You are on page 1of 3

INTERPRETAÇÃO DA LEGENDA DO LOBO DE GÚBIO

PABLITO BARROS
barrospablito@gmail.com

Podemos resumir o capítulo sobre mito, no livro Introdução ao


Pensar, de Arcângelo Buzi, da seguinte maneira (pelo menos, a 1ª
parte):

• O mito como forma autônoma de pensamento, distinta do


conhecimento filosófico e científico;
• Diferenciação entre a medida do concreto (homem mítico) e a
medida do cálculo (homem de ciência) projetando o concreto;
• Uma falsa vivência no discurso da ciência, nos tempos
modernos, sem nos darmos conta da força que a fala mítica
tem em nossa existência;
• Consiste (o mito) nas palavras que dizem o concreto;
• O mito como aspecto da existência dos povos, sua segurança.
Firma-se um elo entre o homem com seus pares e o meio
ambiente;
• “Um povo sem mitos, por suposição, é um povo que perdeu o
senso do concreto”;
• A ciência e a técnica, ao duvidarem do concreto e/ou
quererem ultrapassá-lo, estão no limite da periculosidade;
• O mito solidariza a todos, selvagens/civilizados e demais
opostos, ao contrário da gramática e da lógica formal;
• Mito → aliança humana com a amplitude do concreto;
• Tempo mítico dos povos primitivos: nossa subjetividade (com
o concreto) sem a imposição violenta da objetividade;
• Exemplo desse tempo mítico: a legenda do lobo de Gúbio.

Antes de tratar desse mito1 em especial, vou procurar explicar o


conceito de concreto aqui bastante mencionado.
O que significa “viver na amplitude do concreto”?
O conceito filosófico da palavra concreto tem duas concepções bem
distintas:

1
A diferenciação entre mito e lenda, em diversos autores, é muito sutil; às vezes, nem
sequer existe. Basicamente, mitos são de ordem geral, no tradicionalismo de um povo,
enquanto as lendas possuem caráter local. Nesse caso de São Francisco de Assis,
podemos considerar um mito.

1
• “Diz-se da natureza apresentada por qualquer objeto de
conhecimento singular, individual, passível de ser captado
pelos sentidos2”;
• “No pensamento hegeliano, que inverte a significação
tradicional do termo, é aquilo que é efetivamente real em
decorrência de sua universalidade, de seu caráter sintético
passível de unificar uma multiplicidade de aspectos ou
determinações, em oposição ao que é parcial, singular ou
individual3”.

A meu ver, a questão do mito elaborada pelo autor está bem de


acordo com esse último, o sentido hegeliano. O mito unifica um povo,
preserva a sua tradição, muitas vezes universal, como os mitos da
religião; como a católica, por exemplo. Povo pressupõe diversas cabeças
e concepções a respeito da vida e tudo mais. Uma multiplicidade de
sentimentos. E da multiplicidade, regra básica dos primeiros filósofos,
chegar a uma unidade. Unificar é a chave. Não existe individualidade
no concreto mítico, não é uma coisa que se guarda para si. Aprendizado
interior, sim. Mas no sentido do coletivo. Resumindo e simplificando, o
concreto no mito seria “unifiquemos o real”...
No caso do lobo e da cidade de Gúbio, essa definição está bem
presente. O olhar comum nos diz que a ferocidade do lobo era uma
coisa inerente ao próprio e por isso se opunha simplesmente ao
convívio, somente isso. E São Francisco de Assis, com seu sermão
milagroso, “curou” o animal de sua bestialidade sem sentido.
Convenhamos, bastante simplório e pobre para uma reflexão adequada.
Como disse o autor, faltou o concreto. Faltou unificar aquilo que é
efetivamente real. E as palavras-chave são ferocidade, concordância e
diálogo.
Na cidade de Gúbio, apareceu esse lobo, faminto e violento, que
matava tanto animais como humanos, deixando a cidade em polvorosa.
São Francisco, não dando ouvidos aos conselhos dos cidadãos dessa
cidade, vai ao encontro do lobo, armado apenas de sua cruz. Evocando
o poder de Jesus Cristo, acalma o lobo e o convence de que, estando
com fome e sede, a cidade lhe dará seu sustento desde que não os
ataque mais. E tudo se resolve.
O que isso quer dizer?
Todos, o povo e o lobo, estavam armados para a guerra. A violência
estava mais que presente, em decorrência da ferocidade advinda do
medo recíproco. A cidade teme as garras do lobo. O lobo teme as armas
da cidade. A guerra é iminente. “O homem é o lobo do homem”, já
disseram os filósofos Plauto e Hobbes. Todos temos medo do lobo do
nosso interior. O medo (universal) real precisa ser problematizado e
2
Ver HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Ed. Objetiva, Rio
de Janeiro, 2001, p. 789.
3
Idem.

2
unificado a partir da multiplicidade do sujeito (o lobo e a cidade). O que
São Francisco propôs então? Uma “terceira via”, onde não se será nem
vítima nem algoz um do outro4. Não combater ferocidade com
ferocidade, mas inverter essa lógica e surpreender tanto os cidadãos
quanto o lobo. Um “poder integrador ao invés do coercitivo”.5 Afinal,
parece dizer ele, “violência gera violência”. Tudo em decorrência do
diálogo, onde São Francisco argumenta a ação – ataques à cidade –, a
causa – a fome – e a conseqüência – violência recíproca. Para esse
diálogo com o lobo, São Francisco usará todos os recursos do concreto.
É com o diálogo que se faz a transposição de um estado violento para
um estado pacífico. O diálogo unificará o real. A concordância vem da
promessa recíproca de não-violência, diante da resolução de ambas as
partes. Concordância sim, como reconhecimento de que havia algo
muito mais destrutivo nos seus corações do que o próprio lobo.
O mito pode ser facilmente transposto para os nossos dias. A
violência, mais do que nunca, faz parte do cotidiano das pessoas. Cada
vez mais se gasta em equipamentos de segurança. Tudo isso para nos
protegermos do “lobo violento”: os excluídos da sociedade e as minorias
étnicas. Os “lobos” moram agora nas periferias e favelas. Ou o nosso
“lobo interior”, gerador de toda corrupção moral. Essa corrupção moral
está em todos os âmbitos: social, político, econômico, etc.
A influência de São Francisco de Assis e a sua máxima de não-
violência influenciaram nomes como Henry David Thoreau (com sua
revolução pacífica em A Desobediência Civil) e também a revolução de
Ghandi na Índia.

4
Ver PACE E BENE NONVIOLENCE SERVICE. A Não Violência
Franciscana. Cap. 3, Intervenção não violenta, negociação e
terceira via, p. 25-27. Disponível em
www.unijui.tche.br/ambienteinteiro/Manual.pdf .
5
Idem.

You might also like