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André Petry
Os porta-vozes de Nova Ibiá, um povoado que fica nos confins da falida zona cacaueira
da Bahia, estão em harmoniosa sintonia com a maioria dos brasileiros. No maior país
católico do planeta, no país do sincretismo religioso, no país onde católicos têm
benzedeira e evangélicos vão a sessões espíritas, no país que alega, num misto de
gracejo e esperança, ser a terra natal de Deus, o Todo-Poderoso, quase nada é pior do
que ser ateu. Uma pesquisa encomendada por VEJA, realizada pela CNT/Sensus,
mostra que 84% dos brasileiros votariam em um negro para presidente da República,
57% dariam o voto a uma mulher, 32% aceitariam votar em um homossexual, mas –
perdendo de capote – apenas 13% votariam em um candidato ateu (veja quadro). Pior
que isso só o capeta. O levantamento mostra que, entre os grupos populacionais que se
convencionou chamar de minorias – racial, sexual ou de gênero –, a minoria mais
rejeitada é a religiosa, ou a anti-religiosa. No Brasil de São Frei Galvão, portanto, ser
temente a Deus é mais do que uma marca nacional – chega a ser, informa a pesquisa,
um imperativo social.
Às vésperas do Natal, quando 2,1 bilhões de cristãos vão comemorar os 2 007 anos do
nascimento de Jesus Cristo, os católicos brasileiros seguem diminuindo ano após ano,
como vem acontecendo desde 1940, mas ainda formam uma estupenda multidão: são
quase 74% da população brasileira – o que equivale a mais de 130 milhões de fiéis.
Com alguns disciplinados e praticantes e muitos displicentes e relapsos, os católicos do
Brasil, com seu número espetacular, mostram o vigor da crença divina, a pujança da fé,
a robustez de Deus – uma potência curiosamente dotada de todas as qualidades inversas
às da humanidade, que é criada (e Deus é incriado), que é limitada (e Deus é ilimitado)
e que é mortal (e Deus é imortal). Os números da fé no Brasil talvez sirvam como
explicação para dois fenômenos. Explicam a resistência da religiosidade em um mundo
marcado pela descrença e, ao mesmo tempo, o notável preconceito da maioria dos
brasileiros em relação aos ateus. Faz sentido rejeitar alguém apenas porque não acredita
em Deus?
Em maio passado, o instituto Datafolha fez uma pesquisa sobre religiosidade por
ocasião da visita ao país do papa Bento XVI. A pesquisa relevou a dimensão
impressionante da fé brasileira: 97% disseram acreditar na existência de Deus, 93%
informaram crer que Jesus Cristo ressuscitou depois de morrer crucificado e 86%
concordaram que Maria deu à luz sendo virgem. Com números tão possantes, não há
dúvida de que o Brasil figura entre os países mais crédulos do mundo – e isso abre um
paradoxo. São cada vez mais abundantes as descobertas científicas sobre a origem do
universo e das espécies. Se a credulidade não se abala diante disso, é lícito questionar
que talvez nenhuma prova científica, por mais sólida e contundente, seja capaz de
reduzir a pó o teísmo, a crença no divino (veja reportagem) "O último deus
desaparecerá com o último dos homens", diz o filósofo francês Michel Onfray, em seu
Tratado de Ateologia, sucesso retumbante com mais de 200.000 exemplares vendidos
na França. E, ateu convicto, ele alfineta: "E com o último dos homens desaparecerão o
temor, o medo, a angústia, essas máquinas de criar divindades".
Antes que o último homem se vá, percebem-se aqui e ali sinais de que a religião, em
que pese seu vigor, começa a perder público – no Brasil, inclusive. De 1940 a 1970, a
turma dos brasileiros sem religião ficou praticamente do mesmo tamanho, atolada em
menos de 1% da população. Nas últimas três décadas, saltou de 1,6% para 7,3% (veja
gráficos e mapa). Os sem-religião já são o terceiro maior grupo, atrás de católicos e de
evangélicos. Pelos dados do último censo, os sem-religião eram 12,5 milhões, mais que
um Portugal inteiro. Não são todos ateus, é claro. Entre eles, há agnósticos, secularistas,
céticos e até quem acredita em Deus, mas não pratica nenhuma religião. O IBGE não
pergunta aos entrevistados se são ateus ou não. Calcula-se, no entanto, que os ateus
sejam uns 2%. Nos Estados Unidos, eles oscilam nessa faixa, mas os sem-religião de lá
chegam aos 15%. No mundo, os ateus são uns 4%. São poucos, sobretudo se
comparados aos bilhões de cristãos, muçulmanos e judeus, para ficar apenas nas três
grandes religiões monoteístas, mas é uma massa crescente, principalmente nos países
desenvolvidos. Na Espanha, Alemanha e Inglaterra, menos da metade da população
acredita em Deus. Na França, os crentes não chegam a 30%.
Entre os brasileiros sem religião, a maior curiosidade está na Bahia de Todos os Santos,
terra onde frei Henrique de Coimbra rezou a mítica primeira missa, em 26 de abril de
1500. A Bahia, que abriga Nova Ibiá e seu esquadrão de sem-religião, é o terceiro
estado com o maior contingente de brasileiros sem filiação religiosa. E Salvador, entre
as capitais, é a campeã nacional: 18% dos soteropolitanos não têm religião.
Considerando-se o país todo, os sem-religião são mais numerosos entre os homens e
entre os brasileiros com menos de 55 anos. Não se sabe de onde eles vêm. É provável
que venham do rebanho de católicos desgarrados. O Rio de Janeiro, por exemplo, é o
estado menos católico do país e, simultaneamente, tem o maior pelotão de sem-religião.
Também é certo que boa parte dos católicos está virando neopentecostal. Nas duas
últimas décadas, à queda acentuada de católicos correspondeu uma alta igualmente
acentuada de evangélicos – em especial da Igreja Universal do Reino de Deus, que,
sendo uma voraz sugadora de fiéis e dízimos, se transformou em potência divina e
comercial.
Por razões distintas, o ateísmo também é crescente lá fora. Nos Estados Unidos, o
embate entre religiosos e sem-fé ficou mais intenso depois dos atentados de 11 de
setembro de 2001, praticados por dezenove muçulmanos, e da eleição do presidente
George W. Bush, o astro da direita cristã que se julga interlocutor de Deus. Com os
cristãos conservadores exercendo notável influência em tribunais e escolas, os Estados
Unidos são um caso único entre os países ricos e democráticos. Nenhum outro tem grau
tão elevado de religiosidade – e de radicalismo. Em 2001, os mais fanáticos líderes
religiosos americanos, em vez de condenar os atentados, disseram que eram uma
punição contra um país que aceitava o aborto e o homossexualismo... Nesse ambiente, a
literatura sobre o ateísmo tem feito barulho e sucesso, como é o caso do biólogo inglês
Richard Dawkins, autor de Deus, um Delírio, do jornalista inglês Christopher Hitchens,
que mora em Washington e escreveu Deus Não É Grande, e do filósofo americano Sam
Harris, autor de Carta a uma Nação Cristã, um manifesto cortante em defesa do
ateísmo (veja entrevista).
Ainda que sua história seja pouco conhecida, o ateísmo nasceu junto com a primeira
religião, mas só entrou no cardápio das idéias abertamente debatidas com o advento do
iluminismo, no século XVIII. Assim como os crentes, que se dividem em uma miríade
de correntes e denominações, os ateus de hoje divergem em muitos pontos, mas há
alguns consensos. Um deles é que a moralidade não depende das religiões, e, portanto,
um ateu pode ser ético e bom. A favor da tese está a neurociência, cujas descobertas já
provaram que até os chimpanzés têm noções morais, sentimentos de empatia e
solidariedade – e não rezam nem crêem em Deus. Outro ponto em que todos os autores
sobre ateísmo concordam é que as religiões produziram (e ainda produzem) notável
rastro de sangue. Além dos exemplos clássicos das Cruzadas dos cristãos ou da
expansão islâmica à base da espada, há exemplos contemporâneos. Na Irlanda do Norte,
protestantes lutam contra católicos. Na Caxemira, são muçulmanos contra hindus. No
Sudão, cristãos contra muçulmanos, que também se confrontam na Etiópia, na Costa do
Marfim, nas Filipinas... Crentes de diferentes religiões ou denominações guerreiam no
Irã, no Iraque, no Cáucaso, no Sri Lanka, no Líbano, na Índia, no Afeganistão...
É evidente que a moralidade não é mesmo resultado da religião, mas também não é
resultado de sua ausência. Adolf Hitler (1889-1945), que planejou dizimar um povo
inteiro, se dizia religioso. Josef Stalin (1879-1953), cujas vítimas fatais podem chegar a
20 milhões de soviéticos, se dizia ateu. Os religiosos também concordam que a fé já
provocou guerras e violência. Em outubro passado, o papa Bento XVI, num encontro
em Nápoles com lideranças multiconfessionais, conclamou a todos para "reiterar que a
religião nunca poderia ser um veículo do ódio". Mas também se sabe que as religiões já
contribuíram para a paz e desempenham um valoroso trabalho missionário nas áreas
mais miseráveis do planeta. Ninguém pode afirmar que os deuses, os livros sagrados e
as preces são uma criação do homem, sem nenhuma intervenção divina. Também
ninguém pode garantir o contrário. Sendo assim, enquanto a idéia de Deus, a imagem do
menino Jesus na manjedoura ou o espírito do Natal servirem para confortar e congregar
milhares, milhões, bilhões de seres humanos, é bom que a fé possa seguir contribuindo
para levar paz a homens e mulheres. Incluindo os moradores da pequena Nova Ibiá.
ONDE FORAM PARAR OS
ATEUS DE NOVA IBIÁ?
SEM PADRE
Sem a presença do padre, católicos fazem a
leitura da Bíblia: convite para recrutar mais
fiéis
No caminho para Nova Ibiá, a cidade baiana onde 60% da população diz não ter
nenhuma religião, há uma igreja abandonada. Cercada por um mato alto e paredes
descascando, a Igreja Nossa Senhora de Lourdes, onde se celebrava uma missa mensal,
não abre mais as portas. Lília Lisboa, que cuidava do prédio, mudou-se para Salvador e
ninguém se interessou em tomar conta do templo. Quinze quilômetros à frente, já no
centro de Nova Ibiá, diante da praça central, fica a modesta Igreja de São José, o
principal templo católico do vilarejo. Ali, numa noite de segunda-feira, dezoito pessoas
escutavam a leitura da Bíblia sob a luz tênue de uma vela grande e oito velas pequenas.
Não havia padre no altar. A leitura da Bíblia era feita por uma beata, sentada no
primeiro banco de madeira. À entrada da igreja, um cartaz conclamava: "Toda a igreja
está feliz com sua vinda. Quando voltar, traga um convidado".
COM O BISPO
O bispo Raimundo, em seu templo: o
altar é de compensado, custou 180
reais, mas o som é de primeira
Onde estão os ateus, os agnósticos, os sem-religião de Nova Ibiá? Há algo que não se
encaixa. Em 1991, o censo do IBGE descobriu que havia 6,35% de pessoas sem religião
na cidadezinha e que 83,35% da população dizia ser católica. Em 2000, no novo censo,
a realidade havia virado de ponta-cabeça: 59,85% afirmavam não ter religião e apenas
16,02% diziam-se católicos. Tamanha mudança só se justificaria com uma rebelião de
católicos, mas ninguém tem notícia de um movimento dessa
natureza. Ao contrário. Até fevereiro do ano passado, o padre
não morava em Nova Ibiá. Ia à cidade de vez em quando, para
celebrar a missa, e partia. Agora, o padre Albervan da Silva
Cruz mora na cidade e reza muita missa. Na Igreja Matriz, há
missa no domingo, na terça, na primeira sexta de cada mês e,
de quinze em quinze dias, no sábado. Na Igreja de São Roque,
a missa é na quinta. Na Igreja de São Francisco, na zona rural,
a missa é rezada duas vezes por mês, sempre aos domingos.
Aos 30 anos, o padre Albervan é o primeiro pároco de Nova
Ibiá, e Nova Ibiá é a primeira paróquia do padre Albervan.
Ali, ele já fez dez casamentos e dá aula de filosofia para
quinze turmas da 5ª à 8ª série da escola pública local.
O sonho do geólogo americano Kurt Wise era ser professor de biologia em alguma
universidade de ponta nos Estados Unidos. Sua carreira acadêmica vinha numa rota
brilhante. Ele foi aluno do célebre paleontólogo Stephen Jay Gould, um dos gigantes da
biologia do século XX, e carregava debaixo do braço diplomas das universidades de
Chicago e Harvard. Até que um dia, pressionado pela irresistível tensão entre a ciência e
os ensinamentos da Bíblia, Kurt Wise tomou uma atitude radical: pegou uma tesoura e
saiu cortando todos os trechos da Bíblia que contrariam as descobertas da ciência.
Cortou, cortou e cortou, até que não sobrou quase nada do livro sagrado. "Tive de tomar
uma decisão entre a evolução e as Escrituras", relembra Wise. Era uma coisa ou outra.
Ele acabou renunciando ao sonho de ser professor de biologia e aceitando integralmente
a palavra de Deus. "Assim, com grande tristeza, lancei ao fogo todos os meus sonhos e
as minhas esperanças na ciência." O caso dramático de Kurt Wise é relatado no livro
Deus, um Delírio, do biólogo inglês Richard Dawkins, e coloca uma questão central: é
possível conciliar religião e ciência?
São raros, mas existem cientistas devotos. O mais famoso é o biólogo americano
Francis Collins, autor de um dos feitos mais notáveis da ciência recente: o mapea-mento
do DNA humano. Collins, temente a Deus desde os 27 anos, escreveu A Linguagem de
Deus para mostrar que ciência e fé não são incompatíveis, mas complementares. A
ciência investiga o natural, a religião investiga o espírito – e uma não responde às
dúvidas da outra. Entre os cientistas, muitos rejeitam essa divisão compartimental do
saber humano, mas Collins alega que a ciência tem respostas empobrecedoras para
indagações primordiais. Por exemplo: por que estamos aqui? Qual é o sentido da vida?
Os cientistas ateus não sabem dizer e, em defesa de sua visão atéia, alegam que a
ausência de uma explicação natural não exige necessariamente uma explicação
sobrenatural. Eles acusam os religiosos de aproveitar a lacuna do conhecimento humano
para preenchê-la com o pensamento mágico.
Ciência e fé não foram inimigas escancaradas desde sempre, porque a fé, por séculos,
foi mais forte, mais influente e mais poderosa que a ciência. Mas o choque entre ambas
tem fundas raízes na história – a começar por Demócrito, que, cinco séculos antes da era
cristã, intuiu a existência do átomo em um exercício mental de um vigor espantoso.
Diante da afirmação de que tudo era matéria, tudo era átomo, a fé sentiu-se contrariada
porque, se tudo é assim, Deus não pode ser imaterial. E, pior, sendo material, é
corruptível. Séculos mais tarde, a Igreja Católica, autoridade no Ocidente, entraria em
rota de colisão aberta com as mais fantásticas descobertas científicas. Foi contra o
heliocentrismo. O Sol não poderia ser o centro do universo, pois esse lugar perfeito, o
centro, era da Terra, obra de Deus. Foi contra a datação do mundo, o estudo da anatomia
em cadáveres e até se insurgiu contra o número zero, noção central para a evolução da
matemática. Desagradou-lhe também o pára-raio, cuja invenção nos dispensou de temer
um Deus que nos enviava descargas elétricas punitivas de vez em quando.
É possível que nada tenha sido tão devastador para a crença divina quanto a descoberta
de Charles Darwin (1809-1882), que chegou às livrarias inglesas no dia 22 de novembro
de 1859, sob o título A Origem das Espécies, com modestos 1 250 exemplares –
esgotados rapidamente. Darwin dizia que não havia nada como um criatório divino em
algum canto do planeta, de onde Deus sacava de vez em quando uma espécie nova. As
espécies evoluíam segundo o princípio da seleção natural. Ruía a idéia de que Deus fez
do barro Adão e de sua costela Eva. A hecatombe reverbera até hoje, 150 anos depois,
quando criacionistas, em especial nos Estados Unidos, insistem no "desenho
inteligente", roupagem nova para o velho criacionismo. A descoberta de Darwin é
genial porque, como é próprio das obras-primas, contraria o padrão mental vigente. O
homem está habituado a acreditar que, para criar algo, é preciso algo maior. Que só o
complexo gera o simples. Ou seja: um homem pode fazer um livro, mas um livro não
faz um homem. Darwin mostrou que a simplicidade dá origem à complexidade. Da
ameba original veio tudo, o besouro, o coelho, o macaco, o homem. Para ressaltar o
repúdio da fé ao darwinismo, o filósofo Michel Onfray, em seu Tratado de Ateologia,
indaga, ironicamente: "O papa, primo de um babuíno?".
Sua tese tem respaldo em uma pesquisa da década de 70 que estudou 53 pares de
gêmeos idênticos e 31 pares de gêmeos não idênticos. A conclusão dos pesquisadores é
que a espiritualidade tem raiz genética, mas a opção por determinada liturgia, por um
culto específico, pelo hábito de rezar, por freqüentar o templo ou a igreja, por ler a
Bíblia ou o Corão é algo culturalmente adquirido. Um dia, o homem saberá ler com
precisão os 3 bilhões de letras do DNA humano, nossa carteira de identidade.
Certamente, esse conhecimento científico fará com que seja possível evitar um câncer,
uma disfunção renal, a tendência à depressão ou a fragilidade dos ossos do tórax. Mas,
ainda assim, com toda essa pujança, esse conhecimento imenso, não saberemos como
fazer um homem bom ou mau, triste ou feliz. Talvez, da estupenda trajetória percorrida
da simplória ameba primeva à potência do cérebro de Albert Einstein (1879-1955), o
fundamental seja apenas isso: ser bom, ser feliz.
Religião
A religião faz mal ao mundo
André Petry
LEGIÃO DE LEITORES
Com seus livros sobre ateísmo, Sam Harris
tem freqüentado a lista dos mais vendidos do
New York Times
O senhor acha que o mundo seria melhor sem religião, sem fé, sem crença em
Deus?
Seria melhor se não houvesse mentiras. A religião é construída, e num grau notável,
sobre mentiras. Não me refiro aos espetáculos de hipocrisia, como quando um pastor
evangélico é flagrado com um garoto de programa ou metanfetamina, ou ambos. Refiro-
me à falência sistemática da maioria dos crentes em admitir que as alegações básicas
para sua fé são profundamente suspeitas. É mamãe dizendo que vovó morreu e foi para
o céu, mas mamãe não sabe. A verdade é que mamãe está mentindo, para si própria e
para seus filhos, e a maioria de nós encara tal comportamento como se fosse
perfeitamente normal. Em vez de ensinarmos as crianças a lidar com o sofrimento e ser
felizes apesar da realidade da morte, optamos por alimentar seu poder de se iludir e se
enganar.
Mas nem a Bíblia nem o Corão se pretendem um manual científico para entender
o mundo?
Esses livros não são sequer um guia sobre moralidade que possamos considerar
minimamente adequado, e falo de moralidade porque é um campo em que ambos se
consideram exemplares. A Bíblia e o Corão, por exemplo, aceitam a escravidão.
Qualquer um que os considere guias morais deve ser a favor da escravidão. Não há uma
única linha no Novo Testamento que denuncie a iniqüidade da escravidão. São Paulo até
aconselha aos escravos que sirvam bem aos seus senhores e sirvam especialmente bem
aos seus senhores cristãos. É desnecessário dizer que a Bíblia e o Corão, além de não
servir como guias em termos de moralidade, também não são autoridade em física,
astronomia ou economia.
Que tipo de impacto seu livro pode ter sobre os leitores religiosos?
Eu ficaria feliz se o livro levasse os leitores a se perguntar por que, em pleno século
XXI, ainda aplaudimos pessoas que fingem saber o que elas manifestamente não sabem
nem podem saber. Não há uma única pessoa viva que saiba se Jesus era filho de Deus
ou se nasceu de uma virgem. Na verdade, não há uma pessoa viva que saiba se o Jesus
histórico tinha barba. No entanto, em muitos países é uma necessidade política simular
que sabemos coisas sobre Deus, sobre Jesus, sobre a origem divina da Bíblia. Imagino
que qualquer pessoa religiosa que leia Carta a uma Nação Cristã com a cabeça aberta
descobrirá que os argumentos usados contra a fé religiosa são absolutamente
irrespondíveis. Isso deve ter algum efeito sobre o modo de ver o mundo dos leitores.
Eles certamente vão perceber que ser um cristão devotado faz tanto sentido quanto ser
um muçulmano devotado, que, por sua vez, é tão lógico quanto ser um adorador de
Poseidon, o deus do mar na Grécia antiga. É hora de falarmos sobre a felicidade humana
e nossa disponibilidade para experiências espirituais na linguagem da ciência do século
XXI, deixando a mitologia para trás.