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edição 2007 ‐ Editora Ground
Revisão ‐ Yeda Jagle de Carvalho Antonieta Canelas
Editoração eletrônica ‐ Sergio Gzeschnik
Capa: Ilustração ‐ Henry Thoreau
Arte final ‐ Carlos Guimarães
CIP‐BRASIL. CATALOGAÇÃO‐NA‐FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T411w 7.ed.
Thoreau, Henry David, 1817‐1862
Walden, ou, A vida nos bosques ; e, A desobediência civil / Henry D. Thoreau; tradução Astrid Cabral. ‐ 7.ed. ‐ São
Paulo : Ground, 2007.
288p.; 23cm
Tradução de: Walden, or, Life in the woods ISBN 978‐85‐7187‐203‐5
1.Thoreau, Henry David, 1817‐1862 ‐ Residências e lugares habituais ‐ Walden Woods (Massachusetts, Estados
Unidos). 2. Walden Woods (Massachusetts, Estados Unidos) ‐ Usos e costumes. 3. História natural ‐Walden Woods
(Massachusetts, Estados Unidos). 4. Áreas silvestres ‐Walden Woods (Massachusetts, Estados Unidos). 5. Resistência
ao governo. I. Cabral, Astrid, 1936‐. II. Título. III. Título: A vida nos bosques. IV. Título: A desobediência civil.
07‐2011. CDD:818
CDU: 821.111(73)‐8
25.05.07 28.05.07 001913
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A DESOBEDIÊNCIA CIVIL
De todo o coração aceito o lema: "O melhor governo é o que governa menos". E gostaria de vê‐lo posto em
execução de modo mais rápido e sistemático. Levado a efeito, há de redundar finalmente noutro, de que
também estou convicto: "O melhor governo é o que não governa de maneira nenhuma"; e quando os homens
estiverem preparados para essa forma de governo, será a que terão todos eles. Um governo é, se tanto, um
recurso conveniente; mas muitos governos são sempre, e todos em algumas ocasiões, inconvenientes. As
objeções que se apresentam contra um exército permanente, muitas e de peso, e merecendo prevalecer,
podem afinal ser também apresentadas contra um governo permanente. O exército permanente é apenas
uma arma do governo permanente. O governo em si, que é tão só o modo que o povo escolheu para executar
sua vontade, é igualmente suscetível de abuso e deturpação antes que o povo possa atuar por seu intermédio.
Prova‐o a atual guerra mexicana23 1 , obra de um número proporcionalmente pequeno de indivíduos valendo‐
se do governo estabelecido como instrumento; pois, para começar, o povo não teria aprovado esta medida.
Este governo americano, o que é senão uma tradição, embora recente, tentando transmitir‐se inalterada às
gerações futuras, mas a cada instante perdendo algo de sua integridade? Ele não possui a vitalidade e a força
de um único homem vivo, pois este pode dobrá‐lo a sua vontade. É uma espécie de arma de madeira para o
próprio povo. Mas nem por isso é menos necessária, pois o povo deve dispor de um ou outro mecanismo
complicado e ouvir o seu estrépito, a fim de satisfazer a idéia de governo que tem. Os governos mostram
assim com que êxito os homens podem ser ludibriados, e até ludibriar a si mesmos, em seu próprio benefício.
Ótimo, convenhamos. Contudo este governo nunca patrocinou qualquer empreendimento, a não ser com o
entusiasmo com que se afastou do seu caminho. Ele não mantém livre o país. Ele não coloniza o Oeste. Ele
não educa. O caráter inerente ao povo americano é que é responsável por tudo quanto tem sido feito, e ainda
teria feito mais se o governo às vezes não se metesse no caminho. Pois o governo é um expediente diante do
qual os homens de bom grado lograriam deixar um ao outro em paz; e, como já foi dito, ele é tanto mais
expedito quanto mais deixa em paz os governados. Se não fossem elásticos feito borracha, os negócios e o
comércio nunca conseguiriam saltar os obstáculos constantemente postos em seu caminho pelos legisladores;
que a serem julgados tão só pelos efeitos de suas ações e não em parte por seus propósitos, mereceriam ser
classificados e punidos junto com os malfeitores que obstruem as estradas de ferro.
Mas, para falar de modo prático e como cidadão, diferentemente daqueles que se dizem homens de nenhum
governo, pleiteio, não a imediata ausência de governo, mas de imediato um governo melhor. Que cada
homem expresse o tipo de governo que lhe inspiraria respeito, e será esse o primeiro passo no sentido de
conquistá‐lo.
Afinal de contas, uma vez que o poder está nas mãos do povo, a razão prática pela qual se permite que a
maioria governe e continue a governar por longo tempo, não é porque haja mais probabilidade de ela estar
com o direito, nem porque assim pareça mais justo à minoria, porém porque é fisicamente mais forte. Mas
um governo em que a maioria decide em todos os casos não pode estar baseado na justiça, mesmo na medida
em que os homens a concebem. Será impossível um governo em que a maioria não decida por assim dizer
sobre o que é certo e errado, mas sim a consciência? Um governo em que as maiorias decidam apenas aquelas
questões para as quais o critério da conveniência se aplica? Deve o cidadão por um momento sequer, ou num
grau mínimo, renunciar à sua consciência em prol do legislador? Então por que terá cada homem uma
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Guerra entre Estados Unidos e México (1846‐1848) que redundou na anexação do Texas e na compra do
Novo México e da Califórnia. (N.T.)
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consciência? Acho que devemos em primeiro lugar ser homens, e só depois súditos. Não é desejável que se
cultive um respeito à lei igual ao que se cultiva pelo que é correto. A única obrigação que tenho direito de
assumir é a de fazer a todo momento o que julgo correto. Diz‐se, é bem verdade, que uma corporação não
possui consciência; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação que possui consciência.
A lei nunca tornou os homens nem um pouquinho mais justos, e devido ao respeito que têm por ela, mesmo
os bem intencionados tornam‐se no dia‐a‐dia agentes de injustiça. Resultado comum e natural do indevido
respeito à lei é a fila que se pode ver de um destacamento militar; coronel, capitão, cabo, soldados rasos,
artilheiros, todos marchando em admirável ordem, morro acima e morro abaixo a caminho das guerras,
contra suas vontades, e também contra o bom senso e a consciência de cada um, o que torna aquela marcha
uma escalada em verdade muito árdua e causa de palpitação cardíaca. Eles não têm a menor dúvida de que se
acham envolvidos numa tarefa condenável; todos inclinados em prol da paz. Ora, o que são eles? Afinal são
homens ou minúsculos fortins e depósitos ambulantes de munição a serviço de algum inescrupuloso detentor
do poder? Visitai um estaleiro e contemplai um fuzileiro naval, aquilo que o governo americano pode fazer de
um homem, o que pôde fazer dele com suas feitiçarias — mera sombra ou reminiscência de humanidade, um
ser vivo, de pé, e já, pode‐se dizer, enterrado debaixo de armas com acompanhamentos funéreos, ainda que
"Nenhum tambor, nenhuma nota fúnebre ouvida Quando
seu cadáver à trincheira levamos; Nenhum soldado deu o
tiro de despedida Sobre o túmulo onde nosso herói
enterramos."
Assim é que a massa de homens serve ao Estado, não como homens antes de tudo, mas como máquinas, com
seus corpos. Formam o exército permanente, as milícias, os carcereiros, os policiais, o pelotão de guardas civis
etc. Na maioria dos casos não há nenhum exercício livre, seja do juízo ou de sentido moral; mas todos se
colocam no mesmo nível do lenho, da terra e das pedras; e quem sabe homens de madeira podem vir a ser
manufaturados para servir a tais propósitos igualmente bem. Tais não merecem mais respeito que
espantalhos e bonecos de barro. Valem apenas como cavalos e cachorros. Contudo, tipos como esses são
comumente estimados como bons cidadãos. Outros — como a maioria dos legisladores, políticos, advogados,
sacerdotes e funcionários — servem ao Estado sobretudo com a cabeça; e, como eles raramente fazem
distinções de ordem moral, é bem provável que sirvam ao Demônio, como servem a Deus, sem a menor
intenção. Muito poucos, como os heróis, os patriotas, os mártires, os reformadores em sentido amplo, e os ho‐
mens, servem ao Estado também com a sua consciência, e assim necessariamente lhe oferecem resistência a
maioria das vezes, passando em geral a ser considerados inimigos do Estado. Um homem sensato só será útil
como homem, e não se submeterá a ser "barro" e "tapar buraco para impedir a passagem do vento", mas há de
deixar essa função ao menos para seus restos mortais:
"Sou muito bem‐nascido e abastado
Para um lugar secundário no
comando Ou para serviçal útil e
instrumento De qualquer um estado
soberano."
Aquele que se entrega de todo aos seus companheiros é tido por estes como inútil e egoísta; mas quem se dá
somente em parte é proclamado por eles como benfeitor e filantropo.
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Como convém a uma pessoa comportar‐se em relação a este governo americano de hoje? Respondo que não
pode sem desgraça associar‐se a ele. Não posso por um instante sequer reconhecer como meu governo essa
organização política que é também a do escravo.
Todos os homens reconhecem o direito à revolução, isto é, o direito de recusar sujeição ao governo e de
resistir quando sua tirania ou incompetência são em alto grau e insuportáveis. Mas quase todos dizem que tal
não é o caso no momento. Mas tal era o caso, julgam, quando da Revolução de 1775. Se alguém viesse me
dizer que este era um mau governo porque aumentou a alíquota de certos artigos estrangeiros
desembarcados em nossos portos, é muito provável que eu não fizesse nada, pois posso passar sem eles.
Todas as máquinas têm seus atritos, e é possível que isso seja bastante bom para contrabalançar o mal. De
qualquer forma, é um grande mal fazer agitação por causa disso. Mas na eventualidade de os atritos terem seu
mecanismo, e a opressão e o roubo se organizarem, digo, não conservemos tal máquina por mais tempo. Em
outras palavras, quando, num país que se propôs a ser o refúgio da liberdade, a sexta parte da população é
constituída de escravos, e quando uma nação inteira é injustamente invadida e conquistada por um exército
estrangeiro e submetida à lei marcial, penso que não é cedo demais para que homens honestos se rebelem e
façam a revolução. E o que torna esse dever ainda mais urgente é o fato de que o país assim invadido não é o
nosso, mas pelo contrário, nosso é o exército invasor.
Paley, autoridade conhecida entre outras sobre questões morais, em seu capítulo "Dever de Submissão ao
Governo Civil", reduz toda a obrigação civil a nível de conveniência, e chega a dizer: "enquanto o interesse da
sociedade inteira o exigir, isto é, enquanto o governo estabelecido não puder ser resistido e mudado sem
inconveniência pública, é a vontade de Deus que se obedeça ao governo estabelecido, e nada mais... Admitindo‐
se esse princípio, a justiça de cada caso de resistência em particular reduz‐se de um lado à avaliação do perigo e
sofrimento, e do outro ao cálculo da probabilidade e despesa ao remediá‐los." A este respeito, acrescenta, "cada
homem julgará por si mesmo". No entanto parece que Paley nunca considerou os casos a que não se aplica a
regra da conveniência, nos quais o povo, bem como o indivíduo, deve agir com justiça, custe o que custar. Se
eu arranquei injustamente a prancha de um homem em vias de se afogar, devo devolver‐lhe ainda que eu me
afogue. Isso, de acordo com Paley, seria inconveniente. Mas aquele que salvasse a vida em tal circunstância
perdê‐la‐ia. Este povo deve cessar de manter escravos e de fazer guerra ao México, embora isso lhe custe a
existência como povo.
Na prática, as nações concordam com Paley; mas por acaso alguém pensa que Massachusetts faz exatamente
o que é correto na atual crise?
"Um estado prostituído, puta vestida de prata,
A cauda lá no alto, e alma arrastando‐se na lama."
A bem dizer, os adversários de uma reforma em Massachusetts não são os cem mil políticos do Sul, mas os
cem mil comerciantes e fazendeiros daqui, que estão mais interessados em comércio e agricultura do que em
humanidade, e não estão preparados para render justiça ao escravo e ao México, custe o que custar. Não brigo
com inimigos remotos, mas com os que, bem pertinho de casa, cooperam e fazem o lance dos que se acham
distantes, e sem os quais estes últimos seriam inofensivos. Costumamos dizer que a massa dos homens está
despreparada; mas o progresso é lento porque a minoria não é materialmente mais sábia e melhor que a
multidão. Não é importante que muitos sejam tão bons como vós, e sim que haja uma absoluta bondade em
algum lugar, pois isso levedará toda a massa. Há milhares que sustentam opinião oposta à escravidão e à
guerra, e que no entanto não fazem nada de eficaz para pôr‐lhes um fim; que se considerando filhos de
Washington e Franklin, sentam‐se de braços cruzados e dizem que não sabem o que fazer, e nada fazem; que
chegam ao ponto de antepor a questão do livre comércio à questão da liberdade, e lêem tranqüilamente
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depois do jantar sobre os preços do mercado e as últimas notícias do México, e talvez até peguem no sono
com a leitura. Qual é hoje em dia o preço de um homem honesto e patriota? Eles hesitam, lamentam‐se, e às
vezes fazem petição; mas nada fazem com seriedade e resultado. Esperarão bem dispostos que outros
remedeiem o mal para que eles não mais tenham que se lamentar. No máximo, darão simplesmente um voto
fácil, um fraco apoio e desejarão bom êxito ao que é justo, ao cruzar‐lhe o caminho. Há novecentos e noventa
e nove patronos da virtude para cada homem virtuoso. Porém é mais fácil lidar com o verdadeiro possuidor
de uma coisa do que com seu guardião temporário.
Toda votação é uma espécie de jogo, como o de damas e o de gamão, só que com um leve toque moral, um
jogo com o certo e o errado, com questionamento moral e as apostas que de costume acompanham os jogos.
O caráter dos votantes não está em jogo. Lanço meu voto, talvez, pelo que julgo certo; mas não estou
visceralmente interessado em que aquele certo prevaleça. Estou disposto a deixar isso a cargo da maioria. Sua
obrigação portanto não vai além do nível de conveniência. Mesmo votando pelo justo não se está fazendo,
nada por ele. Nada mais é que expressar fracamente aos homens vosso desejo de que o bem prevaleça. Um
homem sábio não deixará o justo à mercê da sorte, nem desejará que este prevaleça devido ao poder da
maioria. Pouca é a virtude que há na ação das massas. Quando a maioria finalmente votar pela abolição da
escravatura, é porque todos lhe estarão indiferentes, ou porque haverá apenas uma pequena escravidão para
ser abolida com seu voto. Eles, a essa altura, serão os únicos escravos. Somente o voto de quem afirma com o
direito do voto sua própria liberdade pode acelerar a abolição da escravatura.
Ouço falar de uma convenção a se realizar em Baltimore, ou em outro lugar, para a seleção de um candidato à
Presidência, promovida sobretudo por editores e políticos profissionais; mas penso: o que representa a
decisão a que podem chegar para um homem independente, inteligente e respeitável? Não teremos no
entanto a vantagem da sabedoria e honestidade desse homem? Não podemos contar com alguns votos
independentes? Não há neste país muitos indivíduos que não freqüentam convenções? Mas não: percebo que
o pretenso homem respeitável abandonou imediatamente sua posição e se desespera de seu país, quando seu
país tem mais razão para se desesperar dele. Incontinenti adota um dos candidatos assim selecionados como
sendo o único disponível, demonstrando dessa maneira que ele mesmo está disponível para qualquer
propósito demagógico. Seu voto portanto não vale mais que o de qualquer forasteiro sem princípios ou de um
nativo mercenário, que pode ser comprado. Viva o homem que é homem, e de quem, como diz meu vizinho,
ninguém pode dobrar a espinha dorsal! Nossas estatísticas estão erradas: a população foi recenseada em
número muito elevado. Quantos homens há neste país por quilômetro quadrado? Quando muito um. Será
que a América não oferece nenhum atrativo para que homens nela se estabeleçam?
O americano reduziu‐se a um Odd Fellows24, alguém que pode ser reconhecido pelo espírito gregário e pela
evidente falta de intelecto e a prazenteira autoconfiança; cuja preocupação primordial ao tomar posse na
congregação é verificar se os asilos se encontram em bom estado; e antes mesmo de envergar oficialmente o
uniforme viril, coletar fundos para o sustento dos possíveis órfãos e viúvas; alguém que, em suma, se atreve a
viver só por conta da Companhia de Seguro Mútuo, que se comprometeu a enterrá‐lo decentemente.
Não é dever de um homem, como norma, devotar‐se à erradicação de um mal, por terrível que seja; ele pode
muito bem ter outras preocupações com que se envolver; mas é sua obrigação, pelo menos, desinteressar‐se
do mal, e caso não pense muito no assunto, não lhe dar em termos práticos seu apoio. Se me dedico a outras
atividades e meditações, antes de tudo devo verificar ao menos se não as exerço montado nos ombros de
outra pessoa. Devo livrá‐la de mim primeiro, para que ela também possa dedicar‐se às próprias meditações.
Vede quanta inconseqüência crassa se tolera! Tenho ouvido alguns de meus concidadãos dizerem: "Só queria
que me mandassem sufocar uma rebelião de escravos, ou marchar contra o México. Vê lá se eu ia!" E no entanto
esses mesmos homens, diretamente por sua sujeição, ou indiretamente por seu dinheiro, forneceram um
substituto. O soldado que se nega a servir numa guerra injusta é aplaudido por aqueles que não se negam a
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sustentar o governo injusto que a promove; é aplaudido por aqueles cujos atos e autoridade ele despreza e
ridiculariza, como se o Estado se penitenciasse a ponto de contratar alguém para flagelá‐lo enquanto pecasse,
mas não a ponto de abster‐se de pecar por um só momento. Desse modo, em nome da ordem e do governo
civil, somos finalmente levados a render homenagem a nossa própria baixeza além de sustentá‐la. Depois do
primeiro rubor pelo pecado, sobrevém a indiferença; e o pecado de imoral torna‐se, por assim dizer, amoral, e
não de todo desnecessário àquela vida que forjamos.
O erro maior e mais difundido exige a mais desinteressante virtude para mantê‐lo. São os nobres os que com
maior probabilidade incorrem na ligeira reprovação de que é comumente suscetível a virtude do patriotismo.
Aqueles que, ao mesmo tempo que desaprovam o caráter e as medidas de um governo, dão‐lhe sua adesão e
apoio são, sem sombra de dúvida, seus mais conscienciosos defensores, e com freqüência os mais sérios
obstáculos à reforma. Alguns requerem que o Estado dissolva a União e desatenda às exigências do
Presidente. Por que não a dissolvem eles mesmos — a união entre eles e o Estado ‐ e não se recusam a pagar
sua cota ao Tesouro? Não representam para o Estado o que este representa para a União? E não foram as
razões que impediram o Estado de resistir à União as mesmas que os impediram de resistir ao Estado?
Como pode um homem satisfazer‐se simplesmente em manter uma opinião e desfrutá‐la? Há algum prazer
nisso, se em sua opinião ele é ofendido? Se alguém foi passado para trás por seu vizinho num só dólar, não se
satisfaz em saber disso, ou em dizer que foi enganado, ou mesmo em cobrar‐lhe o que lhe é devido, mas
tomará providências eficazes para receber logo todo o dinheiro e defender‐se de ser passado para trás outra
vez. A ação a partir de princípios, a percepção e a prática do que é correto, modifica as coisas e as relações; é
essencialmente revolucionária, e não depende em seu todo do que havia antes. Não só divide estados e igrejas
como também divide famílias; chega inclusive a dividir o indivíduo, separando nele o diabólico do divino.
Existem leis injustas: contentar‐nos‐emos em obedecê‐las ou lutaremos por emendá‐las, obedecendo‐as até
que logremos êxito ou transgredindo‐as de uma vez por todas? As pessoas em geral, num governo como este,
acham que devem esperar até que convençam a maioria a alterá‐las. Pensam que, se resistissem, o remédio
seria pior que o mal. Porém é culpa do próprio governo se o remédio é pior que o mal. É ele que o torna pior.
Por que não prevê e providencia as reformas? Por que não valoriza sua sábia minoria? Por que grita e
esperneia antes de ser ferido? Por que não encoraja seus cidadãos a ficarem de vigilância apontando‐lhe suas
faltas e não se comporta melhor que eles? Por que há de sempre se crucificar Cristo, excomungar Copérnico e
Lutero, proclamar rebeldes Washington e Franklin?
Qualquer um pensaria que a única ofensa jamais admitida por um governo é a negação deliberada de sua
autoridade; e mais, por que não terá ele determinado sua penalidade definitiva, adequada e proporcional? Se
um homem que não tem bens se recusa não mais que uma vez a ganhar nove xelins para o Estado, é levado à
prisão por um período não fixado por qualquer lei que eu conheça, e determinado apenas pelo arbítrio dos
que o colocam ali; porém se roubar noventa vezes nove xelins do Estado, logo será solto.
Se a injustiça faz parte do necessário atrito da máquina governamental, deixe estar: quem sabe se desgastará
suavemente, a própria máquina acabando por se desgastar. Se a injustiça no entanto tem mola, polia, corda
ou manivela exclusivas, talvez possais considerar se o remédio não será pior que o mal; mas se é de tal
natureza que exija de vós ser agente de injustiça para com outra pessoa, digo‐vos então, rompei a lei. Que
vossa vida seja um atrito contrário para deter a máquina. O que me cumpre é ver se de algum modo não estou
contribuindo para o erro que condeno.
Quanto a adotar os meios fornecidos pelo Estado para remediar o mal, ignoro quais são. Exigem tempo
demais, e a vida do homem é breve. Tenho outros afazeres com que me ocupar. Eu vim ao mundo não
especialmente para transformá‐lo num lugar bom de se viver, mas para viver nele, seja bom ou mau. Não cabe
ao homem fazer todas as coisas, mas alguma coisa; e porque ele não pode fazer todas as coisas, não é
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necessário que ele faça alguma coisa errada. Não é minha obrigação ficar solicitando ao Governo ou ao
Legislativo mais do que lhes cabe solicitar‐me; e se não ouvissem minhas solicitações, o que deveria eu então
fazer? Mas neste caso o Estado não proporcionou saída: a sua própria Constituição é o mal. Isso pode parecer
duro, inflexível e pouco conciliador, mas é tratar com extrema delicadeza e consideração o único espírito que
pode apreciá‐la ou merecê‐la. Assim é toda mudança para melhor, que tal como o nascimento ou a morte
convulsiona o corpo todo.
Não hesito em dizer que aqueles que se chamam de Abolicionistas deveriam retirar, imediatamente e de
modo efetivo, todo o apoio pessoal e material ao governo de Massachusetts, e não ficar esperando até
constituírem maioria de cinqüenta e um por cento, antes que se permitam prevalecer por meio dela. Acho
que se têm Deus a seu lado basta, não precisam esperar por mais aquele um que perfaz a maioria. Ademais,
qualquer homem mais justo que seus vizinhos já constitui maioria de um.
Defronto‐me com este governo americano, ou com seu representante, o governo estadual, diretamente e face
a face, uma vez por ano e não mais, na pessoa de seu coletor de impostos; eis a única maneira pela qual uma
pessoa na minha condição social se encontra necessariamente com ele; e diz‐me então de modo
inconfundível: Reconhece‐me; e então a mais simples, a mais eficaz, e, na atual conjuntura, a mais
indispensável maneira de tratá‐lo e externar a pouca satisfação e o amor por ele é negá‐lo. Meu cortês
semelhante, o coletor de impostos, é justamente a pessoa com quem tenho de lidar — pois no final de tudo é
com gente, e não com papéis, que eu brigo, — e foi de livre escolha que se tornou um agente do governo.
Como saberá algum dia o que ele é e o que faz como funcionário do governo, ou como homem, até que seja
obrigado a considerar se tratará a mim, seu semelhante que lhe merece respeito, como um semelhante e
homem bem intencionado, ou como um maníaco e desordeiro, e tentar vencer esse obstáculo à sua
cordialidade sem um pensamento mais rude e impetuoso ou um discurso correspondente à sua ação? Sei bem
que se mil, cem ou dez homens que eu pudesse nomear — se apenas dez homens honestos, — ai, se um
homem HONESTO, neste Estado de Massachusetts, deixasse de manter escravos e se retirasse de fato desta
sociedade, sendo por isso encarcerado na prisão municipal, teríamos a abolição da escravatura nos Estados
Unidos. Pois não importa quão pequeno o começo possa parecer: o que se faz bem feito uma vez, faz‐se para
sempre. Mas preferimos falar a respeito disso: essa, dizemos, é a nossa missão. A Reforma mantém uma série
de jornais a seu serviço, mas nem um único homem. Se meu estimado semelhante, o embaixador do Estado,
que empregará seus dias a solucionar a questão dos direitos humanos na Câmara do Conselho, em vez de ser
ameaçado com as prisões de Carolina ficasse prisioneiro em Massachusetts, Estado tão ansioso por impingir o
pecado da escravidão ao outro — embora no momento só possa apontar falta de espírito hospitaleiro na base
da querela entre ambos — a Legislatura não abandonaria de todo o assunto no próximo inverno.
Num governo que aprisiona qualquer um injustamente, o verdadeiro lugar para um homem justo é também a
prisão. Hoje em dia o lugar apropriado, o único lugar que Massachusetts vem proporcionando a seus espíritos
mais livres e menos desalentados está em suas prisões, onde ficarão encerrados e fora de circulação por força
do Estado, da mesma forma que já se puseram fora de circulação por força dos seus princípios. É aí que o
escravo fugitivo, o prisioneiro mexicano em liberdade condicional, e o índio que vem denunciar injustiças à
sua raça, deverão encontrá‐los; ali, naquele chão isolado porém mais livre e honroso, em que o Estado coloca
os que não estão com ele, mas contra ele, está o único recinto de um Estado escravocrata no qual um homem
livre pode morar com brio. Se alguém pensa que a influência desses espíritos há de se perder aí, e suas vozes
não mais atribularão os ouvidos do Estado, e que deixarão de ser inimigos dentro de seus muros, não sabe o
quanto a verdade é mais forte do que o erro, nem o quanto pode combater a injustiça de modo mais
eloqüente e efetivo aquele que já a sofreu, um pouco que fosse, na própria pele. Dai vosso voto integral, não
só a tirinha de papel, mas toda a vossa influência. Uma minoria só é impotente enquanto se amolda à maioria;
não é então nem mesmo uma minoria. E irresistível porém quando atravanca com seu peso total. Se a
alternativa que resta é manter na prisão todos os homens justos ou renunciar à guerra e à escravidão, o
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Estado não hesitará na escolha. Se este ano mil homens se recusassem a pagar seus impostos, isso não seria
uma medida violenta ou sangüinária, como seria pelo contrário pagá‐los, possibilitando assim o Estado a
cometer violência e derramar sangue inocente. Esta é, na realidade, a proposta de uma revolução pacífica, se
tal é possível. Se o coletor de impostos, ou qualquer outro funcionário público, me pergunta, como um já me
perguntou: "Mas o que é que eu vou fazer?", minha resposta é: "Se realmente deseja fazer alguma coisa,
renuncie ao cargo." Quando o súdito negar o dever de obediência e o funcionário renunciar a seu cargo,
realizou‐se a Revolução. Suponde, inclusive, que se derrame sangue. Por acaso não se derrama uma espécie
de sangue quando a consciência é ferida? Através dessa ferida escorre a verdadeira humanidade e
imortalidade de um indivíduo, que sangra em morte constante. Vejo esse tipo de sangue escorrendo agora.
Tenho meditado sobre a prisão do infrator, mais do que sobre o confisco de seus bens — embora ambos
sirvam ao mesmo propósito, — porque aqueles que defendem o direito mais puro, e são por conseguinte os
mais perigosos para um Estado corrupto, em geral não gastaram muito tempo acumulando posses. A essas
pessoas o Estado presta relativamente pequeno serviço e um imposto de pouca monta costuma parecer‐lhes
exorbitante, sobretudo se são forçadas a ganhá‐lo com o trabalho específico de suas mãos. No caso de alguém
que vivesse totalmente sem o uso do dinheiro, o próprio Estado hesitaria em cobrar‐lhe. Mas o homem rico
— sem fazer qualquer comparação invejosa — está sempre vendido à instituição que o enriquece. Em termos
absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtude; pois o dinheiro se interpõe entre o homem e seus objetivos,
alcançando‐os para ele; e sem dúvida alcançá‐los não representa grande virtude. O dinheiro põe de lado
muitas questões que de outro modo o homem seria forçado a responder, ao passo que a única questão nova
que coloca é a difícil, mas supérflua, de como gastá‐lo. Assim o chão da moral é arrancado de sob seus pés. As
oportunidades de vida diminuem na proporção em que os chamados "meios" aumentam. A melhor coisa que
um homem pode fazer em prol de sua cultura, ao ficar rico, é tentar realizar os projetos que abrigava quando
pobre. Cristo respondeu aos súditos de Herodes, de acordo com a condição deles. "Mostrai‐me a moeda com
que se paga o tributo", disse; — e alguém tirou‐a do bolso; — se usais dinheiro com a efígie do César, que o
tornou corrente e valioso, isto é, se sois homens do Estado, e prazenteiramente desfrutais as vantagens do go‐
verno de César, então devolvei‐lhe algo do que é seu, quando for cobrado. "Dai pois a César o que é de César e
a Deus o que é de Deus" — deixando‐os na mesma quanto a saber o quê era de quem, pois não desejavam
sabê‐lo.
Quando converso com meus vizinhos mais livres, dou‐me conta de que, digam o que disserem sobre a
magnitude e seriedade da questão, e sobre seu respeito pela tranqüilidade pública, tudo visto e considerado,
concluem que não podem dispensar a proteção do governo existente, e temem as conseqüências que o fato de
desobedecê‐lo possa acarretar a suas famílias e propriedades. De minha parte, não gostaria de pensar que de
algum modo conto com a proteção do Estado, pois se nego sua autoridade quando me apresenta a guia do
imposto, logo se apossará de toda a minha propriedade, danificando‐a, e ainda apoquentando sem cessar a
mim e a meus filhos. Isso é duro. Faz com que se torne impossível para um sujeito viver honestamente,
gozando ao mesmo tempo de conforto com relação a aspectos exteriores. Não valerá a pena dar‐se ao
trabalho de acumular bens, que por sua vez certamente se perderiam. Deve‐se alugar ou invadir algum
terreno, não cultivar mais que uma pequena colheita e consumi‐la o quanto antes. Deve‐se viver restringido a
si mesmo, dependendo de si, sempre de mangas arregaçadas, disposto a um recomeço, e não ter muitos
negócios. Um homem pode enriquecer até na Turquia, se for em todos os aspectos um bom súdito do
governo turco. Disse Confúcio: "Se um Estado é governado pelos princípios da razão, a pobreza e a miséria são
motivos de vergonha; se um Estado não é governado por esses princípios, a riqueza e as honras é que são
motivos de vergonha." Não: até que eu precise que a proteção de Massachusetts se estenda a mim em algum
distante porto do Sul, onde minha liberdade corra perigo, ou até que esteja ocupado apenas em construir uma
propriedade mediante empreendimento pacífico, posso dar‐me ao luxo de recusar submissão a
Massachusetts, e seu direito a minha propriedade e a minha vida. Custa‐me bem menos incorrer na
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penalidade de desobediência ao Estado, do que me custaria a obediência, pois neste caso me sentiria
diminuído diante de mim mesmo.
Há alguns anos o Estado me procurou em nome da Igreja, intimando‐me a pagar certa importância para a
manutenção de um clérigo a cuja pregação meu pai costumava assistir, mas não eu. "Paga ou serás posto no
xadrez", disseram‐me. Eu me recusei a pagar, mas, lamentavelmente, outra pessoa achou por bem fazê‐lo.
Não entendi porque o mestre‐escola deveria contribuir para sustentar o sacerdote, e não o contrário; porque
eu não era professor estadual e me mantinha por contribuição voluntária. Não entendi porque o Liceu não
podia apresentar suas contas com o apoio do Estado, tal e qual a Igreja. Entretanto, a pedido dos conselheiros
municipais, condescendi em declarar por escrito o seguinte: "Saibam todos pela presente declaração que eu,
Henry Thoreau, não desejo ser considerado membro de nenhuma sociedade constituída, à qual não haja me
associado expressamente." Entreguei‐a ao secretário municipal, que a arquivou. O Estado, ficando desse modo
ciente de que eu não desejava ser considerado membro daquela Igreja, desde então nunca mais me fez
exigência parecida, embora dissesse naquela ocasião que devia se prender à sua presunção original. Se tivesse
sabido o nome das sociedades em que nunca me inscrevera, teria a essa altura me excluído detalhadamente
de todas, mas não soube onde encontrar uma lista completa.
Durante seis anos não paguei imposto de capitação. Por conta disso certa ocasião passei uma noite no xadrez;
e enquanto contemplava os muros de sólida pedra de quase um metro de espessura, a porta de madeira e
ferro grossa de mais de um palmo, e a grade de ferro que filtrava a luz, não pude deixar de ficar chocado com
a estupidez daquela instituição que me tratava como se eu fosse apenas de carne e osso e pudesse ser fechado
à chave. Surpreendia‐me que por fim ela houvesse chegado à conclusão de que essa era a melhor coisa que
podia fazer comigo, sem lhe passar pela cabeça valer‐se de algum modo dos meus préstimos. Vi que, se havia
um muro de pedras entre mim e os meus concidadãos, havia ainda outro bem mais difícil de galgar ou
romper para que eles pudessem chegar a ser tão livres como eu. Não me senti confinado em momento algum,
e os muros me pareceram um grande desperdício de pedra e argamassa. Tive a impressão de que era o único
dos meus concidadãos que havia pago o imposto. Eles simplesmente não sabiam como me tratar, e se
comportavam como pessoas pouco educadas. Em cada ameaça e em cada saudação, havia sempre um
equívoco, porque pensavam que meu maior desejo era estar do outro lado daquele muro de pedra. Não podia
deixar de sorrir ao ver quão laboriosamente aferrolhavam a porta sobre minhas meditações, que os seguiam lá
fora sem estorvo nem obstáculos, sendo elas na verdade a única coisa perigosa. Como não podiam me
alcançar, tinham resolvido castigar meu corpo; tal e qual garotos, que se não podem tirar desforra contra
alguém de quem têm raiva, maltratam seu cachorro. Vi que o Estado era um imbecil, tímido feito uma mulher
solitária em meio às suas pratarias, não sabia sequer distinguir amigos de inimigos; acabei por perder o resto
de respeito que ainda me inspirava, e me apiedei dele.
Desse modo o Estado nunca se confronta intencionalmente, com o sentido moral ou intelectual de um
homem, mas apenas com seu corpo, seus sentidos físicos. Não se arma de espírito superior ou de
honestidade, mas de força física superior. Não nasci para que me forcem a coisa alguma. Respirarei à minha
moda. Vejamos quem é o mais forte. Que força tem a multidão? Só podem me forçar os que obedecem a uma
lei superior a mim. Forçam‐me a me tornar como eles. Não sei de homens forçados a viverem desta ou
daquela maneira sob ação da massa. Que espécie de vida a se viver seria essa? Ao me deparar com um
governo que me diz: "A bolsa ou a vida", por que haveria de lhe dar logo meu dinheiro? Talvez se encontre em
grande aperto e não saiba o que fazer: não posso evitar isso, nem ajudá‐lo. Ele é que deve ajudar a si mesmo;
fazer como eu faço. Não vale a pena choramingar por isso. Não sou responsável pelo funcionamento
satisfatório da máquina social. Não sou o filho do engenheiro. Noto que ao caírem lado a lado uma bolota de
carvalho e uma castanha, uma não fica inerte para dar vez à outra, mas ambas obedecem a suas próprias leis,
e brotam, crescem e florescem o melhor que podem, até que uma delas, porventura, suplanta e destrói a
outra. Se uma planta não pode viver de acordo com a sua natureza, morre; e assim o homem.
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A noite que passei na prisão foi bem interessante e singular. Quando entrei, os prisioneiros, em mangas de
camisa, conversavam e tomavam sereno em frente à porta. Disse‐lhes o carcereiro: "Vamos, rapazes, já é hora
de fechar"; então eles se dispersaram e eu ouvi o ruído de seus passos retornando às celas vazias. Em seguida
ele me apresentou ao companheiro de cela, qualificando‐o como "um cara ótimo e inteligente". Trancada a
porta, o companheiro me mostrou onde pendurar o chapéu e como a pessoa se virava por lá. Os
compartimentos eram caiados uma vez por mês; o que me coube era, pelo menos, o mais branquinho, o de
mobília mais singela e provavelmente o mais arrumado de todos. É claro que meu companheiro quis saber de
onde eu vinha e por que estava ali; e ao responder‐lhe por minha vez perguntei o que o levara ali, partindo, é
claro, do pressuposto de que ele era um homem honesto, e, como andam as coisas, creio que era. Disse‐me:
"Ora, acusam‐me de ter posto fogo num celeiro, mas nunca fiz isso." Conforme pude perceber, tinha ido
dormir bêbado num celeiro e lá fumara seu cachimbo; e deu‐se o incêndio. Tinha fama de ser um homem
inteligente. Havia uns três meses aguardava por julgamento, devendo ainda aguardar muito mais tempo; mas
estava inteiramente domesticado e satisfeito, já que ganhava seu sustento a troco de nada e se julgava bem
tratado.
Ele ficava com uma janela e eu com a outra; e vi que se uma pessoa permanecia ali muito tempo, a sua maior
ocupação haveria de ser olhar pela janela. Em pouco eu já havia lido todos os folhetos lá deixados, examinado
os locais onde a grade havia sido serrada para que os prisioneiros anteriores escapassem, e ouvido a história
dos vários ocupantes da cela, pois descobri que mesmo ali havia uma história e boatos que nunca circulavam
fora dos muros da prisão. E provável que seja esta a única residência da cidade onde se compõem versos,
impressos em seguida em forma de circular, embora nunca sejam publicados. Mostraram‐me longas listas de
versos escritos por jovens ao tentarem fugir e que se vingaram cantando‐os.
Dei corda no meu companheiro de cela até arrancar‐lhe o máximo de informações que pude, pois temia não
voltar a vê‐lo; por fim ele me mostrou qual era minha cama e deixou a meu cargo apagar a lâmpada.
Permanecer ali por uma noite foi como viajar num país distante, como eu nunca sonhara ver. Parecia‐me
nunca ter ouvido antes as batidas do relógio público, nem os sons do anoitecer no povoado, pois para dormir
deixávamos abertas as janelas, que ficavam do lado de dentro das grades. Era como ver minha cidadezinha
natal à luz da Idade Média, nosso rio Concord convertido numa corrente do Reno, visões de cavaleiros e
castelos passando diante de mim. Eram as vozes dos antigos burgueses que eu ouvia nas ruas. Eu era
espectador e ouvinte involuntário de tudo que era feito e dito na cozinha da estalagem próxima — uma
experiência inteiramente nova e rara para mim. Tinha uma visão mais íntima de minha cidade natal, pois eu
estava justamente em seu interior. Antes nunca havia visto suas instituições, e esta é uma das mais peculiares,
por se tratar de uma sede do condado. Comecei a compreender em que se ocupavam seus habitantes.
Nossa refeição matinal foi colocada através de uma abertura apropriada na porta, em pequenas e retangulares
marmitas de metal, feitas sob medida, e que vinham com uma porção de chocolate, pão preto e uma colher
de ferro. Quando vieram recolher as vasilhas, fui bastante neófito para devolver a minha com o resto do pão;
mas meu companheiro apanhou‐o, dizendo‐me que eu deveria guardá‐lo para o almoço ou o jantar. Logo
depois ele foi liberado para recolher feno num campo vizinho, aonde ia trabalhar todos os dias só voltando no
começo da tarde; e assim desejou‐me bom‐dia, dizendo duvidar se ainda ia me ver.
Quando saí da prisão — pois alguém interferiu e pagou o imposto — não me dei conta de que grandes
modificações haviam ocorrido no geral, tal como as observou o homem que partiu jovem e só regressou
trôpego e de cabeça grisalha; e contudo uma modificação se processara debaixo dos meus olhos no cenário —
a cidade, o Estado, o país — bem maior do que qualquer uma que o simples passar do tempo poderia operar.
Eu via de maneira ainda mais nítida o Estado em que vivia, e até que ponto o pessoal no meio do qual eu vivia
era digno de confiança como bons vizinhos e amigos; que a amizade deles durava apenas o verão; que não
estavam muito empenhados em agir corretamente; que constituíam uma raça tão diferente de mim quanto os
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chineses e malásios, por causa de seus preconceitos e superstições; que em seus sacrifícios pela humanidade
não arriscavam seus bens nem a si mesmos; que no final não eram tão nobres mas tratavam o ladrão como
este os tratava, e tinham esperança de salvar suas almas por meio de práticas exteriores e meia dúzia de
orações, além de ocasionalmente percorrerem vias em particular retas, porém inúteis. Isso talvez seja julgar
meus vizinhos de maneira cruel, pois creio que muitos nem sabem que dispõem de uma instituição como a
cadeia do povoado.
Outrora, quando um pobre devedor era posto em liberdade, era costume em nossa cidadezinha seus
conhecidos saudá‐lo olhando‐o através dos dedos cruzados a imitarem a grade da prisão "Como vai?". Meus
vizinhos não me cumprimentaram assim, mas me encararam a princípio e a seguir se entreolharam, como se
eu tivesse retornado de uma longa viagem. Puseram‐me na cadeia quando eu ia ao sapateiro pegar um
calçado que estava no conserto. Ao ser liberado na manhã seguinte, tratei de cumprir aquela incumbência, e,
calçando o sapato consertado, juntei‐me a um grupo de colhedores de mirtilos que estavam impacientes para
que eu os guiasse; e em meia hora — pois logo se arreou o cavalo — eu estava no meio de um campo de
mirtilos, numa de nossas colinas mais altas, a mais de três quilômetros do povoado, e então o Estado não era
visto em parte alguma.
Eis na íntegra a história de "Minhas Prisões".
Nunca me neguei a pagar o imposto sobre estradas, pois desejo tanto ser um bom vizinho como desejo ser
um mau súdito; e no que diz respeito à manutenção de escolas, contribuo com a minha parte para a educação
de meus compatriotas. Não é por nenhum item em particular no regulamento do imposto, que me recuso a
pagá‐lo. Desejo simplesmente recusar minha adesão ao Estado, afastar‐me e manter‐me efetivamente à
distância dele. Não me interessa seguir, mesmo se fosse possível, o rasto do meu dólar até que com ele se
compre um homem ou um mosquete com que atirar — o dólar é inocente — mas me preocupo em investigar
os efeitos da minha adesão. De fato, declaro tranqüilamente guerra ao Estado, à minha moda, embora ainda
venha a usá‐lo e arrancar‐lhe qualquer vantagem possível, como é de costume em tais casos.
Se outros, por simpatia para com o Estado, pagam o imposto que me é exigido, fazem apenas o que já fizeram
em seu próprio caso, ou melhor, favorecem a injustiça numa escala maior que o Estado requer. Se pagam o
imposto levados por um equívoco interesse pelo indivíduo tributado, a fim de salvar‐lhe as propriedades ou
impedir‐lhe a prisão, é porque não ponderaram com sensatez até que ponto deixam seus sentimentos
pessoais interferirem na coisa pública.
Essa é portanto minha posição atual. Mas em tal caso ninguém pode se resguardar demasiado para que seus
atos não sejam influenciados pela obstinação ou pelo respeito indevido às opiniões alheias. Que o indivíduo
procure agir de acordo com sua personalidade e com o momento.
Às vezes penso: Ora, essas pessoas são bem intencionadas, só que ignorantes; elas agiriam melhor se
soubessem como. Por que obrigar os próximos a vos tratar de maneira contrária à inclinação deles? Mas torno
a pensar: Não há razão para que eu proceda como eles, ou permita que outros sofram ainda mais de outro
modo. E ainda, falando comigo mesmo, em certas ocasiões: Quando muitos milhões de homens, sem
entusiasmo, sem má vontade, sem qualquer sentimento pessoal, te pedem apenas uns poucos xelins, sem
possibilidades, devido ao tipo de constituição que têm, de retirar ou modificar esse seu pedido, e, pelo que te
diz respeito, sem a possibilidade de apelar para quaisquer outros milhões, por que hás de te expor a essa
esmagadora força bruta? Não resistes ao frio e à fome, aos ventos e às vagas assim obstinadamente; com
mansidão te submetes a milhares de necessidades semelhantes. Não ponhas a cabeça dentro do fogo. Porém
na mesma proporção em que encaro isso não como uma força bruta, mas em parte como uma força humana,
e pondero que me relaciono com esses milhões da mesma forma que com outros tantos milhões de homens, e
não de meras coisas brutas e inanimadas, compreendo que o apelo é possível, primeiro e instantaneamente, a
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partir deles para o seu Criador, e em seguida deles para si mesmos. Mas se coloco minha cabeça no fogo
intencionalmente, não adianta apelar para o fogo, ou para seu Criador, pois sou o único culpado. Se pudesse
me convencer de que me assiste o direito de contentar‐me com os homens tal e qual são, e tratá‐los de acordo
com esse pressuposto, e não em alguns aspectos de acordo com as minhas exigências e expectativas do que
eles e eu devemos ser, então, como um bom muçulmano, como um fatalista, tentaria me contentar com as
coisas como são, e proclamar que é a vontade de Deus. E, acima de tudo, há uma diferença entre resistir a isso
e à força puramente bruta ou natural, e a diferença consiste em que posso resistir com alguns resultados,
enquanto não espero, como Orfeu, mudar a natureza das pedras, das árvores e das feras.
Não desejo querela com nenhuma pessoa ou nação. Não desejo discutir ninharias, fazer distinções sutis ou
colocar‐me acima dos meus próximos. Posso até dizer que procuro de preferência uma desculpa para me
ajustar às leis da terra. Estou inclusive muito disposto a me adaptar a elas. Na verdade tenho razões de sobra
para me suspeitar nessa direção; e a cada ano, quando surge o coletor de impostos, descubro‐me inclinado a
revisar os atos e atitudes dos governos federal e estadual, bem como o espírito do povo a fim de descobrir um
pretexto para aceitação.
"Devemos estimar nosso país como a nossos
pais, E se em algum momento lhe retirarmos
Nosso amor ou nosso empenho em honrá‐lo,
Devemos acatar os efeitos e ensinar à alma
Matéria de consciência e religião, E não desejo
de lucro e dominação."
Creio que breve o Estado será capaz de retirar‐me das mãos todo esse tipo de trabalho, e então eu não serei
um patriota melhor que meus conterrâneos. De um ponto de vista inferior, a Constituição, apesar de todas as
suas falhas, é muito boa; a lei e os tribunais muito respeitáveis; mesmo o Estado e o governo americano, em
muitos aspectos, coisas muito raras e admiráveis, dignas de agradecimento, segundo a descrição de muitas
pessoas importantes; já de um ponto de vista um pouco mais alto, são como os descrevi; de um ponto de vista
ainda mais alto, o superior, quem dirá que são, ou que sejam afinal dignos de nosso olhar e de nosso
pensamento?
Contudo o governo não me preocupa muito, e eu lhe dedicarei o menor número possível de pensamentos.
Não são muitos os momentos em que vivo sob um governo, mesmo neste mundo. Se um homem é livre para
pensar, sonhar, e imaginar que não é nunca por muito tempo o que lhe parece ser, os governantes e
reformadores insensatos não podem fatalmente interrompê‐lo.
Sei que a maioria dos homens pensa de modo diferente de mim; porém aqueles que por profissão dedicaram
suas vidas ao estudo desses e de outros assuntos afins, satisfazem‐me tão pouco quanto os demais. Estadistas
e legisladores, mergulhados da cabeça aos pés dentro da instituição, nunca a contemplam de maneira
definida e franca. Falam de mudar a sociedade, mas não contam com nenhum lugar de repouso fora dela.
Podem ser homens de certa experiência e critério, que sem dúvida inventaram sistemas engenhosos e até
úteis, pelos quais lhes somos sinceramente gratos; mas todo o seu engenho e utilidade repousam dentro de
limites não muito amplos. Costumam esquecer que o mundo não se governa com astúcia política e
conveniência. Webster nunca investiga as causas do governo, por isso não pode falar dele com autoridade.
Suas palavras são sabedoria para aqueles legisladores que não têm em vista nenhuma reforma essencial no
governo em vigor; para os pensadores porém, e aqueles que legislam para todas as épocas, em momento
nenhum ele vislumbra o assunto. Sei de pessoas cujas especulações serenas e sábias sobre o tema logo
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revelariam as limitações de alcance e abrangência daquela mente. E contudo, em comparação com as
declarações baratas da maioria dos reformadores e com a sabedoria e eloqüência ainda mais barata dos
políticos em geral, as palavras de Webster são quase que as únicas sensatas e valiosas, e agradecemos aos céus
por ele. Comparativamente, ele é sempre forte, original e sobretudo prático. No entanto, sua virtude não é a
sabedoria, mas a prudência. A verdade do advogado não é a Verdade, mas coerência e conveniência coerente.
A verdade está sempre em harmonia consigo mesma, e não está fundamentalmente interessada em revelar a
justiça que pode consistir em fazer o mal. Ele bem merece ser chamado, como aliás tem sido, o Defensor da
Constituição. Dele não se espera outros golpes além dos defensivos. Não é um líder, mas um seguidor. Seus
líderes são os homens de 1787. Diz ele: "Nunca fiz nenhum esforço, nem propus que se fizesse algum; nunca
apoiei nem pretendo apoiar nenhuma tentativa no sentido de alterar a disposição originalmente aprovada,
segundo a qual os vários Estados constituíram a União." Pensando ainda na sanção dada à escravatura pelas
leis americanas em vigor, ele declara: "Porque integra o conjunto original, que permaneça." Não obstante sua
especial agudeza e habilidade, ele é incapaz de destrinçar um fato de suas implicações meramente políticas e
contemplá‐lo em termos absolutos a serem manejados pelo intelecto, — o que compete a um homem fazer na
América de hoje no que diz respeito, por exemplo, à escravidão, da qual que código de deveres sociais novo e
original pode se inferir? — Mas se arrisca, ou é levado a dar alguma resposta desesperada como a que se
segue, enquanto professa falar em termos absolutos e como um cidadão comum: "A maneira pela qual os
governos dos Estados onde exista a escravidão devem regulá‐la depende da consideração deles, sob a
responsabilidade dos seus constituintes, para com as leis gerais da propriedade, humanidade, justiça e Deus. As
associações formadas em outros lugares, emanando de sentimentos humanitários, ou de qualquer outra causa,
não têm nada a ver com a questão. Nunca receberam nem hão de receber nenhum estímulo de minha parte."
Aqueles que não conhecem outros mananciais de verdade mais pura, que não localizaram seu curso d'água
num ponto mais elevado, apóiam‐se de maneira sensata, na Bíblia e na Constituição, aí bebendo com
reverência e humildade; mas aqueles que vislumbram de onde ela vem escorrendo no rumo deste lago ou
desta poça d'água, mais uma vez se preparam para a ação e continuam a romaria em direção à nascente.
Não surgiu na América nenhum gênio da legislação. São raros na própria história do mundo. Há oradores,
políticos e homens eloqüentes aos milhares; mas o orador capaz de resolver as questões cruciais do presente
ainda está por abrir a boca. Amamos a eloqüência em si mesma, e não por causa da verdade que pode
expressar, ou do heroísmo que pode inspirar. Nossos legisladores ainda não aprenderam o relativo valor, para
uma nação, do livre‐comércio e da liberdade, da harmonia e da honradez. Não possuem vocação ou talento
para questões relativamente humildes como as de tributação e finanças, de indústria, comércio e agricultura.
Se fôssemos entregues unicamente ao espírito demagógico dos legisladores no Congresso para nossa
orientação, não contrabalançada pela experiência oportuna e as queixas eficazes do povo, os Estados Unidos
não conservariam por muito tempo sua eminência entre as nações. Embora eu talvez não tenha o direito de
me referir a isso, faz mil e oitocentos anos que o Novo Testamento foi escrito; e contudo, onde está o
legislador dotado de sabedoria e bastante talento prático para se valer da luz que esse texto derrama sobre a
ciência da legislação?
A autoridade do governo, mesmo aquela a que estou disposto a me submeter — pois de bom grado
obedecerei àqueles que sabem e podem fazer melhor que eu, e em muitas coisas até mesmo àqueles que nem
sabem nem podem fazer tão bem —, é ainda de natureza impura: para ser estritamente justa, deve ter a
aprovação e o consentimento dos governados. Não pode gozar de direito sobre minha pessoa e meus bens
além do que eu lhe concedo. O progresso da monarquia absoluta para a limitada, e desta para a democracia, é
um progresso rumo ao verdadeiro respeito pelo indivíduo. Mesmo o filósofo chinês foi suficientemente sábio
para ver no indivíduo a base do império. Será a democracia, tal como a conhecemos, o último grau de
aperfeiçoamento possível em matéria de governo? Não será possível dar um passo além no sentido de
reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que
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este reconheça o indivíduo como um poder superior e independente, do qual
deriva todo o seu próprio poder e autoridade, e o trate de acordo com isso.
Apraz‐me imaginar um Estado que por fim pode se permitir ser justo para com
todos os homens, e tratar o indivíduo com o respeito que lhe merece um
vizinho; que até não julgaria incompatível com seu próprio sossego se uns
poucos sujeitos fossem viver à parte, não se imiscuindo com ele, não abarcados
mas cumprindo todos os deveres de vizinhos e companheiros. Um Estado que
abrigasse essa espécie de fruto, aceitando‐lhe a queda mal amadurecesse,
haveria de abrir caminho para outro ainda mais perfeito e glorioso, que também
já imaginei, mas ainda não vi em parte alguma.
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