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tecelã

ZÉLIA SCHOLZ,
amor à cultura milenar
Do ambiente campeiro singelo e marcante, ela traz
e mantém acesa a chama da tecelagem artesanal
por quatro gerações. A sua arte de tecer e dar
beleza aos tecidos, que também passou para o
filho, transpõe as barreiras do tempo e mistura as
técnicas de forma criativa e alegre.

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O tear e a roca, milenares mas ainda muito úteis

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Fiando e tecendo/ eu levo a vida/ e a vida me leva/ para
onde eu não sei... Essa singela quadra poética escrita de
próprio punho — para quem nasceu no respeitoso
ambiente rural de Jacutinga (MG), na década de 30 e
depois veio ajudar no desbravamento do Norte do Paraná,
constituindo família, na década de 50, e já mora em Curitiba
há mais de trinta anos — é muito reveladora da direção que
a própria vida lhe reservou. Esses caminhos percorridos
por Zélia Gomes de Jesus Scholz, (...) Fiando os fios da
vida/ sempre tramando/ urdindo o destino/ de uns e de
outros (...), como dizem outros versos de seu poema, são
mais de estradas iluminadas do que incertas. Aos 72 anos,
Zélia Scholz, tecelã desde os 14 anos — como foram sua
bisavó, avó e mãe — diz com orgulho por trás de um sem-
blante afável e sereno, ao repassar por onde andou, que
todas as suas conquistas são fruto do “amor e da alegria”. “A
alegria de nascer em Minas e a felicidade de viver no Paraná.”
Tecelã de tradição familiar e depois de ofício, dona Zélia
afirma que não saberia dimensionar o tanto que já cardou
(cardar, desemaranhar as fibras da lã, para fiar em seguida),
fiou ou fez frutificar tramas e tecidos em seus teares
manuais, nesses anos todos. Na ativa como artesã e
instrutora de tecelagem, esta precursora da Feira de
Artesanato de domingo do Largo da Ordem e do Centro
de Criatividade, no Parque São Lourenço, continua
dedicando seus dias de trabalho para fazer tapetes, almo-
fadas, cortinas e tecidos de roupas, da mesma forma que
sua bisavó, avó e mãe faziam. “Para mim, este trabalho não
é trabalho... é puro prazer”, diz.
O trabalho de Zélia é executado com paciência e esme-
ro em seu ateliê, que se funde com sua própria casa, no
Alto da XV, entre o jardim que preserva um pinheiro-do-
paraná e uma palmeira e o quintal, onde extrai muitas
essências de plantas que servem para colorir e embelezar
seus tecidos. Ali, estão algumas rocas (rodas de fiar).
Uma é neozelandesa, outra polonesa e uma portuguesa;
teares primitivos e de pedais; dobradeira (confecciona

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meadas e novelos de fios); frações de lã; fios em novelo
ao montes; meadas tingidas a secar ao sol; e outros
equipamentos essenciais para criar a sua arte. O único
dia calmo é segunda-feira, que ela aproveita para deixar
a casa em ordem. “É bem difícil aqui ter um dia total-
mente tranqüilo”, afirma sem se importar.
Segunda filha de treze irmãos, Zélia passou a sua
primeira infância na fazenda de seu pai, Benedito Gomes
Corrêa, pecuarista e industrial, no Sul de Minas Gerais. Esse
ambiente campeiro marcou muito o seu temperamento
cordial e a sua personalidade, e ainda estimula e enriquece
todos os seus sentidos. Aliás, para ela, o homem rural,
“que traz a comida para a nossa mesa”, é um exemplo de
vida. “Minha bisavó materna, Maria Silvéria, plantava
algodão, colhia, cardava, fiava e fazia roupas no tear. Criava
carneiros, tosquiava, lavava lã, cardava e tecia. Ela também
fazia queijo e manteiga. No sítio tinha moinho de fubá, o
monjolo para fazer a farinha... Faziam lá também o azeite de
mamona para acender as candeias”, recorda.
Nessa vida caseira, sua avó materna, Ana Maria, que
também herdara de sua mãe as técnicas da tecelagem, foi
a mais importante para ela, como diz, pois, aprendeu a
“usar o avental e a andar arrumada”. Isto é, personificava e
idealizava a mulher mineira. Além de ser iniciada nos afaze-
res domésticos com a avó, aprendeu com ela novos
segredos do ofício de tecer. Ana Maria fazia roupas que
vestiam todos, tapetes e baixeiros (mantas que se colo-
cam no lombo do cavalo por baixo da sela), alguns dos
quais preserva até hoje com carinho em seu ateliê, depois
Zélia em seu ateliê de trabalho, no início
de cinqüenta anos.
“Naquela época, à mulher era reservado o trabalho

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ligado à casa e às prendas domésticas. Minha mãe, Maria Gomes Corrêa para o Norte do Paraná, nos anos
José, era assim e exigia todas essas coisas de nós: a 50. Os teares ficaram em Minas. A família tinha uma casa
gente saía da escola, tinha que ir pra aula de bordado; saía em Mandaguari, enquanto os pais ficavam no sítio em
da aula de bordado, ia pra aula do piano; do piano, ia pra Mandaguassu. Ali ela conheceu e casou-se com José Wille
aula de pintura.” E a mãe também trabalhava na roca, Scholz, diretor da Rádio Guairacá, com quem teve seis
cardava, fiava e fazia roupas. Esse espírito de família e a filhos. Além de Renê, José Wille, Cley André e Simão Pedro,
ligação com a tecelagem sempre estiveram presentes na hoje jornalistas, Marcelo (designer) e Gustavo Adolfo
família. Renê, seu terceiro filho, professor, está ligado a este (agrônomo). Adotou também outro filho, Carlos Eduardo.
ofício desde criança. Ele mantém acesa a chama da família Com emoção e carinho, Zélia recorda de seu marido, que
na tradição do tear, representando a quinta geração. faleceu há oito anos: “Ele era muito trabalhador e foi um
É seu braço direito no ateliê. Faz tapetes e muitas outras homem exemplar para os filhos”.
peças, ajuda a gerir os negócios e mantém vivo um O Norte do Paraná abriu outros horizontes para a família
museu da tecelagem. que Zélia passou a constituir: novas necessidades, os filhos e
A febre de plantar o “ouro verde”, o café, trouxe a família um mundo novo pela frente. Por um período razoável, ela se

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Um tear bastante rudimentar, mas muito eficiente

distanciou do afazer tradicional de tecer. Como no velho dito, “o A arte de tecer e dar beleza aos tecidos transpõe muitas
bom filho à casa torna”, um dia retomou o contato com lã vezes a barreira do tempo e mistura as técnicas, mais anti-
de forma ocasional, quando foi visitar parentes do marido na gas ou mais recentes, de forma que a criatividade seja o
cidade da Lapa, tradicional por criar ovelhas. “Tecer com lã, com elemento-motor do trabalho diário. As matérias-primas que
lã de carneiros, daquelas com que minha vó fazia tapetes. Senti possibilitam isso podem ser simples, fartas na natureza.
novamente essa vontade. Comprei a lã e levei para Mandaguari. A intuição muitas vezes prevalece sobre os outros
Pedi pra minha mãe me trazer uma roca e uma carda, comecei sentidos. Assim age dona Zélia.
a fazer tapetes e não parei mais”, diz. Ela conta que sua bisavó colhia macela no campo,

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quando começava a desabrochar, para tingir o algodão
mergulhado na fervura, a fim de obter um amarelo terracota
nas meadas. Do seu quintal, hoje ela usa flores e folhas
da acácia mimosa para conseguir uma cor própria em
seus tecidos, o verde cítrico. Sua bisavó também se
utilizava dos líquens das árvores para extrair diversos
matizes ou colhia folhas de anil para dar aos fios a cor
índigo, tão difundida pelo jeans em nossos dias. Da
mesma forma, Zélia planta açafrão para tirar dos estig-
mas dessa flor, no tingimento, o amarelo canário que lhe
é inimitável. O curry, que se usa para tempero, em infu-
são dá um vermelho vigoroso. Cascas de cebola e
urucum também fazem parte desse universo emble-
mático. São cores e aromas que se misturam. “Costu-
mo trabalhar com as cores primárias e, com elas, faço
as minhas próprias cores”, ensina ela.
A atuação de Zélia nessa área é bastante intensa e
diversificada. Além de toda a sua produção diária no ateliê,
onde divide o trabalho com o filho Renê e um ou outro
ajudante, vem ensinando as novas gerações em multicursos
de tecelagem há pelo menos 27 anos no Paraná e diversas
cidades brasileiras. Já participou de inúmeras exposições
individuais e coletivas de tapeçarias e também integra o
movimento de defesa dos artesãos paranaenses. Seu
ponto de encontro é a feira de domingo. “Se posso fazer
algum juízo de meu trabalho, digo que é preservar uma
cultura milenar artesanal.”
A vida, para Zélia Scholz, não tem muito segredos, pode
parecer um urdume — fios que ficam esticados no tear e
entre os quais se faz a trama de lã, para a formação do que
é tecido. Os fios são estáveis, justos e pouco imprevisíveis.
Têm que ser trabalhados com cuidado e atenção com a
naveta — a régua de madeira com orifícios abertos nas
extremidades, que possibilita que os fios passem entre os
urdumes. O tecido surgirá, basta que seja tramado com
inventividade, paciência e firmeza. Ficará muito mais bonito,
sobretudo se trabalhado com “amor e alegria”.

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