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F ROL
V
#2 < dezembro < 2006

PUBLICAÇÃO DA PREFEITURA
MUNICIPAL DE FORTALEZA

OSSALTIMBANCOS
+ O PALHAÇO TIRIRICA LAN HOUSES DA PERIFERIA BREAK NO PANTANAL
Nº2

EXPEDIENTE
PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA
Prefeita: Luizianne Lins
Fundação de Cultura, Esporte e Turismoda
Prefeitura Municipal de Fortaleza
Presidente: Silvia Bessa
Editora-geral: Ethel de Paula
Editora adjunta: Ana Cláudia Peres
Editor de fotografia e capa: Drawlio Joca
Edição de arte e editoração eletrônica:
Andrea Araujo
Projeto gráfico: Gil Dicelli
Colaboraram nesta edição: Ana Mary C.
Cavalcante, Carolina Dumaresq, Cláudia
Albuquerque, Danilo Patrício, Ricardo
Kelmer e Silvia Bessa
Fotos: Drawlio Joca, Gustavo
Pellizzon,Igor Câmara, José Albano,
Ricardo Damito e Wanessa Malta
Revisão: Ana Cláudia Peres
e Ethel de Paula
Jornalista responsável: Ethel de Paula
CE 01189-JP
Tiragem: 25 mil exemplares
Contatos: FUNCET
(Rua Pereira Filgueiras, 04 - Centro)
Telefone: (85) 3226.0838
E-mails: revistafarol@fortaleza.ce.gov.br
Distribuição gratuita na Funcet,
V
Secretarias Executivas Regionais,
equipamentos culturais, escolas públicas
municipais, associações de moradores,
organizações não governamentais,
universidades públicas e eventos da
Prefeitura Municipal de Fortaleza.
FOTOS DRAWLIO JOCA
EDITORIAL
eu recebia. Aí ele (dr. Evaristo) ia arrecadando quando desapropriaram e todo mundo saiu, pra não
aquele dinheiro e anoiteceu e ninguém sabe nem dizer aquela palavra (mas já dizendo!), com a mão
pra onde foram com aquele dinheiro. Teve que se na bunda e outra na frente, sem nada, sabe o que é
acabar. Entregaram uns (pontos) e outros não. sem nada? Saia daqui e saia daqui! Chegou a forças

ROSTOS
Naquele tempo, a gente pagava 15 mil réis por mês armadas e todo mundo saiu...”, dona Lurdes recorda
e depois subiu pra 75 centavos. E a gente pagava o tempo em que ficou longe.
a semana ou por dia. Eu comprei o ponto e paguei Essa era uma particularidade do mercado. Muitos
a estadia pra tá no ponto”, rememora. dos comerciantes, com anuência dos proprietários,

PAISAGENS
E antes mesmo de ser concluído, aquele que faziam de seus estabelecimentos lugar de dormida.
deveria ser o maior mercado de Fortaleza sucumbiu Por isso, quando o cerco policial cingiu o velho
à nova dinâmica da economia brasileira. Vivia-se a mercado, veio gente de toda a redondeza assistir
modernização. “O mercado aqui, o projeto era pra ao triste espetáculo. Quem saía, sentia que perdia
ser maior do que o do Mercado São Sebastião.Vendia muito mais do que um trabalho. Alguns, com sorte,
cenoura, repolho, beterraba, vinha de Guaramiranga, atravessaram a rua lateral e levantaram paredes de
vinha de São Paulo. Era um tempo bom, eu vendia tapume em um pequeno terreno desocupado. Outros
de 26 carradas por semana. O que acabou com esse foram para bem mais longe. E grande parte, E antes
mercado foi a Ceasa (Central de Abastecimento do mesmo de ser concluído, aquele que deveria ser o
Ceará). Nessa época, em 72, ano em que foi maior mercado de Fortaleza sucumbiu à nova
construído a Ceasa (N.R. A Ceasa foi inaugurada em dinâmica da economia brasileira. Vivia-se a
1971), era tudo mato e os carros não queriam ir pra modernização. “O mercado aqui, o projeto era pra
lá, queriam vir tudo pra cá. Aí o César Cals acabou ser maior do que o do Mercado São Sebastião.Vendia
com isso aqui porque os caminhões não queriam ir cenoura, repolho, beterraba, vinha de Guaramiranga,
pra Ceasa e também porque o Mercado nunca foi vinha de São Paulo. Era um tempo bom, eu vendia
concluído. Eles enrolaram. Aí quando foi em 1974 o de 26 carradas por semana. O que acabou com esse
César Cals mandou a saúde condenar pra poder mercado foi a Ceasa (Central de Abastecimento do
desocupar”, conta o morador José Elísio Sampaio, Ceará). Nessa época, em 72, ano em que foi
64, num fôlego só. construído a Ceasa (N.R. A Ceasa foi inaugurada em
Naquele tempo, vivia-se os anos de chumbo e a 1971), era tudo mato e os carros não queriam ir pra
repressão militar também se fez sentir na Duque de lá, queriam vir tudo pra cá. Aí o César Cals acabou
Caxias. “O que aconteceu é que quando com isso aqui porque os caminhões não queriam ir
desapropriaram, eu já tava com mais de quatro anos pra Ceasa e também porque o Mercado nunca foi
no pontinho que eu comprei. Morava com meus filhos concluído. Eles enrolaram. Aí quando foi em 1974 o
pequenos. Morava e trabalhava, negociando. Foi César Cals mandou a saúde condenar “O que
ÍNDICE
3
ROSA DOS VENTOS
Escreva: www.farol.com.br

> <
NAVEGAR É
PRECISO

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NAVEGAR É
PRECISO

> 12 <
NAVEGAR É PRECISO

> 14
NAVEGAR É
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PRECISO

> 17 <
NAVEGAR É PRECISO
> 20
NAVEGAR É
PRECISO
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22

GILBERTO GIL
> <
NAVEGAR É PRECISO

Se oriente, rapaz, pela constelação do Cruzeiro do Sul...


> 23
NAVEGAR É
<

25
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> <
NAVEGAR É PRECISO

> 27
NAVEGAR É
<

PRECISO

> 29 <
NAVEGAR É PRECISO

> 30
NAVEGAR É
<

PRECISO

> 33 <
NAVEGAR É PRECISO
Raimundo da Silva e
sua montanha de
carvão, à venda mas
sem comprador. Na
página ao lado, dona
Lurdes, exímia
narradora

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MEMÓRIAS
DE UM VELHO
MERCADO
TEXTO < CAROLINA DUMARESQ Ali, nas galerias debaixo do chão, eu me sentava eu recebia. Aí ele (dr. Evaristo) ia arrecadando
FOTOS < RICARDO DAMITO que só faltava me deitar pra entregar um copo aquele dinheiro e anoiteceu e ninguém sabe nem
desses aqui com café e tapioca lá pra baixo e o pra onde foram com aquele dinheiro. Teve que se
NA DÉCADA de 60, a Central de homem se trepava na parede e pegava lá em cima acabar. Entregaram uns (pontos) e outros não.
Abastecimento Duque de Caxias fervia. A avenida da minha mão. Quando comecei a trabalhar por Naquele tempo, a gente pagava 15 mil réis por mês
que lhe emprestava o nome era a passarela para aqui eu tinha 22 anos de idade”. e depois subiu pra 75 centavos. E a gente pagava
os muitos caminhões que rasgavam o País com Inaugurado o mercado, embora inacabado, dona a semana ou por dia. Eu comprei o ponto e paguei
suprimentos tão sortidos quanto os boxes da Lurdes comprou um ponto comercial que era a estadia pra tá no ponto”, rememora.
última parada comercial. De frutas a verduras, a também residência. Dali vibrou com os gols de Pelé, E antes mesmo de ser concluído, aquele que
variedade era do tamanho das possibilidades do viu a minissaia ganhar as ruas e serviu muito café deveria ser o maior mercado de Fortaleza sucumbiu
alfabeto, de A a Z. Um mercado turco que, após a Pery. Ouvia falar também na construção de um à nova dinâmica da economia brasileira. Vivia-se a
reforma que descaracterizou em parte o pioneiro grande mercado no caminho de Maracanaú. Um modernização. “O mercado aqui, o projeto era pra
São Sebastião, tomou para si a condição de mais burburinho que varreu a área um pouco antes dos ser maior do que o do Mercado São Sebastião.Vendia
antigo mercado de Fortaleza. Assim inicia-se a barulhentos caminhões deixarem de vir e dos cenoura, repolho, beterraba, vinha de Guaramiranga,
extensa narrativa do Mercado Velho, um antigo consumidores sumirem. Assim, nos libertários anos vinha de São Paulo. Era um tempo bom, eu vendia
entreposto comercial, cuja história está 70, a Duque de Caxias emudeceu. O Mercado Velho de 26 carradas por semana. O que acabou com esse
intimamente atrelada às muitas gerações de passou a régua nas suas vendas; o saldo foi mercado foi a Ceasa (Central de Abastecimento do
famílias que vivem em seu entorno. devedor. “Foi o seguinte: quem tava construindo o Ceará). Nessa época, em 72, ano em que foi
Localizado em uma área estratégica, quando mercado foi um homem por nome dr. Evaristo e construído a Ceasa (N.R. A Ceasa foi inaugurada em
a Duque de Caxias corta o Otávio Bonfim, há mais dona Camila. Essa história eu já contei mais de 1971), era tudo mato e os carros não queriam ir pra
de quatro décadas, o impávido Mercado Velho duas ou três vezes. E eles anoiteceram e não lá, queriam vir tudo pra cá. Aí o César Cals acabou
resiste à sina desbragada da especulação amanheceram. Era assim: por exemplo, eu sou com isso aqui porque os caminhões não queriam ir
imobiliária. Por ironia do destino, só se manteve cadastrada, você é cadastrada e ele é cadastrado. pra Ceasa e também porque o Mercado nunca foi
erguido porque abriu mão de sua natureza Eu pago dois pontos, você paga quatro pontos, ele concluído. Eles enrolaram. Aí quando foi em 1974 o
comercial. Reinventou-se. Hoje, onde deveriam paga três. Aí, quando acabava de construir o seu, César Cals mandou a saúde condenar pra poder
existir boxes existem casas e os consumidores você recebia, quando acabava de construir o meu, desocupar”, conta o morador José Elísio Sampaio,
deram lugar a aferrados moradores. Muitos dos 64, num fôlego só.
quais, comerciantes. O Mercado Velho do século Naquele tempo, vivia-se os anos de chumbo e a
XXI mais parece uma ocupação para quem passa repressão militar também se fez sentir na Duque de
desavisadamente pela grande avenida. Mas Caxias. “O que aconteceu é que quando
aqueles que percorrem seus adensados labirintos desapropriaram, eu já tava com mais de quatro anos
se deixam fascinar por sua desconcertante no pontinho que eu comprei. Morava com meus filhos
estética arquitetônica. As diferentes casas pequenos. Morava e trabalhava, negociando. Foi
levantadas a partir de eqüidistantes vigas e quando desapropriaram e todo mundo saiu, pra não
colunas pré-existentes lhe dão a um só tempo uma dizer aquela palavra (mas já dizendo!), com a mão
idéia de desordem e harmonia. Ali, o presente é na bunda e outra na frente, sem nada, sabe o que é
quando o futuro vira passado. E tudo se mistura. sem nada? Saia daqui e saia daqui! Chegou a forças
A calçada da residência de dona Lurdes armadas e todo mundo saiu...”, dona Lurdes recorda
Galdino,70, guarda pisadas de tempos remotos. o tempo em que ficou longe.
Situada no que seria a frente do Mercado, é Essa era uma particularidade do mercado. Muitos
provável que tenha sido lá que, há mais de dos comerciantes, com anuência dos proprietários,
quarenta anos, a firme comerciante tenha faziam de seus estabelecimentos lugar de dormida.
trabalhado de ambulante. Improvisava uma banca Por isso, quando o cerco policial cingiu o velho
na calçada e vendia café, bolo e tapioca aos mercado, veio gente de toda a redondeza assistir
operários que construíam o fosso da antiga central ao triste espetáculo. Quem saía, sentia que perdia
de abastecimento. “Trabalhei na construção dos muito mais do que um trabalho. Alguns, com sorte,
primeiros alicerces até o final, quando pararam. atravessaram a rua lateral e levantaram paredes de
Eu sou a única que sei contar essa história e tapume em um pequeno terreno desocupado. Outros
ninguém sabe. As que moram aqui não sabem. foram para bem mais longe. E grande parte,

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No Mercado Velho, a água que brota do chão é cristalina. Quem bebe jamais consegue sair de lá. Maria de Fátima Marcelino (abaixo) confirma a tese

seguindo a orientação dos ventos que sopravam na que já saiu daqui voltou. Porque aqui você mora de canalizado sob as casas do Mercado Velho e que
época, lenta e gradualmente voltou. Como anunciava porta aberta. O meu município é aqui”, sintetiza dona desponta, fétido, em um terreno vizinho. O mau
a música que tocava nos rádios de pilha, o sol brilhou Fátima Marcelino. A costureira chegou ainda pequena cheiro é conseqüência das inúmeras gambiarras
mais uma vez. com a família, há quatro décadas, e nunca mais de esgotos clandestinos.
O movimento de retorno foi possibilitado pela conseguiu ir embora. Já foi pior. Antes da canalização, quando o riacho
presença de um preposto no terreno, que após ter Quando a filha Jocasta nasceu, dona Maria de era corrente, corria água numa velocidade tão grande
se convencido do malogro do negócio, resolveu Fátima era operária de uma fábrica. Leite até tinha, que arrastava o que se interpusesse em seu curso.
comercializar irregularmente pedaços da área. mas o tempo era escasso demais para alimentar Destemido, era o Mercado Velho a desafiar repetidas
Melhor dizer, da construção. O retorno de dona a recém-nascida. Coube à vizinha, dona Josefa, vezes a torrente de águas. Uma viga sequer nunca
Lurdes durou cinco anos. Do Morro D´ouro, onde cumprir a função de mãe-de-leite. Hoje, quando se deixou envergar, mas, como bom soldado, sofreu
passou a morar, encontrava sempre um jeito de Jocasta chama pela mãe, é atendida por duas algumas avarias. Dona Lurdes não precisa puxar pela
colocar o Mercado Velho no trajeto das feiras em mulheres, irmãs por opção. A jovem Jocasta, memória. “Ai, meu Jesus, nem me fale nisso. O
que passou a trabalhar. Um dia, parou em frente ao também mãe, sente orgulho das raízes fincadas corrente trazia lixo era dali pracolá, trazia todo tipo de
mercado desativado e se deu conta da presença de numa terra onde brota água cristalina. “Quem bebe sujeira. Chinela, se não atrepasse, amanhecia o dia
um pequeno comércio informal no seu entorno. a água do Mercado Velho não sai mais”, filosofa. descalço. Cansei de atrepar o fogareiro. Amanhecia
Como no passado, decidiu que pararia ali mesmo. A observação é antes de tudo uma verdade. o dia olhando pro chão, de cima da rede”.
“Aí comecei a trabalhar por aqui de novo, na feira. O Meses atrás, técnicos estiveram na área colhendo Já as crianças faziam a festa nessas ocasiões.
pai dos meus meninos me deu uma carrocinha que amostras da água que jorra do poço profundo “Peguei muita melancia correndo dentro d´água”,
era dessa largurinha aqui, uma geladeirazinha assim localizado na comunidade. Resultado: água diverte-se dona Maria de Fátima, revivendo as
desse tamanho, era carrocinha pra trazer as própria para o consumo. O mesmo não se pode peraltices dos seus 13 anos. E lança mão do
coisinhas. Um dia, vim pra feira com cinco pão, um dizer das águas do Riacho Jacarecanga, que corre fantástico ao historiar os episódios do lugar. “Minha
bolo, um litro de café, meio de chá, e cadê vender?! mãe contou que um dia de madrugada viu um
Era sexta-feira e eu amanheci o dia pelejando e aí homem virando lobisomem bem ali. Quando
fui ficando, ficando... E eu falei com os antigos donos: fechava o mercado, ele pulava o muro”, jura
‘eu queria que o senhor me desse licença pra ir Jocasta, retransmitindo a fábula contada pela mãe.
praquele lado ali’. Eu já tinha morado uns quatro Histórias que passam de geração para geração
anos por aqui, né? Ele disse: ‘escolha um canto pra são uma forma de driblar o descaso da história oficial.
você’. Aí fiquei aqui”. No princípio eram oito casas. Aos mais velhos, cabe o papel de guardiões da
No ano seguinte, o dobro. Logo a ocupação passou memória do lugar. Dona Lurdes é uma dessas que
a crescer desordenadamente em progressão faz de sua função uma profissão de fé. É ela quem
geométrica. Hoje são quase 200 casas. Não tem atesta a credibilidade dos entrevistados. “O pessoal
mais como expandir, embora alguns moradores já aqui querem inventar muito é 171. Chegaram bem
tenham construído segundo pavimento sobre suas depois. De antigo só tem eu, a Fátima, a dona-maria-
residências para abrigar agregados da família. mãe-da-fátima, seu Manuel e a dona Celeste, que
Por esse motivo, muitos dali guardam parentescos. eu acho que já morreu. Tem outra também, a Helena.
E essa particularidade, sozinha, já explicaria a relação Meu filho mais novo, eu tive ele depois que acabou-
visceral que os moradores têm com o Mercado. Era se o mercado. Olha, faz tanto tempo, que ele hoje
justamente sobre isso que dona Maria de Fátima tem 33 anos, olhe bem quantos anos faz”. Por essas
Marcelino, 53, falava enquanto lavava uma pilha sem e outras, não há um só jovem da comunidade que
fim de roupas. “Já tentei morar na Parangaba, não não conheça a trama enredada pela antiga central
consegui e vim embora. Botei as meninas num carro de abastecimento. A preservação da oralidade diz,
e voltei pra cá. Fui morar no Pirambu também, numa em outras palavras, o mesmo que profetizou seu
casa que o pai dos meus meninos me deu, de azulejo Elísio. “O Mercado Velho não se acaba, não. Ele não
de cima abaixo e também não agüentei. Muita gente morre nunca”.

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AXÉ DE
OXOSSI
Quando fevereiro chegar, os
labirintos do Mercado Velho vão abrir
passagem para o Maracatu Nação
Axé de Oxossi, que vai sair pela
primeira vez em 2007. Estreante, só
ele, porque a fundadora, dona Maria
de Fátima Marcelino, há muitas
décadas alterna posto de costureira
e direção nas agremiações
cearenses. Ela e toda a família,
legítimos cidadãos “mercado- Ângela construiu 22 casas como pedreira e descobriu-se mecânica das boas

PROFISSÃO
velhoenses”, desde sempre se
deixaram levar pela cadência do
bumbo marcado do Maracatu.

MECÂNICA
Dona Maria de Fátima não tem casa;
tem barracão. Parte do ano, anda feito
rainha sobre um chão de plumas. As
máquinas de costura desfiam
quilômetros de fios coloridos. E dia e
noite viram uma coisa só. Um frenesi Frei Humberto é quase um mito no Quando está no ofício, a mecânica
que só acaba quando a Domingos Mercado Velho. Antes mesmo de é séria e pouco afeita a conversas. Fora
Olímpio surge em resplendor. morrer, há quase dois anos, já era dele, também. O comportamento
“Maracatu significa o tempo dos adorado. Assim como a canalização do contido é uma maneira de proteger-se
escravos, a época que existia princesa corrente, foi dele a idéia de reformar do preconceito que admite enfrentar
e rei. Uma tradição que vai passando as precárias casas da comunidade em por ter profissões mais comuns ao
de mim pros meus nove netos. Antes, regime de mutirão. Cinco anos universo masculino. “Alguns chegam e
pra agremiação que eu ia levava meu passados, os moradores lembram que não querem nem falar com a gente.
pessoal. Agora, meu maracatu vai sair no início era difícil acreditar que a Sou muito discriminada por causa
daqui, do Mercado Velho, e vai pra experiência daria certo. disso, porque eu trabalho com esse tipo
avenida. Porque o importante é ter o Diferente dos vizinhos, a moradora de serviço e tem muita gente que acha
maracatu dentro da comunidade”. Ângela Maria da Silva, 35, não tem um que quem trabalha com isso é sapatão.
Inês Mapurunga e Descartes retrato do religioso na parede de casa, Aí já pega mais pesado”, lamenta.
Gadelha assinam a letra da loa. Mas mas tem motivos de sobra para tê-lo Nem por isso pensa em largar o
o desafio é vestir as princesas do como guia espiritual. Foi a partir do ofício. É ela quem sustenta a casa, o
Mercado Velho. “Comprei pena e mutirão que Ângela reduziu as marido desempregado e mais três
fazenda no cartão da galega, a vizinha. estatísticas do desemprego e meninos. Mas quem a escuta falar com
Mas tenho que comprar papelão, profissionalizou-se. “Construí 22 casas, tanta propriedade do trabalho, desconfia
conseguir os instrumentos, uma luta”, fazendo do alicerce à parede até o de outras razões. “Sou mecânica,
reconhece, mas sem perder a fé. telhado”, contabiliza a pedreira, sem trabalho com motor de geladeira e de
falsa modéstia. máquina, bomba d’água e compressor.
Ângela entende do riscado. Entende Comecei ajudando meu patrão: ele me
mais ainda da profissão de mecânica, pedia uma chave, eu dava; e ia
descoberta mais recente. Começou observando quando ele desmontava as
como ajudante em uma oficina de peças bombas e o motor. O mais difícil de
do Mercado Velho e logo viu-se a montar é a bomba d´água, porque tem
mecânica mais procurada. Em uma mais de trinta peças, tem que saber
quarta-feira, véspera de finados, passava desmontar e montar tudinho de novo.
pouco das dez da manhã e Ângela já Nunca montei nenhuma errada. Até
concluía o quinto conserto. O cliente, que agora, não. Compressor também é
vinha de Caucaia, acompanhava ansioso difícil. A cabeça de um compressor já
todo o serviço, sobretudo porque a peça caiu em cima do meu dedo. O mais difícil
defeituosa já havia passado por outra que eu consertei foi uma bomba
oficina. Menos de uma hora depois, a submersa que o homem trouxe, foi um
Jocasta, filha mecânica entregou o equipamento em quebra-cabeça danado, eu não tinha a
de Maria de perfeito estado de funcionamento. O prática e era a primeira vez que eu tava
Fátima, é uma homem agradeceu, pagou e tirou consertando uma dessa. Deu trabalho,
das princesas brincadeira. Nada desrespeitoso. Ângela mas depois me acalmei mais e consegui
do maracatu pouco sorriu. montar ela todinha de novo”.

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DO CARVÃO
AO CANCÃO
É DIA no Mercado Velho. Os corredores de passagem
são disputados por dois públicos bem diferentes. De um
lado, as mulheres que brigam por espaço para a atividade
diária de lavar e estender roupas. Do outro, crianças correm
com bola, equilibram malabares, tocam instrumentos,
insultam-se. Vão surgindo aos borbotões pelos muitos
becos da comunidade. Assim, de dia no Mercado Velho,
escutam-se dois barulhos: da água sendo retirada das
bombas e do peso das bolas dentro das bacias de roupa.
Sentada na soleira da porta, dona Maria Mercedes da
Silva, 68, tenta dar conta de um balde de roupa agarrado
entre as pernas. “Lucaaaas!”, ela grita pelo neto antes
de perdê-lo de vista. Deixa a roupa por alguns instantes
e vai buscar a escova e o copo d´agua para a limpeza
dos dentes-de-leite do caçula da família.
O marido, seu Raimundo da Silva, 65, permanece
imóvel na cadeira bem em frente à montanha de carvão
que chama atenção na Duque de Caxias. A montanha há
muito não diminui. As vendas estão fracas. “Se vender é
uma ou duas latas”, seu Raimundo lamenta. O negócio
anda tão ruim que dona Maria Mercedes já se queixa
das desvantagens do serviço. “A gente mora junto com o
carvão, é tudo coberto de poeira...”, diz zangada.
Para entrar na residência do casal, tem-se que primeiro
atravessar o monturo de madeira escurecida. Na sala,
uma rede abriga um menino já crescido, alheio ao barulho
da cidade acordada. Uma grande viga do antigo mercado
corta a parede da cozinha, que acaba em um quintal
tomado por carvão. A família “da Silva” mora junto com o
carvão. Mas é dele o maior pedaço.
Outro que domina o pedaço é o Cancão, gralha que
deixou a caatinga para viver nas gaiolas do Mercado Velho.
Dona Joana Maria da Conceição não encontrou a identidade
para conferir a idade, mas sabe de cor os benefícios da ave.
“Dizem que cancão é bom pra falta de ar. O cancão é uma
ciência pra defender das coisas ruins que vêm. Aqui muitas
casas têm cancão. Esse daqui, hoje mesmo fiz uma mistura
de castanha pra ele. Ele gosta também de carne crua. Mas
não pode botar sal, seca a titela”, ensina a sabedoria popular.
Para tristeza dos criadores do pássaro, a tradição
desaconselha alimentar o bicho com milho. Mas se
pudesse, a ração tava garantida. Impressiona a quantidade
de gente que lida com espigas. Impressiona mais ainda a
quantidade de carroças estacionadas nas vias de acesso
da comunidade. Sorte que saem cedo. Para voltar pra casa
sem mercadoria, é preciso madrugar nas feiras da cidade.
As mulheres agradecem. Seria difícil lavar tantos pratos
com os estreitos corredores congestionados de carroças. E
é justamente por considerarem pequena a cozinha que
migram para a amplidão das calçadas. Outra: a hora do
enxagüe da louça é também a hora de colocar o assunto
em dia com as vizinhas. A palestra, se não for depois do
almoço, só à noite, na praça da comunidade.
O logradouro do Mercado Velho nada mais é do que um
entroncamento de vias poucos metros mais largas do que o
padrão local. Mas noite sim, noite não, os moradores deixam
suas casas e em poucos passos desfrutam do melhor convívio
que um passeio pode oferecer. Hora dos adultos virarem
crianças. E vão surgindo aos borbotões pelos muitos becos
da comunidade.
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O LUGAR
DA PAIXÃO oça
m a nã ão o pa g a,
t n
BASTA um aper to de mão para Por outro lado, reivindicam melhorias na
perceber a robustez de Manuel Paixão. De comunidade. As assembléias do Orçamento

on i
b ém
pé, a altura chega a intimidar. Não tanto Participativo de Fortaleza registraram essa
quanto os braços fortes de quem levanta demanda. A partir dela, a administração

mb
ta o
toneladas há 83 natais. Seu Manuel Paixão municipal caiu em campo. Dentre as
tem delicadeza no nome e na voz pausada diversas possibilidades, apenas uma

s ita n ã
a
que nunca se altera. De pé, é um gigante passou por todas as avaliações técnicas. O

m bon
na altura e na retidão de caráter. mercado terá que ser reformulado. E isso
Há alguns meses, o vigoroso Manuel significa um novo projeto arquitetônico, a ser
quebrou um osso na região da bacia depois construído por muitas mãos. Desde o
de uma queda. As pernas ficaram fracas e primeiro semestre deste ano, a Fundação
aos poucos se recuperam. Assim como ele, de Desenvolvimento Habitacional de
as paredes do Mercado Velho que Fortaleza reúne os moradores para oficinas
sustentam as casas perderam a força. de desenho participativo. O objetivo é
Convive-se hoje com o perigo de envolvê-los nas discussões que vão
desabamento. Diferente de seu Manuel, que subsidiar a elaboração do novo projeto para
está se recuperando, para as escoras do o mercado. Uma forma do velho permanecer
velho mercado não existe mais tratamento. no novo.
Há sobrecarga grande de peso e os ferros
estão num avançado estágio de corrosão.
A preocupação de dona Maria Mercedes
não é em vão. “Às vezes tenho medo disso
aqui cair”.
Os problemas da adensada comunidade
são de várias ordens. Falta iluminação,
registra-se alto índice de doenças
respiratórias. Além disso, as casas são muito
pequenas e as condições de higiene
precárias. Embora saibam de tudo isso,
nenhum dos dois moradores quer sair do
lugar onde passaram boa parte da vida.
“Quero ficar no meu canto pra quando for a
hora de me chamar, eu sair daqui mesmo.
Pronto”, teima seu Manuel.

Manuel Paixão quer ficar


no seu canto, embora
conheça os riscos de
desabamento do
Mercado Velho

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A VIDA
PASSA
PELA
ESTAÇÃO
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TEXTO: DANILO PATRÍCIO (aplausos). Onde tem dois ou três
FOTOS: CELSO OLIVEIRA reunidos Ele está presente. E aqui tem
E GUSTAVO PELLIZZON mais, muita gente, gente chique (ri), e Ele
está presente”.
AS NOTÍCIAS escritas seguem do Funcionário de uma casa de peças no
Centro de Fortaleza para os bairros e Centro, Lino, que reside em Maracanaú,
municípios onde o trem alcança. Elas utiliza o trem há 20 anos, mas só passou
estão nos jornais carregados pelos a pregar no vagão há pouco mais de dois,
trabalhadores que todos os dias chegam quando se converteu ou, como prefere,
cedo à Estação Ferroviária João Felipe. aceitou Jesus como salvador. Para o
Por volta das 6 da manhã, o movimento comerciário, o percurso do trem “é uma
ainda é calmo no piso vermelho do pátio. benção, porque muitos aceitam Jesus
As cantinas não abriram as portas para durante a viagem, tocados pela palavra
receber as muitas bocas apressadas. Os de Deus, e nós oramos por eles”. Os
primeiros passageiros sequer evangélicos têm autorização formal da
enfrentaram fila para comprar seus administração ferroviária para realizar
bilhetes, a R$ 1,30 cada. as pregações diár ias no vagão.
Pega-se um trem vago. E o início do Autorização concedida “há muito tempo,
percurso já guarda uma surpresa: ao lado uns 20 anos”, como atenta o Irmão Lino.
do São João Batista, existe outro, o Aleatoriamente, os irmãos escolheram o
“cemitério dos trens”, rente ao muro que terceiro vagão de cada viagem como
divide o caminho dos trilhos da Rua Padre lugar para as pregações. “Já é
Mororó, no Centrão. Vagões deteriorados, conhecido”, sendo “a palavra de Deus
modelos de máquinas antigas, peças fora pregada de dia e de noite”, independente
de uso, pedaços de madeira e ferro do número de passageiros.
amontoados. Uma paisagem ocre. A viagem segue com os cânticos,
Sem começo nem fim é a imensidão entoados por um grupo que se concentra
de becos e ruas de uma outra Fortaleza no fundo do vagão: Porque ele vive/ Deus
vista pelos mais diversos ângulos que a ensinou seu filho amado/Pra perdoar/Pra
viagem de trem proporciona. Bares, mim salvar/pra libertar/Ele vive. Também
pequenos comércios, feiras, campos de evangélico, o autônomo José Alves, que
futebol, escolas, varais de roupas, o utiliza o trem por ser “mais ligeiro e sem
modesto motel Emoções... Quadro a engarrafamento”, acompanha o coro.
quadro, a vida vai passando pela janela, Morador da Vila Peri, diz que muitos
enquanto nos vagões viajam lado a lado passageiros, mesmo não sendo
e rotineiramente gente das mais diversas evangélicos, tomam o vagão três em
procedências, com destinos vários. busca de uma viagem, acredita, mais
É na Estação do Mondubim que se agradável. Segundo o pregador Lino, são
cruzam o trem saído do Centro e o outro poucas as resistências manifestadas.
de vagões lotados, com destino à Estação Quando acontecem, a resposta vem em
João Felipe. Indiferente aos slogans dos forma de parábola, como a do filho
motéis ao longo do percurso, o pródigo, propagada nas proximidades da
comerciário Lino Pontes, da Assembléia Estação Vila Manoel Sátiro: “(...) Faz uma
de Deus Canaã, espalha enfaticamente festa e mata aí um cevado pra ele. Glória
pelo vagão as palavras de fé, uma a Deus! Aleluia!”.
pregação em alto e bom som capaz de Lugar do encontro das diferenças, o
atrapalhar qualquer cochilo. Entre um e trem é estratégico para os pregadores
outro preceito bíblico, improvisos para profissionais que tentam “ordenar a vida
convencer. “As coisas velhas passam, e embaralhada dos passageiros sem Deus”.
tudo se faz novo. Deus mostra o novo, “No trem tem rico, pobre, negro, branco,
como àquele jovem (aponta para um alto, baixo. Aí dá certo demais pregar a
rapaz convertido no trem). Ele (Deus) faz. palavra. Porque Deus não faz distinção
Ele transforma. Ele dá vida e não é entre seus filhos. Amém, paz do Senhor!”,
qualquer vida. É uma vida de amor, cheia justifica o pregador Lino, já apresentando

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O PIOR DIA PRA GENTE
o “irmão” Silas Coelho, morador do Jereissati I TRABALHAR É O Muito suor derramado e uma aposentadoria que
e integrante da Igreja Betesda. Silas trabalha não garante o mínimo de tranqüilidade. Daí
na Federação das Associações Cearenses do
Comércio e da Indústria no Ceará (FACIC) e
SÁBADO, TEM O QUE porque, além de matar a saudade da família,
aproveita a ida ao Otávio Bonfim para oferecer
considera a viagem de trem uma oportunidade
para “salvar vidas perdidas”. “Às vezes não CHEGA TOMADO, TEM seus préstimos de doméstica entre a
vizinhança, “nas casas de família”. Moradora da

O QUE TÁ
acontece nada no trem, mas em outros lugares Rua 13, no Jeiressati I, “eu e Deus”, dona Niza
a pessoa fica pensando. É tocado noutro canto”, é passageira veterana. Tanto que o tempo de
observa, com ares de estrategista. viagem já nem é medido pelos anos, mas pelos
A viagem segue abençoada. E as preces
também são dirigidas aos que viajam de modo
DESEMPREGADO reajustes dos bilhetes: “Eu comecei a andar no
trem era 5 centavos a passagem”.
mais arriscado, os surfistas de trem. Alguns Outro aposentado que espera o trem na
passageiros identificam a presença dos na Estação como “um negócio muito perigoso”. mesma Estação é Francisco Pereira dos Santos,
surfistas pelas pisadas na parte de cima do “O pior dia pra gente trabalhar é o sábado. A morador do Centro e vendedor dos salgados
vagão. Passageiro há 20 anos, Lino Pontes é gente encontra de um tudo aqui. Tem o que feitos por ele mesmo. “De primeiro era bom essa
testemunha ocular das aventuras e seus finais chega tomado (alcoolizado), tem o que tá venda aqui, mas depois começou o tempo da
nem sempre felizes. “Eles sobem no meio da desempregado e não pode pagar, mas tem perturbação, com os guarda empatando da
viagem, batem aqui em cima com força (aponta também os que pulam (a catraca) porque num gente vender uma coisinha dentro dele (trem)”.
pro alto do vagão), já cheguei a ver acidente quer pagar a passagem mesmo. Tô por aqui Sonho, panqueca, filhoes e pimba de macaco
pela janela”. Homens aranha, os surfistas tirando esse mau costume. Quando entra são alguns dos nomes das merendas de seu
sobem pelas passarelas das estações, sem (detido na estação), é ele na frente e eu atrás, Francisco. E os nomes, ele explica, “dependem
necessariamente cumprir o trajeto partida- acompanhando até sair”. do lugar, no Cariri já se diz diferente daqui de
chegada. O local de trabalho de Seu Valentim é o ponto Fortaleza...”. Nascido em Juazeiro do Norte,
“Antes do trem parar eles pulam e passam de chegada da aposentada Maria Niza Garcia. ganhou a vida na agricultura, “no serviço
pro outro lado da grade. Esse ano morreu dois, Ela desembarca na Estação do Otávio Bonfim grosseiro, pela roça”, isso até “ir pra padaria” e
que eu saiba, que chegou ao meu para visitar a irmã e parentes mais próximos. O aprender a fazer massas.
conhecimento, né?”, narra Gerson Valentim, trem lembra sua infância em Baturité, município A trajetória de Seu Francisco sintetiza a de
vigilante das Estações há 13 anos, atualmente de origem onde não permaneceu por falta de muitos migrantes que fizeram do trem uma ponte
atuando na Estação do Otávio Bonfim. Morador trabalho. Na capital, antes dos aposentos, deu entre sertão e cidade, pela fuga da seca e pela
do Carlito Pamplona, o vigilante vê o trabalho duro nas fábricas de lagosta, peixe e castanha. busca das novidades salvadoras prometidas pela

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urbanização. “Eu sou lá do Cariri. A gente
começou andando no trem. Vendia uma
coisinha, trazia fruta, fui ficando e em 82 passei
a morar aqui, no Centro. Moro numa casa só,
mas tem um bocado de filho encostado. Tudo é
camelô no Centro”, revela.
O trem que é meio de vida também é, na
boca do povo, o melhor meio de transporte para
quem tem limitações físicas. Manoel da Silva,
do Novo Mondubim, é um cadeirante que pega
o trem a cada seis meses para renovar a senha
do benefício salarial. Já o artesão Reginaldo
Ferreira, diariamente se desloca do Novo
Mondubim para o Centro, onde comercializa
o que produz. Há seis anos, Reginaldo sofreu
um acidente que o deixou paraplégico. “Cedo
eu vou pra Estação. Minha esposa ajuda e
me deixa lá. É melhor o trem do que o ônibus,
porque o trem tem rampa e o ônibus é escada.
Só uma das estações num tem. Aí vou e
passo o dia na Praça José de Alencar. Tenho
uma banquinha lá. Quando é quatro e meia
da tarde eu volto pra casa”, diz o cadeirante,
despojado em sua calça preta larga e
tatuagem à mostra.
Os dois cadeirantes, Reginaldo e Manoel,
chegam por volta de 8 horas na Estação João
Felipe. O movimento já é intenso. Os mórmons
chegam para outras pregações, os policiais
ferroviários apenas conversam diante dos
passos apressados de quem segue para os
postos de trabalho. Perto da venda de bilhetes,
um cartaz avisa sobre o que passa a ser proibido
transportar no trem: bicicleta, animais, botijão
de gás, sacos de alimentos, varas de cano...
Decisões das tantas siglas que administram a
Estação, controle do viver de quem transita ou
pensa em ganhar a vida sobre os trilhos.

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Ao lado dos guardas, um rapaz conversa com a na pressa. Outros gostam de bagüiar mesmo. E tem no mapa, chamado lá dentro como Canindezinho”.
amiga pelo telefone e, pausadamente, assegura os que compra pra ajudar”, elenca. “Mas agora tão De tanto ver gente passar tem pressa, foge da
estar com “um dossiê sobre o namorado” da mesma. dizendo que num pode mais vender. Os fiscais conversa e vai lustrar o mural onde figuram
Mais adiante, alheia às regras de comportamento, pastora a gente. Já chegou até de ter que descer trabalhadores pintados pelo artista plástico
a vendedora Myliane Siqueira, com aplicada numa estação e andar a pé pra outra. Com isso se Descartes Gadelha.
insistência, aborda os passageiros apressados, passa vergonha. O povo fica olhando pensando que Nova movimentação intensa somente no final da
oferecendo supostas vantagens dos cartões de é ladrão”, reclama com a voz embargada, insistindo tarde, com a volta dos passageiros do trabalho. À
crédito. “Fazer, jovem? Cartão!”. Myliane trabalha há no trabalho honesto. noite, o trem segue levando o cansaço do povo, a
três meses na Estação, onde consegue uma média Após o movimento mais intenso da manhã, a vontade de chegar em casa. Cruza o Rio Cocó, o
de seis vendas por dia, para sonhar com uma vida vendedora de sorvetes já pode abrir o espelho Maranguapinho. Mas não sem antes passar por
melhor. O pátio da Estação é praça para outras para cuidar da beleza. Ao mesmo tempo em que campos de futebol, lagoas, lixões. Igrejinhas de oitão
vendas. Visivelmente cansada, dona Antônia já os servidores zelam a Estação pelo resto do dia. pintado e terreiro limpo. Pela janela, a Fortaleza rural
estava de pé às 3h30min pra fazer a massa dos A turma da limpeza trabalha firme. Aos 65 anos, e o sertão de sol causticante: hortas, mangueiras
salgados. “O salgadim é 10 centavo, mas o trabalho Seu Françuar (“escreva desse jeito rapaz”!) frondosas, plantações de bananeiras. As flores do
não tem preço não”. Aos 54 anos, luta pelo sustento trabalha oito horas diárias, de segunda a sábado. Parque Albano, os coqueiros já em Caucaia. O
dos filhos. Canudinho, pastel, pipoca doce. “O povo Chega à Estação João Felipe às 7h, vindo do comprido dia de trabalho vai terminando no cochilo
gosta disso no trem. Uns saíram sem comer de casa, Parque Jerusalém, um lugar que “num tá incluído da volta nos vagões.

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O maquinista Narcélio Costa Lima “já
conhecia ferrovia” bem antes de ser aprovado
no concurso para a profissão, realizado em
VIDA DE nova em beira de linha, além do trânsito que
aumentou muito”.
Hoje, é restrita a “família” dos maquinistas.

MAQUINISTA
1980. “Eu andava com meu pai nos trem, “Cinquenta e poucos, mas unidos no ambiente
quando ele era maquinista da ativa. Viajava de trabalho, amigos de verdade”, diz, contente,
pra todo canto. Ia pra Recife, saindo daqui seu Narcélio. O leva e traz de gente também
sexta à tarde. Durava 23 horas a viagem, diz sobre o leva e traz de histórias. “As fofoca
parando nos canto, eu passeando como todo dia tem. Maquinista é que nem marinheiro,
turista”, brinca, relembrando a infância sobre é fofoca, é conversa... A conversa é que faz o
os trilhos. O pai, Severiano da Costa, ainda dia passar mais rápido”, confessa.
vivencia o universo das ferrovias,só que agora Bom de prosa e bem humorado, enquanto
na Associação dos Ferroviários Aposentados não chega a hora da próxima viagem o
do Ceará (AFAC), cuja sede fica ao lado da maquinista cumprimenta os passantes,
Estação João Felipe. Todos os dias, pela sentado em um banco da coberta ao lado da
manhã, o veterano “bate ponto”. Anualmente, sala dos funcionários. E conta: “Era um dia de
no dia 20 de outubro, pai e filho viajam juntos domingo e eu vinha trazendo um cargueiro, de
para o Cedro, no centro-sul cearense, onde Quixeramobim. Já em Fortaleza, aqui na
uma grande festa é realizada em homenagem Aguanambi, um bebo entrou duma vez e se
ao dia do maquinista. tacou por cima do trem. Aí ele disse pra mim:
Seu Narcélio é de uma família de você num tem culpa não, eu pago tudo. Faça o
maquinistas. Auxiliar de escritório, agente de serviço no seu carro que eu faço no meu. Tava
Estação e mestre de linha foram algumas das tão bebo que pensou que tinha batido noutro
funções desempenhadas pelas gerações carro”, conta Seu Narcélio, gargalhando.
anteriores da família, incluindo as mulheres. O maquinista sabe que o trem transporta
“Comigo, lá em casa são três irmão maquinista histórias e estórias. “Eu já dei entrada na minha
e um cunhado maquinista. Só na nossa família aposentadoria e às vezes fico pensando que
foram oito, três na ativa e cinco aposentado. daria pra escrever um livro com as estória daqui.
Antes era mais fácil o filho ser maquinista, tinha Quando a gente se reúne é que vai lembrando
prioridade, o incentivo no concurso”, observa mais, vai saindo”, diz, já citando a mancada de
Seu Narcélio, mencionando a antiga um colega. “O maquinista saiu no trem e num
legislação, uma espécie de cotas para os engatou os vagão de passageiro. Era andando
descendentes de maquinistas que buscavam e se admirando, só dizendo ‘ô máquina boa, ô
a profissão. máquina boa (fala alto)’. Quando parou numa
Maquinista experiente, Seu Narcélio diz que estação, uma pessoa perguntou: - ‘dá pra levar
a escolha da profissão se deu pela “vocação essas coisa aí?’ – ‘Rapaz, bote aí na máquina’
de dirigir” descoberta logo cedo: “se eu num – ‘Que máquina? Que ele olhou pra trás, cadê
viesse pra cá eu ia ser caminhoneiro. O meu os vagões?”.
negócio é dirigir e viajar”. A satisfação com a Nos trens, Seu Narcélio observa que “cada
profissão está em transportar “milhares e um tem um sistema diferente de trabalhar”.
milhares de passageiros diariamente, num “Tem o cuidadoso, o medroso, o desligado.
sistema seguro, apesar de antigo. Nem assalto conhecer. A gente responde que a direção é o Varia muito, né? Cuidadoso é uma coisa,
tem, pois “passageiro de trem nem dinheiro próprio trilho (ri). E a pessoa fica satisfeita”, ri-se. agora o excesso de cuidado já é medo. Aqui
trem”. O bom maquinista tem resposta para tudo. “Chega tinha uma pessoa que se preocupava tanto
Nos trens e estações, a figura do maquinista gente perguntando sobre acidente. A negada em zelar a máquina que atrasava o trem. Mas
impõe respeito. No caso de seu Narcélio, que chega e diz: ‘O trem num pára não? Por que você trem tem que gostar. No começo (da
realizava viagens para o interior do Ceará e só para depois que pega (a vítima)? O trem pára, profissão), quando tinha uma viagem, só
outros estados, mais ainda. “A gente fica muito mas só depois que você vê (o obstáculo). A gente tinha data pra sair, pra voltar num tinha. Ia
conhecido. Você chega num canto: ‘ei rapaz, freia, mas só pára depois, devido o sistema. A pra Quixeramobim, chega lá ia pra Iguatu,
ali é o maquinista’. Cria amizade com as gente tenta, mas não consegue. Não tem como Crato, Sousa (Paraíba)...o que aparecesse”,
pessoas que a gente encontra vários dias e evitar. É como um serviço de um policial, às vezes recorda o maquinista.
no mesmo horário”. No “fim da linha” a num depende da gente, num tem como tirar do O ferroviário é Ferroviário. “Eu sou torcedor
conversa é mais demorada. Afinal, são mei (da frente). A maioria dos casos é (tentativa do Ferroviário, mas a minha vibração mesmo
“milhares e milhares de pessoas sempre de) suicídio. A gente sente, responde processo é a seleção brasileira. É o único jogo que eu
querendo alguma infor mação, mesmo por isso, como é obrigado, mas tem que tá perco tempo de assistir, mesmo amistoso.
domingo ou feriado”. Mas a curiosidade maior preparado (emocionalmente)”, esclarece. Qualquer hora tô lá tomando minha cervejinha
é mesmo em relação ao funcionamento dos A profissão de maquinista sofreu poucas e vibrando. Na copa de 82 eu tava trabalhando
trens. “Tem gente que chega curioso, admirado, mudanças ao longo dos anos. Mudanças mesmo no trem. Tirei a bateria do carro, botei na
aí pergunta: ‘cadê a direção do trem? ’. Num foram as sofridas pela cidade e acompanhadas televisão portátil e fui assistindo dentro do trem.
foi só uma nem duas vez não. Tem pessoa que pelo maquinista, de 1980 até hoje: “casas e O Brasil perdeu, mas eu num perdi o jogo”,
nunca andou de trem, fica admirada e quer conjuntos (habitacionais), indústrias, residência conta, vitorioso.

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PERFIL PIRRITA

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TEXTO > ANA MARY C. CAVALCANTE
FOTOS > RICARDO DAMITO

O BAIRRO ELLERY ocupa o noroeste de


Fortaleza, a quatro quilômetros do centro comercial
da Capital. Está inserido entre os limites dos bairros
Álvaro Weyne (norte), Alagadiço/São Gerardo (sul),
Carlito Pamplona e Monte Castelo (leste) e Presidente
Kennedy (oeste). Chega-se lá seguindo as avenidas
Sargento Hermínio e Francisco Sá (no sentido leste-
oeste) ou pela rua Olavo Bilac e avenida Padre
Anchieta (norte-sul). O bairro cresceu muito, desde o
loteamento Parque Themóteo dos anos 40. Possui Encontro Social do Bairro Ellery (agenda de
três conjuntos habitacionais (construídos em mutirão), dezembro)... Da lan-house mesmo, em um clique,
dois chafarizes (um na ativa), duas praças, a Capela tem-se ainda “Notícias do mundo” (extraídas do
de Nossa Senhora de Lourdes, a Igreja Adventista, o portal www.terra.com.br) e “Notícias do bairro”.
centro espírita, o terreiro de umbanda, oito igrejas Este último link, formado também por artigos e
evangélicas. Nove bandas de música (samba/pagode, crônicas, percorre a cidade: vai da “denúncia
rock, axé, gospel...), seis clubes de futebol, duas ambiental de poluição no riacho do açude do rio
quadras esportivas, três quadrilhas juninas. Cinco Pici” à “preservação de árvores no Benfica”,
indústrias de confecção, 47 fábricas de portões e passando pela “luta contra a Aids” e as
grades, 14 salões de beleza, 17 bares/lanchonetes, manifestações sobre a “violência contra a mulher”.
11 mercadinhos, igual número de mercearias, quatro Os organizadores do sítio já pensam em criar
frutarias, cinco frigoríficos/peixarias, sete oficinas para um portal para a região, multiplicando a idéia do
automóveis, outras seis para consertar bicicletas, dez sítio nos diversos bairros da Capital. “A gente quer
armarinhos (miudezas), oito pontos de jogo do bicho... ter foto-repórteres e correspondentes na Igreja,
na escola”, planeja Aguinaldo Aguiar,
As informações, precisas, são do sítio vislumbrando o sucesso do sítio eletrônico.
www.bairroellery.com.br. Sítio mesmo, como foi o
bairro na década de 1950. “Ao invés da palavra Ainda na net, um “Álbum de fotos” esboça o
inglesa site, pela valorização de nossa cultura, bairro Ellery em mapas e documentos oficiais
costumes e língua”, idéia do Conselho de de “batismo” do lugar e em flagrantes do dia-
Desenvolvimento do Bairro Ellery (fórum das a-dia das ruas. Em cena virtual: a Paixão de
entidades populares locais) e prática da comunidade. Cristo, o passeio ciclístico de 2006, os enfeites
No princípio, era “um sistema de som com da última Copa do Mundo, a quadrilha junina
irradiadoras”, reconstitui Aguinaldo José de Aguiar, infantil... Um cotidiano sem pressa. Como o de
funcionário da ONG Cearah Periferia e morador da seu Geraldo e dona Mocinha, casados há 55
região desde 1978. As primeiras experiências de anos (nunca se separaram, “nem em
comunicação alternativa, ali, datam de 1986, quando pensamento”) e que ainda namoram “24 horas”
se organiza a Associação Comunitária. O som ia – assegura a noiva. “É só aqui, nesse cantim...”,
das ocupações aos campos de futebol; tanto protegia resume o simpático senhor de olhos marinhos,
o território, quanto transmitia o jogo. Foi o embrião o dia-a-dia ao lado da mulher, enquanto o feijão
da FM comunitária (no ar, de 1998 a 2003). Quando cozinha. “Sempre a gente ficou assim,
a rádio fechou, “ficou um vazio medonho. O bairro conversando pertim um do outro. Na hora do
também mudou, não dava mais sustentação para almoço, do jantar, na dormida...”, destrinça
as lutas, como na década de 80. Muitas pessoas já dona Mocinha. Da sombra da árvore, lá fora,
tinham conseguido casas...”, conta Aguinaldo. para a cadeira de balanço no alpendre. A vida
ficou mais larga aos 83 anos. “Eram muitos
Para reunir o povo, o movimento comunitário amigos, mas foi diminuindo, diminuindo...”,
experimenta novo tom: o do bloco pré-carnavalesco subtrai seu Geraldo. Resta um ou outro “no
Sai na Marra, que recreia-se nas ruas conduzido por Carlito, que ele vendia ambulante”, aponta a
um tema social (em 2007, a violência contra a mulher mulher, “e amigas também”, ressalta. “As
é o mote da marchinha). “E ele junta o mais rico, que meninas do Carlito...”, vai buscar o rapaz, no ir
é o dono de uma revendedora de veículos, ao mais e vir da cadeira de balanço. “... As meninas era
pobre (o que restou das antigas ocupações de risco: que ainda me fazia uma comprazinha”.
a Comunidade do Canal, a Cidade Alta e a rua
Cristal)”, assegura Aguinaldo. O sítio, na Internet, veio Seu Geraldo Freire da Silva e dona
atrás do bloco. As fotografias virtuais do último Francisca Costa da Silva, 73, moram na rua
carnaval que passou provocaram “uma loucura, no Almeida Filho, beirando a praça da igreja, há
bairro. Teve congestionamento nas lan-houses!”, 42 anos. Vieram da então rua do Escondido,
comemora Aguiar. O foco do sítio eletrônico é, acolá. São dos mais antigos do bairro Ellery.
justamente, dar visibilidade ao cotidiano e à memória “Chegamo aqui, não tinha casa. Tinha uma
do bairro Ellery. no mei do quarteirão e outra na esquina”, refaz
seu Geraldo. “O tanto de casa que tinha,
O link “Agenda do bairro”, por exemplo, monta um contava tudim: ‘Tem tantos bico de luz
painel mensal de eventos. A comunidade fica a par acesa...!”, completa dona Mocinha. A casa
de quando acontece o Feirão da Economia Solidária, onde moram, de terraço e quintal, diz da
o Congresso do Plano Diretor em Fortaleza, o primeira, de taipa e sobre as águas do açude

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bairroellery.com.br
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Geraldo e Mocinha
(abaixo), casados há
55 anos, e dona
Maria José, 80:
guardiões da
memória no bairro
Ellery

borracha pra panela de pressã desentup racha


João Lopes. Seu Geraldo quem aterrou e cadeira, rebocava casa, pintava. Matava porco, Só depois de aprender a tabuada”. Mas antes de
construiu. Os sete meninos do casal brincaram bode, mandava meu marido vender pelo Pirambu. passear nas horas, ela pede licença, tinha acabado
muito por ali. “Quando chegamos aqui, meu Deus, E lavei roupa 20 anos”. Não sobrava tempo, nem de aguar as plantas, vai “ao menos pentear o cabelo”.
esse açude parecia o mar! Chega fazia onda!”, gosto, pra se divertir. “Andei tanto entregando Volta para as fotos, de brinco, batom e perfume.
admira-se dona Mocinha. roupa, que abusei de andar. As freguesas era A casa-sítio brotou no “meio de uma mata de tora
O açude João Lopes é a principal referência do looonge, mulher! Pra banda do São Sebastião, grossa”, meio século atrás. Quando a família Ellery –
bairro Ellery. Foi construído, por particulares, na Barra do Ceará. E era a trouxa na cabeça”, dona Aurora Recen, 71, tem a mais, no sobrenome,
década de 1940, ligando-se ao riacho homônimo. O percorre dona Mazé. O bairro também não oferecia os donos do bairro - desbravou o terreno, “foi
riacho corre 2,7 quilômetros ao norte da avenida muita opção. “A casa que tinha era a do seu encontrado cama, fogão, que os ladrões jogavam”. O
Bezerra de Menezes (atrás da Igreja de São Gerardo Geraldo. E ali era só mato e pé de manga”, indica. cunhado, Francisco Humberto Ferreira Ellery, mandou
e da Secretaria de Agricultura), forma um belo A propósito das frutas que pincelavam a região, “o “abrir a rua e botar ônibus e luz elétrica”. Nessa época,
pantanal no Campus do Pici e continua até desaguar cajueiro é daquele tempo”. E já estamos acomodados a vizinhança era de taipa e de amigos: “Dona Paixão,
no rio Maranguapinho (zona oeste de Fortaleza). O no vasto alpendre da professora Aurora, aproveitando, dona Isaura... Aqui em frente, o pessoal do seu
açude e o riacho estão visivelmente poluídos e nem com os gatos, o vento abundante. Sapoti, cacau, Joaquim Carneiro, finado, já está pro alto”. A turma
de longe lembram a fartura do tempo de dona Mazé- acerola, canela e açaí (legítimo do Pará, terra da costumava aproveitar a vida ali, no alpendre, onde
lavadeira. “Pegavam cará bem aí”, aponta para a professora), entre roseiras em flor e palmeiras, “se fazia aquelas tertúlias com a luz negra. Dançavam
calçada. Nos invernos dos anos 60 e 70, o açude preenchem o sítio da rua Capitão Nestor Góes. rock e música lenta”, circunda a professora.
transbordava, alcançava a praça e a vizinhança Barulho, ali, só o do trem (que passa, de meia em “É o novo! O som era o da radiola! As músicas
(onde, hoje, estão a Capela de Nossa Senhora de meia hora, na esquina) e das folhas das árvores eram internacionais: os Pholhas, Dana Summer,
Lourdes, a Associação Comunitária, a casa de dona brincando com a ventania. Professora do bairro Elton John...”, ri-se o comerciante Raimundo Ivan
Mazé) e abastecia as cacimbas das lavadeiras. durante 40 anos, ensinou Português e Matemática Rocha Júnior, 47, que batia ponto, aos sábados e
Dona Maria José da Silva Moura, 80, dobrou com disciplina: “Antigamente, uma palavra errada, a domingos, nas tertúlias do bairro. A festa, anunciava-
metade da vida no bairro Ellery. “Eu reformava gente fazia a criança escrever 20 vezes. Calculadora? se de boca em boca e se improvisava afastando o

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sofá, na sala. Bebida, no máximo, um coquetelzinho. brincadeira do lado de lá do trilho, “quando meu pai
Flerte, à vontade. “Muita moça bonita e muita deixava”, ressalta dona Maria: “O divertimento que
lembrança também... O flerte é o tempero da vida, nós tinha aqui, era um boi, que hoje chama ‘os careta’.
né? É um segmento, a humanidade, em si, precisa Quando dava o mês de julho, começava”. Os pais
disso”, deleita-se. Do tempo das tertúlias, flagra-se abreviavam o dia, naquele tempo. “Jantar era seis
também o futebol em torno do açude João Lopes. horas. Sete e meia pra oito horas, já tava tudo na sua
“Tinha os jogos e, em seguida, o banho no açude”. redinha”, diz dona Raimunda, da criação.
Sobrou pouco, no bairro Ellery. Nem rastro das O mundo, vasto mundo, cabia em redor do
ruas líquidas, vindas do açude, que serpenteavam açude João Lopes. “O açude era muito grande. E
entre casas e infâncias. Nenhum campo de areia mais. uma coisa linda! Começava perto da Guanabara
Fizeram as quadras esportivas, nas praças; pode-se (uma garagem de ônibus atual), mais pra lá, no
almoçar no Pólo de Lazer da Sargento Hermínio (de Monte Castelo. Descia, vinha até a (rua) Henrique
batismo, Pólo de Lazer Alagadiço), inventar um Ellery. Não tinha casa, ele tomava conta de tudo.
piquenique dia de domingo. Ah, sim, claro! O bloco O que tinha muito era (pé de) mapirunga, murici.
Sai na Marra, de ano em ano. É o comerciante, antigo Quando sangrava, sangrava pras três cacimbas
freqüentador das tertúlias e sócio de carteirinha do que minha avó fez”, desenha dona Maria. Dona
pré-carnaval, quem faz questão de lembrá-lo: “Ele Raimunda ainda distingue a sombra das cacimbas
surgiu de uma própria brincadeira da turma do na Praça Manoel Dias Macedo (a principal do
Almeidão, a macharada mesmo”. Almeidão? “É uma futebol que possuiu. O cachorro, embora preso, bairro, a da Capela de Nossa Senhora de Lourdes
família aqui do bairro, campeã, inclusive, das festeja as visitas. Os pintos e os galos novos, e da Associação Comunitária): “Tinha uma
quadrilhas juninas”. Pois bem, as reuniões do bloco detidos na gaiola, também se alvoroçam. Dona cacimba de aguar a horta, uma de nóis beber e a
começaram “na sede do Almeidão, que é na Maria Souza da Silva, 60, deixa os afazeres outra de lavar a roupa. O sangrador dele passava
residência deles. E, aí, já arrumamos um espaço na domésticos de lado, inúmeras bacias com roupa aqui (na porta de casa). Tinha um rapaz que
Associação”, completa Júnior. e panelas de molho, e vai chamar a mãe, na casa matava traíra, aí, na frente, de facão”.
“As ‘meninas’, o macharal todo vestido de em anexo. Quer que dona Raimunda Alves de O divertimento de dona Raimunda se resumia
mulher” anuncia o carnaval três sábados antes, Souza, 82, conte da herança de dona Francisca, em olhar a “pescaria” de dentro de casa. “Me
desfilando nas ruas do bairro Ellery ao som de a avó descendente de índio, que pousou ali em pregunte do mar... Passei nele pra ir pro médico.
uma bandinha. O Sai na Marra, asseguram os 1913. “Era tudo mato”, repassa a neta, “meu avô Não sei o que é orgia, como diz o povo”. Não saía
organizadores, preza pela segurança e “diversão foi quem devorou tudo, fez a casinha de palha. Aí, da casa onde nasceu, criou-se, casou e
sadia”. Ainda que se misturem torcedores fiéis do foi botando pra frente: fez uma saída pro trilho”. O permanece nem para assistir aos jogos de futebol
Ferroviário (a família do Almeidão), do Fortaleza trem apita próximo, confirmando a história. que a filha organizou durante 15 anos (entre 1985
(a maioria) e do Vozão – como o Júnior, que fez “Toda qualidade de fruta tinha aqui: abacate, e 2000). Os campos de areia são outra marca na
questão de tirar as fotos com seu cachorro branco- laranja, tangerina... Só comprava feijão, e quando não memória do bairro Ellery. Havia o Campo do
e-preto, “Ceará”, óbvio. tava no inverno. Porque plantava aqui, tudo dava!”, Iracema e do JK (próximos a onde, hoje, está o
Para não perder a deixa, bate-se palma na enumera dona Maria. Essa era parte da sustância Pólo de Lazer), o Campo do Cruzeiro (antes da
porta de dona Maria, conhecida pelo time de dos 14 filhos de dona Raimunda. A outra, era uma Praça Manoel Dias Macedo existir) e o maior, o

a pra panela de pressã desenpra panela de >>>


Campo do Humaitá. Dona Maria vai buscar as
fotos do time, mostra os craques: “Esse aqui era
o melhor goleiro que tinha. O pé dele é 44!”.
“Era muito difícil a gente perder. Mas eu fiquei
com raiva porque passei seis meses lutando,
ganhei o campeonato, quando foi no último jogo,
na decisão, o goleiro se vendeu-se. Aí, foi a derrota.
Se vendeu-se por R$ 50,00. Aí, eu disse: ‘Vou
parar o time por uns tempos”, chateia-se a dona.
O time chamava-se “Coca-Cola”, a pedido de um
ex-funcionário da fábrica de refrigerantes que,
demitido, virou treinador. Durou até o goleiro ser
comprado pelos adversários e até o filho mais novo
de dona Maria adoecer. Ela tenta concluir a
história, interrompida pelo latido insistente do
cachorro. “Cala a boca, Sprite!”, sentencia a dona
do time da Coca-Cola. Mas o cachorro continua o
monólogo e o balé, a rodopiar entre as pernas
compridas do fotógrafo. Acaba conseguindo seus
instantes de fama. “Ele tá batendo retrato, olha
aí!”, diverte-se dona Maria. “O Sprite, aqui, tá
sendo famoso!”. Tanto quanto o bairro Ellery, no
noroeste de Fortaleza, que o mundo, agora, vai
descobrindo pela Internet.

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MAMBEMBES,
SIM SENHOR

F ROL DEZEMBRO
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26
Texto: Ethel de Paula resultado vê-se de baixo para cima: um “céu” de
Fotos: Drawlio Joca e Jacques Antunes multimarcas e grifes cobre as cabeças de uma
platéia com pouco ou nenhum acesso ao que,
Milenar, a arte circense deixa pistas de sua por necessidade e força das circunstâncias,
existência em pinturas de quase cinco mil anos acaba sendo indiretamente propagandeado.
na China, nas pirâmides do Egito e em rituais Na Serrinha, a propaganda do London Circo -
sagrados da Índia. Na Grécia, confundiu-se com não a da lona, mas a do carro volante -, vem
as modalidades olímpicas. Dentro do Coliseu, viu garantindo casa cheia por semanas seguidas. O
sua face desfigurar-se ao resvalar para olho do dono, Antônio Reginaldo Moura Soares,
espetáculos sangrentos de perseguição a cristãos 50, o palhaço Garrafinha, já havia antevisto o
impiedosamente atirados às feras. Em feiras sucesso.“Se a meninada seguir o rastro dos pneus
populares, de cidade em cidade, os saltimbancos e se amontoar logo cedo em frente à bilheteria,
recuperaram o brilho do circo, somando às na maior algazarra, é porque vai dar público”,
excentricidades e habilidades incomuns, animais vaticina. A boa estréia carece de doses de reforço.
exóticos, acrobacias, engolidores de fogo, truques “Se a gente colocou o Lobisomem na primeira
mágicos, malabarismos. noite tem que anunciar novas atrações nas
Em 1770, no primeiro circo fixo europeu, Philip semanas seguintes, porque senão o pessoal
Astley, um oficial inglês da Cavalaria Britânica, enjoa. Então, vem o Cavalo Maluco, o Casamento
anunciaria seus cavalos, equilibristas, saltadores do Palhaço, o homem ou a mulher mais gulosa,
e palhaço sob o rufar de tambores, com toda a que é quem come 50 bananas mais rápido no
pompa, para uma Londres chique e extasiada. picadeiro. A gente convida e o vencedor ganha
Muitos e muitos séculos depois, no Nordeste do uma caixa de cerveja. E assim vamos
Brasil, o espetáculo continua. Se não em Londres, movimentando o bairro”, inventa o ex-seminarista
no London Circo, instalado temporariamente na e entregador de contas da Coelce que um dia se
Serrinha, um dos bairros da grande periferia de ofereceu, ainda rapazote, para puxar cortinas em
Fortaleza. um tal Circo Europeu que passava pelo Montese,
Nem pompa nem circunstância. Hoje, a maior seu bairro de origem.
parte dos intrépidos representantes da arte que “Fiquei um ano dentro do Circo Europeu,
chegou ao país de carona com os ciganos pede aprendendo tudo de circo. Saí de lá para montar
passagem em carros volantes fora de linha e o meu, carregando inclusive a maioria dos artistas
com tanque na reserva. Na melhor das comigo”, gaba-se. Na época, Reginaldo já era o
hipóteses, a cada partida e chegada em uma palhaço Garrafinha, o corpo magro justificando
nova “praça”, cabe aos opalas, maveriks ou o codinome. Nas suas mãos, o circo mudava de
caravans o difícil reboque dos traillers também nome e cor sempre que o tino empresarial assim
sucateados, que servem de camarim e moradia determinasse. Hylon, Disneylândia, Garjane,
para um elenco formado basicamente por esse último graças a uma fusão das iniciais de
jovens, casais fortuitos e crianças nascidas e seu nome e sua “sócia” na época, um travesti
criadas ao redor dos picadeiros, “naturais” rebatizado Jane. “Isso era porque eu circulava
herdeiras da profissão dos pais e da grande muito, repetia os mesmos bairros, então tinha
trupe de artistas mambembes irmanados. Em que ir mudando os nomes do circo. Assim o povo
terrenos de chão batido cedidos pelo poder achava que era outro circo”, confessa o truque.
público ou alugados a particulares, as famílias London foi um nome que deu sorte. “Armei
circenses crescem e teimosamente aparecem, no Parque da Criança, no Parque do Cocó, a
a cada três ou quatro semanas, em um bairro minha lona e as minhas barracas foram as
diferente da periferia local. primeiras alugadas aqui em Fortaleza para
Mas se falta infra-estrutura, sobra criatividade. grandes eventos. E, como palhaço, inaugurei
Assim é que, do porta-malas de um velho opala o Iguatemi e o Jumbo do Center Um da Santos
em marcha lenta, salta o “garoto-propaganda” Dumont, o primeiro shopping center da cidade.
do London Circo. Vestido de preto, usando uma No passado, a praça boa era na Praia de
máscara de Lobisomen e urrando, o palhaço Iracema, ganhei muito dinheiro lá, armei na
travestido surpreende quem sai às ruas, Ponte Metálica, no Estaleiro, uma hora dessa
enquanto o motorista-locutor anuncia ao a água, pum! dentro do circo. Nessa época,
microfone as atrações do espetáculo que logo não tinha lona em cima. E passamos muito
mais à noite vai trazer crianças de todas as idades tempo assim, só com o pano ao redor. Porque
para debaixo da lona gasta e improvisada, toda aventura do circo é o pano de roda, o
ela feita a mão, na marra, com sobras de outdoors importante é o miolo. Lona se vê da rua, pode
e blimps publicitários vendidos a preços até ser bonita, mas se o espetáculo não
acessíveis aos donos de circos populares. O agradar não valeu de nada”, ensina, satisfeito.

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Hoje, vem batendo o cansaço. Garrafinha já não braço quebrado. E lá vem a mãe: “Ah, seu
pinta a cara para rir um riso sem dentes. Dedica-se Garrafinha, inventaram um trapézio no quintal lá
exclusivamente à administração do circo e às vidas de casa e taí o resultado!”. Por isso prefiro fazer
que vêm cruzar com a sua. É patrão, mas também torta na cara, torneio de menino com menino, boto
pai e avô de criação de quem vive, mesmo que o palhaço com uma caixa de chocolate na mão. E
temporariamente, dentro de seus traillers assim a gente empolga a platéia mirim”, defende.
ambulantes. “Não tive casamento e há muitos anos Difícil é persistir sem capital de giro ou apoios
moro no circo. Criei um rapaz que hoje administra governamentais permanentes. “A gente tem que
o circo comigo, o Narciso, e agora crio outro, o Tiago. manter esse povo que recebe por semana,
Quando dá, onde a gente vai carrega um. Aquela pagando em dia. Pago em torno de R$ 120,00 ao
mãe de periferia pede pra levar o menino que não palhaço, são dois. E mais cachê para todos os
quer estudar, não quer obedecer. Levo se for com artistas e empregados. Hoje, aqui, deve ter umas
o consentimento e o acompanhamento das 20 pessoas. Eles todos moram e são alimentados
famílias, que confiam. E aí viro aquele segundo pai por minha conta, não é aquele artista que traz
deles. Entrou aqui é difícil trocar de circo. A maioria bagagem não. Aí tem que pagar uma licença pra
entra garotinho e fica”, garante, dando colo e Garrafinha: patrão, pai e avô de criação da trupe Prefeitura a cada temporada, aí vem CREA,
prometendo levar a “neta” Sayuri Lima, 1 ano e 11 bombeiro, Coelce, termina com uma despesa, só
meses, filha de um de seus palhaços agregados, oferece, mesmo se for casada. Quando dá fé tem pra funcionar, de pelo menos mil reais. Cobrando
para um passeio no aeroporto - o substituto troncho um marido afobado na bilheteria procurando o ingresso a R$ 2,00 e R$ 1,00! No dia da mudança,
do shopping center na Serrinha. palhaço”, diverte-se Garrafinha. os carros que temos não dão conta, aí é R$ 150,00
O circo mambembe é, de fato, movido a amor. Menino malino também pode dar dor de cabeça. pra alugar o caminhão. Uma blitz uma vez me
Não à toa, o palhaço veste a carapuça de “ladrão “No meu espetáculo à tarde, que é só para criança, pegou foi quatro vezes numa mudança só,
de mulher”. “É muito comum e natural as meninas meu palhaço pega leve nas piadas. É só a ginástica. arrastando os traillers. Até montar na outra praça
se apaixonarem pelo palhaço. Mas veja: elas se E não tem números perigosos, como faca. E mesmo são três dias parado, então calcule... Por isso, os
apaixonam pelo personagem. Só que quando o quando tem, à noite, a gente avisa que não pode 15 circos de Fortaleza ainda estão em situação
palhaço já é casado isso dá uma confusão danada. fazer em casa. Porque criança é assim: aqui a gente irregular. A gente monta o circo na raça, de
Eu aqui separo muita briga de casal e quando o tem o número do chicote, menina quando dá três qualquer jeito, essa é a realidade. Nessa hora, sou
negócio pega fogo querem logo arrumar as coisas dias tá tudo que é menino na rua com um pedaço mais mágico do que palhaço”, ironiza Garrafinha,
e ir embora. Aí lá vai eu conversar. Faço isso de cabo de vassoura e um cordão pendurado, batendo no peito, orgulhoso, por jamais ter lacrado
porque já senti na pele como é, a mulherada se chicoteando os outros. Quando dá fé chega um de a janelinha da bilheteria.

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A BONITEZA época, tinha um trailler e um maverik. Fiquei um
bom tempo com ele. Passei a ganhar mais e já
do Motoka tem atraído cerca de 200 pessoas a
cada noite de espetáculo. A platéia que paga

DO JOÃO
tinha comida”, ri-se. entre R$ 2,00 (adulto) e R$ 1,00 (criança) vibra
O casamento precoce dividiu o palhaço ao meio. com os números de contorsão em tecido, o balé
Circo só nas horas vagas entre algum emprego aéreo, os vôos no trapézio, a precisão de quem

REDONDO
fixo capaz de sustentar as três filhas. Até que em corta pedacinhos de papel ao meio com um
1993 o Circo Miami desembarcou em Fortaleza à chicote. São pares e pares de olhos grelados no
cata de palhaços para grande temporada. Só dois Homem Vulcão que solta fogo pela boca, nos
selecionados: Tiririca e... Motoka. “Fazia cachê e que se equilibram sobre arames e nos malabaris
voltava para casa. Mas aí teve o festival de de que não escapam das mãos. Mas é na hora dos
Aos 15 anos, trabalhava como empacotador palhaço no teatro bar Chico Anysio e eu saí bailados e das dublagens que as arquibancadas
em um mercantil. Isso até o dia em que o Circo vencedor. Recebi o troféu do palhaço Carequinha. de madeira puída balançam, mas não caem. “A
São Jorge do Coronel Zé Pelado passou pela Depois disso, abriu as portas. Inclusive para um minha esposa faz a Tiazinha. Pode botar uma
cidade de Iguatu e lá fez temporada. “Um palhaço diferente, pra show infantil. Fiz muitos mulher ou um homem dançando algumas desses
empregado do circo me chamou para fazer shows na Aldeota, ganhei muito dinheiro com isso. forrós da moda que a gaiatice começa”,
serviços gerais. Disse que era bom, ganhava A ponto de comprar uma lona de segunda mão conta.Conquistar o carinho e o respeito do
dinheiro, arrumava namorada e tal. Topei. E para iniciar o próprio circo”, gaba-se. público ainda é um desafio em alguns bairros da
fazia de tudo, botava água nas barrracas e à Há um ano, o casamento foi para o brejo, cidade. “Tem lugar que o cara não consegue
noite pastorava as cercas pra ninguém passar. levando junto a lona e mais sete traillers. “Saí sem trabalhar, é pedra voando, ameaça, roubo. No
Aí levantava o pano e ficava brechando o que nada e recomecei do zero, mas fiquei com duas Serviluz, por exemplo, circo nenhum quer ir.
acontecia no picadeiro. Logo, logo já comecei das minhas filhas, o que já me possibilitou formar Porque ninguém respeita, os caras invadem a
a ajudar os palhaços, entrar nas palhaçadas, uma companhia, já que uma é contorcionista e a cerca e nós trabalhamos de graça”, lamenta
dar as deixas. Depois disso só sonhava em outra malabarista”, anima-se o hoje representante Motoka. Para fugir do prejuízo, também vale
ser artista mesmo”, recorda Carlos Mariano do Ceará na Câmara Setorial de Circo da Funarte seguir certas normas de conduta criadas
Sousa Filho, 35, o palhaço Motoka, hoje mais e mais forte candidato à presidente da futura informalmente. “Antes de tudo, o dono do circo
famoso por seus shows humorísticos de cara Associação dos Proprietários, Artistas e Escolas precisa procurar saber quanto tempo faz que não
limpa e programas de rádio afins. de Circo, em fase de implementação. vai um circo naquele bairro. Não adianta botar o
O sonho ganhou contornos em Fortaleza, A nova lona feita com sobras de outdoor saiu das circo logo depois que um outro saiu da praça,
depois de garantida a passagem com um mãos do amigo e também palhaço Garrafinha, por porque leva couro. Tem que deixar a praça
vereador local. E o resto foi na cara e na encomenda. Hoje, 11 pessoas estão envolvidas no descansar no mínimo seis meses”, avisa.
coragem. “Cheguei e fui atrás do Circo de Circo do Motoka. Todos recebem cachê, inclusive E para ampliar o público? “Aí são outros 500.
Variedades, no bairro Santo Amaro, do Di as filhas de 15 e 17 anos, e têm ganho extra dentro Os circos de bairro têm que dar uma sacudida.
Orange. Já tinha ouvido falar, era pano de roda, do próprio circo, desdobrando-se entre o picadeiro Tem que tá bonitinho, limpinho, pintado, os
não era coberto não. Ele só dava o cachê, não e as banquinhas de venda que funcionam artistas arrumadinhos. Mas não. Uns chegam
cobria a alimentação como fazemos hoje, pros estrategicamente na hora do intervalo do espetáculo. rasgados, sujos, as arquibancadas quebradas,
solteiros tem a cozinha do circo, os casados Enquanto um vende algodão doce, xilitos e pirulitos, aí não dá. O João Redondo dá, mas quer ser
cozinham nos próprios traillers. Moral da outro lucra com o pastel industrializado feito na hora. agradado”, avalia, ciente de que as dificuldades
história: fiquei três meses me alimentando com A maçã do amor sai como água e os bombons e financeiras enfrentadas pela maioria não permite
pão e mortadela. Tinha 17 anos e conheci o chocolates enchem os bolsos. “É a segunda o esmero. “Eu mesmo tenho que fazer shows de
Bolachinha, hoje ele tá rico, com um circo muito bilheteria do circo”, sustenta Motoka. humor em Fortaleza e no interior para poder
bom, carro importado, lá em Pernambuco. Na Fincadas as bases no Parque Jerusalém, o Circo complementar a renda”.

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O MELHOR
LUGAR DO
MUNDO É
AQUI

SÃO DOIS DVDs do Cirque do Soleil maior o circo, menos tradicional ele fica. Veja o
guardados como relíquias e assistidos incontáveis Soleil: é lenda, muito mais teatro e dança do que
vezes. Aulas de contorsão em domicílio e muito circo. E os artistas nem chegam perto do público.
machucado até dominar a técnica do balé aéreo e Aqui a gente olha a platéia no olho, você vê a
da acrobacia em tecido. Nayendy Pamela, 17, filha minha cara mesmo, do jeito que eu sou, e eu vejo
mais velha do palhaço Motoka, não pensou duas a sua, é mais verdadeiro. Em circo grande, o artista
vezes ao trocar o candidato a namorado pelo circo. não passa de empregado, nem fala com o dono
“Não tenho paciência nem tempo. Prefiro ensaiar, do circo. Aqui, a gente é tratado na palma da mão.
aprender novos números e me preparar para ser O que vale não é a lona, mas o artista no
uma grande contorcionista. Aliás, mais que isso: picadeiro”, defende.
quero ser dona de circo, embora meu pai diga que Cabelos descoloridos em tons de verde e
já sou”, afir ma, categórica, a estudante amarelo, 56 tatuagens pelo corpo. O passado de
secundarista que vai prestar exame para menino de rua, abandonado pela mãe - “ela não
Educação Física. gostava de mim” -, contrasta com a pinta de artista
Filha de peixe, não pára quieta. “Já estou de hoje. Amarildo Ramos, 19, voa no trapézio e
aprendendo bambu e doble trapézio também”, cospe fogo, literalmente. “Conheci uns amigos na
conta, empolgada. O professor é o colega de rua e eles me levaram prum circo pano de roda.
picadeiro Marcos Gomes, 24, administrador- Comecei peão, vigiando o circo e fui aprendendo
auxiliar do Circo do Motoka. Cria do projeto Circo- na marra, tive a coluna desviada, engessei o
Escola, vinculado à Febemce, ele é o bamba do espinhaço e fui em frente. Há seis anos moro nos
trapézio e do arame, jogando charme extra a cada circos. Não quero outra vida. A gente só trabalha
finalização de um número, quando rebola ao som à noite e ainda se diverte. É uma namorada em
de música baiana, levando a platéia feminina à cada bairro. O circo me salvou, eu usava droga e

,
loucura. “Nos circos de bairro é assim: um vai hoje o meu vício é isso aqui”, declara o radical

le s o
ensinando o outro e cada um treina quando e cuspidor de fogo que no Circo do Motoka aprendeu

b s
como pode, na base do improviso, caindo e até a preparar o mel da maçã do amor.

d o u ,
levantando para fazer de novo”, revela.
No circo-escola, Marcos conheceu a esposa

u , o r no
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Fernanda, grávida do terceiro filho. Ela mora com

b a i c
a mãe e as filhas no bairro Bom Jardim, ele divide

am o , r
um trailler com os rapazes do serviço geral no

b pézi ame
Circo do Motoka. Sobra o fim-de-semana para a
família. Com um cachê de R$ 110,00 por semana

e
e mais a venda extra de pastéis e batata frita nos
intervalos dos espetáculos, garante que vai

t ra n t
a
levando. Circo grande já não o atrai. “Meu gosto

r
sempre foi trabalhar em circo pequeno. Quanto

d
qu cão
F ROL DEZEMBRO
ul
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30
ARTISTAS uma piada e outra, descobriam a segunda
“gravidez” do palhaço ruivo.
suporte. Lava, cozinha, engoma, limpa o trailler
e ainda faz maçã do amor e pipoca branca. Isso

APESAR
No quadrado metálico sob sol a pino, onde dentro de casa. Lá fora, solda, pinta e cuida da
cabem quatro, cabem mais. Além do berço, uma manutenção do circo. A diversão, além de pintar
cama, um fogão, uma geladeira, uma TV, um DVD, a cara, é ouvir música coladinho na mulher. MC
um ventilador e mais a visita incessante dos fãs Marcinho, forró, música lenta. Na TV, programas

DE
do Cacareco, crianças que não param de entrar e de humor e novelas. “É o que precisa para
sair da casa ambulante. Lorena era do tamanho atualizar as piadas”, garante.
dessa garotada quando o “ladrão de mulher” Na carcaça de uma Kombi, mais um casal, outra
passou com o circo pelo seu bairro, o Barroso. ninhada. Francisco de Assis Costa Barbosa Jr., 24,
“Depois de um tempo, quando voltamos lá, ela já tem um filho de um ano com Ligia Maria Costa, 25.
SETE traillers, sendo três para casais com estava uma moça, aí arrastei. Ainda era de menor, Na barriga dela, há seis meses, cresce o segundo
filhos e os demais para os solteiros. No London mas a mãe entregou pra mim”, conta o marido, herdeiro do Dj do London Circo. “A dormida é
Circo, a convivência diária em grupo desafia enquanto enrola os papéis dos chirulitos vendidos quente, apertada, mas Deus abençoa o lugar que
a pouca idade da maioria dos ar tistas em tábuas e aos montes a cada noite de tem criança. E o circo do Garrafinha mais parece
agregados. Tudo é de todos, nada é de espetáculo. Pai entusiasta, Cacareco é o maior uma creche-circo, por isso é tão abençoado, tem
ninguém e um ajuda o outro, invariavelmente. incentivador de Sayuri, que já tem calos nas mãos tanto axé”, acredita. De boné e brinco, ele diz qual
Adriano Alves Lima, 28, o palhaço Cacareco, de tanto treinar em trapézio de brinquedo. A é o som que ultimamente mais faz a cabeça do
vive apertadinho com Lorena Pereira, 18, mãe aprendiz já é atração à parte no picadeiro. E que público jovem da periferia que vai ao circo:“Calcinha
de Sayuri, de 1 ano e 11 meses, e Iuri, de 9 venha o caçula. Para ele, o pai, que também cria Preta, em primeiro lugar. Mas a galera também
meses. “Tenho 20 anos aqui dentro, tinha 8 galinha, porco, carneiro e cachorro do lado de fora gosta quando a gente bota um pagode ou um funk,
quando o circo armou perto lá de casa, no do trailler, já tem planos: “vai ser palhaço e fazer todo mundo acompanha na palma, alguns gritam
Parque Santo Amaro, e todo dia a mãe ia me dupla comigo – Cacareco e Catrevagem”. e tal”. Contagiar a massa com música não é a única
buscar com o Juizado de Menor”, diverte-se Menos idade e a mesma paixão tem o casal função do Dj. “Para cada número tem uma trilha-
o hoje também malabarista. Nenhum pingo de Francisco Antônio Costa Martins Jr., o palhaço sonora. E você tem a responsabilidade de colocar
arrependimento. “Onde chego faço meu nome, Espigão, e Natália Alves da Silva, 16, pais de e tirar a música na hora certa. Além disso, tem que
em todo bairro o circo é lotado. Todo mundo é Gabriele, um mês de vida. “Nos primeiros dias de comandar o jogo de luz e acertar com o volume do
doido pelo Cacareco”, diz, sem falsa modéstia. resguardo fui pra casa da minha mãe. Mas já era microfone do mestre-de-cena, que é o apresentador
A prova está nos quatro cantos do trailler do contando os dias pra voltar. A gente que mora em do circo. Então, o Dj é um dos personagens
casal. Berço, roupinhas, bolsas, fraldas e circo não se acostuma mais com a vida normal na principais, só que quase ninguém percebe isso”,
lençóis, tudo ofertado como presente pelos cidade. É muito parado”, diz a mãe de primeira regozija-se, mostrando o acervo de mais de 100
moradores dos bairros da periferia que, entre viagem. O marido e confesso pai-coruja dá o CDs gravados em lan houses de periferia.

O palhaço Cacareco é o primeiro


a estimular a filha Sayuri, de
apenas um ano, a subir
precocemente no trapézio. Ela já é
atração à parte no picadeiro

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31
MADAME BORBOLETA
de cena porque o pouco dinheiro que pegamos
investimos no som”, observa. Para apurar um
extra, ela fabrica perfumes. A seu modo, diz que é
capaz de chegar à fórmula dos mais disputados
aromas. “Por exemplo, compro um Azarrô ou um
Ted Lapidous original e descubro as essências.
NO FINAL da linha de ônibus do bairro Quintino O problema é que ele é casado”, conta Lourdes, Aí faço a mistura e deixo descansar por três dias.
Cunha, onde finda a comprida avenida entre triste e alegre. “E qual o problema, negona Você jura que é o verdadeiro. Isso só faço pra gente
Independência, duas amigas de longa data, escândalo?! Importante é amar!”, escracha a chique mesmo”, propagandeia.
dependentes uma da outra e declaradamente parceira que tem no braço da amiga de infância À revelia das dificuldades, Márcia também não
inseparáveis, armaram barracas para pousar e a um guia imprescindível. É que Márcia perdeu a desce do salto. “Já possui carro, mobilete, trailler,
modesta lona de um circo que atende pelo nome de visão depois de cair do trapézio, o que lhe valeu mas tinha dois irmãos que bebiam e infernizaram
dois santos: Nossa Senhora de Lourdes/Padre uma aposentadoria precoce por invalidez. a minha vida. Perdi tudo, menos a minha beleza
Cícero. No terreno diminuto e irregular, um O infortúnio não afetou a obstinação. “Não natural. Não uso um pingo de maquiagem, pode
descampado ao lado do canal, o esgoto corre a céu tenho recalque, apesar de precisar de ajuda o ver. O único problema é o branco do cabelo, mas
aberto, animais improvisam pasto e as muriçocas tempo todo para me locomover e já não me aí taco o vermelho intenso, pinto a unha no mesmo
se multiplicam. A resposta ao cenário de pobreza? apresentar no circo como antes. Mas faço a tom e pronto, arraso!”, gaba-se. No guarda-roupas
Batom, rouge, perfumes, espírito altivo e um humor locução e ainda curto muito a vida, namoro, brinco, de porta quebrada, modelitos de algodão e seda,
inoxidável. Maria de Lourdes Rocha Ribeiro, 40, bebo, danço, me atraco com os bofes... em todo com apliques de lantejoulas, supercoloridos,
maranhense de nascimento, mulata de cabeleira bairro tem um namoradinho. No mais, minha filha, atestam a vaidade comum às duas. Há ainda lugar
dourada, administra junto com Márcia, ou melhor, o quando morrer quero virar borboleta”, vibra o para o singelo. No aperto do quarto improvisado
franzino Wedson Costa de Assis, 48, o negócio de travesti, elegante em um vestido colado ao corpo. de Lourdes, sua coleção de ursinhos de pelúcia
fazer rir e chorar. Mãe de 12 filhos - “sendo que só seis vingaram” diz sobre a criança que ainda é. E que nem sonha
“Ela já tinha sido empregada do meu circo pano -, Lourdes sonha com o dia em que vai poder em parar de brincar. “No picadeiro, sou outra
de roda, que na época se chamava Cambalacho, comprar um trailler e dar mais condições de pessoa, um personagem, uma mulher linda.
por causa da novela. Mas minha mãe faleceu e trabalho para os 16 ar tistas mambembes Quando o espetáculo termina, tudo bem, sou uma
acabou. Nove anos depois é Márcia quem arma arranchados ali, trupe de abnegados que faz simples dona-de-casa. Mas lhe digo: não tem coisa
um circo na minha rua e me arrasta de volta pro malabarismos, mexe com fogo, ri do precário, mas melhor do que o aplauso do público e aquela
picadeiro. Lá que eu conheci o homem que mais dorme e acorda sem saber se o circo vai garantir alegria contagiante do circo”, acredita.
amo nessa vida. E ainda hoje nós estamos juntos. o pão. “Nós estamos praticamente sem material

on nonon ononnnono
onon
ononnnonoonon
ononnnono

F ROL DEZEMBRO
V

32
O MUNDO que o World Circo carrega no nome cabe sob
uma lona. Isaac Brito Silva, 58, o dono e patriarca de uma
típica família circense, descobriu isso ainda na barriga da mãe.
“Nasci debaixo de uma tenda, meu pai foi dono de circo. Me
tornei equilibrista e hoje, além de mim, tem a mulher e cinco
filhos diretamente envolvidos com a arte circense, fora os

E
genros e agregados”, contabiliza. Depois de rodar o Brasil
inteiro integrando as trupes de circos renomados como Bartolo,

I D E
Mônaco, Di Napoli, Le Cirque e outros, os Brito inauguraram o
próprio circo em plena passagem do ano de 2002 para 2003.

M A
“Meu pai vendeu a casa que tínhamos em Fortaleza e

Â
compramos a lona. Nosso número de maior sucesso passou a

IP R A NEA N
ser justamente a Pirâmide Humana, justamente com ele e minha
mãe na base, sustentando eu, meu irmão e minhas duas irmãs
nos ombros. É o ponto alto do nosso espetáculo porque qualquer

M Í
descuido pode ser fatal. Quanto mais quietinho, melhor a exibição.

U U
Treinamos muito, ensaiamos tudo dentro de casa”, conta Isaac

H NG
Jr., 20, que hoje acumula as funções de paradista, locutor e mestre
de cena. A pouca idade não impediu que o filho do dono
acompanhasse a lenta evolução do circo ao longo das décadas.

SA
“Antigamente a lona de circo era de tecido de algodão e não
tinha cobertura, era só o pano de roda. Por isso, na brincadeira, a
gente chamava de Circo Tomara que Não Chova”, recorda.
Isaac e o irmão Jocélio, 19, são os únicos da família Brito que
optaram por morar no circo, o mais novo já com esposa e filho
recém-nascido em um dos quatro traillers. Os pais mudaram-se
para uma casa no Mondubim, levando junto a caçula Monique,
14. Casada com um cabeleireiro, Edislândia, a irmã do meio, só
chega na hora das apresentações, à noite. Já Elizângela, a mais
velha, aceitou o convite do Beto Carrero World para viajar o Brasil
e o mundo, integrando a festejada trupe junto com o marido. Para
funcionar plenamente, hoje o World Circo congrega em torno de
si cerca de 20 pessoas, entre elenco fixo e biscateiros temporários.
Gente que, via de regra, faz “gato” para garantir energia, come o
que for preparado na cozinha coletiva, e se oferece para pagar a
conta de água de alguma residência próxima a fim de garantir o
abastecimento durante aquela temporada.
Para manter tantas bocas, haja malabarismo. “Aqui é sangue
no olho mesmo. Cada dia inventamos uma atração para atrair
público, além das tradicionais. Temos o Táxi Maluco e a Família
Trapo, veja ali (aponta para a carcaça de um Fiat toda pintada), o
concurso de forró, o cachorrinho adestrado Pingo, o Mister M
cômico, Sarah, a Mulher Vulcão que tem a pele de gelo e a mulher
que é degolada viva... esse número meu pai faz com a minha
mãe, uma mágica que não deixa de ser uma prova de amor e
confiança dela para ele”, ri-se. Para ter chance de casa cheia, o
circo ainda compete com a televisão. Não à toa, virou convenção
entre os mambembes iniciar o espetáculo pontualmente às
20h30min. No Jardim Castelão não foi diferente. “Nem adianta
começar antes de terminar a novela”, frisa Isaac Jr.
Isaac pai sabe que a história já foi bem diferente. “Antes da
TV, o teatro era dentro do circo. A gente apresentava peças como
A Escrava Isaura, O Céu uniu dois corações, O Cangaceiro... No
meu tempo de solteiro fiz Alibabá e os 40 Ladrões, Branca de
Neve e até A Paixão de Cristo dentro do circo. Era sucesso
absoluto de público, concorridíssimo. E olhe que a propaganda
era feita de perna-de-pau pelas ruas, a meninada correndo
atrás...”, recupera. Agarrado às lembranças, o veterano anuncia
o desejo de “pendurar as chuteiras” e “passar o bastão”.
Os filhos persistem. “Queremos continuar a ser artistas de
circo e nos profissionalizar. Com essa estrutura, ainda não
podemos nos apresentar na Aldeota, mas espetáculo e figurino
pra isso nós temos. Minha mãe é a costureira oficial. Já costurou Isaac Jr. e o irmão
para grandes circos até da Argentina. No dia em que tivermos Jocélio, a terceira
apoio, Fortaleza vai assistir ao maior espetáculo circense que geração da família
já passou por aqui”, promete Jocélio, enquanto remenda com Brito, mambembe por
cola PVC a lona já gasta pelo tempo que foi comprada semi- excelência
nova, em Brasília, há dois anos, quando servia a cultos religiosos.

DEZEMBRO F ROL
V

33
PALHAÇOS Quando a Indesejada chegar, Pimenta já terá
sucessor de mesmo sangue: o neto Wanderson Lúcio
Freitas Brasil, o Baratinha. Aos 8 anos de idade, ele é
o palhaço sensação do Mirtes Circo, que leva o nome

PARA SEMPRE
da avó nascida em circo e falecida em 2002. Hoje é o
pai, Círio dos Santos Brasil, 33, quem arma e desarma
a lona de bairro em bairro na periferia de Fortaleza.
Um pai-coruja que acredita e investe no potencial do
filho. “Senti que era pra ele quando comecei a ver a
capacidade que tinha de decorar as piadas e contar
do seu jeito. Aí a avó batizou, em homenagem até ao
A SIMPLES aparição, em si, já é uma piada. passou a porteiro de cadeira, ensaiou de padrasto do Tiririca, que era Barata. Tá com quatro
Ao som de “quem é o gostosão daqui? Sou eu, madrugada até ter a chance como trapezista e, no anos que ele é palhaço e agora os donos de outros
sou eu, sou eu”, a barriga entra em cena dia em que o palhaço faltou ao trabalho, não fez circos vêm contratar o show dele aqui”, comemora.
primeiro, saliente toda, depois ele, de corpo feio, para surpresa do dono do circo. Baratinha não quer parar por aí. “Quero fazer também
inteiro, desengonçado, pernas abertas, sorrisão “Ficou Pimenta porque eu comia muita parada, bola, trapézio, tiro, tudo. Mas já tô famoso”,
de orelha a orelha sem um dente na boca, nariz pimenta. Ainda fui até os 35 anos como avisa, cheio de si.
e cara de palhaço, ultracolorido. Metido em um trapezista, mas o povo queria mais era o palhaço. Para justificar a fama, faz questão de contar uma
macacão frouxo com suspensórios, José de É uma arte que ninguém ensina, sabe? Aprendi piada. O pai pergunta: qual a diferença entre o circo
Abreu Brasil, o palhaço Pimenta, é festa para vendo os palhaços antigos: Manhoso, Dengoso, e o vestido da mulher? Ao que o filho responde,
os olhos e, sem dúvida, o mais aplaudido artista Tatuzim, Fumaça, Bicolino... Segredo de palhaço serelepe, vozinha fina e ligeira: “O circo cobre uma
no picadeiro do Circo do Motoka. Aos 62 anos, é ser feliz, não guardar rancor, ter a consciência população inteira. O vestido da mulher só cobre
com 50 de palhaçada nas costas, sabe do seu limpa pra trabalhar sem preocupação. Agora, na uma leiteira, uma padaria e um parque de diversão”.
valor. “O palhaço é o que tem de mais importante velhice, vem a experiência, aí fica mais fácil fazer Como essa, Baratinha tem umas 50 no repertório.
no circo, é a alma do negócio. Por isso a gente o povo rir”, diz. O palhaço que morou de circo Mas também se dá bem de improviso. “Uma vez
ganha mais do que os outros. Se o circo não em circo ao longo de 30 anos, viajando o Brasil ele me esculhambou em cena, o povo morria de rir
tiver um bom palhaço, pode fechar as portas inteiro, precisou dar uma rasteira no alcoolismo e eu não sabia o que dizer”, conta o pai, divertindo-
que não tem ginástica que dê jeito”, gaba-se. para não perder o posto de um dos mais se. O figurino também é ele quem compõe. Além
O início foi dureza. “Nasci em Jaguaribe, minha engraçados do Ceará. “Passei oito anos fora de da peruca descabelada, absolutamente
mãe me deixou em frente ao alpendre de uma circo por causa da bebida, fui vender pirulito, indispensáveis são as meias com furos nos
casa e quem me criou é da família do Dedé Brasil, marmita na praia, tudo pra fugir daquele dedinhos dos pés com estampa d’os Rebeldes.
Mário Braga Brasil. Mas acabei fugindo de casa, ambiente, que era propício, na época. Mas tá com No Circo Mirtes, são sete vivendo em um
vim pra Fortaleza e passei a morar e trabalhar três anos que não boto cachaça na boca. E quero mesmo trailler. Com cinco filhos para sustentar, o
numa vacaria no Pici. Quando ia deixar leite num morrer no picadeiro. Bufo! O coração parou, casal Cirio, 33 e Ana Lúcia, 26, brincam com as
burro pela Costa e Silva vi aquele circo. Era circo pronto, pode me enterrar ali mesmo com a cara dificuldades: “pelo menos não precisamos
Iara. Parei na frente pra perguntar o que era. Me pintada e roupa de palhaço”, garante. contratar artistas de fora no futuro. Temos o elenco
disseram. E de noite fui ver.Vinte mil réis a entrada.
De cara, gostei dos palhaços. E vim a segunda
noite e a terceira e a quarta. Quando o circo
desarmou botei minhas coisas dentro de um saco
e fui embora com ele”, descreve. Até chegar ao
topo, o novato suou. Trabalhou de “peão”,
ajudando a montar, limpar e desarmar o circo,

F ROL
borracha pra panela de pressã de
DEZEMBRO
V

34
Avô e neto: a
mesma vocação
natural para fazer rir.
Pimenta é o ídolo de
Baratinha

sentup pra fogão a gás >>>


DEZEMBRO F ROL
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35
TI IRIC
R A
F ROL DEZEMBRO
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36
TEXTO > RICARDO KELMER arame, salto. Aí a gente foi pra Fortaleza. Tinha
um circo lá, no bairro João 23, que um dia faltou o
O PALHAÇO, essa figura arquetípica. Meio palhaço oficial. No circo mambembe o palhaço é
louco, meio sábio, ele acompanha a humanidade o âncora, é quem segura o circo. O dono, João
desde velhos tempos, como se pra lembrá-la que Duarte, falou que ia pintar minha cara, me ensinou
é preciso rir da vida, sempre. O palhaço animou umas piadinhas e eu entrei e... arranquei riso da
feiras nas aldeias onde os viajantes se galera. Com oito anos. Achei isso legal. Mas aí o
encontravam pra fazer comércio. Entreteve e palhaço oficial voltou e eu fiquei só fazendo
zombou de reis e rainhas em seus palácios trapézio, salto, malabares, essas coisas... De tudo
suntuosos. Durante séculos cativou gerações e do circo mambembe eu sei um pouco. Aí, quando
gerações nos antigos circos que visitavam as eu tinha quinze anos, eu pensei: rapaz, esse
cidades e faziam as crianças, possuídas de negócio de palhaço é legal, não se arrisca muito,
alegria, correrem pela rua atrás do sujeito eu vou pintar a cara de novo. Aí, num cirquinho de
descabelado, de roupas e trejeitos estranhos, o pano de roda, que no Ceará ainda tem muito,
rosto pintado como quem não está nem aí pra aconteceu a mesma coisa, o palhaço faltou. Aí eu
seriedade do mundo. pintei a cara de novo. Pimenta era o nome do
Hoje, na era dos jogos eletrônicos, o palhaço semana a São Paulo pra gravar o programa de palhaço oficial, o melhor do Ceará, ele ainda
ainda resiste. E se esforça em acompanhar o ritmo tevê. Foi no meio desses compromissos que trabalha, é muito bom. Aí fiquei uma semana nesse
do mundo pra poder continuar lembrando à encontramos uma brechinha e eles me receberam, circo lá no Serviluz, palhaço Tiririca, que esse
humanidade do que ela não pode esquecer. É o muito bem, por sinal, no hotel onde a Record os apelido foi minha mãe quem botou, porque eu fui
que faz Francisco Everardo Oliveira Silva, um hospeda, na avenida Paulista, o centro financeiro criado pelo meu padrasto e ele não gostava muito
cearense nascido em Itapipoca em 1965. Com o da cidade de São Paulo. de mim... Eu era menino chato, nojento, sabe, não
nome artístico de Tiririca, posto pela mãe por A entrevista rolou fácil, Everardo é um bichim tive infância, só trabalho, e meu padrasto pegou a
conta de seu gênio forte, ele soube manter viva faladorzim que é danado. E fala rápido, mistura mamãe já com dois filhos, naquela época era
em sua vida a antiga missão do palhaço. os assuntos, vai e volta - é o jeito dele de contar complicado pegar mulher com filho. Aí eu fazia
Vindo dos cirquinhos do interior do Ceará, o história, amolecado, quase infantil, jeito que umas músicas, eu sou compositor, fazia paródia,
palhaço Tiririca correu pros circos maiores da espero não ter se perdido no texto escrito. Percebi era legal, e isso foi repercutindo nos circos
capital, segurando a calça frouxa pra ela não cair. que valoriza bastante sua trajetória de dificuldades mambembes e eu e o Pimenta fazia disputa pra
Depois tropeçou na casca de banana e foi parar e que tudo o que passou é uma espécie de bússola ver quem atraía mais público, era pau a pau,
nos Shopping Centers da Aldeota. Depois fez uma em sua vida. Percebi que a mãe tem muita Tiririca e Pimenta. Teve até uma vez, saiu no jornal,
pirueta e, puff, homenageou com uma música uma importância em tudo isso. E percebi também que Tiririca, o melhor palhaço de subúrbio de
antiga namorada de nome Florentina e virou a sagrada missão do palhaço prossegue firme Fortaleza. Ave Maria, pra mim foi uma coisa
sucesso nas rádios. Aí deu uma cambalhota e caiu nele, olha que coisa boa. fantástica, eu tinha 18 anos.
dentro da televisão. Hoje o picadeiro do Tiririca E coisa boa também foi isso: reencontrar um
fica na sala, quem diria – na sala da casa das conterrâneo que tão bem encarna a simplicidade FAROL - Começo da década de 80...
pessoas de todo o Brasil. Atualmente ele é e a gaiatice, essa coisa moleque que tanto faz TIRIRICA - É. Aí depois eu montei um circo pra
contratado da Rede Record e, junto com outros falta na vida do cearense que larga a terrinha e mim, viajei pro Maranhão, nisso eu já tava casado,
comediantes como Shaolin, da Paraíba, e Pedro vai se aventurar, ou se perder, nas paulicéias da com a minha ex, e lá aconteceu uma tragédia, o
Massan, do Rio de Janeiro, integra o programa vida. Everardo deixou a terrinha, foi fazer marmota macaco mordeu uma criança e aí tocaram fogo no
de Tom Cavalcante, exibido aos sábados e no imenso circo sem lona do mundão sem fim, foi. circo, a galera revoltada. Aí nós voltamos, eu, a
reprisado às terças. Mas a terrinha parece que não vai deixá-lo nunca. mulher e minha filha de três anos, de carona. Aí
A trajetória não foi nada fácil. Além de enfrentar Ô coisa boa. quando eu cheguei no Jockey Club, um amigo meu,
pobreza e preconceito, Everardo ainda teve de Jorginho, me viu jogado numa esquina. Aí eu contei
vencer uma desgastante luta judicial: por conta FAROL - Como foi a sua infância? E quando você a história pra ele: bicho, eu perdi tudo, tô sem nada.
dos versos de uma música de seu primeiro CD, descobriu a vocação pro humor? Aí ele falou com a mulher dele, a Margarida:
em 1996 ele foi acusado de racismo. Seus CDs TIRIRICA - Minha infância foi muito sofrida. Eu Margarida, o Everardo tá aqui, corre atrás de uma
foram apreendidos. Mais dificuldades, depressão. sou artista circense, de família tradicional do circo. casa pra ele aí, faz uma feira. O cara foi assim
Mas foi absolvido. Hoje ele mora na cidade do Rio Praticamente não tive infância, aos oito anos tive fantástico, ele morreu já, mas a Margarida ainda
de Janeiro com a esposa Nana e três filhos de de trabalhar pra ajudar a sustentar minha mãe, existe. Aí a Margarida fez isso, pegou a gente no
outra relação. A caçula tem o nome de seu maior em Itapipoca. Ela tocava fole no circo e eu comecei meio da rua, alugou uma casinha lá, colocou a gente
sucesso: Florentina Evellyn. O casal vai toda a aprender esse negócio de trapézio, andar no dentro, emprestou um fogãozinho, fez uma feira de

DE CARA LIMPA DEZEMBRO F ROL


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37
um mês pra gente. Aí eu fiquei nesse bairro, e como
eu já tinha nome lá, já tinha passado com o circo, eu
fui na galera lá e consegui uma quadra de futebol
pra fazer um show. Aí pintei a cara e comecei a
divulgar no bairro, com os meninos correndo atrás:
hoje tem espetáculo, tem, sim senhor, oí, gente, eu
tô voltando, quero montar um circo com a ajuda de
vocês e pá e pá. Aí a quadra encheu, bicho, eu fiquei
uma semana fazendo show nessa quadra, não tinha
microfone, não tinha som, era na boca mesmo. Show
de palhaço, eu sozinho. Aí neguim trazia madeira,
pano, pra eu poder montar o circo. Aí um mágico
por nome Shabu, ele me viu e disse: caramba, bicho,
no Shopping Aldeota tá precisando de palhaço pra
fazer animação de festa infantil e tal e tudo, posso te
indicar? Pô, chegou na hora certa, eu tô
desempregado. Aí eu já tava com meus vinte e
pouco. Aí eu fui fazer. O cara gostou, só que ele
disse que era muito palhaço, muito circo, você com era um milhão de cruzeiros, se não me engano. Não,
a cara pintada, o que tá rolando aqui é humor. O bicho, que é isso? Não, é uma ajuda que eu tô te
Tom já tinha vindo pra cá, a nível nacional, já tava dando, é de coração. Nós ficamos amigos ali, sabe?
estourado na Escolinha do Professor Raimundo. Aí ele me deu o cheque. Aí eu digo: não, não quero
não, e já recebendo. Não quero não e já pegando,
FAROL - Então já estamos nos anos 90. O obrigado, bicho, que Deus te abençoe...
Shopping Aldeota ainda não tinha feito a expansão
praquele prédio grande... FAROL - Ah, ah, ah! Se você não pegasse, eu
TIRIRICA - Não. Era ali naquelas lojinhas, tudo pegava.
térreo, tinha um palquinho. Aí o cara lá falou: nesse TIRIRICA - Peguei. Aí o cara da choperia lá disse:
palco aqui já passou o Tom, já passou Rossicléa, já rapaz, eu troco o cheque pra você. Porque eu...
passou Paulo Diógenes, Ciro Santos, Lailtinho cheque, cara?, eu não tinha conta, nem nada. Aí
Brega, o que pega aqui é humor. Aí eu digo: o que é me deu em dinheiro. E pra mim pegar ônibus,
humor? Eu não sabia o que era humor. E ele: é sem bicho, altas horas da noite, com esse dinheiro? Tu
a pintura, essa roupa de palhaço, você topa? Aí eu é doido! E o medo, bicho? Porque era muita grana,
disse: topo, bicho. Aí eu tirei a pintura, fui mudando era miúdo, trocado, mil reais. Aí a gente ficou se
a roupa, o nariz de palhaço, só deixei a peruquinha falando por telefone, ele na Escolinha,
loira e o chapeuzinho. Aí fiquei fazendo o mesmo estouradaço. Aí pronto, começou a abrir as outras
show que fazia no circo, só que de cara limpa, isso casas pra mim. E eu foi que inaugurei a Shopping
pra mim era novo. Mas aí, quando você tá chegando, Pizza com show de humor. Aí foi legal, eu já tinha
é difícil da galera te aceitar. Então lotava mas foi as casas certas pra fazer, barraca de praia,
nove meses pra eu poder conquistar o público. No barraca Olodum na época, aí a coisa começou a
quinto mês era que a galera ia achando graça. Aí andar. Aí quando ele ia a Fortaleza, me ligava pra
passei a fazer terça, quinta e sábado. Porque tava ver meu show. Aí nós ficamos amigos. Mas só que
dando lotação. Mas só que ninguém não ria, bicho, a amizade dele pra mim já era tudo, nunca cheguei
acho que preconceito, eu tá vindo da periferia, e com pra ele pra dizer assim: bicho, me dá uma força
o lance lá da Aldeota, tá entendendo? A galera não aí, me coloca lá. Pô, ele ligava pra mim, botava
aceitava. Então chegava o Paulo Diógenes, podia pra mim falar com os amigos dele e tal, fala aquela
falar qualquer coisa e a galera: rá, rá, rá!!! Chegava voz que tu fala e tal. Daí eu já tinha mandado
a Rossicléa: rá, rá, rá!!! E se eu chegasse, podia trabalho meu como comediante pras emissoras,
falar a mesma coisa e a galera não aceitava. Aí eu pras rádios, pra tudo e nada. Aí o Lailtinho Brega
fui quebrando, brincando... Um levantava pra ir pro falou: rapaz, o que dá certo é CD. Porque eu fazia
banheiro, aí eu falava: ei, vai ajudar. Aí, pumba, com fita cassete. Vai atrás de patrocínio. Aí eu fui nas
nove meses eu já tava o bam-bam-bam do Shopping barracas. Aí uma barraca, de nome Rebu, na Praia
Aldeota. Aí a galera começou a me assistir, esses do Futuro... a dona, a Vanda, falou com o esposo
grandes humoristas: rapaz, tem um cara aí, Tiririca, dela, o Dedé, na época, e disse assim: tudo bem,
um palhacinho... Aí eu já tava bem, né, andando de a gente banca mil CDs teus mas tu faz o
ônibus e tal, mas com um dinheirim. Aí o Tom tava lançamento na minha barraca. Tá feito. Pô, bicho,
com um espetáculo lá, no Centro de Convenções, mil CDs... Aí nós vendemos CD pra caramba.
aí ele soube e foi me assistir. Aí, caramba, o Tom me
assistindo! Aí eu reconheci ele na platéia, comecei FAROL - O CD da Florentina.
a tirar onda, brincar em cima dele e tal, pá, pá, e TIRIRICA - Da Florentina. Aí a
tudo, sabe? Porque a galera não me falou com medo Florentina, com esse CD, a pirataria foi
deu amarelar, né? Aí, nada, quando eu vi o cara foi trazendo, foi rodando pelo Brasil,
que eu me soltei mesmo e tal e tudo. Aí quando Florentina, Florentina, Florentina... Aí eu
terminou o show ele me chamou na mesa dele lá, e já tava bem pra caramba em Fortaleza,
aí, rapaz, como é que tá a situação? Bicho, tô indo já com minha casinha, meu carrinho
aí... E os cachês? É, tá dando pra... Aí ele me deu importado, meu celular... Era 95. Aí um
um cheque, na época, cara, era... era um milhão, a cara duma rádio pegou o CD e ficou
gente chamava um milhão, mil reais hoje... na época tocando na Bahia e em Pernambuco,

F ROL DEZEMBRO
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quarenta e duas cidades. Aí o Will Nogueira, da assim, pra que eles sejam pé-no-chão, sabe, com sério. Então depende de cada um, da tua criação.
rádio Verdes Mares, me ligou: bicho, manda o CD suas amizadezinhas, seus coleguinhas, sabendo Mas é possível sim.
que vai ser o maior sucesso aqui. Aí eu mandei e o quê que é, quanto vale isso, quanto custa essa
ele começou a tocar. Aí foi sucesso. Porque o meu coisa. O sucesso só sobe pra cabeça de burro. FAROL - Conta aí um caso engraçado que
sonho era fazer sucesso no Ceará. Mas aí eu já Sempre quando dá na minha agenda, eu vou fazer aconteceu na tua carreira.
tava fazendo sucesso no Nordeste todo, tinha circo. Falo com os caras e vou lá pro interior de TIRIRICA - Ah... teve muitos. Deixa eu ver... A
dezoito pessoas trabalhando comigo, tava Minas, Pernambuco... história dos dentes. As mães vieram reclamar,
viajando de avião, óia, já era uma empresa. Aí porque as crianças me imitam, né, mas aí elas
recebi prêmio da música mais tocada na rádio FAROL - Dizem que palhaço é ladrão de mulher. queriam ser banguela também, queriam ficar que
Band, de São Paulo. Aí um dia... Eu tava fazendo Mas mulher também pode roubar palhaço? nem eu, não pode, né? Era engraçado, o palhaço
show no Maranhão e o Arnaldo Sacomanni, TIRIRICA - Pode. Aconteceu comigo. Quando banguela, mas... Aí eu conversei com a Nana, a
produtor, mandou um cara atrás de mim, aí eu fui eu era mais jovem... aconteceu de uma moça me gente achou melhor botar os dentes, não podia
pra São Paulo e assinei com ele. Aí um mês depois induzir... praticamente ela me levou, sabe? Isso influenciar as crianças. Porque tem gente que quer
ele me levou pra Sony. Aí vim fazer o programa do foi no bairro Panamericano. Eu era de menor e ficar igualzinho mesmo, é uma coisa louca. Eu tenho
Gugu, já contratado da gravadora Sony Music. Aí ela de maior, ela tinha fugido comigo do circo. uns covers, Tiririca cover, que me imitam na roupa,
foi uma loucura, show pelo Brasil todo. Aí vim pra Naquela época era diferente... o circo tinha uma a peruca, tudo. Tem até os que tiraram os dentes
cá. Foi em 96. Mas todo artista tem seus altos e magia, sabe, o jovem queria aprender alguma da frente, acredita? Né não, Nana? É verdade. Tem
baixos, né, veio a separação, veio aquela história coisa de circo, as moças se encantavam pelo um que pintou o cabelo e deixou assim mesmo, da
do racismo, o processo, aquela polêmica toda, palhaço, queriam saber quem tava por trás cor do cabelo do Tiririca. Uma vez, no Gilberto
depressão... Mas graças a Deus fui absolvido, dei daquela pintura... Eu fui parar na delegacia, a mãe Barros, ele botou um cover meu lá... Bicho, era muito
a volta por cima. Estourar é fácil, difícil é conseguir dizendo que eu tinha levado ela, tava iludindo... O parecido! Me deu até uma coisa assim ruim, sabe...
manter. Aí passou a maré ruim e eu me mantive delegado deu foi um esporro na mãe: que é isso, eu me vendo ali na minha frente. O cara era bom
como comediante, como palhaço que eu sou. E minha senhora, esse menino é uma criança... mesmo, era igualzinho, perfeito.
tamos aí até hoje.

borracha pra panela de essã


de sentup pra foo a gás >>>
FAROL - Você acha que nesse mundo de internet FAROL - Tem algo que você não gosta nessa FAROL - O que você diria pra uma criança que
e diversões tecnológicas ainda tem espaço pro vida agitada que leva hoje? deseja ser palhaço de circo?
circo? TIRIRICA - Tem uma coisa... Eu fui atrás do TIRIRICA - Circo é bacana, é legal. Pô, se é
TIRIRICA - Cara, era pra ter mais espaço pro sucesso, né... mas... tem hora que incomoda. Tu o sonho dela, mete a cara mesmo e vai. Agora,
circo. Eu falo isso pra caramba no meu show. quer sair com tua família, pro shopping, pro não pode deixar de estudar, sem estudo você
Porque eu sou artista circense e sei o que os barzinho da esquina, pra jantar fora... Mas os fãs não chega em canto nenhum, não vai mesmo.
pequenos circos passam. Tá faltando mais te vêem toda vida como artista, querem te ver Principalmente hoje, a modernização, né, cara?
incentivo do governo, o circo não pode acabar, o sempre daquele jeito, cadê a peruquinha, conta Se tu tem um tempo, vai, mas não pode deixar
circo é fantástico, é a melhor escola que tem. O aquela piada e tal. É legal, é bacana, porque se a escola. Se tu tem um sonho, qualquer sonho,
circo é uma magia, coisa de criança. Dão espaço você não tem isso, você sente falta. Mas tem hora não precisa ser de palhaço não, tem que correr
pro Circo de Solieul. Circo de Solieul lá precisa que tu quer curtir com tua família e não dá. Tem atrás, batalhar mesmo, não pode é ficar parado.
de espaço! Pô, dá mais valor pra gente, mais uns mais atirados, que vêm na mesa, e se tu não Pode demorar um ano, dois, dez, mas vem.
espaço pro circo das periferias, circo do Nordeste. recebe, ah, esse bicho passava fome e hoje é
Hoje é uma burocracia muito grande, você tem mascarado, na televisão é uma coisa e ao vivo é FAROL - O Tiririca tem um grande sonho? Ou já
que pagar isso, pagar aquilo... Só quem tem outra... Eu sou um cara brincalhão, então eu levo realizou todos?
condições de pagar isso são os grandes circos. na brincadeira. Mas tem hora que você diz: pô, T I R I R I C A - Eu ainda tenho sonhos a
O nosso circo... é muito difícil... o terreno, puxar bicho, já tiramos foto, agora dá um tempo, já te conquistar. São vários... No meio desses
uma instalação, uma água... O Beto Carreiro tem dei autógrafo, já falei com tua família toda no vários... (longa pausa, pensando) é... o lance
condição de pagar mas o circo da dona Jocélia telefone... É, porque eles botam pra falar até com da minha mãe, cara. O sonho dela... era ser
não tem. Tem transporte, tem os artistas que você o cachorro da vizinha. cantora, sabe?... (olhos marejados) e... chegou
tem que manter... a gravar CD e tudo mas... não deu certo. O nome
FAROL - Hoje você é artista famoso de tevê. Dá dela é Maria Alice. Ela ainda é viva. Ela adora
FAROL - Você ainda mantém contato com o pro palhaço circular nesse mundo dos grandes cantar. Eu já falei até com minha esposa sobre
mundo simples das pessoas pobres? negócios sem perder a inocência? isso, eu gostaria de armar um lance assim,
TIRIRICA - Bicho, o que mudou na minha vida TIRIRICA - No meu caso dá, bicho, porque é gravar um CD pra ela... entendeu? Mas a coisa
foi só mesmo o reconhecimento. Mas eu sou o como eu te falo, eu não mudei nada. Tá aqui minha não é fácil. Sabe, as músicas que ela gosta de
Francisco Everardo Oliveira Silva, o Tiririca, da mulher de testemunha, eu sou mais palhaço fora cantar, fazer um show dela, convidar os
periferia, sabe, mambembe, daquele pano de da televisão de que na televisão. No meio dos amigos... Show da Maria Alice.
roda. Eu não levo minha vida cheio de frescura, meus amigos, em casa, eu sou mais moleque.
cheio de coisa não. Eu levo com o pé no chão. E Meu filho mais velho que me falou isso e realmente
os meus filhos, moram três filhos comigo, a de eu percebi. É tanto que minha esposa vem me RICARDO KELMER é escritor, letrista e roteirista
16, o de 11 e a de 9, então eu mantenho eles falar sobre um problema: pô, tu não leva nada a e mora em São Paulo, Terra, 3a pedra do Sol

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GALE RA
A E SUAS
CONEXOES “Nesse bairro, não conheço nenhuma
criança que nunca tenha tido contato com
computadores”, radicaliza Viviane, de 20
anos, que freqüenta uma das várias lan houses
do Jardim Iracema.

“Venho para ver e-mails, usar o Orkut,


falar no MSN... procuro as máquinas com
webcam”, esclarece Larissa, 14 anos, num dos
cyber cafés do Álvaro Weyne.

“Faço pesquisa no Google. Gosto do


YouTube. E copio em CD as fotos da
câmera digital”, diz Rogério, 19 anos, no bairro
vizinho, o Carlito Pamplona.

“Já gostei de Counter-Strike e Warcraft,


mas hoje prefiro Ragnarök. É mais
emocionante”, comenta Ivan, de 20 anos, que
mora no Cambeba mas joga no Montese.

“Meus interesses são: interagir com


amigos, ver e fazer comentários, ouvir
música, alimentar meu fotolog e usar o
Messenger”, enumera Alex, 17, freqüentador de
um cyber café nos limites da Aldeota com Praia
de Iracema.

Uma imensa rede invisível aproxima bairros


distantes e magnetiza vizinhos que se
desconhecem, espraiando-se pelas ruas da cidade,
atropelando diferenças sociais e escrevendo uma
difusa gramática de uso cotidiano. Mesmo sem
PlayStation, iPod ou PC próprio, a menina do Jardim
Iracema distingue bits, bytes, links e flogs,
interagindo com ajuda do Skype e seduzindo com
apoio de uma câmera, na direção da qual pisca os
olhos, confiante. A bússola de navegação desses
mares que seus pais sequer imaginam onde ficam,
custa apenas um real. A hora.

F ROL DEZEMBRO
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VOCÊ JÁ FOI NA
LAN DA ESQUINA?
É NAS LAN HOUSES e cyber cafés, certamente o triplo do que supõe o Sebrae, e não
existentes e efervescentes em todos os bairros pode ser especificado pela Junta Comercial do
da cidade, que se percebe mais claramente a Ceará. Três computadores conectados à Internet
energia tentacular da Web, essa “rede do tamanho num quartinho improvisado, com ou sem ventilador,
do mundo”, em sua tradução literal, que abriu mais uma máquina xerox (para alavancar os
canais ignorados, com vazão para novas formas ganhos), já definem a configuração de boa parte
de relações, interações e vivências. Embora o desses points de fofocas instantâneas, paqueras
caminho da inclusão digital ainda seja longo e cyberespaciais e jogos multiplayers.
acidentado, alguns atalhos passam pelas Foram assim os primeiros dias da Diginet, que
facilidades desses estabelecimentos, que pululam hoje tem 10 máquinas, quatro delas com webcam
em bairros de chips profundamente desiguais, e microfone, no Jardim Iracema. Também foi assim
com preços que acompanham o mapeamento que começou a Bilai Lan House, que há três anos
social da cidade. era uma das únicas casas do gênero no Bairro
Entre os mais jovens, em especial, há uma Ellery, hoje repleto de salas iguais. De três anos
peculiar fluidez de uso, natural interesse de acesso para cá, por sinal, a concorrência cresceu tanto
e total desassombro por aventuras virtuais. que já desanima empreendedores, como Jean
Sozinhos ou em bando, eles estão sempre lá, nas Batista, dono do pioneiro entre os cyber cafés do
salas muitas vezes escuras e apertadas de acesso Carlito Pamplona.
pago, principalmente os que não têm computador “Quando comecei, distribuí panfletos nos colégios
em casa, desejam mais rapidez na conexão, e em uma semana a casa lotou”, recorda. Hoje os
buscam privacidade para bate-papos, querem doze computadores de Jean continuam disputados,
ampliar o circuito de comunicação ou mas ele garante que já viu horizontes mais azuis.
desenvolveram o insaciável vício de jogar em rede. Digitação, impressão, xerox, cópia de CD/DVD e
Acessar programas de mensagens formatação de currículos são os extras apresentados
instantâneas, ler o correio eletrônico, baixar por vários cyber cafés que desejam melhorar o lucro,
músicas e vídeos, entrar num bate-papo virtual, já que “o acesso à Internet não rende tanto”.
criar comunidades orkutianas, alimentar blogs, As casas mudam de público e interesse conforme
flogs e fotologs, conhecer sites do mundo inteiro, a localização, mas em qualquer ponto atraem
usar simuladores de vôo para vencer batalhas da adolescentes e jovens adultos. No Centro, são os
Segunda Guerra Mundial, perseguir terroristas e comerciários que animam os cyber cafés, para onde
monstros sinistros com armamento bélico pesado, se dirigem na hora do almoço, a fim de acessar
e de quebra, fazer pesquisas escolares com o programas de mensagens, colorindo as salas com
auxílio do espantoso arquivo Google, são uniformes de lojas, farmácias, restaurantes e
peripécias que saem por R$ 1,00, no mínimo, e lanchonetes. A paisagem é bem diferente da que se
R$ 4,00, no máximo, durante uma hora, em vê nas lan houses de outros bairros, em que as
qualquer lan ou cyber café da cidade. fardas têm emblemas de colégios e os interesses
Em Fortaleza o número real dessas casas é se voltam para mais para os jogos em rede.

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onon ononnnono
ononnnono

membros. As aventuras, baseadas num mangá


coreano de mesmo nome, têm um toque de
mitologia nórdica e se passam em Rune-
Midgard, um reino com quatro feudos, cada
qual com cinco castelos.
“O Ragnarök não tem fim...você cria a sua
própria história. É como The Sims, em que o
jogador pode ter a sua casa, colecionar
chapéus, ficar rico, ter manias”, sintetiza o
estudante Ivan Arthus, 20 anos, que veio do

ADRENALINA
Cambeba para participar do campeonato,
Apesar da variedade de seduções virtuais, na organizado pela Level Up, empresa que tem
BC Net os clientes não encontram o polêmico os direitos de sete jogos, dentre os quais o

VIRTUAL:
Carmageddon, um game cujo sinistro objetivo Ragnarök e o City of Heroes.
inicial era atropelar pessoas e animais, numa As aventuras em Rune-Midgard podem ser
corrida maníaca em que o vencedor nem tinha vividas sem que se saia de casa, desde que o
que chegar primeiro, mas precisava matar gamer tenha um PC próprio e adquira
“Ragnarök é o jogo da liberdade”, diz Felipe, bastante. “Tirei das minhas máquinas. Recebo “créditos”, vendidos em forma de cartões. “Os
lançando as mãos para o espaço. Um espaço meninos de todas as idades”, diz Ronaldo, que pais vêm muito aqui para comprar. É bom,
pequeno, aliás. Estamos na BC Net, na agitada não permite alunos uniformizados na BC Net (“pois porque conhecem o ambiente e deixam de ter
Avenida Gomes de Matos, Montese, onde não sabemos os horários dos colégios, e não preconceito”, acredita Ronaldo. Preconceito,
Ronaldo Jr. e Brenda Camila começaram seu queremos confusão com os pais...”). convém deixar claro, nunca foi o problema de
negócio com cinco computadores, e hoje têm Hoje, num sábado sem aulas, muitos garotos Fabíola Gouveia, 41 anos, mãe do jogador
dez máquinas para esfuziantes partidas em estão aqui, na disputa de Ragnarök, aos berros de Felipe, de 17.
grupo. A casa atrai um público de 11 a 20 anos, “vamos levar esse campeonato!” Com alguma Ela não participa do campeonato, mas veio
que nesta manhã é predominantemente paciência e muito entusiasmo, eles resumem a acompanhar o filho, e costuma jogar em casa.
masculino. enormidade da sua paixão. O Ragnarök é um No Ragnarök, Fabíola é uma sacerdotisa de
Aqui a galera busca principalmente jogos MMORPG, ou seja, um RPG on-line para múltiplos nível base 86 (o número corresponde ao
como Counter-Strike (ação), Need for Speed jogadores, com gráficos em 3D e balões para a estágio de evolução alcançado pelo
(corrida), Warcraft (estratégia) e Ragnarök fala dos personagens. Nele, você pode interagir com personagem). Aliás, no cyberespaço de Rune-
(RPG). Como em qualquer lan house, o bom milhares de aliados (ou oponentes) em tempo real, Midgard, toda a família vai bem: Felipe é um
mesmo é entrar em partidas com a participação escolhendo uma profissão, conquistando zenys (a ferreiro de nível base 96. Seu irmão Valmir, de
simultânea de vários jogadores, que formam moeda local) e desenvolvendo habilidades. 14 anos, é um arquimago 76, e a caçula
grupos furiosos para enfrentar desafios Os personagens enfrentam monstros como os Fernanda, de 10 anos, é uma cavaleira 96.
coletivos; prodígio impossível nos antigos gelatinosos porings; conversam e interagem entre “Muita mãe critica, porque não conhece, mas
videogames, que embalaram outras gerações si, através de mensagens escritas na tela; e podem isso é bobagem! Meu filho acabou de passar
em tantas aventuras. Quanto maior a afinação se organizar em grupos de poucos jogadores ou no vestibular. Os outros vão bem na escola. Eu
na turma, menores as chances de sair do jogo. em clãs como o Horizon, com mais de 100 dou a eles acesso ilimitado. Podem usar o

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FULANO DA
LOJA TAL
Lara da Insinuante. Francisco da Rabelo.
Fátima da Zenir. Sônia das Lojas Maia. É assim
que Reinaldo Afonso, um ex-viciado em lan
houses e hoje sócio-proprietário da Cyber Trix
identifica os clientes, muitos deles assíduos.
“Temos um cadastro com 200 freqüentadores
fiéis”, computa o proprietário. Esses ganham um
agrado: a cada quatro horas de conexão, uma
hora de acesso gratuito. Porém, nada de jogos:
Reinaldo e o sócio Luiz Pedro não querem
barulho na salinha amarela.
Sim, aqui no Cyber Trix, vizinho ao Gig@net,
as paredes são amarelas, as divisórias brancas
e o café, de graça. A calma local é perturbada
pelos passos de uma garota da Esquisita, que
interrompe o bate-papo on-line para pegar um
copo de água gelada (também oferta da casa), Nnonnnono non onono onono onono onoonon
retornando célere para a sua máquina com
webcam e microfone. Ela molha os lábios e sorri
para a câmera, mandando róseos beijos etéreos
pela rede mundial de computadores.

ATIRE
Quem entra ali, olhando em volta, tem nove
chances em dez de encontrar a morena Ana Rio, a ação se passa numa favela carioca, onde
Kelly, 22 anos, moradora do Mondubim e o jogador escuta até um sambinha de Bezerra

EM QUEM
comerciária numa loja de acessórios para da Silva e se depara com um outdoor das
bolsas, em algum ponto da Rua São Paulo, de organizações Tabajara.
onde escapa quase diariamente, entre o meio- Como muitos craques, Paulo gosta também

PUDER E
dia e as duas da tarde, para matar a fome de de Warcraft, outro hype entre os games, que
contatos cibernéticos. A moça gosta da une povos de várias raças, cavaleiros, monstros
organização e privacidade da casa, onde os e dragões em mapas diferentes. Ele já participou
clientes ficam de costas para as paredes, e de cinco campeonatos. Dois de Warcraft, na BC
todos são orientados a circular pela frente dos Ragnarök não é o forte do estudante Paulo Net, e outros três de CS. Numa dessas ocasiões,
computadores, nunca por trás. Silvestre, 17 anos, um alucinado por jogos de formou um time de três e saiu vice. Nascido e
São detalhes que fazem a diferença. Afinal, tiro, nos quais a perícia do jogador é criado no Montese, o jogador trabalha cinco
“cyber café e lan house, hoje em dia, é que nem proporcional aos barris de sangue que horas por dia no ambiente rumoroso que mais
cabeleireiro: tem em todo lugar”, diz Reinaldo, esguicham na tela. Paulo é um integrante o atrai. Uma lan house.
que mora longe do trabalho, na Serrinha, um habilidoso da legião de aficionados por Counter- O bico, mesmo ficando na Vila União, é um
bairro em que o preço médio da hora de Strike, ou simplesmente CS, um MOD (ou expediente prático para o gamer que desde os
conexão dificilmente ultrapassa R$ 1,50. “No modificação) do game Half-Life, que faz sucesso 12 anos enfrenta virtualmente as emboscadas
Centro as despesas são outras. Um cara que há anos. mais traiçoeiras e as piores guerras do milênio.
cobrava R$ 1,50, aqui perto da galeria Pedro No CS o jogador pode ser terrorista ou contra- “Como trabalho numa lan, consigo jogar todo
Jorge, fechou em três meses”, assegura terrorista, escolher armas de acordo com seu dia, uma hora por dia, no mínimo”, diz ele, que
Reinaldo, comunicando à Luciana das Lojas time e defender objetivos, como salvar reféns e aos domingos, quase sempre, troca a luz da
Marisa que ela ainda tem 13 minutos para desarmar bombas. É um jogo de ação e Praia do Futuro pela penumbra da BC Net, a
gastar. A jovem de olhos oblíquos sorri, estratégia em “primeira pessoa”, no qual se vê o lan mais próxima da sua casa. Nesses domingos
bochechas iluminadas pela tela, e mergulha cenário sob a perspectiva do personagem, o que sem sol, Paulo trucida inimigos com lançadores
novamente nas inumeráveis seduções da Web. torna as batalhas mais emocionantes. No CS de mísseis e outras armas inteligentes.

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UMA GALERIA
DE MUITOS
ACESSOS
Com suas paredes e divisórias
melancolicamente azuis, como um
aquário artificial de peixes-elétricos,
todos imersos em megabytes, o
Gig@net é um dos cyber cafés da
efervescente Galeria Pedro Jorge,
point democrático de vendas e
serviços, que costuma arrastar as mais
var iadas tr ibos para o coração
pulsante da Rua Senador Pompeu,
centrão de Fortaleza.
Hora após hora e pelo dia adentro, no

O CENTRO É exatamente esse o intervalo que Bruna


Rocha, de 20 anos, tem para o almoço, ocasião
borbulhante aquário azul, o toc toc toc
das teclas embala monitores iluminados,
tornando a clientela indiferente ao

NERVOSO DOS
em que checa suas mensagens virtuais, numa
salinha de 10 metros quadrados, onde se zunzunzum que vem lá debaixo, numa
apertam quatro computadores velozes, todos fuga livre pelo vão da galeria. Uma

CYBER CAFÉS
com webcam. Ela trabalha no setor de crediário espécie de estremecimento abafado
da Loja Otoch e freqüenta o WebFortal.com, que sobe as paredes do segundo andar, onde
é o cyber café mais próximo do seu trabalho. estamos. É na hora do almoço que
No teclado ao lado, o jovem Allan Kardek, Valdenizia da Silva Oliveira, 21, aparece
No desassossego do Centro da cidade, de 21 anos, manda recados pelo Orkut. Morador para passar e-mails, dar uma “volta” pelo
algumas ilhas de silêncio concentram lojistas, do Bairro Ellery, Alan trabalha na Aldeota (“sou MSN e conferir scraps.
comerciantes, passantes e avulsos de todos os faz-tudo numa lanchonete”) e vem diariamente Ela trabalha no setor de crediário das
bairros, que reservam as horas de folga para para a Rua Major Facundo, onde fica a Casas Pio e, às vezes, vem com amigas
palestrar virtualmente, além de assistir vídeos WebFortal.com. “Uso pouco as lan houses do de idades aproximadas, todas da
e ouvir música. Estamos nas adjacências da meu bairro, porque gosto do sistema fracionado mesma loja de calçados. Nesses dias,
Praça do Ferreira, área em que os cybers cafés, daqui”, justifica. O “sistema fracionado” é assim: o uniforme verde-escuro das moças
e não as lan houses, atraem os que trabalham caso o cliente não possa usar a hora pela qual contrasta com o cobalto das paredes
o dia inteiro. pagou, fica com crédito para os dias seguintes. circundantes. No domingo, via de regra,
Aqui o preço médio da hora de acesso é R$ Para muitas pessoas, a exemplo dos Valdenizia não vem. Prefere ir para a lan
2,00, e os campeões de audiência são o funcionários dos bancos circundantes, os cyber house do seu bairro, o Conjunto
Messenger, o Orkut, as salas de bate-papo e o cafés do Centro funcionam como um espaço Esperança. “Não tenho computador em
Google, numa configuração que se repete em todos para contatos de negócios extensivos, espécies casa. Vou numa lan ou cyber café pelo
os cyber cafés da cidade. Embora o movimento de “escritórios virtuais” improvisados, bem menos duas vezes na semana”, sorri a
tenha as suas oscilações, o horário de pico costuma distintos do ambiente às vezes escuro e quase comerciária, enquanto olha o relógio. A
ser entre o meio-dia e as duas da tarde. sempre barulhento das lan houses. hora do almoço acabou.

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PONTOS DE tem duas comunidades criadas para ela no Orkut
(“Adoramos a Vivi” e “A Vivi já furou comigo”).

CONVERGÊNCIA
Sua prima Carla Karine gosta dos mesmos
programas virtuais: bate-papo com amigos, ver e
enviar e-mails, baixar música, copiar fotos e
orkutar (no Orkut, enumera suas paixões: “meus
“Antigamente eu tinha medo; não sabia nem Cds, meus livros, amigos, família e minha lista de
digitar. Então fiz um curso de informática contatos”). Jogos, não. Quem gosta é Carlos, o
básica”, diz Natalina Santiago de Oliveira, 19 irmão de sete anos. Apesar de muitas meninas
anos, que hoje bate-ponto num cyber café do serem craques em games, especialmente os mais
seu bairro, o Jardim Iracema, duas ou três vezes “fofinhos”, como Mario Kart, Diddy e We Love
na semana. Sua mãe lava e passa roupa de Katamari, ou os “românticos”, como Final Fantasy
segunda a sábado, e gosta de saber que a filha VIII, essa é mesmo uma seara de domínio
está entre a tela e o teclado, “em segurança”. masculino.
O cyber café que Natalina freqüenta com as Vejam o caso de Kleber, 17 anos, freqüentador
amigas, todas do mesmo bairro e de igual faixa de uma lan house na Tenente Benévolo, Aldeota,
etária, ocupa dois cômodos de uma casa onde onde paga R$ 2,00 a hora. “Adoro games,
moram oito pessoas, pertinho da Igreja Universal principalmente os de tiro. Me atrai competir, matar
da Avenida Coronel Carvalho. O proprietário da sem matar mesmo, essa coisa da rivalidade”. Jogo
micro-empresa familiar (R$ 1,00 a hora), que hoje preferido? Counter-Strike, é obvio. Ao lado de
tem 10 máquinas e também faz currículos, Kleber estão Alef, Alex e Vitor. Os quatro tem
convites para eventos, duplicação de fotos e idades entre 16 e 17 anos, são companheiros de
xerox, pede para não ser identificado (“você baladas e usuários da Internet em diferentes
trabalha na Prefeitura?”). níveis. Alef, por exemplo, já foi mais “viciado”,
Natalina acha graça. Já vai longe o tempo Nnonnnono non onono onono onono onoonon inclusive em games . Par ticipou de vários
em que ela não dominava nem o Windows. “corujões”, as rodadas noturnas de jogos em rede,
Hoje, é uma tranqüila usuária do MSN, acha o comunidades no Orkut. A maior delas, com 900 que se estendem até o sol raiar. Nas férias, insone
Google útil e copia fotos em CD. Para não membros até o fechamento dessa edição, e infatigável, ia para a lan todos os dias.
enciumar o namorado, cometeu recente descreve o bairro como “um lugar tranqüilo de se “Agora estou mais interessado em contatos
“orkutcídio” (é melhor, né?). Costuma baixar morar, com os mesmos problemas de todas as reais. Cansei do ‘método’ virtual”, filosofa o ex-
vídeos e músicas (“gosto de tudo, menos de comunidades”. E arremata a auto-definição com dependente, com a sabedoria dos 17 anos e todo
brega”). Só rareou a vida cibernética por causa um remoque para marinheiros de outras plagas: o tédio da juventude. Mesmo tendo dois
do vestibular. A mãe deu duro no tanque para “para que viver no Morumbi se Iracema é meu computadores em casa, o teórico de classe média
que ela e a irmã tivessem curso e grande amor?”. ainda vai à lan com os amigos, e usa a Internet
conseqüência. Natalina, uma futura psicóloga Continuando, as meninas. Sônia Virgínia, a Vivi, especialmente para marcar encontros, alimentar
(“se Deus quiser”), vende produtos Avon para filha do dono de uma oficina mecânica no o fotolog, ver sites de coberturas de festas e, vá
ter um extra no fim do mês. Henrique Jorge, mexe em computadores desde lá, se distrair com um bom game, de vez em
Suas amigas, Elisângela, Sônia Virgínia e os 14 anos, fazendo trabalhos escolares na casa quando, que ninguém é de ferro.
Carla Karine, navegam pelas mesmas ondas. de uma amiga, que na época era a feliz Realidades sociais e bairros diferentes, as
Na rota, fofocas, pesquisas, novidades, proprietária do único PC das vizinhanças. “Hoje meninas do Jardim Iracema e os garotos da
segredinhos e a programação do final-de- está mais fácil. Quem não pode ter, vai numa lan.
semana. As que têm computador próprio Minha sobrinha de 11 anos tem MSN, acredita?”.
reclamam que “a Internet discada é muito lenta”. Vivi, que só troca o YouTube pelo vôlei de praia,
Elisângela, cujo pai mantém uma mercearia em
casa, prefere o cyber café. “Na Internet,
encontro todo mundo”, diz ela, que participa
de uma comunidade orkutiana do Jardim
Iracema.
Um parêntese. O Jardim Iracema tem muitas

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