumerias: flores de cor branca e muito perfumadas, usadas para fazer leis no Havaí. (N.
da T.)
A Contagem das Estrelas
14

— Ted! gritou Cris, jogando o saco de chocolates no ar e correndo


para a sala. Lá, cercado pelos seus amigos, todos muito surpresos, estava o
Ted, bronzeado, de cabelo loiro clareado de sol. No pescoço havia meia
dúzia de leis.

— Ted! exclamou ela de novo, correndo na direção dele.

O grupo de amigos se afastou, abrindo caminho para Cris. Quando o


Ted ouviu sua voz, afastou-se de Helen, que o abraçava, e virou-se para
Cris. Aqueles olhos azul-prateados com que ela sonhava encontraram o seu
olhar. O rosto de Ted se iluminou num sorriso, e ele abriu os braços para
receber Cris. Antes mesmo de chegar perto, ela percebeu uma tipóia branca
no braço esquerdo. Com grande esforço, diminuiu a pressão do abraço,
apertando-o de leve do lado direito.

— O que aconteceu? perguntou no seu ouvido, as lágrimas rolando


pela camiseta dele.

— Não foi nada. Aqui, isso é para você, Kilikina. Sentindo prazer em
ouvi-lo chamá-la pela versão havaiana de seu nome, Cris olhou enquanto o
Ted tirava um lei de plumerias e orquídeas do pescoço e o colocava no seu,
dando-lhe um beijo em cada face.

— Aloha, Kilikina, disse ele bem baixinho.

A fragrância tropical das plumerias provocaram uma cascata de


esperança, alegria e sonhos no coração de Cris.

— Você voltou! foi só o que conseguia dizer.

O olhar de Ted deixou o rosto de Cris e se fixou na pulseira de ouro


que ela trazia no braço direito. Um sorriso enorme se espalhou por seu
rosto. Ele deu-lhe mais um beijo na face molhada e disse:

— Sim, voltei.

— E então, conte como foi! disse Marta, animada. Parou de surfar


por um tempo, agora?

— Parece que sim, respondeu Ted, levantando o braço na tipóia à


guisa de explicação. Aqui, Marta. Você ainda não ganhou um desses aqui,
falou ele começando a pegar um dos leis do seu pescoço.

— Ah não! protestou ela. Pode dar para uma das garotas. Olhe, a
Katie ainda não tem um.

Timidamente, Katie se aproximou e Ted presenteou-lhe com uma lei,


acompanhado de beijinhos no rosto, ao estilo havaiano. Cris achou que
Katie estava enrubescendo de vergonha, mas não sentiu nenhuma pontada
de ciúmes. Sabia que os beijos no seu rosto, dados pelo Ted até mesmo na
frente de todo mundo, eram diferentes dos que os outros receberam.
Todos se esqueceram do jogo de futebol e começaram a fazer
perguntas ao Ted.

— Chega! protestou Bob. Deixem o pobre rapaz dar uma respirada.


Está com fome, Ted? Venha à cozinha pegar algo para comer.

O grupo seguiu-os para a cozinha e Ted ia respondendo as perguntas


enquanto andava.

— Faz uma hora que cheguei. Fui à casa do Douglas e a mãe dele
disse que vocês estavam todos aqui. Eu estava na "fila de espera" para
pegar um avião de Honolulu e consegui vaga hoje cedo.

Marta entregou-lhe um refrigerante e Bob passava maionese num


pão.

— E então, Ted, um pouco de tudo no sanduíche?

— Sim, ótimo, replicou ele sentando-se à mesa, abrindo o


refrigerante e tomando um longo gole.

— E o que aconteceu com o surfe? perguntou Douglas.

— Estava fabuloso!

Um sorriso enorme iluminou o rosto bronzeado de Ted.

Ele estava tão queimado! Nem no verão Cris o tinha visto tão
bronzeado assim. Seu cabelo estava quase branco. Ela notou que estava
muito mais comprido do que antes, principalmente atrás, onde fazia cachos
na nuca. Ted estava diferente. Muito bem mesmo, mas diferente.

— E os torneios? indagou Douglas, tirando-o do seu devaneio. O que


aconteceu? Desistiu?
— Mais ou menos, disse ele, dando uma dentada em seu enorme
sanduíche. Delícia de sanduíche, Bob. Mahalo.

Vamos lá, seu garoto de praia desmaiado pelo surfe, pensou Cris.
Pare de ser tão tranqüilo e nos conte o que aconteceu.

— Segunda-feira passada, começaram as ondas grandes em Waimea.


Vocês não podem imaginar a sensação que é estar ali na praia aonde a
gente ia todo dia e olhar para um mar onde antes a gente só brincava. De
repente tudo muda. As ondas estão gigantescas. Quando quebram na areia,
a gente sente na planta dos pés.

O grupo aproximou-se. Ted deu mais uma mordida no sanduíche e


sorriu com os olhos para cada um de seus amigos.

— Ninguém entrou logo, falou ele. Primeiro a gente tem de se


preparar psicologicamente para pegar ondas iguais àquelas. É que vai ser
uma batalha entre a gente e o mar, e só um dos dois vence. Então antes de
entrar, a gente precisa estar preparado para ter certeza de que é a gente que
vai vencer.

— Foi assim que machucou o braço? perguntou Helen.

Ted deu mais uma bocada e tomou mais um gole de refrigerante. Em


vez de responder, continuou com a história.

— Kimo foi o primeiro a estar preparado. Acho que ele já nasceu


preparado.

— E quem é Kimo? perguntou Marta.


— Um cara que foi meu colega de escola em Maui quando eu era
garoto, respondeu Ted, comendo outro pedaço.

Enquanto ele acabava de mastigar, Cris explicou à tia:

— O Ted ficou na casa do Kimo enquanto estava no Havaí. Os dois


queriam participar do circuito de surfe profissional, desde que eram
garotos. Kimo tem uma casa na praia, ao norte de Oahu.

— É mais um barraco, disse Ted entre risadas. Muitas vezes


simplesmente dormimos na praia; o apartamento dele estava tão cheio de
baratas, centopéias e lagartixas! Era difícil dormir à noite com todos esses
bichinhos passeando no rosto da gente.

Cris podia imaginar bem o Ted passando os últimos meses a dormir


sobre a areia e comendo as frutas da terra. Parecia um ilhéu. Conhecendo-o
bem, imaginou que esse tipo de vida era como a realização de um sonho
para ele.

— Então Kimo pegou a onda e conseguiu surfar! narrou Ted, os


olhos brilhando de entusiasmo. Esse negócio é como escorregar do alto de
um prédio de quatro andares, e ele dava a impressão que era fácil, fácil.
Então todos nós nos sentimos preparados. Se o Kimo conseguiu, nós
também conseguiremos.

— Isso fazia parte da competição? perguntou Trícia.

— Não, a competição ia começar no dia seguinte. As ondas


apareceram mais cedo do que se esperava. Nós todos entramos no mar
sentindo a água borrifando nosso rosto. E lá estava uma onda gigante de
puro azul, e então compreendemos que chegara a hora da verdade.
Cris lembrou-se da capa da revista de surfismo com uma imensa
onda lançando as pranchas de surfe para a praia como se fossem
minúsculas flechas. Lembrou também que era uma segunda-feira. Ted
observara que estariam surfando as ondas enormes na segunda.

Será que foi a segunda-feira em que orei pelo Ted quando eu estava
no trabalho?

— Eddie pegou do lado de fora, continuou Ted. E poucos segundos


depois o mar o jogou para o alto como um foguete, e a prancha atrás dele.
Nem tive tempo de sentir medo, pois era a minha vez. De repente, lá estava
eu montado numa onda monstro deslizando para a praia. Eu por cima da
onda!

— Você não teve medo de se machucar? Não pensou nisso, Ted?


perguntou Marta.

Ele sorriu.

— Na verdade, eu fiquei pensando foi no Elias.

— Elias? Quem é ele? Um dos surfistas?

— Não, sabe, Elias, o homem de Deus, do livro de Primeiro Reis.


Lembra? Ele ficou numa caverna, na encosta da montanha, esperando a
presença do Senhor passar. Primeiro veio um vento forte, rompendo a
montanha, depois um terremoto, depois um fogo. Mas a voz de Deus não
estava nesses fenômenos naturais. Finalmente, Elias ouviu um sussurro, e
compreendeu que era a voz de Deus que lhe falava.
Marta piscou e olhou para o grupo de jovens que pareciam entender
bem a explicação de Ted. Parecia que ela nunca ouvira antes esse relato
bíblico.

— Foi assim que me senti. Lá estava eu, na concha dessa montanha


de água, tudo estourando em minha volta, e aí, bem aqui, disse ele, batendo
a mão de leve no peito, senti uma imensa calma e compreendi que Deus
estava prestes a fazer algo maravilhoso.

Todo mundo continuou em silêncio, esperando que ele prosseguisse


com o relato. Sua expressão parecia um pouco distante, quando ele disse:

— Foi aí que eu vi a prancha do Kimo na minha frente, mas não vi o


Kimo. Então, firmei os pés e deslizei naquela onda enorme. Parecia
gelatina debaixo da minha prancha. Eu podia me curvar e virar do jeito que
quisesse, e ela me carregava como se fosse um bebê numa cesta. Fui com a
onda até a praia! Sabe o que estou dizendo? Uma onda dessas só aparece
uma vez na vida do surfista. Era a minha onda!

— E os outros rapazes? indagou Trícia.

— Quando cheguei à praia, vi uma ambulância e dois salva-vidas


tirando o Eddie da água. Começaram a fazer respiração boca a boca e eu
comecei a orar e correr os olhos pela água à procura do Kimo.

— Que horror! exclamou Marta. Por que vocês fizeram uma loucura
dessas? Podiam ter morrido todos!

— Não tenho medo de nada na natureza. Conheço o Criador.

— E o que aconteceu com Kimo e Eddie? perguntou Cris. Ficaram


bem?
— Kimo saiu vomitando demais, e o Eddie esteve perto de ir para o
inferno, explicou Ted com um sorriso típico. Mas depois eles se salvaram,
bem ali na praia!

Cris e a maioria da turma entenderam o que Ted estava dizendo e


expressaram alegria e satisfação. Mas Marta olhou para o Bob, à procura
de uma explicação. Bob encolheu os ombros.

— Então quer dizer que os socorristas conseguiram salvá-los?

— Sim, a vida deles foi salva, e tenho certeza de que a equipe de


resgate teve muito a ver com isso. Mas os dois entregaram a vida a Deus,
ali mesmo na praia, com a espuma das ondas e a multidão de espectadores.
Foi a coisa mais incrível!

— Então esses caras com quem você estava vivendo não eram
cristãos? perguntou Douglas.

— Quando eu cheguei, não. E nos últimos quatro meses o que eu


mais fiz foi falar-lhes de Jesus. Quando parti, ontem à tarde, cinco dos
surfistas tinham se "rendido" e entregado a vida ao Senhor. Gente, foi um
reavivamento!

Marta parecia chateada e, num esforço para mudar de assunto, disse:

— Você ainda não falou da competição. Como foi? Foi para isso que
você se esforçou tanto, não foi?

— Não participei.

— O quê?
— Deslizei na minha onda na segunda-feira. Mas nunca mais vou
surfar uma daquelas. Nunca. O Kimo foi salvo, e foi só para isso que fui lá.

— Não entendi, disse Marta, olhando para Bob.

— E o seu braço? perguntou Bob, apontando para a tipóia.

— Centopéia. Encostei o braço numa na semana passada e acabei


indo para o hospital. Parece que sou mais alérgico ao veneno de centopéias
do que de abelhas.

Cris contou a todo mundo que no ano anterior o Ted fora picado no
pé por uma abelha e ele inchara, ficando com o dobro do tamanho normal.

— Ele tem que andar sempre com um antídoto e se for picado, tem
de tomar uma injeção imediatamente, senão pára de respirar.

— Agora ando com dois estojos: um de antídoto para picada de


abelha e outro de centopéia.

— Ainda bem que você chegou inteiro. Vai ficar por aqui algum
tempo?

— Tenho de continuar a faculdade em algum lugar.

— Para onde está querendo ir?

— Qualquer uma que aceite minha transferência da Universidade do


Havaí.

— Não deve ser assim tão difícil. Já pensou na popularíssima


Estadual de San Diego?

— Na verdade, tenho pensado.


— Acontece que perdemos um dos nossos colegas da república e
estamos procurando alguém para pagar o aluguel daquele quarto vazio. O
que acha, Rick? Encontramos o amigo ideal?

Cris não acreditava no que estava acontecendo. Já fora estranho para


ela o Rick ir morar no mesmo apartamento com o Douglas, no início das
aulas. E agora a idéia dos três no mesmo apartamento era demais. Rick
parecia tranqüilo quando respondeu:

— Claro, ele parece inofensivo. Mas sabe cozinhar? Ou ele come é


bananas e cocos apanhados no pé?

Ela ficou imaginando se daria certo aqueles dois numa república.


Será que o Rick conseguiria ver o Ted como colega, em vez de um rival? O
tempo dirá, pensou. O grupo começou a dispersar-se. Os rapazes voltaram
à sala de televisão a ver o que tinha acontecido no jogo. Douglas e a
maioria das garotas ficaram juntos de Ted fazendo perguntas sobre o Havaí
e a faculdade de lá.

Cris vinha sentindo o estômago roncar havia mais de meia hora, e


achou que era a empolgação pela chegada do Ted. Mas quando olhou o
relógio, viu que já seria hora de jantar. Até agora só havia comido algumas
broinhas no carro, de manhã, e umas três batatas fritas. Quando ela
dobrava fatias de rosbife e colocava dentro de um pedaço de pão, percebeu
que Ted a fitava ao mesmo tempo que respondia às perguntas da turma. Ela
apontou para a bandeja e indagou-lhe apenas com os lábios:

— Você quer mais um?


Ted acenou que sim e ela preparou com carinho uma obra-prima de
sanduíche. Era muito bom tê-lo de volta.

Mas ela realmente sentiu-se uma princesa com o que aconteceu


depois. Quando todo mundo começou a ir embora, ela perguntou se
poderia ir com Katie e Rick, e ele concordara gentilmente, sem tecer
comentário algum sobre ela ficar no banco de trás. Foi então que Ted se
aproximou e perguntou-lhe:

— Haveria problema se eu levasse você para casa?

Ela ia protestar, dizendo que a viagem era longa e ele devia estar
cansado, mas não conseguiu palavras. Um sorriso nos lábios demonstrou
seu apreço.

Tendo se despedido de todos, juntado as coisas e agradecido aos tios


várias vezes, Cris e Ted saíram para a noite gelada de janeiro. Ele a
conduziu meio quarteirão até onde seu volkswagen estava estacionado, a
"kombi nada".

Abriu a porta lateral e colocou dentro a mala de Cris. Até mesmo o


barulho da porta lhe trouxe recordações. Lembrou-se da primeira vez que
andara na "kombi nada". Pensando que o Ted a tinha convidado para
saírem sozinhos, ela se vestira com a roupa mais chique que tinha. Mas ele
viera acompanhado de vários jovens, todos vestidos de roupa esporte, e
foram assistir a um concerto de música evangélica na igreja dele.

Dessa vez ele abriu a porta e ela entrou. O veículo estava vazio mas
cheirando um pouco a mofo. Ela se ajeitou no lugar para não sentar-se
sobre um rasgo na poltrona.
— Parece que a "kombi nada" está precisando de um banho.

— Também, ficou trancada na garagem do meu pai desde que viajei.

Ele ligou o motor e percorreu algumas quadras respirando forte,


cheirando o ar.

— Ah! Acho que sei qual é o seu problema, disse ele, entrando num
posto de gasolina e saltando do carro.

Puxou uma caixa de pizza de sob o banco e, com o braço enfaixado,


levantou a tampa.

— Se é o que estou pensando, disse Cris, olhando a caixa, que o Ted


fechou depressa, não quero nem saber há quanto tempo está aí, e nem
quero ver a cor do fungo.

Ted correu até um cesto de lixo e jogou a pizza fora. Voltando, disse:

— Não dá uma pena desperdiçar assim uma experiência científica


perfeitamente plausível? Seu irmãozinho teria tirado um 10 com ela.

— Ah, que nojo, Ted!

Ele riu-se e disse:

— Você devia ter olhado para ela, Cris. Perdeu um verdadeiro


milagre da natureza!

— Posso imaginar um milagre da natureza melhor do que fatias de


pizza de cinco meses atrás!

Eles conversaram e riram durante a primeira meia hora da viagem


pela costa. Em algum lugar, perto de San Clemente, Ted desviou-se um
pouco da pista e subiu um atalho muito acidentado, ao lado de um morro
deserto. A kombi passou sobre vários buracos na estrada. De repente, a
estrada se nivelou, e estavam numa superfície lisa.

— Onde é que estamos?

— Não dá para ver no escuro, mas ali embaixo é Tressles.

— Tressles? O que é isso?

— Lugar de surfe. Muito bom!

É isso aqui? Você arriscou minha vida para me trazer a uma área de
surfe que nem consigo enxergar no escuro?

— Venha cá. Quero lhe mostrar uma coisa, disse ele, pegando o
casaco de Cris no banco de trás.

— Pra que lado você foi? Ted, não enxergo nada!

— Estou aqui em cima! gritou ele.

Ela olhou à sua volta para ver de onde vinha a voz.

— Em cima da kombi. Venha por trás e eu lhe dou a mão. Cris foi
andando e apalpando a kombi. Chegando atrás, pôs o pé no pára-lama.

— Tem um negócio para colocar o pé. Ótimo, você achou. Agora me


dê a mão.

Ele ajudou-a a subir e Cris, ainda insegura, engatinhou até onde


estava o seu casaco. Sentou-se e esperou o Ted.

Ele sentou-se ao lado dela e ficou em silêncio. Cris lembrou-se de


quando se sentaram quase tão juntos assim vários meses atrás, na manhã
em que o Ted comunicara que iria para o Havaí. Ele se confessara egoísta
por querer prendê-la e esperar que ela crescesse. Depois, colocara as mãos
sobre a testa dela e a abençoara.

Fora uma manhã horrível para ela. Praticamente foi quando


terminaram.

Dessa feita, como naquele dia, Ted não disse nada. Ficou olhando as
estrelas.

Anteriormente, um silêncio desses deixaria a Cris nervosa


imaginando o que ele estaria pensando, perguntando-se se deveria dizer
alguma coisa.

Nesse momento ela não achou ruim o silêncio. Ted estava ali ao seu
lado. Eles podiam ficar juntos, calados. O importante é que estavam juntos.
Ela virou a cabeça para trás e olhou as estrelas.

— A última vez que olhei as estrelas assim foi na véspera de Natal,


disse Ted.

— Verdade? Eu também! Estávamos nas montanhas no dia 24 e eu


fiquei sentada um tempão num sofazinho junto da janela do quarto, disse
Cris.

— Imagine só. Estávamos olhando as mesmas estrelas naquela noite.


Só que eu estava numa praia a sete mil quilômetros daqui. No que é que
você estava pensando?

Cris gostaria de poder contar que estava pensando nele, e sonhando


com o momento em que ele voltasse. Mas não podia mentir.
— Eu estava pensando em Jesus, quando ele nasceu aqui no mundo.
Estava imaginando se ele viu a estrela de Belém que brilhou sobre a sua
manjedoura.

— Sabe no que eu estava pensando? Em Abraão.

Cris queria que ele dissesse que estava pensando nela. Mas afinal de
contas, por que estranharia que o Ted pensasse em algo espiritual e meio
inusitado na véspera do Natal?

Afinal, eu estava pensando em Jesus olhando as estrelas da


manjedoura. Ah não! Quem sabe estou começando a pensar em tudo em
termos espirituais como o Ted!

— Lembra-se da promessa que Deus fez para ele? perguntou Ted,


interrompendo-lhe o pensamento.

— Não é que ele seria o pai de uma grande nação?

— Isso, pai de uma grande nação, mas ele não tinha nenhum filho.
Parecia uma grande piada. E então, certa noite, Deus mandou que ele
saísse de sua tenda e disse: "Olhe para os céus, ô meu! Conte as estrelas se
você consegue. É assim que serão os seus descendentes"!

— Eu me lembro dessa história.

— Bem, você sabia que depois dessa promessa, Deus ficou em


silêncio? Demorou muitos anos para falar novamente com Abraão?

Ela sempre gostara da compreensão que Ted tinha das coisas de


Deus, e hoje aquilo parecia ainda mais maravilhoso, debaixo daquele céu
repleto de estrelas, as mesmas estrelas que Deus apontara a Abraão naquela
noite santa milhares de anos atrás.

— Entendeu? Deus fez uma promessa e sumiu. Pode imaginar como


Abraão se sentiu, ano após ano? Sem filhos e sem nenhuma prova de que
Deus lhe falara. Só tinha um monte de estrelas silenciosas no céu, que ele
podia ficar contando e continuando a crer que Deus realmente lhe tinha
feito uma promessa.

— Isso exige muita fé.

— Quero ter fé igual a dele, disse Ted, virando-se para Cris. Sua voz
ficou mais grave.

— Não sei exatamente o que Deus me prometeu a seu respeito, sobre


nós, e sobre o futuro, comentou ele.

Cris escutava seu coração batendo mais forte. Havia dois anos que
esperava o Ted falar de um compromisso com ela. Será que seria agora?

— Creio que Deus planejou que fôssemos amigos. Amigos muito


chegados. Eu lhe prometi que seria seu amigo para sempre, Kilikina. Quero
ter fé como a de Abraão, sabendo que, seja o que Deus quiser, ele cumprirá
seus propósitos para nós no tempo dele. Quero continuar escutando a voz
de Deus.

Então passou o braço em volta de Cris e puxou-a para mais perto,


dizendo:

— Por ora, parece que temos que continuar contando estrelas.


Cris acomodou a cabeça sobre o ombro de Ted e sussurrou para a
noite estrelada:

Então é aqui mesmo que quero estar. Ao seu lado, contando estrelas.

F I M

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