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VISTARMADA

Guilherme Kujawski

"Meu nome é Vassão. Sou mendigo por opção, comissário,


almoxarife, e historiador oficial do chefe dos mendigos
escritores. Tenho a incumbência de seguir todos os
ensinamentos da gata Xabila e narrar os altos feitos, atos e
gestos do grão-mestre Raimundo. Tenho motivos para acreditar
que nem a minha própria morte pode impedir a conclusão dessa
história e espero, ao menos, concluí-la a tempo (ou a
contratempo) de ser impressa nos muros da Capital. Agradeço
especialmente ao açougueiro Wirmundo, por ter aberto seu
coração para comigo".

A título de comemoração, os dois brasiis reataram seus laços


afetivos e geográficos no primeiro Ano Geofísico, o novo
calendário criado em homenagem aos países signatários do
Tratado de Comércio Mundial – uma liga comercial inspirada na
Liga Hanseática dos antigos magraves alemães – que tinha
como função proteger o comércio de objetos de luxo entre os
três países mais ricos: Estados Unidos do Norte, o Novo Império
Frísio e o Reino Brasílico. Mas como os acordos comerciais
eram votados em bloco, garantindo sempre a vitória dos dois
blocos setentrionais, a circulação de quinquilharias de luxo
estava garantida apenas para as nações acima da linha do
equador.

Os governantes dos países dominantes não eram reconhecidos


por terem resolvido com uma equação de Gini os graves
problemas de distribuição da renda mundial, mas por terem
solucionado graves problemas de degradação ambiental do
planeta, principalmente na Nação do Congo e no Reino
Brasílico, os maiores poluentes e donos de uma frota de trilhões
de carros sem catalisadores. O Grupo dos Dois investiu muito
dinheiro na construção de estações orbitais de regeneração
aeróbia sobre vários paralelos da Terra. Na verdade, a poluição
não era o pior problema do Reino Brasílico, e sim empacar
quando as leis naturais mandavam correr de um enxame de
abelhas assassinas. As leis da natureza sempre foram rígidas:
para cada solução, surgem três novos problemas. Um dos
ditados mais famosos na época era: "Quando a História
consegue estancar a hemorragia, a Natureza passa a não talhar
mais o leite". Assim os dois brasiis receberam mais oxigênio,
mas não necessariamente mais saúde. Novas doenças surgiram
e outras tantas velhas entraram em reprise.

Infelizmente, o Grupo dos Dois soube tarde demais que a


correção de um excesso não deveria ser ditada pelo
reconhecimento de uma falta cometida, e sim pela tomada
premeditada da consciência.

A soberba do bloco dominante, potencializada pelo poderio


militar, sofreu uma grande derrota no XV Congresso da
Gramática Universal. Os oficiais lexicógrafos brasílicos, munidos
apenas com exemplos do vernáculo, conseguiram convencer os
lexicógrafos do Grupo dos Dois que a língua sagrada de Adão
era uma língua semelhante ao português brasílico. "Se Deus é
brasileiro, então Ele fala o português brasílico", era um dos
argumentos irrefutáveis dos advogados gramaticais. Como o
português corrente era formado, maioritariamente, por nomes e
pronomes indígenas, uma das línguas do tronco Macro-Jê foi
eleita, naquele mesmo congresso, a língua primogênita da
humanidade. Os lingüistas do Reino Brasílico chegaram ao
cúmulo de testar e provar que, se uma criança fosse criada
longe da sociedade, sem a possibilidade de aprender uma língua
natural, ela passaria a falar, quando a idade permitisse e graças
a uma disposição inata, uma língua muito semelhante ao Quiriri,
extinta há séculos atrás.
Foi assim que o português brasílico se tornou, para o deleite do
Partido, a língua franca do mundo. Mas apesar do êxitos
triunfantes no exterior, as boas intenções do governo brasílico no
interior não chegavam a complementar uma ação qualquer. Por
exemplo: a união temporária dos separatistas, firmada através
de um pacto legalista entre os dois brasiis, foi politicamente
inescusável, pois o Partido havia conseguido a façanha de
erradicar a miséria com um infalível plano qüinqüenal de direita.
Mas no plano moral, o governo brasílico não havia conseguido
diferenciar os crimes legais dos ilegais.

A política pura do Partido era exercida na grande Capital,


referida sempre como a Cidade do Sol, ou como queriam seus
governantes, a Cidade da Vitória. Mas Cidade do Sol era uma
atribuição mais justa, pois os cartões postais mais famosos eram
os que estampavam fotos de jovens gazeteiros expondo crânios
tonsurados ao sol do meio-dia. Após o meio-dia, a maioria da
população da cidade se deitava nos bancos de pedra
espalhados ao redor da Praça do Relógio como jacarés
(algumas fotos mostravam o LED de temperatura do relógio
indicando cinqüenta e um graus Celsius). O calor escaldante
aumentava a circulação dos vasos sangüíneos, o ritmo dos
pensamentos nulos e fazia as pessoas esquecerem que a vida é
uma luta constante contra a força g. Mas se fosse possível reunir
todos os frutos daquela engenharia reversa mental num sumário
da Sociedade Neurológica, não haveria material suficiente para
editar um pequeno Livro de Instrução da Vida Diária.

A alienação política da maioria dos cidadãos brasileiros tinha


uma explicação: os três poderes consagrados, assim como os
dois grandes blocos territoriais, haviam se divorciado em razão
da cisma entre os tespianos da representação legislativa e uma
parcela de incomodados com a ausência do Estado de Direito no
Estado de Bem-Estar Total. E reclamavam com direito, pois os
tespianos da representação jurídica também defendiam que
todos não são iguais perante a lei, pois a lei importa a uns e não
a outros (o que era muito mais ousado que afirmar que "todos
são iguais, mais uns são mais iguais do que os outros").
Portanto, era praticamente impossível a letra da lei agradar a
uma das partes contrárias, mesmo que a disputa em questão
não estivesse sendo travada entre a pessoa física de um grego e
a pessoa física de um troiano. A vida social, cívica e política dos
dois brasiis havia se especializado em aprimorar técnicas de
imobilidade e isolamento social.

Os historiadores também buscavam explicações para o atual


estado de coisas. Segundo fontes confiáveis, a divisão da pátria
inzoneira ocorreu em algum ponto após a queda da Décima
República, no momento em que o corpo social parecia um vulto
magro com a coluna vertebral fraturada, cujo castigo divino era
ficar correndo eternamente atrás de uma formação de aves
migradoras perdidas. A história ensinou que grandes mudanças
políticas sempre implicaram em grandes mudanças da
inteligência moral. Esta tese podia se materializar no riso de um
cidadão avulso da Capital, um riso que, por sua qualidade
nervosa, não era mais livremente associado a uma provável
estabilidade financeira, ou a uma possível conquista amorosa;
era associado a um grande choque moral; ou ao choque elétrico
de uma contradição, um oxímoro urbano, como ouvir a doce
melodia de um saltério saindo das caixas de som de um
automóvel capotado. Depois da era das guerras, da morte das
ruas e da elevação do complexo rodoviário urbano, os
automóveis... Os automóveis.

Uma leve tendência gnóstica pairava no ar do Reino Brasílico.


Com a sede de uma hidra, apóstolos de plantão espalhavam
livros de vivências aos quatro ventos e cantos do território
nacional. Por sua vez, a classe inconformada com a
administração de concessões acreditava que o corpo humano
era apenas um agente etéreo, um estabilizador ligado
diretamente a uma fonte de energia suprema situada no reino de
Pleroma, morada do Hierofante Jesus. Pelo menos era assim
que pensava a liderança do grupo rebelde de mendigos
escritores, que contra-atacava a falsa tolerância zero do Estado
com zero de comportamento (eles costumavam pendurar em
suas carroças placas com o escrito: "Cuidado! Cão Anti-Social").
A maior missão dos seres humanos na Terra, pregavam, era
encontrar a sombra de um mundo num mundo podre e
corrompido, ou seja, num mundo onde as enfermidades
decorrem de lapsos na comunicação entre o sistema nervoso
central e as demais partes do corpo, entre o Corpo de Sujidade e
o Corpo de Luz.

Já para as classes governantes – cuja política era distribuir à


população futura mercadoria de ferro-velho – o corpo não
passava de uma obra de arte do Museu do Crime.

Uma guerra de culturas também pairava sobre o gênio do povo


brasílico. O grupo que tomou o poder formou uma coalizão
provisória e um Partido único, e justificava os piores arbítrios
políticos com o argumento da salvação da flor do Lácio. Os
dirigentes da nação haviam se aproveitado das inconsistências
bairristas e dos desequilíbrios entre dinheiro, poder e cultura
para fincar seu cetro no centro de um conglomerado de cidades
satélites que, como uma gangrena urbana, ocupavam uma
considerável fatia da região Sudeste da América do Sul e uma
parte dos mandacarus do Nordeste. A megalópole, reflexo da
tese nacional socialista que valoriza as ruínas em nome de
gerações vindouras, movimentou suas trôpegas pernas
geodésicas e se ergueu envolta em brumas sobre o espigão da
antiga cidade de São Paulo. Após a tomada do poder, o Partido
demoliu uma cidade caótica e construiu em seu lugar uma
cidade nova, totalmente baseada nos sonhos planificados de um
antigo prefeito local, que muito tratou com interventores e
racionalistas. Desta forma, segundo o atual plano diretor do
Partido – concebido por um grupo de arquitetos oficiais num jogo
digital de simulação de cidades – foi construído, inicialmente, o
Perímetro Central, também chamado de "Perímetro de
Irradiação" (um triângulo construído sobre os antigos vale do
Anhangabaú e rio Tamanduateí), de onde partiam
simetricamente as marolas radioconcêntricas de largas avenidas
rumo às bordas do campo. O plano de avenidas, que havia
riscado ordenadamente o mapa da cidade-estado como um
bicho geográfico, eliminou qualquer possibilidade de
congestionamento através do conceito clássico de "carros de um
lado, pedestres do outro". O Perímetro Central – uma
reconhecida obra de arte da engenharia de trânsito – e as
Operações Interligadas do plano diretor concluíram
magistralmente o debate filosófico entre os detratores da cidade
e os defensores do campo. Esse modelo urbano, na visão de
olho de pássaro, parecia uma roda de carroça em alta rotação.

Pontilhando a cidade andarilha, destacavam-se as pitorescas


obras faraônicas patrocinadas pelo Partido, como os colossais
pilones das cabeceiras do Rio Vermelho e as torres do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais. Além daquelas construções,
os verdadeiros ícones da sociedade moderna eram as ciclovias,
guindastes, antenas retransmissoras, chaminés de fábricas
abandonadas, tramelas de cooperativas e esquadrias de janelas
coloniais. Os ícones eram rematados com elementos de
superfluidade: colunatas dóricas, macieiras em torno de
capitólios, fachadas art déco nas áreas limítrofes, conchas
acústicas em centro de praças, aquascapes, reproduções
perfeitas das colunas triunfais de Ramos de Azevedo, cemitérios
em forma de terraços, praças de alimentação no alto de antenas
de TV e o "Sistema Y", o sistema viário de evacuação rodoviária.

E com relação aos poucos projetos de transportes alternativos,


havia as balsas biônicas (parecidas com bateaux-mouches) que
navegavam lerdos pelas avenidas fluviais do rio Pinheiros e do
Tietê, assustando as garças deselegantes das várzeas.

O quadro político e social dos dois brasiis era bem definido e sua
população podia ser separada em duas grandes fatias: de um
lado, ou seja, da metade do topo da pirâmide para cima, vivia a
casta tipo A: uma classe formada por farmacêuticos indígenas,
cartolas esportivos, empresários automotivos e notórios Chefes
de Estado do Partido; e, neste mesmo patamar, estava inserida
a casta tipo B – formada por servidores públicos, funcionários do
Partido e simpatizantes autenticados. A geometria do outro lado
da pirâmide era um pouco mais complexa e contrariava a
matemática dos compartimentos, pois no restante da área – da
base do ínfimo topo à base geral da figura – estava enquadrada
a casta tipo C, uma imensa massa crítica de rebeldes sem
causa, camelôs, indigentes super-humanos, perdedores
compulsivos, bêbados por ideologia, altistas drogados,
pregadores da Igreja Quadrangular, da Igreja dos Gideões, sem-
empresas, sem-computadores, sem-intelecto, pedintes clássicos
e, principalmente, os mendigos escritores, os maníacos de rua
que estavam em voga. Para o Partido, a pirâmide de
classificação social era um bloco único de rocha monolítica
aninhada no fulcro da Terra, o que tornava injustificável – e
intolerável – a dissidência pura e simples da casta tipo C. A
recusa do provimento – pregavam delirantes os mendigos
escritores em estado de necessidade voluntária – era aceitar a
anulação do improvável e a manutenção da morte súbita. Os
rebeldes não se conformavam com o excesso de boas intenções
infernais do Estado e, para não morrerem calados, resolveram
abrir mão do direito vitalício de "reter" (o direito de "ter" havia
sido revogado no início do segundo milênio).

Havia também os socialmente indefinidos, tratados como Judas


Iscariote por alguns prelados da Igreja dos Novos Deões, que
eram reconhecidos na rua pelos seus brincos com miniaturas de
flechas, âncoras e chicotes, e eram a última esperança do que
havia sobrado da Igreja Católica após o Concílio de Trento. Já o
"povo oculto", por exemplo, era um grupo indefinido por
natureza.

A maneira de fazer política do Partido era considerada por


muitos analistas estrangeiros como criptofascista, devido às
manifestações culturais de cunho imperativo que não passavam
de declaradas demonstrações de força bruta e falta de
compromisso com o essencial ("A pobreza é problema do
Estado? Então o Estado não sou Eu"). O povo, sempre
mobilizado pelo Partido para promover um espírito cívico
distorcido, eventualmente era acuado e intimado a presenciar
vários eventos, ou como queria o poder central, "eventos
prontificados".

Recentemente, aconteceram dois deles: o primeiro, de natureza


propagandista, foi uma parada folclórica em que milhares de
crianças órfãs conseguiram impingir a comunidade internacional
da Unesco a reconhecer as "conquistas na área de aderência
étnica" e a "cultura tradicionalista aplicada" do governo central
brasílico, cujo foro, o mundo todo sabia, era composto por
príncipes esclarecidos e padrinhos com indisposição gástrica. A
juventude do Partido estava vestida com uniformes de cores
verde oliva e azul turquesa (sem o amarelo), as cores da
bandeira nacional que, ao longo de sua história, fora modificada
exatamente sessenta e duas vezes (na vigésima sétima, o
amarelo, que antes representava o subsolo rico em jazidas de
ouro, passou a simbolizar cachos de bananas e outras frutas
tropicais). A direção do Partido cunhou maliciosamente esse
evento (na verdade, uma arregimentação compulsória em
massa; uma indução ao sono coletivo; um envenenamento
psíquico) de Carnaval Unionista.
O segundo evento, de natureza jurídica, foi um jogo de futebol-
de-xisto, o esporte de impacto mais popular do país, que
resolveu judicialmente a disputa pelo direito prioritário de uma
patente entre duas indústrias farmacêuticas.

No terceiro milênio, as verdadeiras retentoras do poder


financeiro eram os milionários empórios terapêuticos, que
lucravam através de conceitos distorcidos como "mais-valia da
talidomia".

Um verdadeiro partido se preocupa mais com a fixação de seu


memento ideológico do que com qualquer outra coisa. Se a
ideologia é o fruto de uma idéia que pode ser expressa por
centenas de palavras sórdidas, então que fosse dado todo poder
àqueles que detém as escrituras. O presidente negro do Reino
Brasílico, embevecido por esse novo espírito, surgia sempre em
cadeia nacional nos telões públicos defendendo um patriotismo
lingüista.

As antenas ecoavam expressões sombrias, como:

- As palavras do português brasílico são sagradas! Evitem falar


palavras desnaturadas! Sejam pacientes e procurem no fundo de
sua memória coletiva as palavras correspondentes na língua
pátria. As doenças da fala podem e devem ser evitadas! Rogo a
que todo o povo procure um neurolingüista de plantão, ou então
ligue para as centrais de atendimento do comitê de saúde
pública em casos de urgência! A decência está em excomungar
as palavras em línguas alienígenas que causam a
reprogramação lingüística de nosso povo. Afirmo com convicção
que devemos enterrar o neocolonialismo e o colonialismo
cultural para sempre! Não foi essa a promessa proclamada na
aurora do novo milênio? Anauê, Reino Brasílico! Durmam em
paz com suas consciências e façam seus semelhantes sentirem-
se necessários!
Palavras hipnóticas e convincentes no contexto. O verdadeiro
inimigo do Partido, por mais imaginário que fosse (como uma
farra do boi nas ruas de Pamplona, por exemplo), era o
estrangeirismo na linguagem e os corpos estranhos que
maculavam a prístina língua portuguesa brasílica. A realidade
possível era menos importante que a utopia viável, e as doenças
provocadas pelo oxigênio letal das estações aeróbias não eram
motivo de debate político. Por esse motivo, tradutores
juramentados do Partido eram obrigados a verter para o
vernáculo pátrio todas as expressões em evidência veiculadas
em placas, cartazes, marcas e estampas, evitando assim a
narcose provocada pelas ardilosas línguas estrangeiras.

Entretanto, havia um perigo mais real e imediato (e impossível


de ser escamoteado) do que uma hipotética doença de
linguagem: a peste da bílis negra, ou simplesmente peste, e que
era assim nomeada devido às crises vomitivas que acometiam
os infectados. O sintoma era parecido com o mais grave sintoma
da febre amarela, que consiste em expelir pela boca bolas de
matérias escuras, parecidas com aquelas bolas de pêlo que os
gatos regurgitam.

Nas calçadas das avenidas mistagogas, a coroa do sol iluminava


uma estranha anomalia no rosto de alguns cidadãos, a maioria
com cenhos marcados pela nova varíola: crateras faciais cheias
de sebo radioativo. Aos incubados não restava alternativa a não
ser se empenhar na eterna busca da vida intensa em meio a um
permanente estado de decomposição e dores suportadas com
morfina e piadas práticas. Muitos tinham manchas negras no
bócio, pústulas no zigoma e nas axilas, ínguas prateadas e
outras evidências que comprovavam um sinal do mal. Além
disso, a peste provocava uma crise violenta de vômito negro,
fazendo o doente morrer de hemorragia interna.
O corpo humano faz exigências rigorosas de manutenção e,
dubiamente, se pune pela falta de cumprimento das mesmas.
Com tanta religião e ciência, por quê as desgraças da
humanidade são ciclotímicas? Por quê a provação destrutiva dos
homens sempre evoluiu com saltos? Seria correto a humanidade
ser mal agradecida a Deus por Ele ter ofertado a Razão em troca
da evolução natural dos macacos? Era corrente a teoria de que
a peste havia sido libertada junto com o gênio da lâmpada
progressista, porém os sanitaristas do Instituto Biológico haviam
comprovado que a peste foi deflagrada (traindo os acordos de
não proliferação) pelo excesso de oxigênio reciclado abaixo do
equador do pLaneta. Os primeiros vetores da doença se
espalharam sobre os tristes paralelos da América do Sul pelas
estações orbitais de reciclagem de ar. E o pior: estas cepas
misteriosas eram anaeróbias e estavam sendo transmitidas pelo
ar. Os especialistas, inspirados talvez em Vital Brazil, não
negavam a importância de suas atribuições, chegando mesmo a
formar uma casta fechada nos moldes rosacrucianistas. Os
médicos ortomoleculares brasileiros – acusados de serem
“Pseudo-Gnósticos” e "cientistas do mundo fímbrio" – foram
perseguidos e detratados no final do milênio passado; e hoje,
anistiados, ocupavam cargos de confiança junto aos altos
escalões do comitê de saúde por defenderem conceitos como o
"movimento endógeno do coração" e carregarem lábaros
dogmáticos como: "a alma, estando sob o efeito da anandamina,
passa pelo túnel da quase-morte". O sindicato dos médicos,
presidido pelo Cirurgião Geral do Partido, tinha muitos poderes,
pois recebia parte das comissões no controle das experiências
com autópsias de acidentados, e o suborno dos legistas.

A peste negra na Idade Média ensinou aos doutores medievais


que o pior problema das epidemias era a reclusão da razão que,
ficando livre dos estímulos externos, não se padecia mais dos
perigos da desilusão eterna, do horror e da loucura. Contudo, o
sindicato dos médicos aprendeu também que muitas catástrofes
aconteciam por muito menos – até por um pedaço de queijo de
Salmonela.

Desnudados os métodos de ação política em público, ficou claro


para a nação que o Partido estava mais preocupado em vingar
uma Cultura pura do que executar uma cultura da Cura, e estava
mais interessado em estender o poder de fato (a cura da peste)
para além de sua mera ocorrência. Dependendo do momento,
este artifício era substituído pela disseminação de notícias sobre
os efeitos imprevisíveis causados pelo contato de baionetas com
uma oposição organizada. Em contrapartida, as campanhas
incisivas para erradicar a peste foram maiores que as
campanhas contra a AIDS, pois a AIDS era uma doença infantil
comparada ao novo morbo. O monopólio da saúde pública
também era mais uma peça na engrenagem de poder do
Partido, que detinha à força a guarda dos filhos do paternalismo
e da oligarquia. No caso da SEOV, DOBV e a PUUV (tipos de
Hantavírus), o Instituto Biológico havia conseguido erradicá-las
com linfas hidrogenadas. Mas por enquanto, os dois blocos
avessos estavam sob uma espécie de quarentena não imposta.
Ninguém entrava e ninguém saía do território nacional mais em
virtude da possibilidade de desagregação da personalidade do
que por causa do novo antraz.

Contudo, as campanhas do Partido faziam crer que as doenças


da alma podiam dar origem a pandemias muito piores que a
cólera.

Para desfilar na comissão de frente do Carnaval Unionista foram


escolhidas as crianças mais bojudas e comportadas das creches
do Reino Brasílico, pois elas caracterizavam o estado puro de
uma cultura em formação. As crianças tipo A e B foram
alimentadas desde cedo pela idéia de que só uma política de
higienização cultural poderia fazer frente e derrotar o
ultraliberalismo do Grupo dos Dois, que perdeu a concorrência
para administrar o sistema de vigilância de uma parte da
Amazônia ainda incólume. Teoricamente, não apenas o regime
fechado dos dois brasiis havia vencido moralmente o liberalismo
político-econômico dos dominantes; Cobra Norato havia
derrotado Beowulf através de uma inversão do direito de
precedência. Por essa razão, toda criança brasileira que
quisesse ser reconhecida pela sociedade nacional tinha que
aprender a decorar de cor e salteado não apenas toda a obra de
Raul Bopp, mas toda a herança dos Nambikuaras e toda a
seqüência do Ciclo da Cana através de hipertextos armazenados
em discos de Intânio, todos os roteiros de Humberto Mauro (a
saga do sanfoneiro Galdino foi incluída nos currículos escolares
e o personagem se tornou um verdadeiro símbolo nacional),
além de todas as marchinhas carnavalescas, sambas de roda e
cocos de Zambê. Mas a matéria básica continuava sendo o
catecismo da literatura e do português brasílico, e o Partido
utilizava como biombo do poder a origem divina das palavras
nacionais. Os hinos eram declamados com emoção, enquanto
as imagens eram invocadas apenas em casos de remissão
espontânea ou em casos de vida ou de morte de um orgulho
pátrio ferido.

A estratégia do Partido era fazer o inimigo ser comido pelo


próprio Tibiriçá. O moral mal passado do Grupo dos Dois foi
sendo cozinhado lentamente em fogo brando pela Moral Pura do
Partido. Desta forma, o moral cozido incentivava a Moral crua,
assim como o torturado tem a tendência de se apaixonar por seu
torturador. E o que representava uma nação com uma Moral
Pura, mas sem os postulados de uma Moral Definida: uma
impostura perante a morte ou a má utilização de uma urna
funerária? Muitas pessoas apreciavam não só assistir aos
desastres automobilísticos, mas participar deles também, como
se sentissem um daqueles bonecos de teste de acidentes de
carro que, somente com um impacto brutal, conseguem sentir
suas almas infantes saírem do corpo de plástico. E participar de
um desastre não era como entrar numa simples Casa dos
Horrores, pois a filosofia irracionalista corrente afirmava que a
sensação mais precisa da morte era a de sentir labirintite dentro
de um labirinto.

Os diplomatas do comitê do meio ambiente, muito letrados nas


letras disformes, haviam se especializado em chantagens
ecológicas junto aos premiês internacionais, pois segundo o
quarto Tratado de Versalhes, assinado em Mangaratiba, o saque
da biopirataria e o uso bélico da engenharia genética (como a
disseminação de soja com genes de bactéria, milho combinado
com escorpião e peixes com genes de morango) passaram a ser
considerados graves crimes de guerra. A própria palavra
"devastação", a pedido do comitê do meio ambiente, foi
reavaliada no XV Congresso da Gramática Universal, pois uma
devastação poderia ocorrer apenas num cenário que, apesar de
possuir uma gama infinita de tons verdes, é monótono,
imprevisível e avassalador. Enquanto isso, os diplomatas do
Reino Brasílico exigiam indenizações extensivas, pois alguém
haveria de pagar pelos danos ecológicos causados na última
reserva florestal do planeta; por esse sumiço de enormes áreas
verdes por combustão espontânea!

Outra palavra que os diplomatas falavam muito nos gabinetes do


exterior com a língua de cultura era "depleção" – uma palavra
mágica que inibia com desfaçatez as tímidas ameaças de
sanções. A política de higiene cultural empregada pelo Partido
podia beirar à pajelança, com a retomada indianista na literatura
e os argumentos da comunidade indígena pré-adâmica, mas o
mundo todo reconhecia que sua retórica democrática era de um
profissionalismo atroz. E o fato que comprovou definitivamente
isso foi que, para desfilar na comissão de frente do Carnaval
Unionista, as crianças, maquiadas com pó de arroz e urucum,
não foram subornadas; apenas ganharam antecipadamente uma
grande quantidade de doces de taboca. Durante a parada, as
operadoras e repetidoras transmitiram em primeiro plano os
rostinhos inocentes que, por sua vez, transmitiram a essência
mais pura da cultura do Reino Brasilico: a suculência e o açúcar.
Os funcionários do comitê de comunicação do Partido ficaram
muito orgulhosos por terem conseguido reservar os
retransmissores dos satélites para coligar e rebaixar os sinais
contendo aqueles rostinhos pálidos cobertos por uma
maquiagem carregada, como se aquelas crianças fossem
personagens de uma interpretação infantil da ópera “O Guarani”.

O impasse da arte literária mundial se deu ao final do milênio


passado, graças ao projeto "Mil-Mãos" – um projeto da
Universidade da Diversidade que tinha como objetivo reunir
todos os programas geradores automáticos de texto numa
Estrutura Universal de Indexação. Essa produção artificial de
escritos através do reconhecimento de padrões e categorias de
dependência entre termos primitivos gerou uma espécie de livro
infinito, que evoluiu dentro da rede semineural – um sistema com
grande capacidade combinatória. A rede semineural, por sua
vez, teve origem numa antiga rede militar dos Estados Unidos da
América do Norte, constituída num primeiro momento por
bilhares de estações de memória alta, servidores prestativos e
clientes exigentes, que, depois de formarem uma nuvem de
processos distribuídos, se fundiram fisicamente no transistor de
metal óxido Glia, um agente da contra-revolução no seio da
Revolução da Informática. Mas algo imprevisível aconteceu:
quando todos os fanáticos jogadores de Lan conectaram a rede
de textos descritivos à rede do projeto Mil-Mãos, o livro infinito
não apenas saiu de seu estado de catalepsia, mas literalmente
criou vida própria, o que causou uma curiosa querela acadêmica
dentro da Universidade da Diversidade: os comportamentistas
da Inteligência Artificial Forte chamaram o fenômeno de "etologia
da repetição"; enquanto os rogeristas da Inteligência Artificial
Fraca o chamaram de "cognição da repetição". No final, o debate
acabou terminando num quebra-quebra de crânios e rasgos de
sobrancelhas.

A inteligência mundial dava muito peso aos projetos literários,


mas todos ignoravam que o infame Lan – um jogo popular de
representação desenhado a partir de antigos sistemas de
teleconferências, códigos de expressões feitas com caracteres
de teclado e uma grande quantidade de linhas de códigos Basic
– ganhou uma importância capital naquele casamento.

Outros estudiosos não oficiais de IA concordavam que os


pioneiros do projeto Mil-Mãos e os jogadores de Lan criaram
uma máquina-tutor que raciocina através de um banco de dados
de casos contados, relações de ações e versos burlescos de pé
quebrado. Mas os mesmos luminares despertavam uma certa
desconfiança quando declaravam que aquela máquina
indomável estava retomando os processos de ativação e
armazenamento de toda a memória humana e todo princípio
genético da linguagem, proporcionando uma espécie de
desmanche do esquecimento.

Apesar das brigas acadêmicas, motivadas por idéias bizarras e


quase disparatadas, todos estes estudiosos tinham algo em
comum: o ódio a Lady Lovelace – a pesquisadora que havia
afirmado ser a máquina analítica apenas uma máquina
responsiva, uma espécie de criança mal-educada que, no
máximo, dá saltos condicionais.

A direção do Partido permitia o Lan, pois era considerado circo,


além de estar garantido pela constituição do Bem-Estar Total;
considerava inclusive as construções do Pavilhão verdadeiros
"centros cívicos" (ou mesmo "escolas elementares"), abertas a
todo o povo, sem restrições: homens e mulheres. Os jogadores
de Lan, aparentemente, não ofereciam grande ameaça ao poder
central. Além de não reconhecer a pecha de “reformadores” eles
eram, em sua maioria, cidadãos tipo B pertencentes a uma
classe capaz de ficar indiferente aos altos índices de acidentes
automobilísticos e à horda que vivia (teoricamente) nas galerias,
bueiros e túneis de metrô da cidade velha. Mas nadando contra
a corrente dos crimes digitais perfeitos do Lan, os bardos
matutos e cancioneiros do Partido, armados tão somente com
suas obras cândidas, foram endeusados e colocados no
vestíbulo da fama nacional. A título de garantia, um quadro de
funcionários do CPD, por ordens do comitê de propaganda,
pesquisava dia e noite métodos de filtragem de palavras
perigosas e inserção de textos pátrios dentro da rede
semineural, para que os cabeçalhos de temas nacionais
figurassem com prioridade dentro do índice dos servidores de
Lan. O poder do Reino Brasílico não obstava nem apoiava a
tecnologia da informação e, para manter uma idoneidade
ideológica mandatária, criava verdadeiros tigres de papel com
seus folhetos quengos e suas sextilhas.

O Lan era um programa coletivo que subvertia uma das teorias


dos jogos (onde o jogador A tem que maximizar o limite de
ganho imposto pelo jogador B, e vice-versa) e o mosaico da TV
(a varredura entrelaçada e a interface tipo “jogo de ligar os
pontos” desta mídia estavam quase extintas). Para o Partido, o
jogo de Lan era apenas a manifestação inofensiva de um bando
de adolescentes desmiolados. Mas debaixo da superfície
inocente da linguagem cursiva do jogo corria um rio de
secreções lingüísticas e vírus da escrita. Por exemplo, uma das
atrações do Lan era sua capacidade de manipular e coligir vários
símbolos, como os lógicos, os lingüísticos, os declarativos e os
que regem a amizade. Porém, as associações daqueles
elementos eram feitas sempre através de expressões
nitidamente dicotômicas (nascimento/implosão, morte/explosão
etc.) e binômios de marcação (sujeito antes de predicado, por
exemplo). Como muitos Lan eram baseados em categorias
gramaticais extintas e complicadíssimos cálculos de inferência,
não era possível o Partido fiscalizar todos os interstícios do jogo
através de um escalão global de vigilância.

Outra característica dos Lan era a sensação de realidade que


provocava nos jogadores, que tinham apenas o trabalho de
inserir pequenas sentenças entre os operadores da Pérola
Dinâmica. Nos Lan, cada participante assumia uma personagem
fictícia, um avatar, que, a partir desse ponto, enfrentava um meio
ambiente abstrato, lúdico, heróico, histórico, administrativo ou
perigosamente pornográfico. De qualquer forma, um avatar
sempre enfrentava meios repletos de truques. Além disso, os
jogadores podiam incorporar em suas personagens
“propriedades” de outros jogadores, pois tudo nos Lan era um
objeto, inclusive os sons, cheiros, situações e propriedades
intelectuais. Havia um objeto (na verdade: um esquema de ação)
que se chamava “Jogo dos Sete Erros”, em que o usuário era
submetido a uma situação de perigo iminente com apenas um
ponto fraco (uma identificação falsa, por exemplo).

Dentro dos Lan também existia um sistema de correio peculiar,


uma cópia do sistema de correio eletrônico oficial do Partido, o
sistema Trocano, uma caixa de guerra indígena mais sofisticada.
Um avatar podia adquirir esse objeto (chamado secretamente de
LettreJuste) e acrescentá-lo ao seu rol de propriedades. Se no
sistema Trocano havia censura para as cartas de amor, a única
solução para os poucos amantes era usar essa subcategoria de
correio para manterem acesa a chama do sexo de linha. Houve
um caso famoso envolvendo o correio alternativo: um avatar do
sexo feminino recebeu uma correspondência em LettreJuste.
Apensada à carta de seu amante de linha veio o código de uma
classe especial de avatar chamada “classe nobre”. A carta dizia
para ela adicionar a nova classe ao código fonte de seu avatar.
Uma das características desta nova propriedade, segundo o
amante, era a maravilhosa descrição de uma princesa palaciana
com um vestido coberto por apassamanarias. A jogadora ficou
muito satisfeita, pois adoraria agir como uma Catarina; ou uma
digna princesa dos mares do sul. Aquilo sim era um cortejo digno
de ser reconhecido, pensou ela. Mas pobre mulher! Pouco
tempo depois ela percebeu que seu antigo avatar, que havia sido
desativado por seu amante, estava sendo manipulado
lubricamente à distância, pois foi transformado num boneco de
vodu por um terceiro avatar pervertido. Segundo as descrições,
o tarado furou tanto o boneco de vodu que este ficou parecendo
um boneco de ensino de acupuntura.

Diferenças de expressão à parte, o primeiro Ano Geofísico foi o


ano de consagração mundial do Reino Brasílico. Por um breve
período, o horror da peste deixou de chamar tanto a atenção dos
analistas estrangeiros e abriu alas para a ecoante vibração dos
gênios da raça.

Wirmundo, um mulato na casa dos trinta, porém já bastante


grisalho, era dono de um açougue e se destacava no seu distrito
por ser um exímio jogador de Lan. Tinha a estatura baixa e
alguma sorte com as mulheres, pois se vangloriava da lenda de
que os anões são bons de cama e fazem as mulheres se
sentirem em boas mãos bobas. Mas seu sucesso com fêmeas
não tinha muita explicação, já que esteticamente não era bem
apessoado. Dentro das analogias entre a face humana e a fronte
de animais propostas pelo pintor Charles Le Brun, poderia ser
dito que Wirmundo se assemelhava a uma ararajuba depenada
ou a uma pomba em estado terminal. Na verdade, ele usava
alguns artifícios nada éticos para capturar mulheres de púbis
depiladas sem chamar muita a atenção dos fiscais sexuais do
Partido.

Wirmundo era filiado ao Partido e usava um broche com a


diagonal dividindo o retângulo em dois triângulos retos verde e
azul (os retângulos eram o símbolo das três classes), mas
evitava as convenções assexuadas e os congressos do Partido
em microcervejarias, freqüentadas por bebedores de cervejas
carameladas e cantores de hinos nacionais. O fato de Wirmundo
ser filiado ao Partido permitia que ele tivesse um trabalho
honesto e a renda suficiente para ingressar nos salões do
Pavilhão, onde jogava viciosamente o infame Lan.

A história da repressão sexual no Reino Brasílico teve início no


começo do milênio, quando o IBGE registrou um aumento
alarmante da taxa de panssexualismo (quase 60% da população
nacional) e o Ministério de Saúde fez pressão para o Governo
encontrar bodes expiatórios para as doenças fatais sexualmente
transmissíveis. Vários anos mais tarde, ignorando os resultados
do segundo relatório da Kinsey Corporation (um calhamaço com
provas de que a as doenças sexualmente transmissíveis se
propagam por via aérea, independente de contato físico), o
Instituto Biológico representado pelos sanitaristas sugeriu atacar
localmente os laivos de panssexualismo proibindo as granjas de
injetar hormônios femininos nas cabidelas. Mas havia medidas
mais drásticas, como milícias anti-sexuais e esquadrões da
morte. E como é possível uma pequena massa de perseguidores
assustar um exército de perseguidos, os homossexuais e
transexuais do Reino Brasílico eram obrigados a se refugiar em
diversas ilhas perdidas nos três oceanos, fundindo todas as ilhas
do mundo (inclusive a Oceania) numa enorme pangéia
panssexual aterrada por colônias homoeróticas e estâncias
naturistas. Por exemplo, a estância homossexual mais luxuriante
e orgíaca – liderada por dez hermafroditos albinos de cognome
Leões Coroados – ficava na ilha dos clones de dodó, uma ave
que voltou a ser muito caçada por aparatados marinheiros
malteses de calças apertadas.

Com o tempo, a sociedade metropolitana do Reino Brasílico se


tornou uma bolha patriarcal sexualmente inerte e regida por um
código de exclusão sexual tão elegante e respeitoso quanto
aquele antigo costume da nobreza chinesa de quebrar, dobrar e
enfaixar os pés das esposas para que coubessem nas mãos e
nas bocas dos maridos excitados. Do outro lado do mundo, e
mais de dois mil anos depois da proibição desse costume, as
mulheres estavam quase proibidas de andarem nas ruas dos
dois brasiis. O gênero foi vítima de enormes campanhas anti-
sexuais que culminaram com a decretação da norma proibitiva
do beijo em público em frente da prefeitura municipal. Os
homens mais viris fingiam ignorar que, na teogonia tupi, todas as
coisas eram criadas por uma Mãe, mas lembravam que, na
concepção tântrica, as mulheres eram encaradas como simples
shaktis, ou encarnações de deusas que têm a missão de
homologar, com estocadas de carícias, a transcendência sexual
masculina. Além de cumprirem discreta e moderadamente a
função de mantenedoras da raça humana, as mulheres eram
vistas apenas como “criadoras de problemas”. Mas apesar da
segregação esclarecida, elas se reconheciam e se apoiavam
dentro de uma sociedade mais preocupada com as verdadeiras
intenções da feminilidade. As mulheres ficaram tão imbuídas do
novo espírito corporativo quanto aquele ator que nunca mais
conseguiu outro papel na vida, pois sua personagem acabou
ultrapassando a própria protagonização.

Toda sorte de dificuldades eram interpostas entre a semente e a


terra. Euclydes da Cunha tinha razão ao vingar a honra de uma
mulher castrada? Para os atuais costumes sexuais, não. O
poder central, com o argumento de evitar um adensamento
populacional, não tolerava o abandono de um segundo filho
ilegal, mas tolerava o abandono de um gênero humano. No
Reino Brasílico as mulheres viviam, em sua maioria, na
comunidade dos homens, mas quase não eram notadas pelo
orgulho da suposta casta superior. A espécie feminina não tinha
prerrogativas políticas e estava confinada ao destino trágico de
apenas freqüentar saguões de hotel e salas de espera de
hospitais, enquanto que os homens freqüentavam não só os
clubes exclusivos, como também o disputado Ponto de Equilíbrio
(um bar masculino com mesas escondidas entre as sombras de
um orquidário) e o mirante da Mantiqueira Setentrional, de onde
era possível ver a cúpula de oxigênio e diesel sobre o mar de
antenas parabólicas da Capital.

Wirmundo reprogramou o código geral do LettreJuste, e isso lhe


dava parcelas de responsabilidade pelo uso impróprio de sua
criação. Uma maneira de burlar a fiscalização dos agentes do
Partido era nomear uma propriedade (ou um objeto) com um
título intraduzível, pois assim os robôs-aranhas dos fiscais
espiões eram forçados a acusar um nome default nos seus
registradores. Uma aglutinação de duas palavras estrangeiras
bastava para tanto.

Wirmundo tinha um coração forte dentro da rede semineural. Na


vida real, porém, sabia que todos os alpinistas têm vertigem.

A repressão sexual patrocinada dava margem a muitos enganos.


Numa noite, alguns dias antes do Carnaval Unionista, depois de
ter tomado várias doses de licor de genebra durante uma
conexão no Pavilhão, Wirmundo esbarrou numa mulher que
estava se levantando da frente de um terminal-burro. “Quem
seria o avatar dela?”, pensou. “Rita Lee? Mary Read? Elvira?
Pagú?”. A bela, para seu deleite, usava um cravo vermelho
espetado na lapela do talleur e caminhava como uma fêmea de
gnu no cio (havia um ditado francês que dizia: “os homens são
gnus com chaves de carro”). Um falso sentido de lealdade o
impediu de fazer um cortejo e perguntar seu nome, e o nome
que supôs tinha um quê operístico – não uma ópera neo-
romântica ou lírica, mas uma ópera bufa improvisada, com o
cenário da miragem do paraíso de Bahrain atrás de balcões não
passíveis de miração.

Ao perceber esse fágil traço de caráter de Wirmundo, a mulher


descarregou seu furor mais que justificado:
- Não olha onde pisa, homenzinho?

"Homenzinho?" Wirmundo deu de ombros resignado e foi para


casa em busca do acolhimento de sua Carmencita. Nesta hora o
Partido dormia o sono dos cegos justos e o açougueiro teve uma
estranha visão com os intestinos da mulher que o insultou.
Automaticamente lembrou-se de um galicismo perdido dos
tempos que prestou o serviço militar. Para evitar as longas
marchas da infantaria, conseguiu uma vaga para auxiliar o
cozinheiro chefe do Corpo de Bombeiros – um profissional que
tinha como especialidade a preparação de diversos tipos de
vísceras bovinas. Wirmundo lembrou de como o cozinheiro
francês brincava ao colocar os miúdos na caçarola, uma espécie
de contagem regressiva:

- Pieds, animelles, rognon, coeurs, langues, mou, fois, bonnet,


ris, tetine, tête, queue, cerveilles cerveilles cerveilles....

A visão dos intestinos da mulher e o pobre galicismo de cozinha


vertido na calada da noite o deixaram inquieto. "Estou tendo as
visões de um assassino de prostitutas?" Wirmundo sacudiu a
cabeça e sorriu ao pensar que o galicismo acabou funcionando
como um protesto silencioso contra as vigílias pela língua
portuguesa promovidas pelo Partido. Mas se algum funcionário
ouvisse aquelas palavras, ou lesse seus pensamentos,
certamente seria abordado. "Pensando bem, como é estranho
verter os miúdos de boi para o francês. Melhor pensar baixo,
apesar do burburinho interior”. Logo em seguida a imagem dos
intestinos da mulher do Pavilhão retornou com toda força.
"Quando eu estava na barriga de minha mãe, fiquei perto dos
intestinos dela!" Seriam esses pensamentos resultado do
controle glossológico e sexual do Partido? "Não... Isso é
paranóia...”.
Ao chegar em casa, Wirmundo viu que sua concubina estava
deitada de bruços e com o tronco levemente arqueado, refletindo
no rosto uma serenidade pré-rafaelita não comum durante o
estágio de movimento rápido dos olhos.

Ele não a acordou.

A imagem (ou melhor, a alegoria) da chuva caindo sobre um


terreno fértil representando uma condição passional assegurada
riscou o cérebro de Wirmundo e se tornou um tormento
momentâneo: ao invés da chuva de outono, a chuva ácida; ao
invés da horta, o lamaçal.

A noite benfazeja – uma somatória de todas as sombras do


mundo – afundava cada vez mais na alta madrugada, na hora
em que as coisas inanimadas conversam na forma de barulhos
inexplicáveis e rangidos súbitos. Wirmundo deitou-se ao lado de
sua concubina, depositou levemente um braço sobre ela e
pensou numa enorme catarata, numa queda d’água maior que
as cataratas do Iguaçu.

Em seguida ficou pensando, até dormir, numa catarata de


palavras escoando pelas bordas recurvadas de um monitor de
segunda mão.

Na manhã seguinte, depois de celebrar o nascer do sol com um


café de taurina, Wirmundo foi fumar descalço sobre a relva
úmida do quintal, influenciado talvez pelo massagista chinês que
o ensinou a revitalizar a energia ki, a começar pelos terminais da
sola dos pés. Apesar da verossimilhança daquela personagem,
Wirmundo seguia os pregadores da nova corrente da praxis
vertebralis – um conjunto de técnicas de estalar as vértebras
cervicais. Wirmundo conheceu a "ciência das estaladas" no
antigo Lan da Grécia Antiga, onde foi consultar um médico
periodeuta que tratava de deformações de posicionamento e
movimentos repetitivos.

Depois de duas flexões nas costas, Wirmundo deu alguns


passos adiante e quase pisou sobre um filhote de serpente
perdido na relva. Com uma tática de Kenpô (que pensou ter lido
em algum Lan de artes marciais) Wirmundo alcançou o cabo de
uma vassoura e o desfechou na coluna vertebral do réptil.

A proliferação do ofidismo na Capital aumentou muito depois do


afundamento da ilha de Queimada Grande, e os refugiados
rastejantes passaram a fazer parte da vida quotidiana dos
cidadãos dos dois brasiis. Os ratos e todos os animais daninhos
foram devorados pelas serpentes. Corria o boato de que o
"povo oculto" adorava as serpentes, e faziam rituais em seu
nome. Mas as cobras não eram endeusadas na superfície; muito
pelo contrário: eram sumariamente executadas por serem a
causa dos males sociais – mais ou menos da mesma forma que
os gatos e cachorros eram executados na Idade Média por
disseminarem a bactéria Yersinia.

Depois do assassinato, Wirmundo queimou a carcaça da cobra


com álcool, cumprindo o sacrifício de desinfeção imposto pelo
remorso de ter desfrutado do primeiro beijo. A chama ressaltou o
contorcer dos oleosos anéis musculares, fazendo-os parecer os
elos de uma corrente que perigosamente aproxima fatos
distantes dos próximos: a noite passada envolta em vapores
dipsomaníacos, o véu perfumado de sua amante balançando
com a brisa noturna e, agora, o fogo purificador. Era como se
tivesse estripado, com aquele ato, o verme dos pensamentos
ruins que, para o bem ou para o mal, parasitavam as entranhas
de um corpo doente. Pensou num agente multiplicador
poderoso, como uma maçã podre que contagia as outras maçãs
do cesto. Essas impressões levaram Wirmundo a um
pensamento mais profundo e ameaçador, quase um alerta
oculto: ter algumas vidas sexuais normais, ditadas por
necessidades mínimas de glândulas sudoríparas, mas que ao
mesmo tempo fossem perigosas o suficiente para causar mais
que compensações por recalque. O assassinato daquele filete
esponjoso e brilhante – cometido quase por repulsa bíblica –
pareceu reavivar o evento da carta severa de Paulo em Corinto,
e fez Wirmundo descobrir o tamanho da força que a gravidade
exerce sobre a carne amargurada e o fantasma do desejo não
correspondido. "Por quê o robô Boitatá me veio à cabeça neste
momento?”.

Entretanto, quando entrou no módulo guerreiro para enfrentar o


dragão da maldade, o calor da atenção neutralizou as toxinas
que revitalizam lembranças lúbricas e desobstruem dopaminas
acumuladas. Para ganhar anos de vida, Wirmundo tinha o
costume de se entregar maciçamente a uma lembrança fadada a
ser desfeita. Ser escravo de lembranças temporárias misturando
vapores e humor era mais seguro que dormir no catre de um
huguenote na noite de São Bartolomeu? "Meu destino está
sujeito a um apanhado de superstições. As circunstâncias não
alteram mais a esperança”.

E o imprevisto da luta entre o bem e o mal interrompeu mais este


escapismo.

Algum tempo depois, Wirmundo veio a saber, da parte de um


biólogo do Partido, que as características descritas da cobra não
eram as de uma cobra venenosa, que tem a cabeça triangular e
as pupilas em forma de trapézio. Para Wirmundo, a constatação
teve o impacto de um mundo desabando sobre sua redenção. O
recente pesar pela morte de um animal inocente (ou, nas
palavras do biólogo, “Um bemol na atual sinfonia do
ecossistema”) o retirou de um estado de suspensão e de
consciência tranqüila, pois não havia mais a glória de ter matado
um representante da espécie que mais demorou para evoluir do
sangue ruim para o sangue quente. “Uma morte justificada
poderia ter garantido mil noites de núpcias, sem ser incomodado
nos meus momentos íntimos”.

Wirmundo anulou aquele dia e o riscou do novo calendário do


primeiro Ano Geofísico, com os sínodos alterados e zonas de
tempo remodeladas. Isso era a prova de que as campanhas
ferrenhas contra a AIDS marcaram a fundo a psicologia dos
sentimentos. Foi tão eficiente que os sexuados passaram a se
sentir dentro daquele torvelinho de Dante – mas com uma
ressalva: os amantes não ficavam rodopiando até os engulhos
ao lado de suas companheiras de pecado (uma forma de
conforto condescendente e consolo durante a longa viagem da
danação), e sim ao lado de uma pessoa desconhecida, tanto de
vidas futuras como de vidas passadas.

No período seguinte, Wirmundo se levantou, e dessa vez não foi


caminhar no jardim, já que estava totalmente curado da ressaca.
Ele foi direto ao banheiro efetuar o que chamava de “limpeza
colônica”. Apesar de fumar, tinha alguma tendência naturalista e,
apesar de ser açougueiro, não comia carne, o que era mais ou
menos semelhante ao traficante que não consome drogas por
uma questão de lógica moral. Após o primeiro toque, ouviu por
entre a porta entreaberta do banheiro os gemidos matinais de
sua concubina, que misturava sílabas de uma cigarra-
pixinguinha com aqueles sons que os alienígenas emitem nos
Lan de ficção científica.

A natureza de qualquer união matrimonial naquela atmosfera


repressiva fazia com que os cônjuges enaltecessem a
continência e, ao mesmo tempo, persistissem nos maus
exemplos. Os poucos casamentos eram sublinhados por
lampejos de amor eterno e inversões de cortejo (a troca da
expressão “O que você vai fazer pelo resto da noite?” por “O que
você vai fazer pelo resto da vida?”). O contrato não oficial de
casamento acordava, além das relações de domínio entre dois
estados amorfos, qual dos dois entraria com o engenho e qual
com o espírito, para evitar dissensos no caso de uma possível
troca de comando; assim como proibia o pronunciamento de
expressões dúbias como “ao mesmo tempo...” nas discussões
de jogo de poder familiar.

Nas sociedades nórdicas, as debutantes são levadas a crer,


vendo aquelas antigas gravuras de livros de cavalaria, que
dentro da armadura do cavaleiro salvador há um homem
másculo e com grande autoridade moral, pois atitudes
circunspectas exaltam o egrégio na fase de encantamento do
amor. Na sociedade do Reino Brasílico, a mesma gravura
causaria a impressão oposta, principalmente depois de uma
frustração amorosa: dentro da armadura haveria um sujeito
franzino que foi mal interpretado pelas análises psicológicas dos
contos de fadas. Antigamente, os piores conquistadores
conservavam ao menos uma parte do extrato cultural dos
conquistados, e não costumavam construir capelas dentro de
mesquitas. Já os conquistadores modernos foram um pouco
mais cruéis ao substituir os templos do poderoso Manco Capac
por pináculos. Porém, no concubinato feito às escondidas da
sociedade brasileira, as barganhas por parcelas de carícias num
corpo sem órgãos geralmente levava os conquistadores a
tomarem decisões do tipo solução final.

O Partido usava a figura de um demônio de saias para


representar o vilão das doenças sexualmente transmissíveis. As
campanhas eram tão eficazes que todos os cidadãos
masculinos, ao ver os cartazes do demônio de saias repetiam,
quase que inconscientemente e no ritmo de uma melodia
constante, a frase: “Afasta de mim os demônios de saia”.
Wirmundo, resistente, dizia com os lábios apertados: “Afasta de
mim os demônios...”, e, em seguida, lançava um raio para o
subconsciente: “Pena... Poderíamos ter passado uma noite
maravilhosa”. Wirmundo havia se apaixonado por vários
demônios de saia, mas nunca havia se ligado a elas. “Para que
emendar uma corda cortada?” Sua concubina sabia muito bem
brincar de gato e rato com os desejos que se manifestavam nos
sonhos. Mas Wirmundo não tinha sonhos, e sim pesadelos, ou
seja, sonhos ruins de um real insuportável. Um sonho desse tipo
não se valia de imagens grotescas, mas transformava imagens
familiares em monstros devoradores de virgens.

O Partido havia conseguido intimidar, sem precisar monitorar, os


poucos praticantes dos atos amorosos implantando uma espécie
de consciência de câmera em seus cérebros. Isso teve como
conseqüência o abuso da imoralidade social, ao invés da
imoralidade individual. E as imoralidades sociais são como
sacrifícios humanos que não são executados como oferendas, e
sim desafios ao Todo-Poderoso.

Wirmundo conseguiu ligar o botão do terminal-burro, mesmo


com a concentração comprometida pela névoa leitosa da manhã.
A tela de proteção do monitor era um texto corrido composto por
caracteres vermelhos sobre fundo branco. A frase dizia: “Uma
besta-fera, com duas bocas no lugar dos olhos, tenta capturar,
com ambas as bocas, um pequeno ícone, como se estivesse
numa gincana, participando da brincadeira de morder a maçã
com os olhos vendados. O pequeno ícone, que se parece com
uma pastilha, na verdade é a reprodução de um computador
pessoal”. Ele sorriu silenciosamente com a frase, apertou uma
tecla qualquer e entrou no sistema Trocano para verificar as
gravações de sua máquina de respostas. Após ter acionado uma
enxurrada de canais, um dos servidores do CPD do Partido
capturou uma mensagem selada e a redirecionou para o disco
virtual de Wirmundo. Era uma mensagem do Curupira.

Wirmundo nunca havia visto o amigo invisível, uma entidade que


afirmava ser, na vida real, um programador desempregado, com
muito tempo nas mãos e câmeras na cabeça. Mas isso não fazia
nenhuma diferença, pois no reino anônimo e etéreo do sistema
Trocano, Curupira era sem dúvida seu melhor companheiro de
armas. "Ele não deixa pistas, ou quando as deixa, deixa por
engodo. Isso é o que importa". Curupira nunca havia
acrescentado uma descrição detalhada ao seu personagem, pois
acreditava que os imortais não podiam ser vistos por outros
avatares. Um imortal não podia ser confundido nas ruas, por
exemplo, com um ladrão, um suicida ou a própria malignidade.

A mensagem de Curupira tinha o seguinte teor:

“MSG No 01243-48 - Esteja exatamente às @978 no Pavilhão


para conhecer a nova versão do Lan dos Bandeirantes. As
primeiras descrições do povoado já foram feitas por um grupo de
voluntários e os códigos do Caroço já estão devidamente
configurados. Devo lembrar que essa edição não possui limite de
cota de objetos, ou seja, vamos poder pensar em reunir mais
algumas peças de nosso quebra-cabeça. Estou mandando,
anexado, alguma literatura a respeito. Por questões de
segurança, eu embaralhei o texto numa das frases finais desta
mensagem. Você sabe que as mensagens trafegam por
miasmas paludosos, não sabe? Talvez seja mais fácil usarmos
um pombo-correio? Sinto muito por essa brincadeira e esse
trabalho, mas você vai ter que decodificar os textos. A chave?
Ora, está debaixo do tapete! Desculpe-me por mais essa sátira.
Abraços. Curupira”

INI-Nh%$*nHlmT5q34$&^2#-FIN.

A elaboração do mencionado quebra-cabeça foi interrompida por


motivos de escala. Com a introdução da nova versão, o
passatempo de pesquisar antigas receitas medicinais nos
antigos bancos de dados do Partido ganhava mais
verossimilhança. Naquela época, os computadores não
passavam mais a maior parte do tempo fazendo operações
aritméticas, e sim manipulando símbolos, principalmente os
símbolos da gramática. Wirmundo, auxiliado por Curupira,
andava no acostamento de uma estrada sinuosa em busca de
uma receita, um substituto para as tisanas do Estado. A política
do Bem-estar Total adotada pelo Partido aniquilou a principal
mola propulsora do darwinismo social: a tensão dramática entre
duas ou mais classes sociais. Muitos cidadãos não se
conformavam com a prosperidade decretada, e com a obrigação
de possuírem casa, comida e afeto. A prosperidade assistencial
havia, de fato, substituído a democracia materialista, uma
situação de tal magnitude a ponto de criar um evento, uma
perturbação que irrompe no mundo como uma buzina de Scania.
A própria felicidade estava sendo ofertada a todos sem exceção,
mas os rebeldes sem causa, em protesto, optaram pela fome, o
sono e a vergonha.

Wirmundo decodificou sem problemas o arquivo anexado de


Curupira. O texto reproduzia uma tradução interlinear de
algumas cançonetas tupis, como a que cantava a diferença entre
Cairé, a lua cheia, e Catiti, a lua nova. Em seguida, havia um
outro texto, totalmente fora de contexto, sobre uma tabela da
verdade, formada aparentemente por segmentos de letras e
dígitos binários. Esta tabela, segundo o texto, era "o único
elemento remanescente de uma linguagem de computador tão
morta quanto o copta, mas que poderia estar tão viva quanto o
tupi vivo". O texto enviado tinha uma outra retranca a respeito da
evolução das cançonetas indígenas. Depois fazia um paralelo
entre a principal linguagem de computador atual, a Pérola
Dinâmica, e antigas linguagens cursivas. "Sim, houve uma
simplificação da complexidade; mas a simplicidade ainda era
acobertada pela complexidade", pensou Wirmundo. "Afinal, a
complexidade traduzida pela simplicidade é a ancila do Partido".

O resto do arquivo enviado por Curupira tinha o aspecto de um


pergaminho ilegível.

Já o Caroço, também mencionado por Curupira, era a


nomenclatura de um banco de dados contendo toda a essência
dos Lan: os comandos de atos, atitudes, ações e reações; a
obra-prima da engenharia dos códigos abertos: o Varal – uma
seqüência de textos entre parênteses dependurados num
interminável cordão de algoritmos; os somadores de números
decimais, já que os pontos flutuantes e os números abstratos
caíram em desuso ou foram proibidos; e finalmente os registros
de entrada e saída dos trens de pulso e os manuais de
instrução.

O Curupira pertencia à segunda divisão da elite dos


programadores. Ele conseguiu ressuscitar, com uma linguagem
de programação de sua autoria, um antigo robô garimpeiro de
mensagens legalmente comprometedoras, e meticulosamente
trocou a função procurar/destruir pela função
procurar/reconstituir. O robô passou a procurar pistas de
mitologias indígenas através de um complexo sistema de
combinações de palavras-chave e associações rudimentares,
como “RAINHA VITÓRIA & VITÓRIA RÉGIA” (para localizar
documentos sobre Rudá, o deus do amor) ou “CAIXA FORTE &
CAIXA D’ÁGUA & CAIXA DE INSPEÇÃO” (para localizar
documentos a respeito de Unutara, o gênio dos poços). Apesar
de confiar sobremaneira em sua técnica apurada, Curupira
considerava mais fácil cavar um buraco no céu do que encontrar
uma receita milagrosa dentro dos territórios virtuais do Partido.
Mas para os bons jogadores de Lan, nenhuma possibilidade era
intransponível; com exceção de alguns números abstratos.

Nos intervalos racionais de sua obsessão, Wirmundo tinha a


vaga noção de como ultrapassar a barreira do mainframe e
conhecer "pessoalmente" o feiticeiro Mateus_Leme. Mas para
isso, ele teria de elaborar, na linguagem jocosa do Curupira, um
novo "módulo da revelação", um dos objetos mais poderosos
dos Lan, junto com o módulo da fertilidade, da propriedade e o
cobiçado módulo das permissões. Por questão de segurança,
apenas os três Reis Magos, os administradores do Lan,
conheciam o módulo da magia sem ostentações, a prova de
maturidade do triunvirato na execução do poder público. O
módulo da revelação, que poderia ser usado para conversões de
símbolos nominais, não figurava nos índices dos Lan, mas se
Curupira afirmava existir, era porque realmente existia. Os
jogadores compulsivos levam a sério demais suas habilidades
para apostarem no ceticismo. Certa vez, Wirmundo quase se
separou de sua concubina para poder dar cabo de suas missões
nos araxás virtuais. "Os homens que ambicionam a glória e a dor
do triunfo sabem o momento certo de arremessar a toalha
branca no ringue", pensou. Além do mais, o exílio voluntário não
poderia ser pior do que não mais dar à luz a grandes idéias, ou
aderir ao exemplo máximo da renúncia: traficar armas na antiga
Eritréia.

A busca frenética de Wirmundo tinha outras razões, como não


querer ficar circunscrito ao cada vez mais numeroso clube de
retrógrados. Mas ele reconhecia que a fuga através do jogo
também não era nada louvável. Numa ocasião, passou em sua
cabeça a possibilidade de concretizar uma fuga real, isto é,
comprar um furgão e se refugiar com sua concubina para longe
do Reino Brasílico, e gritar ao mundo: "O fogo tudo devora!".
Como conseguir o passaporte para o exterior era impossível –
em razão da peste e da nova jurisprudência do in loco parentis –
a única solução era tentar encontrar saídas vulneráveis dentro
dos Lan, mesmo que isso pudesse soar como um disparate.
Wirmundo no fundo queria partir para um lugar distante, sem a
limpeza dos "genes da linguagem", sem os sonhos dos lábios
vaginais com alfinetes, sem o controle de clorofenilalanina e,
antes de tudo, longe dos emolumentos cobrados pelo Partido.
Essa postura distanciada dos princípios do Partido era
respondida com pequenas perseguições e a acusação de
disseminar conclusões precipitadas. E esse mal-estar cívico era
a fonte de sua raiva muda pelo autoritarismo do Partido.

A ânsia pelo desempenho satisfatório num dos jogos mais


populares dos brasiis (depois do futebol-de-xisto, é claro) fazia
Wirmundo se sentir não propriamente um imperador do mundo,
mas o senhor de uma guerra tropológica. O Lan era jogado em
lugares que muito lembravam o antigo cassino da Quitandinha,
não pela suntuosidade, mas pela imponência da arquitetura.
Estes lugares eram simplesmente conhecidos como Pavilhão.
Estas construções enclausuradas eram cobertas por telhas de
zinco sobre vigas esculpidas distantes centenas de metros umas
das outras, formando vãos arquitetonicamente impossíveis. Uma
macarronada de fios e uma coalhada de terminais de
computadores obstruíam o assoalho de saibro, que se estendia
num raio poligonal de centenas de alqueires e era pisoteado por
enxames de jovens vidrados. Além do aluguel de terminais-
burros com mais recursos, havia um comércio informal de
beberagens alcóolicas, café de taurina e maconha sem semente,
considerada a erva símbolo dos dois brasiis, graças ao seu vasto
uso, tanto no campo da medicina como na área têxtil, uma vitória
da Lei Gabeira

A única coisa que os Pavilhões tinham em comum com os


antigos clubes de bingo era a interpolação de algarismos; fora
isso, essas duas ciências de operações estavam tão distantes
uma da outra quanto dois povos antípodas. Nos bingos, a
soletração dispersa dos números embriagava e comovia. Já o
ocultismo numérico do Lan servia apenas para criar fatos, que
eram confirmados apenas no campo teórico e filosófico. Como
isso era possível? Vamos supor que uma pessoa de forte
tendência idealista tenha constatado que, ao pensar num
acontecimento futuro (um acidente de carro a envolvendo, por
exemplo), esse acontecimento perdia a chance de realmente se
efetivar, pois, de uma forma singular, o fato já teria acontecido.
Pois bem, agora supondo que aquele mesmo idealista estivesse
certo e que, realmente, fosse possível evitar fatos nefastos
fazendo-os apenas se materializarem num plano mental
privilegiado, capaz de colar a idéia no corpo. Então, se era
possível evitar fatos futuros, então era possível também fazer
com que eles acontecessem...

As proposições idealistas e o plano imaterial da vida mental


eram apenas cópias baratas, reflexos flácidos do espaço dos
Lan. Esse espaço virtual baseado em texto era lidado por
programadores viciados em funções e valores que davam vida
aos topônimos e às descrições dos objetos.

Sobre a questão da Roda da Fortuna que se aninhava dentro


dos destinos, e que se fazia crível por um certo número de erros
e acertos, Wirmundo fazia-se de desentendido. Não lhe cabia
saber se um latido de cão o iria despertar de um transe, ou se
um dia morreria apunhalado nas costas. O que lhe cabia era
conjugar os verbos do Lan e efetuar os arremates de adjetivação
com o máximo de perícia possível.

O Lan dos Bandeirantes tinha um Caroço baseado nos dados de


Taunay, e rapidamente se popularizou e se proliferou como uma
jóia consensual (o consenso era o verdadeiro formador de
opinião), ganhando muitos adeptos. Uma das características dos
simuladores de mundo Lan era sua auto-expansão e os
acréscimos adicionais feitos por milhares de avatares. Por ter
uma grande quantidade de jogadores, o Lan dos Bandeirantes
era, por assim dizer, muito convincente. Wirmundo havia
conseguido com a ajuda de Curupira transportar para o Lan dos
Bandeirantes uma categoria de jogador chamada "programador
requintado", e o avatar que a possuísse ganhava bastante
cavalo-de-força.
Na vida real, quando se deparava com um problema real, ou um
desafio acima da média, Wirmundo invocava a expressão: "o
problema X é infactível dentro de minha alçada". Nos Lan,
aplicava as inversões paradoxais de von Foerster: “Na antiga
causalidade, A implicava em B que implicava em A. Na nova
(ultraje!), A implica em A!”. Em casa, era um mero leitor; nos Lan
desafiava moinhos. No açougue, não agia nem como um filho da
guerra fria, nem como da guerra de frieiras. Nos Lan, era um
ferrabrás indestrutível.

O avatar de Wirmundo no Lan dos Bandeirantes chamava-se


Paulo_de_Proença, um antigo herói do sertão paulista. Esse
bandeirante pertencia a uma categoria avançada de avatares e
isso lhe conferia certas prerrogativas, como usar o manto da
invisibilidade, as cápsulas de capsaicina, e alguns verbos
exclusivos (“armar a vista”, por exemplo). Depois de se
maravilhar com as novas comarcas quinhentistas, a primeira
providência que Paulo_de_Proença tomou ao se conectar na
última versão do Lan dos Bandeirantes foi remover um dos robôs
do bestiário, o Mapinguari, uma espécie de preguiça gigante que
possuía "unhas mais afiadas que uma verruma amolada" e
executava certas tarefas periódicas, como vigiar o arraial de seu
dono e provocar sobressaltos em bisbilhoteiros. O Mapinguari foi
gerado pela indolência e era mais uma brincadeira sem
importância, como pendurar um rato morto na traseira de um
caminhão cargueiro. O robô era parente de uma Máquina
Universal que havia passado no teste de Turing e, derivados do
mesmo "código genético", surgiram outros tantos exemplares da
criptozoologia brasílica, como o Coruqueama, um gigante
antropomórfico de quinze pés; o Sinimbú, um camaleão que
sabia se fingir de morto; e o Ipupiara, o monstro das praias
ribeirinhas.

Os seres listados no bestiário de Paulo_de_Proença não eram


propriamente robôs, na acepção da ciência da robótica, versada
em teses como: Conspiração Acidental dos Sensores
Estereoscópios, Registros de Tráfego do Nervo Corpus
Callosum e Pistas Falsas na Inferência de Distâncias. O único
ponto em comum entre as duas espécies de robôs era a
capacidade de ambas criarem modelos de realidade através de
uma consciência artificial, usando métodos estatísticos que
evitam erros de conformidade.

A manutenção do Mapinguari ocupava muito tempo de trabalho,


e Wirmundo tinha coisas mais importantes para fazer, como
aplicar técnicas de computação ubíqua para localizar um dos
livros da biblioteca do caraíba Mateus_Leme, o Contentis Mundi.
Wirmundo acreditava também que este livro continha a receita
referente ao fabrico da pasta de ibicuíba, uma planta típica da
flora brasiliensis que na época seiscentista curava todos os
males dos piratininganos. Certa vez Wirmundo quase conseguiu
localizar o número de registro do livro, mas uma queda de
energia fez o trabalho de semanas ir por água abaixo.

Segundo Curupira, para localizar esse livro era necessário criar


um robô complexo – capaz de realizar milhares de instruções por
segundo – utilizando técnicas antigas e ocultas, como apagar
comentários e alterar os vetores das chaves "e" e "ou". Mas valia
a pena despender todo esse esforço por um livro eletrônico? Por
uma receita que poderia causar uma segunda Revolta da
Vacina? A expressão "matar dois coelhos com uma cajadada"
não explicava a ansiedade ambígua de Wirmundo. Um motivo
ulterior à cura da peste o pressionava nesta busca: subverter o
Estado paternal/patronal, nem que fosse com a receita de um
bolo de curimã.

A Unesco declararia em pouco tempo a Capital do Reino


Brasílico como a sede cultural do mundo. Literalmente, a política
nacional havia se resumido ao comércio autorizado de arte
popular e solecismo. As artes típicas haviam tomado de assalto
missões comerciais e influenciado o estado bruto da política real,
apenas com o assobio ressecado dos discípulos de Catulo da
Paixão Cearense, cantadores que não tinham o treinamento
marcial dos poetas de tempos de guerra. A literatura sempre
cumpriu o papel de corruptora das intuições e, para resgatar esta
missão, tinha de partir da estaca zero de um cancioneiro
partidário.

Um dos inimigos domésticos mais ferrenhos desta cantilena


partidária era o exército de mendigos escritores – uma horda
gigantesca de tipos C que se comprazia em exercer uma
atividade literária militante urbana, que estava muito além da
realidade virtual baseada em texto dos Lan e do regionalismo
literário imposto pelo Partido. A Capital não era mais o local de
retorno de um indivíduo movido pela querência de sua terra natal
ou um acordo de grupos meritocráticos; passou a ser o rincão de
desobedientes civis que a tudo haviam renunciado, e que
reconheciam na arte muralista da cidade um forte sabor de
resistência, um sabor de schmaltz e não de pururuca. Os
mendigos estavam usando as mesmas armas do Partido como
contramedida inversa, com suas frases tacanhas escritas pelos
muros inacessíveis da Capital. Antes de virarem escritores de
grafitos, estes moribundos eram escritores comuns, que usavam
esferográficas e formulários contínuos. Optaram então pela
"literatura de rastro".

A literatura – seja nos emaranhados cordéis do Partido, nas


descrições em estilo "hiperrealista fantástico" dos Lan ou nos
grafitos espalhados pelos muros das lamentações da Capital –
voltou a ser considerada a mãe das artes e o mais valioso bem
cultural. E este era o principal argumento do Partido para
enaltecer sua prevalência. As causas disto eram inúmeras:
falhas nos padrões de compressão de imagens, derrocada da
estratégia política de mídia impressa de Goebbels, filmes em
terceira dimensão (que causaram mais impacto que o
surgimento do plástico, o quarto provedor da humanidade depois
dos minerais, animais e vegetais), entre outras.

As imagens eram usadas com parcimônia até pelos


propagandistas do Partido, que recorriam a elas apenas para
representar mascotes oficiais ou figuras de campanha de massa,
como o demônio de saias. Essa crise da icnografia começou
com os simuladores de imersão, que estavam fazendo com que
seus usuários adquirissem uma autoconfiança exacerbada em
situações reais, criando uma clivagem entre percepção e saber.
A prova disso era que ver imagens reproduzidas de um boi
sendo mutilado num matadouro soava mais chocante que
praticar atropelamentos propositais de animais nas estradas,
pois a razão de ser de uma imagem dependia da expectativa de
realidade incutida no que é mentira e no que é documentário.
Não existia perdão nem condenação para crimes sem corpo
delito, sem um cadáver hirto devorado por um canibal
especialista em não deixar vestígios – e isso era o suficiente
para um carnívoro convencer um vegetariano terrorista de que
os matadouros dos filmes eram locais de sacrifícios legítimos.

No Reino Brasílico, tudo que se relacionasse com imagens ou


um ícone pré-fabricado era monstruosamente satirizado pelo
termo “metalinguagem beta”, restrito às artes visuais. Por
conseguinte, as palavras, que no início da Revolução da
Informação haviam tomado grande impulso (auxiliado pelas
“epístolas automáticas”, que mais tarde se desenvolveram no
sistema Trocano do Partido), voltaram a ser o maior veículo de
transmissão de conhecimento. Influenciada por esta corrente, a
Inteligência Artificial concentrou seus esforços na progressão
mecânica dos reflexos de um jogador de futebol-de-xisto. Porém,
tal captação da realidade acabou por apenas arremedar o ato
em questão, ou seja, era praticamente impossível reunir num
código todas as condicionais e variantes que transformam um
carnijó num driblador. O Lan havia absorvido as melhores
características das linguagens baseadas na Inteligência Artificial,
como a geração de respostas prontas e certas por meio de um
simples comando. Para completar, foram somadas a isso as
considerações das "unidades psicossomáticas da cibernética" e
das "unidades emotivas da cibernética". A IA desamarrou as
mãos dos homens, mas isso implicou em doenças ergométricas,
que por sua vez implicaram em doenças virtualmente
transmissíveis (provavelmente a RAS, considerada uma doença
da alma).

O comitê de saúde pública do Partido não sabia exatamente a


origem da peste, mas sabia-se que esta doença estava
relacionada com as moléculas que tinham um número ímpar de
elétrons girando em sua órbita externa. O comitê sabia bem
como as doenças do corpo e do espírito concentravam-se nas
interfaces de terminais-burros (a RAS só foi erradicada
recentemente). Parecia ser inútil lutar contra a peste, pois o mal
começava a se alastrar como os braços de uma hidra. O Partido
sabia como frear a AIDS e a RAS, porém dizia ainda não
dominar completamente o alastro da peste. Também era sabido
que havia uma omissão da parte do Partido, que estava
ganhando tempo, pois o Antioxidante-3000, contendo a fórmula
curativa da peste, só precisava de uma disputa de patente para
poder ser livremente comercializado. A cura da maior peste que
assolou o país (muito mais que a Febre Amarela, a dengue e a
febre maculosa) estava a uma drástica partida de distância.

O discurso político do Partido, ladeado por um oportunista


classicismo regionalista, era satirizado pela língua travada dos
mendigos escritores, mais precisamente, vultos organizados em
torno de uma horda que exercia a atividade militante de pichar,
com giz ou carvão, um tipo de literatura que, aos olhos de
anorexia do Partido, era absolutamente degenerada. Os grafitos
eram rabiscados com uma grafia incomparável, um léxico
ideográfico anômalo, na maioria das vezes expressando frases
desconexas e heteróclitas, com letras tremidas e duplicadas,
mas de muito impacto tipológico – quase místico. A maioria das
formas de letras usadas nos grafitos tinha um significado próprio,
como os hieróglifos. Os mendigos escritores eram,
inconscientemente, os verdadeiros revitalizadores do fumisme
francês, que não pregava o conformismo nem o não-
conformismo, e sim a fraude literária. Algumas dessas
construções peculiares, compostas por idiotismos e estâncias de
versos livres, eram, de alguma forma, legíveis.

A arte estava nas ruas. A batalha de idéias, idem. A cultura há


muito tempo havia se dissociado da política (se é que já foram
unidas durante um breve período helênico) por questões de
funcionalidade. O Partido, com uma propaganda agressiva, dizia
que ambas haviam se reconciliado. Para receber tal crédito, o
governo central foi obrigado a dar um tipo de aval artístico ao
povo desfavorecido tipo C na frente da Unesco e da opinião
pública internacional, e isso significou reconhecer as
manifestações literárias populares contrárias à tendência
regionalista. O Partido afagava a cabeça dos pichadores e
regurgitava nos bastidores as vantagens de oferecer um enorme
mural (os muros de todas as construções da Capital) aos
praticantes de uma desprezível liberdade de expressão. Havia
apenas uma única condição: o Partido faria de tempos em
tempos exposições esporádicas dos grafitos, chamadas "Feiras
de Arte Degenerada".

O conjunto de manias, obsessões ou fascínios – que são a


propensão de o espírito observar o mundo de fora da retina –
amainava o caráter indefinido e imprimia nos mendigos escritores
uma capacidade para a criação de adventos caracterizados como,
por exemplo, a impossibilidade de se fugir da verdade. Isso era
refletido nos versos francos dos grafitos. Vassão, o companheiro e
imediato íntimo de Raimundo, ex-líder dos mendigos, costumava
escrever verdadeiras pérolas nos muros da Associação Cristã de
Moços. Era espantoso como aquelas letras malfeitas haviam
provocado um retorno do impossível e o reaparecimento do discurso
vago, pois negavam as contradições entre idéia geral e ideário
perpetrado – entre tocar ópera nos currais de vacas leiteiras e nos
calabouços de tortura. O que antes era desvio de caráter
vocacional da comunidade virou receita de paternalismo e
preceito para o embuste político.

O Partido estava interessado em continuar no poder com uma


retomada de autores brasileiros clássicos, em mais uma
manobra folclorista. A obra Cobra Norato ganhou a licitação e foi
escolhida como tema do Carnaval Unionista de 20__.
Independentemente do compromisso com a Unesco, o comitê
executivo do Partido tinha que oferecer algumas regalias –
avessas a seus interesses – à população tipo C, pois a atual
constituição, por descuido, havia legado das constituições
anteriores noções perigosas como "ação popular" e "ação civil
pública". Teria de permitir o germe infame de uma reivindicação
popular penetrar no vasto império das ciências jurídicas e
literárias do Partido. E o pior: teria de obrigar o comitê de justiça
a aprovar a proposta do representante geral dos mendigos
escritores em considerar o roubo dos esboços de grafitos como
latrocínio, pois o "delito do roubo era imediatamente seguido de
uma morte em vida e da criação de um cadáver ambulante".

Não havia proibições para as inscrições dos mendigos, que


tinham ainda benefícios sociais típicos de um Estado de bem-
estar segmentado, pois todos tipo C recebiam cupons
alimentícios que podiam ser trocados por miúdos de boi nos
açougues de todo o território nacional. O argumento oficial era
que, se o povo não estava devidamente assistido, era por seu
próprio arbítrio e interesse, conta e risco. Ao povo, as batatas e
os bolos com gordura trans.
As guerras de idéias, assim como as guerras corporais, sempre
valorizaram o fator gentileza.

Todos sabiam que Raimundo, o chefe dos mendigos escritores –


um homem fuliginoso e de idade irreconhecível, que usava uma
cobertura a Oscarito – era orgulhoso e não via com bons olhos o
uso da cultura para fins de promoção estatal. O Estado não
cumpria mais a função de apaziguador de províncias em guerra
e nem de braço militar; o Estado passou a ser reconhecido pelo
que sempre foi, ou seja, uma abstração que audaciosamente se
diz capaz de contabilizar os danos sociais, mas que, ao cabo e
ao final, acabava dirimindo apenas a possibilidade de perda de
seus donatários. Esta era a crença básica de Raimundo.
Inconformado com essa impostura, o chefe dos mendigos
escritores arrebanhou apátridas bêbados e vilões desesperados
para torcerem o nariz ao Partido moralmente irresponsável, e
propôs uma alternativa na busca da cura da peste: a ingestão de
bílis pura para combater a atrabílis, uma substância liberada,
segundo as idéias do antigo médico grego Galeno, por uma
disfunção da alma fisiológica, a pneumata, que tinha por morada
o reino de Pleroma. Raimundo acreditava que este método de
cura alternativa intimidou o Partido da mesma maneira que
Muzio Scevola intimidou o chefe dos assírios colocando a sua
mão no braseiro.

Raimundo era apenas um mendigo, mas tinha um poder


suportado por milhões, talvez trilhões, de pares farrapos
humanos. Agora, o que todos sabiam, mas fingiam não saber –
pois as pessoas não estavam acostumadas a dar ouvidos à sua
própria mente – era que, Raimundo, o mais roto dos mendigos,
era o potencial vice-rei dos dois brasiis. Para ele, o Antioxidante-
3000 era um blefe da classe dominante tipo A; e ser mendigo era
melhor que ser ladrão.
Raimundo acordou numa manhã com a cantoria das lavadoras
da várzea e dos carregadores de água, levantou o encerado
preto e olhou para o céu cerúleo com olhos remelentos. O céu
em condições de café adormecido refratava uma luz escura,
uma luz longe de ser diurna; uma luz proscrita do catálogo
luminista de Manet, pintor que dormia e acordava bem cedo para
aproveitar – e estudar – toda a luminosidade possível do dia.
Essa luz indefinida era pressageira e o mestre dos mendigos
escritores, com o queixo perfilado, refletiu se um atrator estranho
incorreria em suas decisões hoje. Ele estava com a peste, assim
como seu comissário Vassão. Os dois bebiam vômitos coados
de mendigos não infectados na esperança de limparem seus
corpos impuros da peste. Nada o demovia de cumprir todos os
itens da agenda, mesmo que fosse vítima de um pedaço de
estação orbital extinta. Sua decisão prioritária era convencer o
secretário-geral do comitê de cultura a liberar alguns textos do
médico Galeno arquivados no mainframe do CPD do Partido.
Esta liberação estava garantida por uma lei orgânica de saúde
pública ("...pelo procurador do comitê de saúde do Partido foi
requerido suporte a toda pesquisa voltada à erradicação do mal
da carburação celular...") e não por uma manobra do Partido
(segundo o alto escalão do Partido, isso era fundamental para a
falsa superação moral dos tipo C). Apesar de achar imoral o
atraso das indústrias farmacêuticas em comercializarem o
Antioxidante-3000, Raimundo lucrava com a procrastinação, pois
contava com um aumento do prazo para encontrar a cura
alternativa. Não queria saber sobre as notícias de que as
experiências do Antioxidante-3000 em cobaias haviam sido bem
sucedidas. As indústrias farmacêuticas, carregando o cetro da
ciência, estavam sendo omissas com a pandemia. Mas por mais
que os cientistas fossem rechaçados, todos concordavam que a
preservação da humanidade na Terra até o sol tornar-se uma
anã branca dependia da boa vontade dos homens da ciência,
principalmente dos farmacólogos.
A segunda decisão de Raimundo era se ia assinar ou não o
termo de adesão de dois novos mendigos candidatos a serem
agremiados no exército de mendigos escritores. Um tinha a
tatuagem de listras e estrelas no braço inteiro (uma tatuagem de
cárcere feita primariamente com uma agulha) e tinha
escarificações espalhadas por todo o rosto – certamente uma
tentativa de conserto dos cortes recebidos numa briga de
garrafas; o outro se apoiava numa perna de pau e estava muito
encardido. Vassão, o conselheiro de Raimundo, disse ter
desconfiado serem eles agentes do Partido. Raimundo retrucou
que espiões infiltrados podem se tornar agentes duplos. Um
pouco de hipnotismo transforma em alucinação uma simples
síndrome de Bonnet.

Outra decisão: fazer ou não uma chantagem com Wirmundo, um


açougueiro diferente dos açougueiros normais, que sempre
tinham aparência de vítimas de balas perdidas. Confessava
internamente que sua amizade era um pouco interesseira, pois
estava atento aos fumos das tabas inimigas. Suspeitava que
Wirmundo, de alguma forma, também buscava a cura da peste
com suas pavanas virtuais.

Raimundo inspecionava a coleta de miúdos em açougues, no


exercício de sua atividade de intendência, e assim ficou
conhecendo Wirmundo, apelidado “carinhosamente” por ele de
“Xepeiro”. O Xepeiro era sempre generoso com a doação
obrigatória de miúdos, mais especificamente o tutano do
ossobuco. Raimundo gostava de ver o dióxido de carbono dos
caminhões cargueiros entrar no açougue do Xepeiro como uma
sépia de calamares fantasmas, um véu negro que encobria os
coxões expostos dos bovinos. Esses detalhes atraiam o mestre
dos mendigos em suas incursões para a aquisição de rancho, o
que não deixava de ser mais uma forma de acúmulo de poder,
pois o que parecia altruísmo intendente era na verdade o
coronelismo de um capitão-mor. Entretanto, o grande chefe não
apoiava a reabilitação da patronagem cultural em nome do
nacionalismo cego. Melhor perder o amigo que a tirada
espirituosa.

Raimundo também pensava que se o homem racional não


prestava contas nem tributos a Deus por ter atingido um estágio
de humanismo totalitário, não devia agradecer, como um
platelminte rastejante, as esmolas das graças atendidas. Um tipo
C autêntico se sentia como um seguidor de conclaves. O
caminho do meio não tinha o poder de uma força expedicionária
nem o sentido de vitória sobre um inimigo natural, e não
ensinava a dominação de terras incógnitas ou devastadas. Os
mestres, portanto, caminhavam sempre na contramão de vias de
mão única e, ao serem refletidos no outro lado, extraiam o
máximo de si mesmos. Para Raimundo, seguir por aquela senda
era seguir o caminho do desejo de poder tudo, soterrado apenas
pelo poder de querer tudo; isso às custas de obter o máximo
possível com um mínimo de expensas existenciais. Mas de que
adiantava o poder material supremo se a morte batia em sua
porta com os nós frios dos ossos?

Numa certa manhã, Wirmundo e Raimundo chegaram quase


juntos ao açougue. No ar entre eles havia um vazio sem
espessura, como uma tensão antagônica sempre presente em
Jerusalém, onde o silêncio ganha dimensões despropositadas
em torno da vizinhança imediata. Um caminhão de bombeiros
com a sirene ligada frustou as vãs esperanças de se remover
uma montanha. Dizia um antigo ditado que em tempos difíceis,
as esperanças ficam mais agudizadas. Principalmente neste
momento, em que o muco pestilento era extirpado com mais
eficácia pelos purgantes populares do que pela penicilina, a
esperança se dispersa com as aparências. Talvez por isso
ninguém dava muita importância aos elevados índices
estatísticos de acidentes automobilísticos ou aos hábitos do
“povo oculto”, uma gente que não se enquadrava em nenhum
tipo previsto no triângulo da bandeira nacional.

Combater a fome com uma política de assistência foi a Moral


legada pelo Partido; a Moral Persecutória, a Moral da Força
Bruta e a Moral da Admiração Forçada passaram a impingir
menos convicção que a Moral de Disfunção de Conduta. O
caráter moral dos cidadãos cadastrados era determinado pelo
seu peso, que variava da anorexia à obesidade mórbida,
passando pelo peso ideal determinado pelo índice de massa
corporal. Paradoxalmente, a desobediência civil dos mendigos
era incentivada pelo Partido, contanto não fosse apenas mais
um conforto aos aflitos, e sim para demarcar territórios e
diferenciar a arte revolucionária ("degenerada") da arte
regionalista ("pura"). O método de Raimundo para chegar à
grandeza de um mártir era considerado pelo Partido apenas um
"desnecessário esforço físico". Os adversários enraivecidos –
mas beneficiados pela tutela do líder – viam na política do
Partido a prática de um Estado invejoso que, autoritariamente,
desautorizava os ávidos pelo imprevisível. O Estado investia
também na estética salubre da cultura popular e em atividades
excludentes, alegavam os mesmos raivosos. Por cultura popular,
entenda-se, uma arte financiada por políticas públicas, mas tão
distante das expressões sagradas quanto está Papaceia. O
artífice não mais produzia um artefato com propriedades
religiosas e utilitaristas, não mais objetos vivos capazes de
classificar informações com base em conhecimentos adquiridos
anteriormente, mas se limitava a encontrar folhas de estilo na
cerâmica azul de Delft. O Partido condicionou o surgimento de
um novo realismo socialista, forçando a entrada de novos
padrões na forma de objetos revestidos pelo caráter de
“permanência”. A tolerância cultural foi deposta, e passou a
enviar mensagens do além, como imagens falsas em nuvens. O
artífice foi trocado pelo mártir, e o artefato pela relíquia.
Para o Partido, aquele mendigo carismático não passava de um
receptor de partículas em suspensão e um colecionador
entomológico – não de borboletas, mas de piolhos. Sua
presença na esplanada causava perturbação: pelo medo
impositivo de sua figura messiânica, pelo aspecto monástico de
seu estado de necessidade, pelas admoestações que fazia aos
que davam passos em falso, pela sua catinga radioativa.

A classe política estava tentando recuperar o terreno perdido,


pois quase entrou em colapso quando os arautos da "arte
degenerada" passaram a acusá-la de irresponsabilidade moral e
de terem tentado construir uma Moral, como faziam os jogadores
de Lan.

Quando o sagrado atravessava crises de sentido (e, por


conseguinte, da moral política), o carisma dos etilitas era
elevado às alturas. A ladainha litúrgica dos revolucionários
sempre pregou, nas entrelinhas contínuas dos séculos que, para
ser um administrador de almas penadas ou um mágico de
epifanias era preciso não admitir, nem na hipótese de uma
dádiva em falta, o compadecimento por afeição.

Wirmundo achava particularmente Raimundo mais


condescendente que contestador, e silenciosamente mantinha
reservas quanto às suas táticas. Aquela "postura de casta", que
somente valorizava os prejuízos incessantes, não sustentava
maiores arroubos além dos rabiscos e frases sem efeito. O líder
cego não reparava que, por uma insistência decisiva da elite, os
cachorros continuariam a ser atropelados e um dia continuaria a
ser diferente do outro (pelo menos até segunda-feira). O hábil
Partido respondeu às seqüelas morais causadas pela peste com
as "missões apotropéicas" dos sanitaristas oficiais, uma
corruptela das missões do Marechal Rondon. Isso surtiu tanto
efeito que a massa tipo B delegou a reconstrução psicossocial
do país aos próprios derrocadores e promotores da sociopatia
vigente. Raimundo considerou essa manobra o ultraje de uma
amante ciumenta.

A divergência entre Wirmundo e Raimundo não impediu que os


dois iniciassem um relacionamento mutualista e um grau de
dependência maior que o existente entre a natureza humana e a
Mãe Natureza.

Raimundo colocou um latão no chão e disse com inflexão


mandatária.

- Como estamos, Xepeiro? Como está o ossobuco hoje? Quero


tudo de primeira.

Não houve paixão nem desinteresse na resposta de Wirmundo;


apenas a insinuação de alguém que sabe uma resposta, mas
finge não sabê-la.

- Não, Raimundo. Hoje não vou doar tutano, como de costume.


Vou doar outras entranhas, com mais graxa polisaturada.
Escolha no menu o embutido do bucho ou a rabada amarrada.
Quer saber por quê? Digamos que é uma espécie de vingança.
Ontem, ao sair do açougue, vi dois dos seus mendigos revirando
meu lixo. Fui falar com eles, sem ameaçar. Até pensei em
chamá-los para entrar, mas estavam completamente bêbados e
com o altímetro desnivelado. O bafo da cachaça de um deles
quase maturou minha carne! E como falavam travado! Mas deu
para perceber que queriam encontrar registros de encomendas,
alguma coisa assim... Então você está me espionando?
Desconfia de alguma coisa? Vamos abrir o jogo.

- Como sabe que eram dois dos meus, Xepeiro?

- Não existe nenhum mendigo que não esteja ligado direta ou


indiretamente ao seu exército de escritores desnaturados.
A Terra parou naquele momento e Raimundo mudou a
abordagem para algo mais seco.

- Seu açougue carrega uma nódoa de objetos roubados.

Os princípios gerais das ações dos dois conversadores foram


entendidos nas entrelinhas de seus efeitos colaterais. Uma briga
estava sendo procurada, e os rivais aceitaram a provocação
mútua com uma condição: que a vingança pudesse ser
promovida pelas antecipações de réplicas intencionalmente
impensadas. Raimundo prosseguiu:

- Você se prostituiu à lógica do Partido, Xepeiro!

- Então fico feliz em praticar as duas profissões mais antigas do


mundo!

Raimundo desbastou aquele espirituosismo usando a


imaginação a serviço do medo.

- A profissão mais antiga da humanidade é a arte de representar.

- Quer ver os meus registros? Olhe este formulário! - Wirmundo


estendeu uma réstia seqüencial com os logotipos de uma
franquia de logística e carimbos do comitê de comércio.

- Olhe! Minha vida é transparente. Não contesto o Partido por


princípio. Não apoio sua plataforma, mas não quero ter
problemas burocráticos. Já tenho muitos problemas...

- Problemas? Veja, Xepeiro. Tenho um companheiro que está


morrendo, o Vassão. Você sabia que quem está infectado pela
peste e come muita carne vermelha acaba vendo o mundo
através de um filtro avermelhado? Vassão já está vendo sangue
escorrendo das paredes. Tenho dúvidas sobre a veracidade das
palavras que ele está escrevendo sobre minha pessoa. Eu
também sou gram-positivo. Minha morte urge... Quero, antes de
morrer, mostrar para a comunidade que a peste poderia ter sido
curada há muito tempo atrás com um concentrado de bílis pura,
que não precisa de nenhum floral... Ao mesmo tempo, quero
oferecer a esta mesma comunidade uma literatura que contenha
em si a tempestade do ímpeto e a fúria cega do vandalismo.
Quero deixar como testamento a possibilidade de não haver
governos nem literatura. Quero antes de tudo a cura espiritual,
mas não como quer o Partido, que abusa da propaganda
subliminar. Quero a cura para os males de maneira geral...

Wirmundo cortou um pedaço de pata de vaca com uma


machadinha parecida com um tomahawk.

- Cura para todos os males? No plano espiritual? – e como uma


beluga que vem à superfície não em busca de ar, mas de um
tanque de oxigênio, tomou alento e disse:

- Não vejo como sua boa vontade de renúncia pode superar a


má vontade do poder.

A sujeira e o modo simiesco de coçar a barba de Raimundo era


talvez – fora seu discurso – o que mais amedrontava a empatia
de seus interlocutores. Wirmundo estava tentando acabar com
qualquer precedente neste sentido.

- O Antioxidante-3000 é uma farsa, Xepeiro! A tentativa de


politizar a arte popular é uma farsa! Tudo que vejo ao meu redor
é uma farsa! Desconte os grafitos. Somente os grafitos são a
verdade!

- Vocês são dogmáticos e ficam incitando a discórdia. São


orgulhosos e presunçosos na negação do mundo físico. Loucura
afirmar que os grafitos são a única verdade. São insultos a
maltrato, delírios de síndrome de abstinência, ódio gratuito a um
inimigo invisível, insubmissão doentia, messianismo patológico,
chame do que quiser. Não acredito nas suas opiniões sobre os
Lan... Absurdo afirmar que as descrições metafóricas conspiram
contra um suporte inexistente. Daqui a pouco você vai começar
a alegar que os Lan são uma forma de conspiração do Partido...!
Na minha opinião, o imediatismo estético do meu jogo faz mais
estragos na estética mediada do poder dominante do que seus
grafitos! E penso que vocês são joguetes nas mãos do poder.
Estão sendo afrouxados no molinete, mas logo serão puxados...
Vocês não deveriam aceitar essas ofertas alimentícias! Isso é
como comer bife envenenado na mão de um dono sádico... Ou
como comer um banquete debaixo de uma espada presa só por
um fio de cabelo...!

- Imagem clássica, muito clássica. Muito bem, Xepeiro... É por


isso que eu gosto de você!

E Raimundo mudou para um tom mais parecido com o barulho


de um bate-estaca.

- O Partido está se enfraquecendo a olhos vistos! Nós sugamos


o fisiologismo deles e cuspimos guerrilha literária... Você não
percebe que os benefícios das cotas de miúdos vai dar mais
poder ao meu exército? Carne para a mente! Mente e carne! A
cabeça é um motor! Você sabia que o tutano prorroga um pouco
mais a vida dos infectados?

- Não. Isso é loucura... Invenção sua...

- A minoria silenciosa, a qual você pertence, vai nos apoiar na


hora certa. E também sabemos cortar o fio de prata na hora
certa. O povo já tem seus chuços! Você critica nossos grafitos?
Só um idiota não perceberia os créditos dos mendigos como
porta-vozes de uma autoria bastarda. Não acho que os
cancioneiros do Partido saibam o que eu sei. Vou contar a você
um segredo. Não conte para ninguém. O segredo da cura da
peste está em retirar o excesso de atrabílis do corpo. Existe a
bílis, que é suco bom, e existe a atrabílis, que é o suco ruim. A
atrabílis contamina nosso espírito fisiológico, a pneumata, uma
entidade imortal que...

- Que um dia vai pegar carona num disco voador e ir para o


Nível Superior?

Wirmundo, que cortava um outro pedaço de pata, quase perdeu


o dedo mindinho ao se esmerar na intervenção zombadora. Ele
logo se lembrou de um ditado que dizia ser prudente não
incrementar um objeto incompleto, pois isso seria como decretá-
lo à morte.

Raimundo aproveitou a distração do cínico e trocou a caneta de


luz de seu livro caixa. Feito isso, carregou seus latões com a
rabada e voltou para as deformações perspéticas do seu
acampamento assobiando uma sinfonia desconcertante.

Algum tempo após a saída de Raimundo, um funcionário do


comitê do tesouro entrou no açougue de Wirmundo com a
arrogância típica de um servo que palpita mentiras ao seu
senhor. Ele se vestia com o tradicional uniforme: uma espécie de
pijama preto inteiriço com capuz, a tarja com os dois triângulos e
a calça bege. O filho da sinecura olhou ao redor e pronunciou
com as vistas de lentes grossas.

- Tenho aqui um mandado para fazer uma fiscalização no seu


estabelecimento. Você foi acusado de burlar a cota de miúdos.
Temos estado de olho em você, açougueiro. Ouvi por aí que seu
apelido é Xepeiro. Outro dia li um grafito dizendo que o Xepeiro
não tem colher, pois come de concha. Muito sugestivo...
Pela primeira vez na vida, o funcionário reparou que havia feito
uma citação da "arte degenerada". Wirmundo tinha a
consciência tranqüila, pois sabia que seu livro estava atualizado,
com todas as baixas de doações em ordem. O funcionário
continuou a ferra.

- Soube também por aí que anda com um demônio de saias e


que pratica atos libidinosos com ela.

- Atos de amor, por favor.

- Chama de ato de amor uma faina porca? Pensa que é um tipo


A de alto escalão? Você na verdade é um barbeiro, um inseto.
Então? Já praticou aquela porcaria com a boca...? Com o filtro
na língua?

Wirmundo notou um enorme perigo naquelas palavras.

- Eu pago todos os emolumentos do Partido e estou em dia com


as doações. Creio que são justas as taxas sobre as
arrecadações... Jamais me esquivei de nenhum dever nobre
para com o Estado e o Partido. Quanto à minha vida privada,
não há lei que proíba o ato de amor.

O funcionário o marretou com os olhos em brasas.

- AINDA NÃO! Ainda não.

O humilhado continuou seus cabimentos.

- Vou confirmar minhas obrigações – e calmamente retirou o


avental manchado, abriu uma gaveta de metal e de lá retirou um
livro com capa de marroquim. O funcionário se aproximou com
falta de civilidade.
- Me dê sua caneta de luz.

Wirmundo olhou para a porta-caneta e lembrou do pequeno


entrevero que tivera com Raimundo e de suas patéticas
revelações paramédicas. O descuido do desafio havia aberto
uma guarda.

- Essa não é minha caneta de luz. A minha tinha a figura da


Norma Bengel com maiô líquido!

- Está insinuando algo, adorador de imagens?

Wirmundo entregou a caneta mesmo assim. O funcionário


ajeitou os pequenos óculos e, com um dedo exangue, fez a
caneta de luz correr a listagem de vistos.

- Seu livro está com uma defasagem de quatrocentos gramas.


Como você deve saber bem, a cota mensal imposta a todos os
açougueiros dos dois brasiis é de trinta quilos ao mês de miúdos.
Seu livro está demonstrando que justamente hoje você sonegou.
É realmente muito azar seu eu vir aqui hoje.

- Isso significa que vou ser multado?

- Perfeitamente -- repetiu o funcionário com a expressão


prazerosa de um mateiro de necrópole.

Wirmundo pensou em traição e na sua incapacidade em


questionar as delações do Partido. Em um relance, pensou na
acusação que Raimundo sempre lhe fazia: de que, frente às
imposições da vida militante, seus contrafortes decisórios se
esfacelavam com os canhonaços da passividade.
O réu tinha um rol de réplicas ao seu favor, como a relatividade
de um caráter em busca de um confronto contra si mesmo, e a
seriedade sucumbida por sentimentalismo. Porém sua reação
frente a esse tipo de acusação era exatamente a de ficar calado
em sua ilha liliputiana por não acreditar que, se ele próprio não
tinha o direito de exigir mudanças num “eu” que ainda não havia
passado do estágio de formação, um “eu” externo tinha menos
direito ainda. Sua atitude serena e sua vontade recalcada de
imposição o condenavam a ser um eterno consignatário do
consentimento partidário, por mais que lutasse contra isso.

- Eu sempre doei uma cota maior de miúdos para as colunas tipo


C! Tenho sido muito generoso... Penso que é uma falha técnica.
Reconheço minha falta e pergunto qual o valor da multa.

O funcionário levantou os olhos de rapina de sua leitura crítica.

- Tenho uma proposta. Estamos a poucos dias do Carnaval


Unionista. Eu tenho que vender rifas para o levantamento de
fundos de produção. Eu dou a baixa e você compra lotes da
minha rifa. Os valores são iguais: trezentos talentos.

- Prefiro pagar a multa.

- Então a multa é o dobro.

Sem perguntar maiores detalhes, Wirmundo abriu outra gaveta


de metal leve e retirou algumas moedas. Queria poder pagar
trinta dinheiros ao funcionário, mas o lote tinha um outro padrão
monetário. Ele pagou a quantia certa sem muito remorso de
perda material, já que os objetos e as coisas tinham perdido seu
valor real, o valor da "coisa" que busca ser reconhecida como
infalível de perda; ou pelo menos o valor de mercado de antes
do degelo cambial mundial.
Os tipo C eram sábios neste ponto: eles abominavam a renúncia
de objetos usados que estavam inseridos na categoria "meia-
vida", pois nenhum objeto adquirido era encarado como
descartável ou de vida breve, mas era utilizado até o último fio
de lona, a última fagulha de hulha, a última molécula de
borracha. Atitudes frívolas como ver o raio verde do crepúsculo,
ou ouvir os acordes de uma rabeca de brinquedo, lançavam um
feitiço do luxo mais potente que as propostas de riqueza fácil.

O Partido via a atividade do exército de mendigos escritores


como inofensiva, impossível de tartufiar uma mensagem de
revolta; e acreditava que se a vida estava tentando assumir o
lugar da arte, então era porque todos os modelos estavam
esgotados. O Partido, os mendigos e os jogadores de Lan
estavam tentando criar um modelo novo: um aprumo em meio ao
desalinho.

O funcionário do comitê do tesouro permaneceu no


estabelecimento mesmo após a paga. Um nítido abuso,
considerando que Wirmundo possuía o broche do Partido e o
poder das insígnias sobre os subordinados. Não fazia questão
de ser um herói emoliente (o herói de epopéia, ao contrário do
herói atlético, se rende mais facilmente ao destino escolhido
pelos deuses); apenas um homem comum em busca do herói
diário e ordinário, ou um homem disposto a ser o manequim de
todas as coisas.

Uma ambulância passou correndo e Lançou um gemido de


porco castrado, e isso acordou o funcionário de seu sonho
diurno diabólico. Ele ficou por um tempo observando alguns
garotos brincando com miniaturas de automóveis na quadra de
um dos milhares de estacionamentos gigantes da Capital
Federal. Finalmente saiu dizendo uma frase enigmática:

- Guaçu mandou lembranças.


Wirmundo fechou o açougue e saiu de sobremarcha em direção
ao acampamento dos mendigos escritores, que ficava perto da
Casa dos Bandeirantes. A frase final do funcionário fez com que
ele ignorasse mais adiante os destroços de um carro rabo-de-
peixe que havia caído de um viaduto. Havia um cheiro forte de
aguarrás no ar. O carro entrou como uma pororoca nas
bossagens de um edifício público, e nem a mais pervertida tara
sexual podia tirar algum proveito daqueles ferros retorcidos e
corpos desfigurados (nunca havia feridos nos acidentes de carro,
apenas baixas). Não era à toa que para fazer um seguro total de
um automóvel, era imprescindível a apresentação de um
eletroencefalograma do segurado.

Os transeuntes nem ao menos tinham ânsias com o incômodo


daquela situação. Wirmundo chegou até a assobiar um tema
improvisado. Alguns caçadores de acidentes também estavam
presentes. Estes espectadores, deitados sobre espreguiçadeiras
debaixo dos viadutos mais movimentados, esperavam
pacientemente por acidentes lendo biografias de Henry Ford, o
inventor do lema “Não critique. Encontre soluções”.

Apesar de ter passado por um desconforto habitual, Wirmundo


não queria que suas recentes mazelas com o Partido
incentivassem uma cizânia com os epígonos de Raimundo, e
isto significava não perder a dignidade do seu retraimento. No
fundo, admirava as provações que não tinham o caráter de
prisões domiciliares ou trabalhos comunitários.

A intenção de Wirmundo era puramente corretiva e não tinha


nada em comum com a distribuição gratuita de esforços
afirmativos. Houve uma invasão de liberdade individual mais
incisiva que dizer a uma pessoa não muito conhecida “Sonhei
com você esta noite”. A situação exigia uma atitude desprendida.
Ele sabia que as guerras cometidas em nome de uma verdade
pretensiosa eram alavancadas por uma força de resistência tão
ancestral quanto a descoberta do poder de transformar a
matéria. "Esta força teve início com uma irresistível vontade de
chutar latas de alumínio jogadas no chão, e terminou com as
raízes das árvores quebrando o asfalto da rua", pensou.

Wirmundo estava decidido a não entrar no acampamento como


um centurião romano, mas também não queria espantar sua
modéstia justificada com o desenleio da ira divina, ou seja, não
queria se deixar levar pelas emoções. Por certo, Raimundo tinha
bons motivos para ter feito o que fez. "Todos os motivos têm um
significado. E todos significados sempre vêm à tona".

Um mendigo vestido com um abadá branco encardido estava


fazendo um discurso inflamado para uma platéia imaginária.
Quando Wirmundo passou ao seu lado, o mendigo fez uma
previsão:

- Vassão está nas últimas. Sua história nunca será contada...

Ao penetrar mais no núcleo subumano do acampamento,


Wirmundo notou um alvoroço em torno de dois mendigos
contendores que pareciam disputar um livro com a capa
ensebada. O medo do desconhecido deslocou sua consciência
para o estereótipo do membro de uma nave espacial que se
volta contra a tripulação por ter sido incubado por um
"hospedeiro".

Um dos mendigos estava na posse de um livro e gritava


sobremaneira com o outro.

- Fui eu! Eu achei o livro de Cláudio Galeno!

O outro respondeu no mesmo volume.


- Aquele setor era meu! São ordens de cima, companheiro! "...a
cada elemento do grupo será designado um quinhão de
vasculho para fins de separação... " cito de cabeça uma de
nossas normas...

Raimundo, com a imponência de sua coroa de plástico suja de


barro, se aproximou dos dois mendigos e se apoderou do livro
da disputa.

- Onde conseguiram este livro?

- Foram os dois novos mendigos... O tatuado e o aleijado... Eles


acharam, mas jogaram fora... Não deram a mínima importância...

Raimundo começou um discurso cabotino:

- Vocês deviam dar mais ouvidos à voz da fraternidade, e não da


razão! Não digo a fraternidade da solidariedade, mas a
fraternidade das sete velas, que se apagam no túnel de vento
que vai da concepção até a morte. Temos aqui, neste humilde
assentamento, pessoas infectadas pela peste que dependem
apenas de um auxílio rápido... O Partido tem a nos oferecer um
produto duvidoso, o Antioxidante-3000, que ainda não foi
comercializado por motivos de ganância. Se dissessem que a
poeira de mica cura um mal qualquer, forçariam o povo a
acreditar... As proposições do Partido são oportunistas! Um jogo
de vida ou de morte foi decidido para resolver o impasse dos
dividendos do produto! Que prioridade é essa? Tudo para meus
amigos e nada para meus inimigos? Nem um cumprimento
marcial? Então que o mundo do governo exploda! Eu tenho
razões para crer que não necessitamos deste tipo de cura e que
a justificação final da pneumata está em algum parágrafo
perdido...
Raimundo levantou o livro para cima com um braço e baixou sua
cabeça.

- Será que em algum parágrafo perdido deste livro?

A multidão de mendigos estava magnetizada. Raimundo


levantou a cabeça e berrou.

- EU RESPONDO QUE... TALVEZ NÃO!

Um resmungo generalizado quebrou o encanto.

- Como não?

- Como não?

Raimundo recapitulou:

- Eu não disse que não. Eu disse que talvez não. De qualquer


maneira, a resposta está nos textos que o Partido vai ser
obrigado a nos entregar por força da lei! Ouçam...

Raimundo estava inchado.

- Estou mourejando dias e noites para descobrir o antídoto para


a desgraça que se abateu sobre nós. Temos que ser abnegados!
Temos que ter uma presença de espírito acima de qualquer
conspiração. Temos que escrever e escrever contra as forças da
idiocracia! Somos gente de força e pretensão calculada, não
somos? Usamos a pretensão como bucha de canhão, não
usamos? Sim, hei de ser pretensioso! Se for preciso colocarei o
mar vermelho dentro de um baldinho azul! Somos semeadores
de tempestades cerebrais, não somos? Antes escrever e morrer
do que padecer e calar! Antes morrer lutando do que morrer em
luto!
A multidão de mendigos que se formou para ouvir o discurso de
Raimundo acordou com a sátira cínica e as rimas do discurso e
rapidamente se dispersou ao som de um leve burburinho. Alguns
começaram a treinar os esboços do que parecia ser mais um
ataque de grafitos.

Wirmundo se aproximou de Raimundo, agarrou seu braço e


disse firme:

- Você está querendo aumentar meus problemas com o Partido,


Raimundo?

- Xepeiro... Eu não sou ingênuo! Tenho informações que você


está procurando uma coisinha em seu sertão de texto. Você não
é exatamente um parvo viciado em jogos... Sei que ambiciona
coisas maiores... Pena que não seja uma pessoa exatamente
aberta.

- Quem deu essas informações?

- Um homem numa cadeira de rodas rosa choque.

- Você não sabe exatamente do que está falando...

- Não mesmo? Por onde começar? Sei que um antigo


bandeirante, nos tempos das entradas e bandeiras, sem mais
nem menos, passou a usar uma determinada pasta no
tratamento da malária. Uma espécie de óleo de noz. Sei também
que você pode fazer reconstituições históricas perfeitas no seu
jogo. Você poderia descobrir algo sobre esse assunto para seu
amigo Raimundo? Sobre essa pequena noz? Não gosto de fazer
chantagens, mas acho que você já sentiu meu poder de fogo.
Diga-me afinal, o que significa a sigla Lan?
Wirmundo precisava de um rodeio. "Raimundo sabe o que se
esconde por trás da receita de ibicuíba? Não é possível ser
apunhalado assim pelas costas. Muito difícil trabalhar assim
contra todas as expectativas". Ele acendeu um cigarro e fez as
palavras de seu rodeio passarem entre os círculos de fumaça.

- Me lembro de um antigo médico nordestino que afirmava ter


descoberto uma cura para a dementia canicula através de uma
operação de hérnia de disco. No campo da medicina tudo pode
acontecer...

- Aquilo foi obra melindrosa do mais puro acaso!

- Espere aí, Raimundo! Você está querendo me envolver em


suas conspirações políticas? As indústrias farmacêuticas
sustentam a máquina do Partido e eu tenho certeza de que eles
estão se esforçando ao máximo para comercializar o
Antioxidante-3000 o mais rápido possível! E como comprovaram
os testes, o Antioxidante-3000 efetivamente cura a peste. Por
outro lado, creio que suas idéias sobre uma cura alternativa
cheiram a charlatanismo político. Antes de você se revoltar
contra Vassão, que era seguidor da Tábua da Esmeralda de
Hermes Trismegisto, você era seguidor de Paracelso, agora é
seguidor de Galeno. Há pouco tempo atrás, você recomendou
um boicote ao sal, pois o "sódio ataca os humores minerais".
Hoje você prescreve... Prescreve... Eu nem consigo falar sobre
isso sem ter engulhos.

- Respeite o nosso Elixir da Vida, Xepeiro. Deixe-nos sermos


comedores de vômito. Se não acredita, não detrate. Chego a
pensar que você realmente é um deles... Não adianta ser amigo
de um mendigo escritor...

- Você sempre me criticou, por quê eu seria seu amigo? E qual a


razão dessa mudança súbita? Por quê você está se desviando
de suas idéias sagradas? Você não era o maior crítico do
avanço tecnológico da escrita no meio eletrônico?

- Estou querendo unir forças contra os produtos do Partido.


Apenas busco um aliado... Não é querer muito, é?

- Você sabe que esta luta é desigual! Vai acabar se metendo no


meio de um duelo de titãs e sendo pisoteado como uma barata
radioativa.

- Então, vida longa às baratas!

- As baratas não sobrevivem às chineladas, meu caro.

- Você está blasfemando contra a necessidade metafísica? É um


egoísta que não sabe nada sobre a pneumata e...

- Quer que eu acredite nessa besteira? Uma pessoa que se diz


líder não pode se prender à suposições não comprovadas. Não
pode acreditar que a imaginação médica pode tudo contra a
ciência médica. Quem conhece os anais médicos conhece
tudo...

- Você não fica bem neste papel de bajulador, Xepeiro. Permita-


me uma correção. Quem controla as indústrias farmacêuticas é o
Partido, e não o contrário. Pensando bem, tanto faz quem
controla quem neste corpo social doente! Ambos estão metidos
numa competição para resolver quem cura primeiro o mal de sua
falta de competência. Diga-me uma coisa... Por quê tanto
interesse pela temática dos bandeirantes?

- Nada em especial. Poderia ter escolhido um código pirata da


Guerra dos Cem Anos, mas preferi não chamar muita a atenção
do Partido.
- Isso não me convence...

- Só quero me divertir, seja no interior paulista antigo, seja num


jogo de truco digital. Tudo em nome da diversão... Quero apenas
beber, programar, conhecer alguns amigos da rede. Gosto de
ver de longe os jogadores de Lan tomando pingas nos balcões
dos bares do Pavilhão. Gosto de ver umas pequenas, por quê
não? Ou você acha que eu me resigno à abstinência sexual
proposta pelo Partido? Trabalho de dia, pois o trabalho é um
dever, mas não ignoro para onde aponta meu membro à noite.
Sou e quero permanecer um cidadão invisível, mas respeitado.
Não sou a pessoa certa para lutar contra suas chantagens e
represálias... Está falando em revolução? Não conte comigo...
Quer um amigo simplesmente? Neste caso podemos conversar.

- Quer dizer que nunca ouviu falar do que eu disse?

Wirmundo foi acometido por uma onda de suposições e de


provas que não precisavam de motivos. Percebeu também que
uma reação de incredulidade poderia transformar seu desagravo
numa inferência de suspeita, ou no espectro de uma idéia.

- Definitivamente, não.

Raimundo ficou momentaneamente em silêncio e começou a


caminhar na direção oposta sem insistir mais nas respostas.
Seus contornos estavam borrados pelas sombras das árvores, o
que o fazia parecer um astronauta em direção ao sol, com seu
foguete em adiantado estado de derretimento. Alguns mendigos
estavam estirados em colchões putrefatos, com suas barbas
cobertas por fios secos de bílis. Outros estavam estirados em
móveis capengas recolhidos em lixões. Somente uma casta com
tamanho conhecimento biliar podia acreditar que a atrabílis, a
temedíssima bílis negra, contaminava uma substância
incorpórea não comprovada, e que só a bílis coada podia anular
os efeitos desse mal.

Wirmundo se aconchegou a uma turpe de mendigos acrobáticos


e buscou uma forma de desencurralar seus pensamentos e
descongestionar seu nariz. "É melhor eu ir acostumando meus
ouvidos ao som do silêncio, pois em breve ele será meu único
companheiro", pensou.

Num edifício de setenta e dois andares construído no meio do


Paço Municipal, um grupo de consultores do Partido discutia
com a aspereza requerida pelo cargo as pautas do dia. A
principal delas era sobre a evolução dos custos para a
consecução do que consideravam “o maior evento cívico desde
as comemorações do término da Reconstrução e do
Sexticentenário”.

O presidente do Partido – um negro parrudo que se firmou


somente com despojos de guerra e sobras de campanha –
estava muito ansioso e, sem disfarçar esta impropriedade, acuou
seus consultores com perguntas diretivas a respeito das
matérias secundárias da agenda. Os assessores enfileirados
falavam na seqüência, um de cada vez.

- Como foi argüido na ação, a desestruturação da Banda do


Corpo de Bombeiros tende a gerar uma situação de difícil
reversão na hipótese de declaração de inconstitucionalidade da
emenda aprovada pala majoração do Partido...

- ...O corpo militar, sob a tutela do comitê de segurança nacional,


passou a ser responsável pela elaboração e execução da
política estadual de defesa civil e das medidas de prevenção de
combate à incêndios. Isto está disposto na organização e
funcionamento da administração...
- ...Já que o presidente do supremo tribunal do comitê de justiça
salientou que nenhum processo precedente que tramitou no
tribunal tratava da extinção de um dos órgãos previstos na
constituição do primeiro Ano Geofísico...

-...E é de inequívoca plausibilidade a usurpação da iniciativa


privativa do mandado. Não se trata de matéria relativa ao regime
jurídico dos servidores públicos...

-... E quanto ao recesso judiciário do comitê de justiça, o


presidente já determinou que os representantes da casa militar,
sob a tutela do comitê de segurança nacional, e do comitê de
meio ambiente comprovem uma tese de soberania nacional.

O presidente negro foi lacônico.

- Foi determinado que o Corpo de Bombeiros ficasse


responsável apenas pela banda?

- Sim, senhor presidente.

- Despachado.

Após um segundo de alívio burocrático, a sala foi acometida por


um silvo surdo da cobra Boiúna.

- Então, meus senhores? Vamos ao que interessa? Como está o


trabalho da força-tarefa às vésperas do Carnaval Unionista?
Onde está o relatório do comitê de inteligência? Os mutirões
estão rendendo? O líder dos tipo C já foi despistado?

Os excessos escusos da segunda parte da agenda explodiam


como bombas-relógio. Para evitar imprevistos no dia do
Carnaval Unionista, o Partido deliberou a criação de uma força-
tarefa, cuja missão era remover previamente os infectados tipo C
das proximidades do desfile.

Um consultor falsamente bem trajado (usava uma gravata


estampada com versos) adiantou.

- Excelentíssimo. Tudo anda como planejado. As duas indústrias


farmacêuticas concorrentes, a dos Maués e a do Grupo dos
Dois, emitiram uma carta de compromisso. Com relação aos
mendigos escritores, há dois agentes infiltrados entre os
decadentes que irão difundir falsos testemunhos. O líder dos tipo
C, um mendigo que atende pelo nome Raimundo, está sendo
despistado devidamente. Os funcionários do comitê de
inteligência conseguiram infiltrar entre os infames o livro apócrifo
de Galeno. Provavelmente a essa hora já o estão consultando
avidamente. O plano é fazer com que eles realmente acreditem
naquela história insana de que a atrabílis contamina uma "alma
fisiológica", naquela medicina de fundo de quintal. Mas como
eles são gnósticos, essa operação vai ser tão fácil como colocar
açúcar no mamão.

- Muito provavelmente esta história não vai se alastrar, disse


outro assessor.

- Nunca julgue os critérios da massa. Tem gente que daria um


braço para salvar um galo de briga – sobrepôs, ou melhor,
enterrou o presidente negro.

Um consultor médico do Partido se levantou e interviu:

- Este negócio de alma fisiológica certamente é uma comédia.


Vamos nos ater aos fatos científicos. O problema é que a
oxidação sempre vem acompanhada pela redução de um
receptor de elétrons. Este processo, nas células do corpo,
chama-se redox. A respiração é uma reação controlada entre
hidrogênio e oxigênio, cujo produto final é a água. O oxigênio,
em alguns casos, pode ser um poderoso agente de lesões
oxidativas causadas pela formação de radicais superóxidos. O
que o chefe dos mendigos não sabe, e provavelmente nunca vai
saber, é que a peste é um efeito do excesso de oxigênio e da
redox.

Um assessor acrescentou como um penetra.

- Essa palavra tem um grande poder publicitário... Já vejo escrito


na embalagem do nosso Antioxidante-3000 a frase: "Produto
anti-redox"...

- Isso se os Maués ganharem a disputa da patente da copaíba-


vermelha...

O presidente negro não parecia estar muito interessado em


lições de bromatologia e insistiu em assuntos mais tecnocráticos.
Cada detalhe de sua rudeza era meticulosamente frisado para
dar a impressão de que sua incumbência política era
derrogatória. Mas a verdadeira impressão que transmitia era a
de que suas incumbências transitavam entre o cínico pranto de
uma carpideira e o cínico convencimento de um fazedor de
milagres.

- Fico admirado com tamanha solicitude, senhores, mas agora


vamos falar do que interessa. Estamos preparando um pLano
muito complexo de moralização da nossa nação dividida. Tudo
precisa estar funcionando perfeitamente. Pergunto: a fantasia de
Cobra Norato já está pronta? Vocês estão orientando as
costureiras para que ela seja feita com apenas dois tipos de
material, spandex e bombazina? Os mínimos detalhes devem
transmitir a idéia de pacto entre os dois brasiis do Reino
Brasílico. Nossos cancioneiros já ensaiaram as quadras de
Catulo? E as quadras da fase Arraial do Armorial? O tema de
Anacleto de Medeiros já foi exaustivamente ensaiado pela banda
do Corpo de Bombeiros? E as portadoras e subportadoras dos
satélites da nossa órbita geoestacionária já estão disponíveis?
Quero todos os funcionários do Partido, de todos os escalões e
modalidades, de sobreaviso. Quero ver a área do desfile, a
Praça do Relógio, livre de infectados e adolescentes
vagabundos. Quero ver também os bulevares exteriores e os
circuitos parciais secundários desimpedidos. Quero ver se
vencemos também a limpeza dos grafitos em torno destas áreas,
pois não quero que a comunidade global perceba a imundice da
nossa Capital. Precisamos fazer nossos funcionários
acreditarem que, se houver falhas perante as câmeras da
Unesco, eles deverão injetar ar nas veias. E isso inclui os
senhores.

Um outro consultor, que sabia que aquela última frase não era
uma metáfora, engoliu a seco e explicou sucintamente os
detalhes do desfile do Carnaval Unionista:

- Senhor presidente. O desfile também vai passar a mensagem


de cura. Explico. O primeiro carro-alegórico vai apresentar a
Escola das Árvores. Cobra Norato, com uma fita no pescoço e
segurando uma flor de tajá, vai estar ao lado da filha da Rainha
Luzia, com seu anel e seu pente-de-ouro. A comitiva do casal
será formada por foliões fantasiados de Minhocão, Bicho-do-
Fundo, Cunhado Jabotí, Rei-de-Copas, Boi-Queixume e outros
personagens menores. No segundo carro-alegórico, vai estar a
Cobra Grande em baixo de um painel de cacho de estrelas. Um
folião fantasiado de tatu-de-bunda-seca vai delatar a união de
Cobra Norato com a filha da Rainha Luzia. As estrelas sobre a
Cobra Grande vão cair e provocar um incêndio. A Cobra Grande
vai então saltar deste carro para o primeiro carro, onde tem a
alegoria de um rio. No terceiro carro estarão a Mãe do Lago,
com sua figa de Angola, e um Pajé encarnado com o espírito de
onça. Eles farão uma espécie de benzedura do incêndio através
das fumaças de mucurana e da nossa erva nacional. A partir do
terceiro carro, virão os carros secundários. As fantasias de todas
estas entidades já estão prontas com os devidos tecidos e
acabamentos.

- E entre os carros secundários, além do carro de bombeiros,


haverá um homenageando o centenário de Álvaro Apocalipse,
líder do grupo de marionetes Giramundo. Entre os adereços
haverá um flamingo gigante e um espírito-das-águas feitos com
papel manteiga.

Um outro consultor mais inflamado emendou.

- O Partido está contratando um número animador de servidores


públicos tipo B para seus quadros em troca de pequenas
funções administrativas para a produção do evento! Estamos
cobrando resultados comprovados dos organizadores do
Carnaval Unionista e do comitê de inteligência! Dentro em breve,
seremos o maior Partido que já pisou na face deste país. E
quiçá, do MUNDO!

- E o que disse o relatório do comitê de inteligência? – perguntou


desconfiado o Presidente.

Um outro assessor completou.

- Os relatórios desses amalucados não dizem nada, senhor


Presidente. Mas eu posso informar que nosso agente secreto,
nosso homem de Ararí, veio de um aterro com a forma de um
jacaré. Ele é um especialista em linguagens de programação
com expressões indígenas. Suspeitamos que um desses garotos
carecas viciados em Lan conseguiu atravessar a zona
desmilitarizada do sistema Trocano e fazer um posto avançado
nas portas de nosso mainframe. Ainda não sabemos se ele
conseguiu um endereço no cubo de cobalto. Segundo
informantes, o problema já foi localizado numa das novas
versões do Lan dos Bandeirantes. O nosso homem de Ararí já
se infiltrou no jogo para vigiar o suspeito. Dentro em breve ele
vai abandonar sua posição de espião passivo e vai partir para a
refrega. Um acinte tentar invadir o nosso computador central...
Nossa memória nacional!

- Se isso comprometer o cubo de cobalto, os vermes vão passar


a ter um interesse repentino por você, entendeu? Esses jogos
estão ficando perigosos! Já falei que deveríamos encontrar uma
maneira moral de coibir a jogatina!

- Não se preocupe, Presidente. Não existe pecado ao sul do


equador.

- Esse homem de Ararí... Ele é de confiança?

- Ele é o mestre de todas as línguas turanas das linguagens de


programação. É um homem que não confunde metal com pedra,
nem bit com byte!

- Ele... sabe alguma coisa sobre o monossílabo sagrado Quriri?

- Sim, senhor.

- E o invasor?! Também sabe?

- Ainda não temos certeza, senhor Presidente...

- Se ele conhecer o nosso monossílabo sagrado, a matriz


universal de todas as línguas, cabeças rolarão neste recinto,
senhor assessor!

- Sim, senhor Presidente!


Em segundos, todos os reunidos naquela sala automaticamente
levantaram os dois braços como se tivessem marcado um gol
cósmico e guincharam como se estivessem tendo um orgasmo
universal.

- VIVA O PARTIDO!!

O Estado condenado por tragédias naturais e artificiais se


esforçava mais na solução de uma metástase moral, uma
doença que teve início em tempos imemoriais e que agora
estava definitivamente desvirtuada e sem controle. Portanto, a
indolência política no sentido de cumprir a missão divina de
combater as distorções da salus populi agravou mais a
dispersão das novas formas de varíola. O fracasso da confiança
podia ser percebido na enorme proliferação de sistemas de
alarme, que eram instalados não apenas em instituições
financeiras, mas em qualquer edifício público ou privado. Mas o
Estado não era condenado por incorreção da vontade política?
Não, pois a estratégia era interpretar – e não exterminar – o
povo, para que a nova orientação cultural não fosse colocada em
xeque.

Um terceiro consultor lembrou sem consultar ninguém com os


olhos:

- Os benefícios que estamos oferecendo aos tipo C, como


cupons alimentícios e uma certa autonomia em nossa estrutura,
estão compensando...

E isso foi como jogar sal numa ferida ainda com o sangue rubro.

- Você sabe por acaso quanto está custando aos cofres do


Partido esses benefícios, senhor assessor? Então não queira
saber. Isso poderia fundir seu cérebro de transistor... – disse
entre os dentes alvos o presidente negro.
Um consultor tomou a iniciativa de distrair o ódio com uma
mudança de pauta.

- Excelentíssimo! As indústrias farmacêuticas já conhecem a


cura efetiva para a peste da bílis negra. Estão só passando por
um pequeno processo de disputa de uma resina. Foi resolvido
pelo comitê de justiça que dar cabo a esse impasse é função do
Estado. O Antioxidante-3000 será o nosso produto e as
perspectivas serão as melhores possíveis!

Um outro consultor viu que aquele era o sinal de fumaça que


chamava sua intromissão promissora.

- O comitê de justiça esteve reunido com os porta-vozes das


duas indústrias farmacêuticas. Foi acordado que a disputa pela
patente da copaíba-vermelha vai ser resolvida numa partida de
futebol-de-xisto no estádio municipal.

O presidente, um pouco mais aborrecido com o curso daquela


conversa, interrompeu:

- Mas os jogos de futebol-de-xisto não estavam proibidos para a


resolução de impasses jurídicos?

- O comitê de justiça acabou de revogar a lei.

Um outro consultor de prontidão não compreendeu a falta de


visão do líder.

- Excelentíssimo. Essa é uma grande causa e uma grande


chance. Se conseguirmos fazer o Antioxidante-3000 ser
comercializado logo depois do Carnaval Unionista,
transformaremos chumbo em ouro! Teremos infinitas filiações –
e, ao perceber que seu diletantismo precipitado dominava o
próprio chefe maior do Reino Brasílico, continuou com seu bafo
quente:

- Os mendigos escritores serão os partícipes e o Partido será o


artífice da unificação, não o contrário, como mostram as
expectativas.

O presidente negro percebeu um pouco de verdade naquele


pensamento, mas continuou num tom mandante voltado aos
insolentes.

- Está bem. Coloquem à disposição das duas indústrias


farmacêuticas toda a infra-estrutura para que o jogo seja
efetuado o mais rápido possível. Os exojoelhos precisam ser
aprimorados. Contratem os dois melhores treinadores, os três
melhores cartolas e os quatro melhores olheiros. Mas não se
esqueçam de que os Maués precisam ganhar a partida. Qual a
alternativa caso isso não venha a ocorrer?

- Temos o plano B, senhor Presidente.

- Plano B?

- Sim, senhor. O plano B.

O Presidente, cansado com os rumos daquele "método do


caminho crítico", fechou a sessão com os olhos vagos de
nostalgia.

Uma faxineira foi obrigada por três consultores sádicos a


equilibrar três cadeiras no ar. A faxineira não se incomodou com
a brincadeira; pelo contrário, se sentiu poderosa a ponto de
causar um desastre automobilístico a poucos quilômetros dali.
Naqueles tempos em que não havia mais correlação entre
dinheiro e poder, o bem material mais valioso (depois da escrita)
era a atenção.

Wirmundo saiu do acampamento e caminhou pela calçada


repleta de sucata e destroços de carros acidentados. Segundo
uma portaria do Partido, a expressão "não doador de órgãos"
deveria estar gravada de forma indelével e inviolável nos
documentos de habilitação, para que fosse inibido o comércio
ilegal de vísceras. As pessoas passavam ao largo dos carros
retorcidos – de onde saiam sons de alcíones – indiferentes se os
corpos estatelados dos passageiros eram de algum parente. Não
havia discernimento na rotina macabra dos acidentes
automobilísticos graves; os carros eram um meio de transporte e
ponto final. Os meios de transporte públicos, principalmente os
subterrâneos, estavam praticamente desativados desde o final
do ultimo milênio, pois o "povo oculto" ocupou os poços de
transporte, e nada, nem mesmo um acidente automobilístico,
podia ser mais grotesco que a aparição de um membro do "povo
oculto". Os que pertenciam a esse grupo eram mais invisíveis
que os rosacrucianistas e habitavam mais o imaginário da nação
do que seus poços. Apesar de ser uma verdade indiscutível sua
presença ostensiva, não havia provas concretas de sua
existência; eles podiam ser tão verdadeiros quanto uma fada
sentada num cogumelo. O Partido acreditava que havia
conseguido varrer o "povo oculto" para debaixo do tapete da
sociedade, pois considerava que os indolentes crônicos não
combinavam com os planos de geometria urbana estetizante.

O açougueiro entrou por uma rua mais calma que terminava na


muralha de uma vila. Ao passar por uma encruzilhada, deparou
com duas iniciais inscritas no reboco de cal de uma passarela –
o que era, sem dúvida, as iniciais de dois amantes e não um
grafito. Ele ficou estático ao se reportar para um tempo em que
ficar apaixonado não era um crime permitido. Antigamente os
jurisconsultos afirmavam que a lei era o resultado de previsões
de atos intrinsecamente encadeados com fatos. A lei atual não
era tão apegada a silogismos assim. Os fatos cresciam como
plantas carnívoras, pois havia leis que favoreciam os solteiros
emancipados e castos. Na era de pico da AIDS, no final do
milênio passado, marcar as iniciais dos amantes se tornou
retrógrado e o rito da aliança foi substituído pelo pacto de
sangue, mais satânico e comprometedor. Wirmundo lembrou
que certa vez quase morreu de hemorragia por ter feito um
desses pactos. Esses pensamentos não surgiam por tensão,
mas como sinal da falta de combustível recreativo, que foi
consumido durante uma vida homeostática. Com isso, uma
equação complexa havia se aninhado em seu colo: como
conciliar o escapismo necessário com o chamado das selvas?
Precisava jogar Lan e isso era tão certo quanto acreditar que a
morte era um repouso absoluto e não uma forma de dormir bem.
Considerava o ato de jogar, mais do que o ato de amor, um
direito pessoal e, mais do que um direito garantido pela letra
metálica da lei o considerava a própria prova ou atestado
existencial, uma afirmação interior mais essencial que a memória
das viagens não fotografadas, das viagens que não foram
transformadas por um caça talentos num punhado de borrões
estocásticos. Fotografar era, por natureza, uma vanidade, ou
uma vontade inexeqüível, pois a projeção de uma experiência
intransferível no palco da vida, estampada numa não tão
complicada construção de grânulos, remetia ao esforço inútil dos
desvalidos em evitar a falta de ganho de um tempo perdido.

Wirmundo sabia que o jogo de Lan havia evoluído para uma


interface mais orgânica. A ligação dos bilhões de Lan em
paralelo havia elevado a rede semineural do sistema Trocano a
níveis quase espirituais. Os jogos sempre estiveram presentes
nos momentos de maior inspiração da humanidade, não como
representação de eventos possíveis, mas como a celebração da
escassez de um recurso chamado "Tempo". No Lan, porém, não
havia vitoriosos; havia, isso sim, sobreviventes de um filme
desastre sobre um aluno que não se preparou para uma
sabatina.

Wirmundo chegou ao portão de sua casa. O cheiro de dama-da-


noite não combinava com os olores do adstringente que vinham
da cozinha. O movimento no interior provava que sua concubina
estava fazendo o jantar e que ela havia aceitado um convite feito
por educação; uma educação forçada, já que visava barrar o
instinto animal de alguém sofrendo a febre da cabana.

- Minha gazela está aí? Seu bandeirante chegou de um dia de


luta contra índios e salmoura fétida. Preciso de consolo...

Uma voz feminina veio cavalgando.

- Se você for jogar Lan hoje à noite, nem tente me tocar. Vai ficar
com seu nervo exposto na mão. Não vou perdoar, mesmo
depois de você ter aumentado seu pênis com a bomba à vácuo.

- Meu doce! Você sabe que hoje eu preciso ir ao Pavilhão.


Ontem eu te convidei e você não quis ir...

- Estou cansada de ambientes com muita fumaça. Já tenho que


aturar os seus cigarros... – disse a namorada de Wirmundo com
voz de Cassandra arrependida.

- Minha menina. Eu tenho responsabilidades e...

- Então deveria ter ido direto ao Pavilhão. Responsabilidade


baseada em vício de jogo? Nunca ouvi falar nisso. Já ouvi falar
de outro tipo de responsabilidade. Isto está me cheirando àquela
história do criminoso que volta ao lugar do crime, por ser um
esconderijo não óbvio.
Wirmundo não tinha problemas de impasse com mulheres.
Afinal, algum homem já havia parido um monstro?

- Neste caso, minha cara, adeus. Tenho mais o que fazer.

Antes de ouvir a porta bater violentamente, a concubina berrou


sem chorar.

- Então vá para sua viagem sem volta! Cachorro!

A campanha de difamação das mulheres, uma deturpação das


campanhas contra a AIDS, deixou-as mais histéricas, mas não
sem menos sagacidade para aturar a falta de escrúpulo
masculina.

Wirmundo precisava de cafuné, pelo menos enquanto seu corpo


fosse obrigado a oferecer amostras de tecidos e fezes.
Considerava o corpo físico apenas um ponto de intercessão para
a realização de um afeto. Ele não acreditava que a dor do
pecador era um repuxo de forças terrenas, e sim a consternação
de uma alma sem espírito esportivo. Fingia o desconhecimento
de um caso grave (sua paixão mal resolvida) temendo que o
banal tirasse as atribuições de conteúdo do sobrenatural.
Também havia presenciado o orgulho do menos banal (ou
subjacente ao banal) retirar lentamente a máscara rubra da
felicidade e ficar impune. Mas o importante mesmo era jogar;
digitar o teclado o mais rápido possível para que o pensamento
fosse inclusivo ao texto.

O jogo sempre foi uma modalidade de esquecimento e de


descaso; era, antes de tudo, uma determinação magnética rumo
ao espaço profundo do porvir. O nefasto de usar o código da
Pérola Dinâmica para uma aspiração era seguido quase
instantaneamente por um sublime ato nefasto, como fumar
cigarros a bordo de um bombardeiro prestes a entrar em ação. O
anonimato no Lan fazia parte do aspecto formal da produção de
textos naquele ambiente ("literatura sem rastros"). O anonimato
também neutralizava a cabeça de ponte para os problemas
reais. Problemas como a certeza de um dia nunca mais sentir o
calor da moça dos tomates.

Wirmundo chegou ao Pavilhão e, ao entrar no salão nobre,


recebeu uma lufada de ar frio, como um odor de mistral, vindo de
diversas goteiras de ar-condicionado. O lugar estava abarrotado
de jovens, alguns com feições austeras, outros vestindo
camisetas estampadas com marcas de cerveja preta. Alguns
garotos propaganda vestidos com suas camisetas estampadas
de letras comportavam-se como verdadeiros homens-sanduíche
reciclados. Outras pessoas, algumas com idade aparentemente
avantajada, digitavam suas inserções no Lan como crianças que
ficam excitadas por acreditarem na inerência de sua euforia
casual. Outros jogadores, com seus rostos vidrados refletidos
na tela dos terminais-burros, faziam sátira aos diversos
conteúdos temáticos, mas também faziam manipulação de
contexto, e isso denunciava uma enorme seriedade.

Para Wirmundo, o impulso literário do Lan surgia da necessidade


de ter algo o que fazer com as mãos, algo como fumar charutos.
A literatura do Lan era no fundo uma luta contra a dessuetude.
Desde a primeira exibição de cinema em Lyon a ilusão de fuga
da realidade não tinha sido tão enfatizada. A única diferença era
que agora o espectador podia escolher a melhor rota de fuga da
maria-fumaça.

Já os mendigos escritores, de índole mais conceitual, seguiam


rigorosamente os princípios de Xabila, que afirmavam ser a
literatura muralista a extração de uma melancolia mal
aproveitada; ou uma sobrepujança que faria a criatura se voltar
contra o criador para se tornar um pensamento recorrente. “Isso
é como elogiar demasiadamente um príncipe decadente ou uma
estrela cadente de cinema”, pensou Wirmundo ao colocar uma
moeda na fenda de um terminal-burro desocupado e esperar
pelo expediente. Não era preciso usar senhas para entrar num
Lan, pois não havia segredos de Estado.

Após uma breve introdução institucional e algumas bandeiras


textuais de comerciais de cigarro, Wirmundo passou a ser não
mais Wirmundo, pois esta identidade não tinha serventia neste
território do invisível. Wirmundo era agora Paulo_de_Proença,
um personagem que pinçou na listagem dos grandes heróis do
rincão paulista. Os objetivos do Lan seguiam a lei da
autodeterminação dos povos. O objetivo escolhido por
Paulo_de_Proença, por exemplo, era erradicar a peste do
maculo – uma diarréia ocasionada pelo relaxamento do esfíncter
anal – que estava assolando a vila.

Havia alguns jogadores que faziam a assunção de avatares de


mamelucos, ou seja, de mestiços amistosos. O bandeirante de
rede Paulo_de_Proença entrou no lugar-metafórico número três.
A descrição deste ponto de partida, dentro de um conjunto de
não lugares, era por demais rebuscada e elaborada, e parecia
que o próprio Teodoro Sampaio havia se levantado do túmulo
para fazer uma derradeira crônica. O parágrafo principal – com a
descrição geral da vila que começou sua vida municipal em 1560
e foi transformada em cidade, por D. João V, em 1711 – era
mais ou menos assim:

“(...) um pequeno espaço de não mais de quatro alqueires de


terra a que os dois ribeiros convergentes davam a figura de um
triângulo com a base apoiada em dois barrancos que, de um e
de outro, fechavam o espigão (...)”

Haviam também indicações de trilhas para se chegar à casa do


alfaiate da moda Pedro_Costa e para uma sala de aparelhos
afiladores de varas e côvados. Era o tempo em que a
Companhia de Jesus difundia suas antinomias sobre o Ser
Supremo, como “a permanência temporal em Suas
dependências inomináveis deve ser a mais breve e temporária
possível”. Era o tempo em que os jesuítas, vistos como anjos e
apóstolos, estavam em campanha máxima civilizatória nos
arredores do Reduto dos Emboaçavas. Os catecúmenos da
nação andante precisavam conhecer os Mistérios da Paixão,
mesmo que fosse através das danças do Cururu.

Paulo_de_Proença possuía alguns objetos (tudo dentro do Lan


era considerado um objeto, até mesmo os sons e as sensações),
como o arcabuz – uma arma que precisava ser apoiada numa
forquilha para reter o tranco. O bandeirante da rede não tinha um
ofício fixo; não era nem oficial mecânico nem oficial público.
Antes de sonhar em desbravar o sertão interior, fazia carretos de
farinha (a farinha tinha valor monetário), uma opção flexível,
porém rentável, já que nas versões anteriores do jogo era
preciso ter uma renda fixa para implorar cotas de objetos aos
Reis-Magos. Quando um outro jogador acionava a descrição de
Paulo_de_Proença, recebia em seu terminal-burro a narrativa
excruciante de um tapuitinga cara-pálida. Este tapuitinga, dizia a
descrição, depois de ter se apaixonado pela cigana
Francisca_Roiz e se confessado ao padre voador
Leonardo_Nunes, teve uma experiência de convivência com os
índios carijó – experiência esta pacificadora – e conheceu bem o
Tremembé, um lugar-metafórico programado para ser bastante
inóspito, ou seja, com pântanos exaLando miasmas, “rios de
tinta” e manguezais cheios de mosquitos e malária. Além do
arcabuz e do machado, Paulo_de_Proença possuía outros
objetos menos relevantes, como uma segadeira, um peroleiro
para armazenar vinho, um tacho de barro, um pequeno estoque
de pedras-hume e algumas onças de aspirina.

São Paulo de Piratininga do Vale do Parnaíba, na província do


Guairá, foi um lugar-metafórico que surgiu como que por
encanto, construído por programadores que logo viram as
vantagens de levantar um burgo insipiente sobre um araxá
digital. Muitos avatares sucumbiram àquele transcurso, como
Jeronimo_Bueno, que foi morto pelos Guaranis (na verdade ele
foi “transformado em jabuti”, ou seja, jogado no reciclador, e
expulso da lista de personagens). O crescimento rápido da Vila
Rica foi não apenas passível de constatação – apesar de não
haver uma explicação científica para tudo – como foi uma
reedição vertiginosa e simulada do processo de nascimento de
uma nação. O detalhismo dos jogadores fazia os estudiosos de
Inteligência Artificial a refletirem se os textos do Lan não eram
uma deflexão da própria realidade.

Paulo_de_Proença descobriu que, apenas munido com um


machado, era possível abrir um caminho através do Forte e
produzir vinho e acetil balsâmico em outros lugares-metafóricos
na área das tribos confederadas. Precisava acumular algumas
patacas se quisesse bater perna até o topo da Serra do Mar,
mais precisamente até Paranapiacaba, perto do caminho por
que passou o ouvidor Amâncio_Rebêlo_Coelho e seu grande
séquito de escravos, um importante personagem conhecido por
ter conseguido mudar a “partícula de propriedade” de uma cama
do avatar Gonçalo_Pires. Este avatar queria oferecer ao ouvidor
o catre dos seus escravos ao invés de sua cama, porém os
procuradores da vila ameaçaram a oferta desonrosa com a pena
da forca da Tabatinguera.

Um avatar desconhecido havia feito uma petição para que os


camaristas fechassem a saída do Forte, pois considerava não
prudente haver uma brecha que possibilitasse a entrada de
bugres aguerridos. Paulo_de_Proença foi contra a recusa e usou
a alegação da passagem de escravos a favor das brechas. Nas
versões anteriores do Lan dos Bandeirantes ele usou um pouco
da arte de furtar para contrabandear vinho debaixo das barbas
dos almotacéis dos Reis-Magos. Das patacas arrecadadas com
a venda do vinho aos Fígaros e taberneiros, uma parte financiou
a criação de robôs simples que alertavam a aproximação de
quadrilheiros, enquanto a outra estava guardada para financiar a
pequena expedição até o topo da Serra do Mar, de onde era
possível avistar a Vila de São Vicente, onde habitava
Mateus_Leme e a receita contra o maculo.

Paulo_de_Proença tinha que financiar o aluguel de uma


montaria, um sendeiro, apesar de que o ideal seria ter um cavalo
alado. Segundo alguns documentos, a pasta de ibicuíba havia
curado um surto de gripe entre os Munducurús (as doenças
também eram consideradas uma forma de trocar experiências
étnicas). Mas, segundo algumas providências de 16 de agosto
de 1579 contra a prática ilegal da medicina, a circulação da
receita estava proibida. A lei coibiu, através de cartas de
examinação, as práticas de personagens como Afonso_Gomes,
que abusava das sangrias, purgas, clisteres e cautérios.
Wirmundo, em seu foro íntimo, se interessava menos pelos alvos
de proibição do que pelos motivos da mesma. Por quê a lenda
de Mani (a menina índia que pariu uma criança branca – na
verdade uma semente de mandioca) não estava proibida, apesar
de sua conotação sexual explícita? Ele tinha a intuição de que,
com o restante do ingredientes da pasta e a ajuda de Curupira,
seria possível entrar nas portas de fundo do CPD e encontrar
Mateus_Leme, que sabia que algumas linguagens de
programação, constituídas de números básicos, foram banidas
por serem fragmentadoras da teoria complexa do domínio. Um
dos maiores receios do Partido era que a divulgação das
primeiras palavras nomeadas pudesse causar uma “ortogênese
no poder”. Afinal qual seria o interesse de uma sociedade
complexa revelar o segredo de suas origens?

O acabamento lenhoso da barba de Raimundo refletia a fogueira


noturna do acampamento. O mestre estava ouvindo a conversa
dos dois novos mendigos agremiados, o tatuado e o aleijado. A
conversa, apesar de conter certos trechos respeitosos aos
princípios de Xabila (um dos princípios, por exemplo, dizia que
quando uma palavra é arrancada a força da memória, podia ser
constrangida a ser citada), em sua maior parte não condizia com
nada que fosse de bom costume para os mendigos escritores.
Parecia que queriam confundir cultura forânea com cultura
nacional. Mas que crédito tinham aqueles dois miseráveis? O da
perna de pau usava uma saia feita de trapos; o outro estava
completamente nu e a tatuagem das estrelas e listras refletida
pela chama de querosene tinha um aspecto de rabisco de
crayon. A conversa amalucada dos dois emanava uma
atmosfera de reinação:

- Entrei em negociações com o comitê de propaganda do


Partido. Eles querem comprar os direitos autorais de um
personagem fictício que criei. Eles acham que ele pode servir
como mascote para o próximo Carnaval Unionista.

- Eu lembro dos seus grafitos a respeito. Mas que falta de senso


do Partido! Aquele personagem não reflete nenhum imaginário
nacional. Um pajé que fuma diamba e recebe o espírito da
jacaretinga é muito mais apropriado, não acha?

- Até o gato Xabila é mais apropriado, ou as alamandas daquele


companheiro que eu esqueci o nome. Se você fosse filho de
borracheiro não iria ficar quebrando garrafas de vidro perto da
borracharia de seu pai?

Os dois riram juntos da analogia.

- Concordo. O comitê de propaganda acha que o personagem


pode conquistar os estrangeiros. O Carnaval Unionista é para
investidor ver, você sabe. A sede cultural do mundo poderia ter
um pouco de ar supranacional... Entendo um pouco esta lógica
confusa.
- Então você entende a relação entre falta de destino e lógica
confusa?

Os dois mendigos riram e começaram a esponjar com mais


voracidade uma pinga branca (ou seria tiquira, a aguardente de
mandioca?) para esfriar a cabeça.

- O Partido pode se prejudicar com esse negócio. Estou


vendendo lixo hediondo e fétido.

- Fazer negócios com insanos? Prefiro ficar usando os cupons


alimentícios para o resto da vida...

Os dois riram gorgorejando. O segundo mendigo continuou.

- Eu tenho escrito uma série de grafitos a respeito da passagem


de William Beckford em Queluz e seu relacionamento lúbrico
com a família Marialva. Aquele inglês era um tarado! Um bom
escritor, com inspiração orientalista, mas muito deslumbrado
pela poligamia e sexo grupal.

- Estou bocejando.

- Estou tentando explicar que nós, tipo C, vamos ter benefícios


de outra natureza. Benefícios históricos, eu digo. Quer ouvir a
história?

- Comece sua cantiga de ninar.

- Ouça, tudo começou com um súdito foragido de Beckford que


virou soldado mercenário e foi capturado na batalha de Eylan
pelos franceses. Na França, fez um juramento à bandeira e virou
espião. Foi disfarçado de camareiro numa missão diplomática
francesa junto à corte portuguesa. Ele conseguiu roubar
sorrateiramente um documento comprometendo um duque de
Braga inimigo de Talleyrand, um duque que estava dificultando o
negócio de açúcar que o poderoso ministro de Napoleão tinha na
Jamaica. O súdito conhecia as maneiras e os costumes de seu
antigo amo, o que incluía certamente práticas de pederastia e,
mais especificamente, um intenso caso de amor com o marquês
de Marialva. A ambição começou a subir em sua cabeça. Com o
dinheiro que ganhou de Talleyrand pelo documento, veio até
Queluz chantagear o marquês devasso perante seu pai, um pilar
da moralidade. O espião, por incrível que pareça, não queria
dinheiro, mas sim a mão de Henriqueta, filha ilegítima do pai,
uma exigência nada difícil, pois o pai tinha o filho em enorme
conta e, conseqüentemente, suas opiniões. Henriqueta era uma
mulher de idéias políticas muito extravagantes, entre elas, a de
separar as manifestações espontâneas do povo da esfera
política. O súdito, com o apoio de sua nova esposa, queria impor
um levante para desestabilizar a coroa. Uma mudança poderia
lhe garantir um cargo de alto escalão na colônia. A idéia do
levante era a de fazer o povo acreditar que a classe política
transformava a oratória da classe artística em retórica. Esse era
o argumento do levante. O povo, exaltado por estas idéias,
promoveu o Levante da Pena de Queluz, fato que nunca foi
noticiado ou registrado, como foi a Balaiada e Farrapos. O que o
Partido quer fazer agora é uma espécie de revisão histórica às
avessas. São como os negacionistas nazistas que dizem que o
holocausto foi uma manipulação historiográfica dos aliados
vitoriosos. Eles dizem que em Dresden morreram mais inocentes
que em toda a Segunda Guerra.

- Que história mais rocambolesca! Por que o Partido estaria


incentivando a divulgação de um fato histórico que compromete,
desculpe o trocadilho, sua imagem?

- Qual a diferença entre ter direito a miúdo de boi e ter direito a


ser um agente da história?
Raimundo não quis ouvir a resposta. Ele alçou seus latões e foi
deitar debaixo de uma marquise. Ou as grandes idéias estavam
em baixa ou os agentes provocadores do Partido não contavam
com aptidão de diversão.

O dia do Carnaval Unionista estava nublado e úmido. Este


evento, arquitetado com muita precisão por centenas de
comissários do Partido, apresentou um memorável desfile de
carros-alegóricos pelas avenidas axiais que circundavam a
Praça do Relógio, apesar da chuva fina e perturbadora que
permeava a Capital. A avenida principal estava repleta de blocos
e trios-elétricos representando a mais pura manifestação da
cultura. Os alas fantasiados de Cobra Norato e Rainha Luzia
estavam em cima da plataforma do primeiro carro-alegórico
enquanto a bateria de caxambu pulsava seus timbres.

O Partido havia conseguido canalizar a histeria coletiva para


uma hipnose coletiva, encarapitando foliões com falsos espíritos
momescos, que sabiam de cor suas obrigações cívicas e as
continências de uma congada nacional. Uma nação inteira, unida
temporariamente pela idéia imorredoura da cultura pura,
convergiu mais uma vez para a peça de resistência do poder. No
feriado carnavalesco, as ruas ficaram repletas não de nuvens
negras, mas de jovens folgazões e membros uniformizados da
JP (Juventude do Partido), que gritavam com voz imperativa:
“Cura-te a ti mesmo! Cura-te a ti mesmo!”. Os integrantes da
força-tarefa e das equipes paramédicas complementavam:
“Minhas condolências...” e “Eu conserto, mas o problema
continua sendo todo seu...”. O Partido se preparou para ficar
temporariamente distante de uma luta interna pelo poder ao
celebrar a unificação de um país mais dividido que a família de
João Ramalho e os loyolistas.
O desfile foi um sucesso. Logo atrás do primeiro carro vieram
outros sustentando os principais ícones da cultura, como o
Armorial/Romançal e o Tronco de Guapuruvu. No alto das
plataformas, os cancioneiros do Partido, embalados pela
memória do mestre Catulo, recitaram em megafones a poesia
imaculada. Foi escolhida como música tema do desfile "Os
Bohêmios", uma música do repertório da Banda do Corpo de
Bombeiros do Rio de Janeiro (hoje um encrave litorâneo
engolido pela Capital). O tema, de 1902, era de autoria de
Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense, o poeta
oficial do Partido.

Depois das primeiras evoluções das danças típicas parelhadas à


marcha dos cancioneiros, o presidente negro do Partido esperou
o enredo se diluir e falou ao povo do alto de sua tribuna. Falava
ao mesmo tempo num demodulador de sinais de áudio dirigido
aos que estavam presentes via satélite:

- Meu povo! Finalmente hoje tivemos a confirmação de que o


Antioxidante-3000 é a cura mais eficaz contra a peste. Não
acreditem em falsos doutores! Amanhã às dez horas da manhã
os aviões do comitê da guerra vão Lançar pacotes da cruz-
vermelha contendo amostras grátis do Antioxidante-3000. Como
primeira partida, serão Lançados ao todo mil mini pára-quedas
com as bisnagas. Aos que ficarem desprovidos restará a compra
nos empórios terapêuticos a partir de depois de amanhã, depois
do torneio. O Carnaval Unionista está celebrando nosso contrato
social e nossos acertos perante a comunidade internacional.
Somos hoje o exemplo multicultural da miscigenação e a sede
cultural do mundo! Viva a nação dos dois brasiis! Viva
Pindorama! Anauê!

A alma do povo não fazia limite com a flor da pele para melhor
captar as considerações de um mundo sensual ou ter uma
relação privilegiada com as coisas, mas para absorver sem dor o
horror puro de uma política canhestra. A tática secundária do
Partido era articular uma triangulação moral, delegando poderes
festivos limitados ao povo (coisa moral); proporcionando uma
desgastante luta interna entre as duas classes menos
privilegiadas (expectativa imoral); e, por fim, reunificando
geograficamente os dois blocos (coisa de moral duvidosa). A
moral tinha a mesma consistência de uma onda aérea que se
desfaz por métodos eletrônicos.

Era feriado e Wirmundo não resistiu a tentação de fechar o


açougue, colocar o broche do Partido e ir ver o desfile de
crianças dançando o cateretê do Estado onipresente. Os
opositores mobilizados por Raimundo foram instruídos a
assobiarem durante a parada para tentar abafar o som dos trios
elétricos, mas os cidadãos estavam cantando mais alto,
animados com a sensação de catarse. Ao passar pelo arco da
Praça do Relógio, Wirmundo pôde ouvir com mais atenção as
conhecidas onomatopéias dos personagens de Cobra Norato:

- Glu-glu-glu

- Tiúg... Tiúg... Tiúg

Agora os passistas estavam fazendo a cena do igarapé da


rainha Luiza e, entre uma sucessão de percepção e outra,
Wirmundo capturou o som de uma palavra em tupi que
significava "água dos rios":

- Ig... Ig... Ig... Ig...

Logo em seguida, um dos passistas vociferou uma outra palavra,


aparentemente simples, mas que tinha uma função complexa,
segundo o poeta Gonçalves Dias:

- Io... Io... Io...


Inspirado por aquela seqüência hipnótica de onomatopéias,
Wirmundo sussurrou a sílaba "Io" com uma nova entonação,
pronunciando a palavra "i" como o "u" dos franceses, cujo som
fonético oscila entre o som do "i" e do "u". "Um som que oscila
entre duas letras... Indo e vindo, rápido...". A palavra que
simboliza a "água" era representada por uma sílaba pura, e não
era uma palavra composta. "Será que existe um jeito natural de
representar todas as palavras usando apenas duas vogais?",
pensou o açougueiro. E não foi sem espanto que Wirmundo
percebeu que a água dos rios foi o primeiro substantivo
nomeado pelo homem.

No Reino Brasílico o esporte bretão havia passado por uma


mudança drástica desde que foi incorporado pelo comitê de
justiça. A essência, porém, continuou a mesma: lutar para
ganhar ou ganhar. Ganhava o escrete que fizesse o maior
número de tentos, com a maior violência possível, usando toda
sorte de golpes, engalfinhamentos, chaves de braço, estocadas
e diretos de esquerda. O futebol-de-xisto era um esporte que
tinha o mérito de ter resolvido o problema da precariedade da
técnica jurídica. Sua deselegância geométrica e sua truculência
elegante foram a solução para a falta de celeridade da justiça e
para a sede de sangue dos humanos, já que as guerras
simuladas haviam substituído as guerras reais. O esporte em
geral havia escapado das mãos dos treinadores e passado para
as mãos dos dirigentes, que imediatamente desviaram as cotas
de transmissão e os fundos de investimento dos torneios
eventuais.

O Partido havia reformado as ruínas do estádio municipal Paulo


Machado de Carvalho (o Marechal da Vitória), reerguido a
concha acústica e reformado a réplica do “Davi”, agora iluminada
por potentes lâmpadas multivapores de sódio. Além disso, o
estádio foi coberto por telhas de cimento amianto e cercado por
uma fileira de sibipirunas que acompanhavam um longo
alambrado amarelo. No dia da peleja crucial, o Presidente
sobrevoou com seu helicóptero a jato as arquibancadas do circo
moderno, totalmente ocupadas por milhares de populares
casmurros, que não se importavam pelo fato de assistirem a um
espetáculo gratuito, e nem pelo fato de serem conduzidos
convenientemente como gado em direção ao matadouro
mercadológico do hipotálamo. Os torcedores também não se
importavam em espetar em suas nucas, durante as partidas, as
agulhas-antenas do comitê de propaganda do Partido, parecidas
com agulhas de acupuntura. Através da captação direta das
ondas cerebrais e análise automática dos estados de espírito
dos torcedores, os computadores do CPD veiculavam os
anúncios certos, no momento certo, e para as pessoas certas
através de uma espécie de diapositivo gradeado – um
gigantesco videowall de alta definição instalado numa das
bordas do estádio.

Os dois escretes entraram em campo com seus capacetes


parecidos com cabeças de libélulas, e seus protetores de
costelas, parecidos com as lorica segmentata dos soldados
romanos. Uma chuva de prata e uma nuvem de fumaça cobriu o
estádio nesse momento. Os jogadores conheciam todas as
cláusulas do contrato de seguro de vida, inclusive a que dizia
“falecer em pleno match”. Aqueles armários titânicos não
relevavam muito a idéia de morrer em serviço, pois a morte era
apenas uma forma de desperdício calculado. Eles não deram
conta da morte durante o período de serviço militar, e sim
quando o corpo (o elemento que confere sentido ao caráter
marcial) foi danificado pela primeira vez. Na verdade, a morte
não existia como entrave para aqueles atletas; existia como
persistência.

O teste físico dos jogadores de futebol-de-xisto era composto por


banhos gelados, descompressões em câmaras hidrostáticas e
longuíssimas caminhadas pelas escarpas do litoral sudeste, que
eram compensadas no final por uma Festa da Cerveja Preta.
Antes de se profissionalizar e ganhar um passe livre, o
pretendente a jogador de futebol-de-xisto tinha que passar por
um ritual que consistia na seguinte prática: espetar o prepúcio
com a ponta de uma lâmina afiada até formar um fio corrido de
sangue. Ninguém sabia a origem desta “prova de fogo”, mas
sabia-se que tinha relação com a cultura física e a educação
cívica.

Os pescoços desses atletas eram grossos e suas carteiras de


identidade apresentavam nomes como Urso Polar e Couto
Tanque. Tinham salários milionários para o padrão de uma
sociedade monetariamente apática, pois havia um balanço entre
a beleza da periculosidade e a tragédia da amoedação. Eram os
funcionários mais bem pagos do Partido, depois da cúpula de
burocratas, mas tinham um caráter psicótico, pois viam um sinal
de esculhambação – e um motivo para vazar os olhos do
próximo – em todos os olhares dirigidos a eles, mesmo os de
uma garotinha segurando um cacho de acácias. Os animais
brigavam mesmo sozinhos, batendo com a cabeça em suas
próprias sombras projetadas nas paredes.

A disputa pela patente da copaíba-vermelha foi muito concorrida,


pois as duas esquadras – a vermelha, representando os pajés
Maués; e a azul, representando os farmacêuticos do Grupo dos
Dois – tinham craques habilitados em segurarem testículos
protegidos por coquilhas de liga de aço. Os meio-campistas dos
azuis, por exemplo, haviam feito um condicionamento com altas
quantidades de efedrina e triglicérides, que hipertrofiam os
músculos; além disso, as ligações mortais dos zagueiros e
atacantes em overlapping eram consideradas irrepreensíveis.
Por sua vez, a zaga dos vermelhos era composta por jogadores
que foram instrumentalizados treinando chutes de falta com
cocos verdes, e não era infundada a péssima reputação de suas
divididas mal calculadas.

O ataque das duas esquadras era mais eqüitativo, já que o


elemento surpresa, juntado à capacidade de a defesa fazer um
giro de carrossel, era a essência dos fundamentos desse jogo.
Os atacantes que por ventura conseguiam chegar até a linha de
fundo adversária, carregavam a ingrata tarefa de colocar uma
bola de três quilos num gol com o formato de uma arruela de
pedra. A bola era feita de xisto aerado e era, por assim dizer,
“propagada”, isto é, era chutada pelos escarpins com cravos de
polímeros dos Macistes, que também usavam proteções de alta
tecnologia nos joelhos e cabeça.

O presidente negro e os representantes das duas indústrias


farmacêuticas concorrentes estavam sentados nos divãs das
tribunas públicas. Os conselheiros, em numeradas pegadas às
tribunas. O povo estava inquieto com o atraso, e os mais
histéricos gritavam vitupérios. Uma voz amplificada conclamando
a presença de uma pessoa num determinado local transformou a
multidão num único sujeito. Os juizes, ocultos atrás de
casamatas, deram mostras de que seus terminais-burros
estavam conectados com as diversas câmeras aéreas.

Os jogadores já estavam devidamente aquecidos, assim como


os soldados rasos humilhados se aqueciam com o ódio ao
superior. A bola de xisto foi colocada no centro da meia-cancha
por uma grua mecânica. O presidente do Partido deu o sinal com
uma luz de hologênio e autorizou o início da peleja. Um brilho
ofuscante foi visto vindo da tribuna, como se fosse um fenômeno
de refração piezelétrica emitido por um mineral bruto. Um silvo
de apito foi ouvido em seguida.

No segundo seguinte, o meia-direita dos vermelhos e o


centroavante dos azuis deram uma cabeçada de tamanho
impacto que seus capacetes foram esmigalhados em diversas
partes. Os dois jogadores tiveram fratura exposta do crânio e
foram rapidamente removidos por um carrinho elétrico da equipe
paramédica, sendo substituídos pelos reservas. Neste exato
momento, o videowall projetou algumas inserções
mercadológicas do alpiste Carcará. Em seguida, a empresa
Lumiar Laser S.A. projetou mensagens de patrocinadores com
canhões de raio laser de dois MW, usando como tela a
superfície da lua. Os canhões de laser emitiram sobre o satélite
natural luzes nas cores azul, vermelho e verde, o que permitia o
uso de um total de 16 milhões de cores na composição
tipográfica dos anúncios. A mensagem escolhida para iniciar o
teste foi: BOA NOITE, TERRA. A seguir, foram projetadas
rapidamente outras mensagens de propaganda, pois o minuto de
exibição lunar custava cerca de 5 milhões de talentos. Distante
dos números das comissões, o técnico dos vermelhos estava de
pé e fumava a mão cheia – uma bituca acendia o cigarro
seguinte.

Um lateral dos azuis conseguiu driblar dois vermelhos, fazer uma


finta rebolada e um cruzamento longo a um atacante que havia
se posicionado na borda da grande área, vindo da direita. O
atacante guardou a bola de xisto no peito protegido por um gibão
de armas acolchoado e tentou dar um sem-pulo; quase
instantaneamente, o quarto-zagueiro dos vermelhos, apoiado por
um lateral, deu uma cama-de-gato no atacante, que caiu com a
coluna vertebral fraturada. O consolo era que os mortos no jogo
de futebol-de-xisto tinham enterros mais pomposos que os
estadistas.

Para uma falta ser marcada, era preciso ter sido movida por um
princípio passional, e esse era o expediente interpretativo mais
utilizado pelos juizes para amainar o ânimo dos jogadores e criar
uma trégua temporária. Os juizes interpretaram a cama-de-gato
dos vermelhos como falta e silvaram um zumbido de apito. Uma
falta na beira da meia-lua significava meio-pênalti. Uma falta
mais que perigosa. Não havia a figura do goleiro no futebol-de-
xisto, pois não havia voluntários para essa posição, daí a
diminuição das traves. O comitê de desportos havia determinado
sem nenhum motivo a substituição das traves pelo anel de
pedra. Um capricho, nada mais.

O melhor chutador do escrete azul tomou distância e “propagou”


a bola, que entrou no ângulo do pequeno anel do gol de xisto
numa folha seca primorosa. A pequena torcida do Grupo dos
Dois foi ao delírio de suas aspirações elementares e ficou mais
excitada com os gritos de guerra dos jogadores do que com o
placar de um a zero.

O jogo foi recomeçado e a posse de bola de xisto estava agora


com os vermelhos. Um meio-campista azul solou no exojoelho
do atacante que se infiltrou na linha de fundo adversária. A
estrutura de polímeros do exojoelho rebentou e o joelho do
jogador dobrou ao contrário, fazendo seus tendões de fio de aço
estalarem como chicotes e romperem. Todos no estádio sabiam
que aquilo significava um processo de três etapas: morte
desportiva; morte do ego (ou alcoolismo); morte real.

Final de partida: o tempo de um só tempo terminou e. não havia


prorrogações. Saldo: três mortes e um aleijão. Um saldo
considerado normal para os padrões do futebol-de-xisto, já que
os clássicos da época áurea computavam uma média de cinco
mortes. Talvez os santinhos que as mães dos jogadores os
forçavam a usar estavam começando a surtir efeito.

O diretor da indústria farmacêutica representada pelo time azul


estava mordendo os lábios de tanta excitação; sua vontade era
de levantar o polegar num gesto obsceno de césares. Contudo,
sua alegria desenfreada tinha um motivo: o Grupo dos Dois
podia interromper, por tempo indeterminado, a biopirataria da
copaíba-vermelha, uma pequena amostra do plano de vingança
pela derrota no XV Congresso da Gramática Universal.

Raimundo sabia que os mendigos escritores estavam reunidos


em nome de um regozijo apartidário, de uma aventura de
desvendar um romance chaveado, de agir e interagir numa briga
de foice no escuro, de complementar a imperfeição de uma
repercussão da vida, enfim, de dizer o inaudível por outras
palavras. Escrever não formalmente era usurpar as palavras que
nunca foram ditas, era verbalizar o que a humanidade pretendia
com sua atitude de dormir nos momentos que demandavam
maior concentração. Encontrar as palavras adequadas para uma
oração era uma miragem e ao escritor de grafitos restava o
recurso de encaixar à força, com um martelo, as peças de um
quebra-cabeças ultraterreno. Um mendigo se tornava um escritor
de grafito por não ser versado em nada, e por não ter a força da
versação individualizada e não universal.

Wirmundo, por outro lado, sabia que os jogadores de Lan


estavam planejando a tecitura de todos os textos já escritos num
texto maior que a substância escura que envolve o espaço
sideral, ou mais propriamente dito, o invólucro de plástico da
revista de Deus. Os jogadores de Lan estavam planejando a
retomada do projeto Mil-Mãos, mas com mais alcance, e, agora,
sem os problemas de bugs típicos dos sistemas de hipertexto. O
preenchimento das lacunas entre os gazilhões de Lan através
dos tubos assíncronos estava tomando forma independente,
como se a linguagem de máquina estivesse assumindo certas
tarefas individuais que antes só eram atribuídas a manutenção
das diversas memórias artificiais.

Os capelães do Partido e os novos Deões começaram a ver


aquilo como uma forma equívoca de provar a existência de
Deus, fato que desconsiderava Sua qualidade temerária, e
anulava a condição que propiciava a confusão entre ignorância
cega e ignorância analfabeta, uma tática conhecida da Igreja
Católica. Mas os capelães do Partido não tinham voz ativa;
tinham, quando muito, flatus vocis.

Os mendigos escritores ao menos eram mais lutadores e fiéis.


Acreditavam nos princípios de Xabila – o nome próprio do gato
sarnento que se espreguiçava em alongamentos milenares e
que havia salvado os esboços do ensaio de uma enchente,
praticamente o único documento volante dessa casta de
escribas indigentes. Como aqueles princípios renegavam as
sextilhas e os moirões do Partido, esse salvamento eqüivaleu a
salvar um futuro clássico de um naufrágio. Uma das principais
idéias contidas naquele ensaio, e transformada por Raimundo
em princípio, era sobre a diferença entre o acerto em primeira
mão da escrita muralista e o refilar da escrita digital. Esse ensaio
servia de códice aos candidatos a escritores de grafitos, que da
pobreza física extraíam a riqueza de um pensamento combativo.
Escrever nos muros era então, naquela visão, uma partida
solitária na qual somente os reflexos de uma indignação podiam
ser compartilhados. Os soldados da fortuna interior sabiam que a
profusão dos fragmentos de grafitos continuaria a formar um
remoto oceano vivo.

As chuvas e os caminhões-pipa do Partido – indo contra as leis


de incentivo – apagavam os rabiscos preciosos quando eram
escritos a carvão, mas a “arte da sub-raça” era renovada com
intenção fixa, a ponto de não render a limpeza; outros grafitos
duravam um pouco mais, pois eram feitos com piche, esmalte
sintético e o que mais estivesse à mão. Para os mendigos
escritores, um fragmento perdido de grafito valia mais que
muitos fragmentos do Mar Morto. Os despossuídos tipo C, como
os amoladores de facas, os lavadores de casas com suas latas
d’água, o “povo oculto” e principalmente o exército de mendigos
escritores, não eram mais alvo de compaixão, e sim de
admiração. Por exemplo, Wirmundo, no fundo, queria se sentir
de corpo e alma um contribuinte dessa cidadania miserere e
altiva. Porém, tinha muito o que fazer com uma vogal perdida.

No acampamento, Raimundo, completamente sóbrio, fez uma


prece aos seus antigos companheiros desaparecidos em ação
antes de mergulhar na noite dos sonhos insignificantes.

Numa manhã de começo de semana, Wirmundo acordou


sozinho, tomou um café de taurina e ligou os multiplexadores do
seu terminal-burro. Durante a corrida do protetor de tela, pensou
na irrealidade absolutamente pragmática daquela mídia digital
que abusava da teoria da interação.

Alguns antigos programadores de inteligência artificial, elevando


os códigos declarativos a potenciais nunca atingidos,
conseguiram deixar uma ideologia em looping usando apenas
sentenças condicionais ilógicas, expressões irregulares dentro
de algoritmos com formatos de tridentes e três processadores
Glias em paralelo atuando como lixeiros de dados. Este
procedimento chegou a ser comparado com um caso de falsa
permuta, como o caso do normal que se faz passar por louco (ou
o louco que se faz passar por normal). Na essência, eles haviam
conseguido que o maquinário reproduzisse certos processos
cerebrais com uma pequena margem de erro. O Lan tinha por
base a linguagem que atingiu esta meta.

Ao se conectar, Wirmundo recebeu no ato a linha de sua


máquina de respostas do sistema Trocano.

Havia quatro mensagens seladas.

A primeira:

(04323-70) - “Sei que não passa de um encomendeiro. A Vila


está ficando pequena demais para nós dois” <Anônimo>.
A segunda:

(084431-41) - “Você é um porco nojento, Wirmundo! A guerra do


amor é assunto importante demais para deixar nas mãos de
generais reformados como você. Na oração aos mortos não
cantarei ‘...e para os que ficaram...’, pois você não terá um
funeral decente. Será enterrado de qualquer jeito, como
Sócrates pediu a Críton. Aceito sua declaração de guerra. Meu
primeiro ataque foi esta noite. Advinha com quem ela quer ficar?
Comigo! Eu não posso fazer nada! Ela me persegue!" <Guaçu>.

A terceira:

(03201-53): “Estou quase acabando o nosso código com peças


de outros códigos. Tenho quase certeza que em breve você não
terá mais que encontrar Mateus_Leme. Meu método
antigramatical está começando a funcionar. Meus robôs vão
conseguir encontrar o modelo da receita. Você não confia em
mim? Então veja o que eu consegui encontrar nos registros do
robô minerador. Tem relação com a receita da pasta de ibicuíba
do Contentis Mundi.” <Curupira>.

Anexado à mensagem selada de Curupira veio anexado um


arquivo com a seguinte receita:

“...Pilar em um almofariz:
2 onças de raiz de ibicuíba mascada.
2 gramas de sal marinho.
2 ...
2 arráteis de azeite de amendoim.
2 ...”

A quarta:
(03202-53): “Como você pode ver, tenho quase todos os
elementos e faltam apenas dois itens para eu obter a receita
completa. A missão é quase impossível, pois eu tenho que
encontrar um jeito natural de representar números usando letras,
e vice-versa. Eu tenho que encontrar um jeito de converter a
linguagem de máquina para a linguagem de gente, e vice-versa.
<Curupira>.

“Meu amigo Curupira está querendo jogar pó colorido no


vento...”, pensou Wirmundo.

A primeira mensagem podia ser de algum avatar ensandecido,


como aquele personagem que queria entregá-lo aos almotacéis
por ter aberto uma brecha no Forte. Quem seria esse anônimo?
Guarací, o Sol? Jací, a Lua? Ou Juruparí, o Pesadelo?

A segunda era a bravata de um homem da vida real que forjou


um caso de amor casual e uma competição. Guaçu era um
amigo antigo de Wirmundo, que havia tomado um tiro na coluna
(foi alvejado por um marido desonrado) e ficado paralítico. Não
ficou impotente, apesar de ter ficado dividido entre uma parte
viva e uma parte morta. Por não sentir dor na parte morta,
muitas vezes sentava longamente numa posição errada, o que
provocava a formação de imensas escaras necrosadas na região
dos glúteos. Já as unhas de seus pés cresciam
desmesuradamente como caracóis. Guaçu gostava também do
ato de amor leniente e sem orgasmos (seu gozo era tão grosso
que lembrava o espirro de uma pasta de dente), mas tinha um
trauma de infância: seus pais haviam sido mortos pelo governo
provisório ultraliberal da Oitava República do Brasil no começo
do milênio, por terem difundido uma ideologia de cunho fascista.
Depois que o Partido tomou o poder e dividiu a nação em dois
blocos estratégicos, a memória de seus pais foi redimida e ele foi
reconhecido pelo poder central, que passou a contribuir com
uma pensão integral. Isso o acostumou mal. Guaçu era a
expressão máxima da luxúria e do ócio. Passava horas fumando
enormes cigarros de maconha e olhando para a única luz de um
apartamento do prédio vizinho abandonado. Não precisava de
trabalho, e tinha tempo de sobra para criar engenhosas formas
de perfídia. Constantemente recorria ao sexo para manter a
sanidade, mas isso não lhe dava nenhum direito de preferência
para cobiçar a mulher do próximo, um direito conhecido mais por
“exploração mútua de uma amizade”. Apesar de estar inteirado,
Guaçu não era um jogador de Lan, e por isso não merecia ser
vítima de um crime passional.

A terceira mensagem era a mais substantiva, pois a insegurança


do porvir fazia Wirmundo entrar num estado de alvoroço seguro.

E a quarta era sinal de que existia vida após a morte.

Wirmundo na mesma manhã abriu o açougue e viu que o quadro


de São Lucas, o padroeiro dos açougueiros, estava um pouco
torto. Os cutelos estavam fora do lugar e os grampos do
congelador foram remexidos. O vidro do mostrador de miúdos
estava manchado com impressões digitais oleosas. O açougue
havia sido invadido e isso era mais sério que revirar latas de lixo.
“Será que isso vai se tornar uma recorrência?”, pensou. O
arrombador havia roubado tutano de ossobuco e remexido
grosseiramente nas gavetas.

Os mendigos escritores comiam tutano influenciados por uma


espécie de crença. Eles concordavam unânimes com as teorias
de Raimundo, e acreditavam que o vômito coado dos infectados
– chamado de Amrita, ou o Elixir da Vida – curava a peste, e que
o consumo de tutano de ossobuco aumentava o nível dos soros
relacionados diretamente ao sistema imunológico. “O vômito
coado não é placebo e o tutano não é um paliativo”, pregava
Raimundo, que também chamava o miúdo de “gelatina da
felicidade”. Em seus discursos enaltecia a “drenagem do cérebro
por gelatina”, e essas palavras soavam como sugestões
mesméricas. As correspondências numéricas das suposições
incitavam a obsessão dos caçadores de recompensas. Havia
algo de ingênuo no fato de os acólitos acreditarem que o tutano
aumentava a resistência imunológica; talvez houvesse uma
sabedoria não revelada, ou simplesmente uma ebulição da
vaidade de uma casta que não se incomodava absolutamente
em carregar todos seus pertences num carrinho de mão.
Analisado sob um aspecto não nutricionista, o tutano de
ossobuco não era digerido; era “sintetizado”. Analisado sob um
aspecto não científico, o tutano de ossobuco incrementava a
“memória relativa do bem-estar” e os “axiomas dos axônios”.
Não era preciso ser um espião poliglota para perceber que
Raimundo, fazendo segredo de suas bicas (as fontes têm o
mesmo valor de uma reta que raspa uma circunferência) e
polemizando com meias-verdades, estava preste a encontrar a
fundamentação para o uso da bílis pura, e isso com o auxílio
transversal e maquiavélico do Partido.

Para engrossar o caldo das panacéias, não haviam apenas as


propostas da copaíba-vermelha e da bílis pura para a cura da
peste. A ibicuíba – uma planta que teria acelerado a evolução da
medicina moderna se fosse conhecida na época de Cláudio
Galeno – foi supervalorizada por suas propriedades medicinais
na época seiscentista. Raimundo, que espionava ao seu modo
as nomenclaturas do Lan, passou a referendar também as
possibilidades da ibicuíba, principalmente depois que soube dos
planos do Partido de comercializar o Antioxidante-3000.
Raimundo não acreditava, indo mesmo contra as evidências,
que a copaíba-vermelha pudesse erradicar a calamidade da
peste, mas pegaria em armas para defender uma planta
alternativa; e, sobretudo, continuava acreditando num tratamento
não formal a base de uma substância que, para não causar
repulsa, só podia ser descrita por referência.
Se fosse só pelo roubo de tutano, Wirmundo não teria tido um
arrepio na espinha, já que as merendas existiam para o
desperdício. Mas ao abrir sua gaveta pessoal para verificar se
havia sumido algum dinheiro, percebeu que o Manual do
Programador de Lan foi parar no meio das estrelas de uma noite
de são Lourenço.

Os mendigos escritores tinham a mesma noção de perenidade


de uma obra escrita que Padre Anchieta, o João Batista do Novo
Mundo, ou seja, uma obra escrita sobre qualquer suporte tinha
de ser vulnerável às ações das marés do tempo pluviométrico e
do tempo musical. Como elemento purificador de tamanho
empreendimento em prol das gerações vindouras – no sentido
de que a memória estaria preservada em seu local fisiológico de
origem – os mendigos escolheram a água (e não a espuma). Os
monásticos dessa ordem que quisessem criar querelas, que
fossem ser mais “naturalistas”; que fizessem Araken trucidar o
namorado de sua filha; que colocassem em confronto a Cuca e o
Filho do Homem da Meia-Noite. Assim a perpetuidade dos
grafitos estava garantida por uma espécie de autoconfiança
auto-sustentável, e não dependia do processo de criação
coletiva dos escritos sem materialidade dos Lan, e muito menos
da memória imediata regulada pela “mão que pensa” fascista. Se
os mendigos escritores fossem um pouco mais kafkianos,
podiam bradar um lema do tipo “ELIMINE O MAX BROD QUE
EXISTE DENTRO DE VOCÊ”.

O complexo de servidores e terminais-burros formava uma


malha que detinha a supremacia de ser a retentora da técnica. A
informação ainda era a guardiã da informação, mas estava na
proporção de um para dez com relação ao conhecimento. O
projeto Mil-Mãos quase unificou todos os geradores artificiais de
textos do mundo, e os geradores se uniram numa única entidade
autônoma que afirmava ser o “escritor dos escritores”, o filho de
Alexandre, o neto de Deus. Estes geradores expeliam textos
através de um código que podia ser resumido numa tabela de
probabilidade de palavras.

Entretanto, os mendigos escritores zombavam daquela entidade


com o argumento de que a Bíblia, o livro dos livros, não foi
escrita por um Deus presunçoso de ser o escritor dos escritores,
mas por milhares de mãos, e que até hoje continuava a ser
parodiada. Além do mais, a escrita muralista estava garantida
por mídias extintas, lexicográficos dissidentes e a negação do
folclore urupês. Do lado rebelde, o que sustentava o pilar da
escrita eram os princípios de Xabila, o gato mascote dos
mendigos escritores. Até então, ninguém sabia precisar
exatamente com quantos anos aquele felino tebano havia
morrido.

Wirmundo chegou ao final da tarde em sua casa e ligou


diretamente o terminal-burro para ver os avanços de Curupira.
Sem saber bem porque se lembrou daquele caso de suicídio
amoroso dentro do sistema Trocano. E tudo como em Verona: a
tragédia composta por um simples e cabal mal-entendido. A
história foi a seguinte: uma moça mal casada se comunicava às
escondidas com um amante de linha. Certo dia, por descuido do
amante, que esqueceu de embaralhar os caracteres de uma
mensagem (uma medida de segurança corriqueira), o marido
traído, ao revirar alguns diretórios de praxe, encontrou
inadvertidamente uma mensagem muito elogiosa, uma quase
adoração, dirigida à sua esposa. O marido entendeu tudo.
Resolveu se vingar e escreveu uma réplica falsa assinada por
sua esposa que tinha o seguinte teor:

“(...) um alçapão no meio da rua com nossas iniciais gravadas,


um alçapão onde eu posso enterrar nossos corações arrancados
(...)”.
O amante cortou a conta do sistema Trocano e seus pulsos no
dia seguinte.

A moça, depois de saber do suicídio, se atirou de um abismo.

Ao entrar no termo da Vila de Piratininga, com suas descrições


eloqüentes, Paulo_de_Proença intuiu que a chave geral das
línguas (e das linguagens) estava decididamente nas palavras.
"Mais especificamente, na raiz de uma palavra", "professou" ao
vento. Depois da iluminação no Carnaval Unionista, o
bandeirante da rede passou a apostar no grande potencial das
línguas de gente, ou melhor, na linguagem do gentio. Segundo
Curupira, que também tinha a fama de adaptar linguagens
indígenas às estruturas das linguagens de programação, a
resposta para a nova inquietação filosófica de Wirmundo estava
muito além da língua falada pelos personagens índios do Lan, o
nhengatu, o tupi aculturado falado no bloco do norte do Reino
Brasílico. O açougueiro passou então a garimpar o tupi na
algaravia do nhengatu, separando os nomes compostos e
isolando suas raízes monossilábicas, com a missão de encontrar
o ponto de explosão atômica da comunicação humana, a regra
de transformação de um conjunto de combinações possíveis, a
fonte de energia do poder do Partido. Mas qual era a essência
das partículas lingüísticas peneiradas? Eram monossílabos
mesmo ou apenas sons guturais da era da pedra lascada?
Essas eram as perguntas que agora atormentavam o atomista
de plantão. Para Wirmundo, saber o que estava além dos
grafemos passou a ser mais importante do que saber o que
estava além do arco-íris ou de um Buraco de Minhoca, e ele não
descansaria enquanto não satisfizesse sua busca interior. Tinha
quase certeza que Mateus_Leme, o personagem que conhecia
muito bem todos os mistérios das línguas silvícolas, era um
sabe-tudo nesse assunto.
Wirmundo sabia que, para subverter os controles glossológicos
do Partido, atravessar o espelho do português brasílico, e fazer
uma jornada em direção aos monossílabos puros das línguas
indígenas, teria que penetrar no coração do mainframe através
de uma das saídas proibidas do Lan. O coração do mainframe
reciclado do CPD era um colossal cubo de cobalto que, além de
guardar a história da cultura em diretórios relacionais,
coordenava milhares de nós de acesso do sistema Trocano, e
como isso mantinha uma relação incestuosa com a rede
semineural. Mas nenhum especialista nos dois brasiis entendia
como funcionava exatamente os procedimentos efetivos daquele
mastodonte de metal. Com exceção de Mateus_Leme, o lendário
pajé e bandeirante da rede que havia conseguido a façanha de
cavar uma abertura na cinta murada da Vila de Piratininga,
inserir um “Cavalo de Tróia” no registrador de instrução do
mainframe, e usar uma parte da memória central do cubo de
cobalto para seu usufruto. Seus alfarrábios binários, por
exemplo, estavam sendo guardados numa biblioteca dentro do
mainframe.

Para ter acesso a conhecimentos perdidos, Wirmundo precisava


repetir a façanha de Mateus_Leme e entrar de socapa naquela
máquina de vinte toneladas que resguardava toda a memória da
nação: arquivos do Câmara de Comércio Exterior, cadastro
nacional de bens imóveis e rurais, multas do corpo de
bombeiros, balanços mundiais de varejo on-line, cadastro geral
das circunstâncias imaginárias, os arquivos do Instituto Histórico
e da Biblioteca Nacional. “Os conceitos básicos da língua, assim
como os das antigas linguagens de programação, são mais
perigosos que uma mulher que reivindica algo, mais perigosa
que a guerrilheira Cy com uma metralhadora na mão”,
afirmavam os livros didáticos do Partido. Já os proscritos livros
de história do português brasílico que estavam na biblioteca de
Mateus_Leme afirmavam: “E tudo teve início com uma vogal...”
Raimundo era um mestre da oratória. Naquela noite silenciosa,
cortada apenas pelos uivos Lancinantes dos infectados pela
peste – gritos que faziam a vastidão ficar em estado de sítio –
ele estava inspirado. Alguns mendigos mais sensíveis correram
para longe do acampamento.

A hora era propícia para um discurso e o orador, refletindo o


vermelhidão do fogo de querosene, fixou as juntas de seu
ponche remendado e introduziu a técnica de falar de terceiros
em terceira pessoa:

- Atenção! Temos um destino a cumprir mesmo que o resto dos


próximos dias venha a anular qualquer destino. O companheiro
Vassão está morrendo e este fato nos chama para uma reflexão.
Tenho minhas ressalvas com relação àquele símio que já foi o
líder dos mendigos escritores e que tentou me trair após minha
ascensão. Nosso companheirismo foi corrompido por uma luta
de classes calcada no mais rapace intuito de subverter o poder
vigente. Mas considero a traição das indústrias farmacêuticas e
do Partido muito mais malsã e perigosa. Será que um dia
poderemos viver sem a companhia constante de um pai patrão?
Prefiro a companhia da ceifadora! A morte é nossa mais fiel
companheira hoje, tanto que quando estamos no auge do
desespero, quando tudo parece estar fadado a um final, quando
finalmente renunciamos a qualquer ascetismo, olhamos para o
céu e perguntamos honestamente a razão de todas as coisas e
Lançamos o último desejo de sermos atendidos antes da longa
jornada. Mas tudo que ouvimos do céu é uma reboante voz
perguntando: “QUE COISAS?” Creio que a bílis pura pode curar
a peste da bílis negra, mas precisamos fundamentar este teste
curando a nós mesmos. Ainda não conseguimos isso, mas
Cláudio Galeno nos guiará nesta tarefa, pois foi sua a
descoberta da pneumata. Depois da derrota do Partido no jogo
de futebol-de-xisto, seremos coroados como os novos
curandeiros e nossa escrita muralista encontrará seu estado de
arte! Quem estiver comigo, sem a malícia que ironiza um homem
morto após sua desonra, levante a mão!”

Naquele momento, um mar de mãos imundas e cascudas


espalmou o céu sujo e Vassão deu seu último suspiro.

No dia posterior ao Carnaval Unionista, Wirmundo regou suas


buganvílias secas e dirigiu-se ao acampamento dos mendigos
escritores. No meio do caminho, foi abordado por um Deão que
queria saber onde ficava a rua X. Com toda a paciência do
mundo, Wirmundo indicou o caminho certo. Algum tempo depois
pensou que poderia ter se passado por surdo-mudo e evitado o
desgaste do mapeamento gratuito. Percebeu com isso que o
impulso de construir múltiplas personalidades predominava
também nos mundos reais.

Os excessos de grafitos nas paredes indicavam o caminho da


roça e não foi difícil encontrar o mestre estirado entre vários
mendigos escritores com escaras escuras na pele.
- Raimundo... Precisamos conversar. Por que você
roubou um manual de programação de Lan? Você não é contra
essa forma de passatempo? Não tem toda uma filosofia de
princípios contra esses jogos?

Raimundo cuspiu um chiclete verde e disse:

- Quero saber exatamente o que a sua outra personalidade vai


fazer no alcandorados da Serra do Mar.

- Vou fazer uma simples expedição em busca de mantimentos.


Qualquer coisa que tenha ouvido falar diferente é mentira.

- Somente as estatísticas são mentirosas, Xepeiro.


- Está bem, Raimundo. A verdade é que vou trazer da encosta
da Serra do Mar a receita de um óleo medicinal extraído da
árvore de ibicuíba. No século dezessete, a pasta de ibicuíba
curava qualquer coisa, até picada de cobra. Mas estou tendo
uma enorme dificuldade em encontrar a receita, pois tenho que
mergulhar fundo no sistema Trocano. Para não depender da
sorte, estou também tentando reconstituir a receita original. Não
pense que com apenas um manual de programação você vai
conseguir chegar em algum lugar no Lan. Não vai conseguir ser
nem um caranguejo arranhador da costa, uma pedra roncadora,
entende?

- Não entendo desse assunto. Mas diga por quê você trancou o
caso da ibicuíba a sete chaves?

- Por motivos óbvios. Eu suspeito que alguém do Partido está


me espionando.

- Quem?

- Não sei.

- E o que você vai fazer?

- Melhor morrer lutando do que lamentando.

- Você está pretendendo fazer uma invasão?

- Mais ou menos. Vou entrar no mainframe do CPD do Partido


para...

- ...Sabotar? Dinamitar? Ruir?


- Não. Não adianta tirar as palavras de minha boca e substituí-
las por sua cólera, Raimundo. Minha intenção é apenas verificar
algumas coisas...

- Que coisas?

- Nada... Apenas antigos códigos lingüísticos...

- Então é uma invasão!

- Não vou invadir o CP... Digo, Cubatão. Isso é coisa de


moleque! Talvez eu consiga o que preciso em Paranapiacaba...

- Não vai invadir... Vai apenas entrar sem ser convidado... E a


ibicuíba?

- Não se atenha aos nomes... Por falar em nomes, eu quero


justamente saber o que está por trás dos nomes. A computação
evoluiu muito. A tecnologia ficou mais amigável, mas ainda são
poucos os que conquistam impérios com um abrir e fechar de
pálpebras. O que você vê é o que você tem, mas o que você não
tem você não vê, entende? Eu quero saber o que existia no
período anterior a essas “facilidades”. O mainframe do CPD do
Partido foi montado dentro de uma maquina velha. Ela tem um
tipo de memória fóssil, entende? Mas isso não vem ao caso... Eu
descobri alguma coisa no Carnaval Unionista.

- Há! Que a rainha Luzia sonhou que não podia gritar de medo
de uma mulher com um seio só?

- Não escarne... Eu ouvi muitos gritos e sons diferentes...

- Como assim?

- Como a voz dos mortos...


- Ridículo.

- Resumindo: acho que sei como o Partido consegue manipular


a massa... Eles de uma certa forma cortaram os circuitos de
memória de algumas vogais mágicas...

- Ridículo.

- E eu estou querendo decifrar essas vogais em versões puras


do tupi, como o Quiriri, e...

- Que Quiriri, o quê? E a pasta de ibicuíba? Vai me dizer que


trocou o certo pelo incerto?

- Não. O "decerto" pelo "certo"...

- Fale logo!

- Na verdade quero saber a origem das línguas... Quem se


interessa por uma receita? Não seria melhor saber a primeira
partícula de todas as línguas do mundo? Não é altamente
subversivo usar a memória antiga do mainframe para atingir
esse objetivo?

- O que você quer comprovar afinal?

- O óbvio.

- Escute, Xepeiro. Vassão morreu ontem, no dia do Carnaval


Unionista, o evento mais sarcástico dos últimos séculos. A morte
de Vassão foi um marco. Minha paciência tem limites!
- O Partido está fazendo a coisa certa na área de saúde. O
problema que eu vejo são as regras gramaticais, as reformas
léxicas...

- Você é um covarde, Xepeiro! O Partido não vai conseguir nada


com a cultura pura. Não conseguirá uma outra fórmula para o
Antioxidante-3000 depois da derrota no jogo de futebol-de-xisto.
Não vão ter credibilidade nem fôlego para a unificação dos dois
brasiis.

- E se você estiver errado?

- Não tenho medo de morrer. Não posso ter medo de morrer!

Raimundo tirou uma casca de ferida do pé e a jogou numa poça


d'água suja.

- E principalmente não quero cometer outras atrocidades para


conseguir seu apoio.

- Se você confiar em mim, prometo não esconder nada.

Raimundo olhou conformado para o céu e viu o sol de mercúrio


com estrias de poeira.

Wirmundo passou por uma vitrine e olhou diretamente para seus


olhos. Nunca soube que pudesse trair uma confiança comezinha
por necessidade.

O Carnaval Unionista havia provocado na população um toque


de recolher espontâneo. Todos estavam indo para suas casas
mais cedo; exceto os jogadores de Lan.

Ao chegar perto de sua casa, Wirmundo viu que sua concubina o


estava esperando encostada no portão, como uma Amélia
vestida com uma jardineira. Imediatamente um comprido vinco
de azedume rachou o semblante do chifrudo. O intestino de
Wirmundo resfolegou e se contorceu num girau. Pobre
consciência humana! Tão apta a elevar o discernimento às
maiores esferas e tão incapaz de ter um registro completo de
todos os processos biológicos que ocorrem no corpo, o veículo
dessa engrenagem. Ela sabe que é impossível verificar todas as
liberações hormonais, todas as evacuações das células e todos
os bombeamentos das artérias. Sem falar nas circulações! Tudo
se passa à sua própria revelia e ela ainda insiste que tudo pode
ser diagnosticado.

A concubina esperou seu namorado se aproximar e falou com a


voz sem retorno de Eurídice:

- Boa noite, Wirmundo. Estava vendo o movimento dos carros.


Estava te esperando.

- Para pedir desculpas?

- Pedir desculpas de quê?

- Sobre Guaçu.

- Quem é Guaçu, homem de Deus? Quem me deve desculpas é


você por ter saído aquele dia batendo a porta na minha cara!

A memória era apenas o reconhecimento de uma alteração dos


planos da realidade. Ou Guaçu havia blefado, ou a absolvição
sem provas era mais cômoda. Um trote, talvez. Mas Wirmundo
gostava da idéia de que sua concubina permanecia ainda sua
fiel depositária.

- Esquece esse assunto de Guaçu. Vamos jantar?


Wirmundo pensou na cigarra de jade que era colocada na boca
dos imperadores chineses, como símbolo da sorte no reino dos
mortos. Fez também uma contraposição com as moedas que
são colocadas na boca dos assassinados. Alguém estava indo
longe demais com estes trotes.

O aroma de um cajueiro passou pelas grinaldas que serviam de


cortina.

- Escute, princesa. Hoje vou ficar com você. Prometo que não
vou ao Pavilhão.

- Está bem. O que você quer comer?

A fome não era mais que um alarme falso da fome do cérebro.

- Macarrão com rapadura.

- Macarrão com rapadura? Você está louco, Wirmundo? Onde


está com a cabeça?

A artilharia do amor nunca economizou epitalâmios.

- Meu doce. Faça o que quiser. Gosto de tudo que você faz na
cozinha.

Subitamente, Wirmundo lembrou-se das mensagens do sistema


Trocano que havia verificado pela manhã. Ele colocou as mãos
nos bolsos do paletó e fingiu procurar algo.

- Xii... Esqueci de comprar cigarros, querida. Vou até a esquina e


já volto, está bem?

- Então vá rápido. Quando chegar vai ter um cardápio surpresa.


De corpo e alma.
- Vou como o vento...

Wirmundo pegou o boné e saiu. Não tomou a direção do bar da


esquina e sim do Pavilhão. Sua dúvida teria de ser sanada
imediatamente, pois uma dúvida não esclarecida era pior que mil
cartas marcadas.

Entrou no Pavilhão correndo, colocou uma moeda no orifício de


um terminal-burro livre e entrou no Lan dos Bandeirantes.

Paulo_de_Proença foi direto ao lugar-metafórico da Capitania de


São Vicente, governada por Martim_Afonso_de_Sousa. Entrou
em sua casa de taipa-de-pilão na Vila Rica e tirou seu gibão
pespontado. Pegou algumas patacas e foi até uma tenda aberta.
Comprou meia arroba de carne de porco e meio alqueire de
farinha de trigo. Passou pela Matriz e, sem querer, fez o sinal da
cruz ao perceber que o adro e o alpendre estavam limpos. O
Largo da Matriz havia sido tombado e os chãos de
Francisco_João foram confiscados para o “bem comum”...
Paulo_de_Proença percebeu que um quadrilheiro, agindo como
um capitão-mór, o estava observando na frente da "Porta
Grãode".

O quadrilheiro encolheu a barriga e se aproximou.

- Você ainda vai pagar caro por ter danificado o Forte.

Paulo_de_Proença era um gentil homem e manteve a


compostura.

- Não sou um sertanista como Paulo_do_Amaral e


Antônio_Raposo_Tavares. Nunca tive problemas com o ouvidor.
Estou em dia com meus alvarás.
- Isso não vai impedir de eu ficar no seu encalço em todas as
searas. Sei que está planejando uma ida ao sertão. Não sabia
que o procurador da Câmara proibiu este tipo de atividade?

- Eu não vou prear índios. Estou indo em nome da saúde


pública. Além disso, eu vou ficar dentro dos limites permitidos.

- Não leu as correções? Em nenhuma hipótese a saída é


permitida.

- Quantas personalidades ilegais você tem?

- Quantas forem necessárias.

Paulo_de_Proença fingiu ignorar a espada de concha do


quadrilheiro e foi fazer os últimos preparativos para sua
caminhada até Paranapiacaba. Voltou para casa, retirou de um
baú seu arcabuz e vestiu sua coura de anta, uma vestimenta
mais apropriada para o mato fechado. Colocou os mantimentos
e um objeto pontiagudo envolto num pano dentro de um farnel e
saiu discreto. A cinqüenta léguas de sua casa, ouviu um índio
tocar uma guarapeva.

Caminhou até a abertura do Forte e travou pela famosa trilha do


governador Céspedes do Uruguay, que passava por
Paranapiacaba. Sabia do risco que estava correndo, pois os
camaristas não tinham controle pelo que acontecia fora do Forte
de Vila Rica. Após algumas horas de caminhada através das
estrias de luz amealhadas pelos galhos das árvores, chegou ao
pontão que descia até a descrição da vila de Cubatão, a
expressão textual do mainframe do CPD do Partido.

Paulo_de_Proença sentou numa pedra e ficou admirando o


horizonte arregaçado. Logo em seguida ouviu um movimento e
um barulho nas ramagens e aquilo não era o barulho do
Anhangá – o veado branco com olhos de fogo que provoca febre
nos caçadores de fêmeas que estão amamentando – e nem
folhagens revolvidas por maritacas. Olhou para trás e viu um
vulto se esconder atrás de uma árvore de guariroba. “Maldição!
O quadrilheiro do Partido me seguiu! Por quê eu fui remover o
Mapinguari? Agora que estou desprotegido, preciso ter bom
senso e pensar rápido!”

Quando se virou, percebeu que não era o quadrilheiro, mas um


personagem com a descrição de um índio de raça primitiva, um
abaúna.

- Você tem belas personalidades e belas descrições rotativas,


cacique Caiapitanga. Nunca vi ninguém com tantas alcunhas. E
como conseguiu me seguir?

- Demorou, mas valeu a pena. Como? Quem traiu os próprios


pais, não pode trair um amigo?

- O paraplégico?

- Sim.

- E o que você quer?

- Criei uma linguagem de programação baseada no tupi, que


segue os padrões do tupi. Por exemplo, ao contrário das línguas
latinas, o tupi coloca a terminação antes da raiz da palavra.

- E dai? Não precisa mostrar seus dotes de bom programador...

- Você conhece a palavra ajucá?

- Não.
- Ajucá significa matar, em tupi. A conjugação é a-juca, re-juca,
o-juca...

- Entendo. Vai me transformar num jabuti?

- Não... Num marimbondo... Num sanharão...

Na última sílaba com til o cacique deu uma pancada na cabeça


de Paulo_de_Proença com um cascalho virgem. Por um
momento, a escuridão tomou conta do campo de visão do
bandeirante. Quando recobrou a visão, Paulo_de_Proença
percebeu que estava sozinho na clareira. Ainda ajoelhado na
relva e surpreso com o ataque, Paulo_de_Proença viu um
segundo vulto dar um tiro de arcabuz para cima. Quando o vulto
se aproximou, Paulo_de_Proença leu sua descrição:

"M.L. Barba espessa, nariz aquilino e cenho contraído.


Sobreviveu ao cerco da Confederação de Tamoios.
Especializado em termocautérios. Tem uma caixa de boticas."

O personagem era nada mais nada menos que o próprio


Mateus_Leme.

- Eu afugentei o agente do Partido, o tal homem de Ararí...

- Mateus_Leme??!

O ancião foi sucinto na entrega do prêmio.

- Não... Curupira.

Paulo_de_Proença gaguejou e emudeceu.

- Curupira? Mas... ?
- Quem busca sempre alcança, com ou sem robôs. Você não
precisa mais de um robô e não precisa mais folhear o calhamaço
do Contentis Mundi. Abraão não precisa mais sacrificar Isaac.
Tome a receita completa da pasta de ibicuíba, o passe livre para
entrar no CPD, e sua "partícula da revelação" turbinada.
Entregue a receita para seu amigo Raimundo... Ele é um homem
de bem. Quanto àquele funcionário do Partido que estava no seu
encalço em ambos os mundos, não se preocupe. Virou um pobre
quelônio... Uma última coisa, a porta simbólica do cubo de
cobalto fica na terceira candeia da rua principal de Cubatão.

- E por quê a tergiversação do robô, do livro e da receita?

- Na vida nada é fácil.

- Sei... E o que mais você sabe, Curupira?

- Suspeito que as atuais linguagens de programação, como a


Pérola Dinâmica, tenham origem aritmética, e não lingüística,
como você suspeita... Não sabe que houve um momento em que
as línguas de gente estavam dissociadas das linguagens de
máquina?

- Interessante... Continue.

- Você quase acertou, Paulo_de_Proença... Você é muito bom,


mas não é Mateus_Leme.

- Eu tive uma intuição durante o desfile do Partido. Ouvi uma


palavra indígena pronunciada de uma maneira diferente.

- Qual palavra?

- “Io”.
- Rio, água, líquido...

- Então não acredita no poder do som produzido pela palavra


"Io"? Na oscilação entre as duas vogais? O som do big bang das
línguas do mundo e das linguagens de programação?

- Você teve uma “ilusão” auditiva. A oscilação não se dá entre


duas vogais; dá-se entre dois números.

- Dois números? Mas isso é ridículo... Todos sabem que os


números não explicam nada. Números que aparecem diversas
vezes em sonhos e casas não são indicativos da natureza da
realidade. São coincidências...

- Escute bem. Veja o símbolo "Io"... O que lembra?

- Lembra água e reflexão.

- Esqueça as palavras! O símbolo "Io" não lembra um número?

- Hum. O dez?

- Esqueça que ele normalmente significa "dez"! Há alguma coisa


nele que implique o conceito "dez"? Não! É apenas um seguido
por um zero! Que distração, hein, Paulo_de_Proença? Pensei
que você fosse descobrir a dica no desfile do Partido.

- E?

- Veja a terceira candeia da rua principal de Cubatão e


comprove.

- Não preciso ir até lá?

- Não. Basta olhar de longe meu endereço. Lembre-se,


Paulo_de_Proença, o destino não oferece opções de múltipla
escolha. O destino oferece apenas o caminho da dupla escolha:
ou a porta está aberta, ou a porta está fechada. Não há uma
terceira opção. A essência da vida é binária e diática.

Paulo_de_Proença absorveu aquelas palavras, pegou atônito a


receita de ibicuíba das mãos de Mateus_Leme, se virou para o
horizonte marítimo e lembrou de suas antigas aventuras com o
pirata Bartolomeu_Português, na época em que Cavendish
tomou de surpresa a cidade de Santos no dia de Natal. "Queria
receber o inesperado em doses homeopáticas. Não assim de
sopetão". Quando se voltou para agradecer seu salvador,
Mateus_Leme (ou Curupira?) havia evaporado. Olhou para a
receita, mas os ingredientes completos da pasta de ibicuíba já
não despertavam mais nenhum interesse, muito menos o
objetivo de ajudar Raimundo erradicar o maculo da peste. O que
importava o mundo real e externo naquela hora? O dia estava
terminando numa falsa madrugada quando Paulo_de_Proença
largou a receita na relva, retirou um objeto pontiagudo do farnel
e armou sua vista com uma luneta (cujo código foi escrito pelo
próprio Bartolomeu_Português) para localizar a terceira candeia
acesa na entrada da vila de Cubatão, na frente de um
estabelecimento mal iluminado.

Paulo_de_Proença pegou sua "partícula da revelação" com os


passes de Curupira e a atarraxou no soquete da luneta. Se
Mateus_Leme estivesse certo, esse recurso deveria traduzir as
informações do alfabeto para as informações numéricas, ou seja,
ao invés de orações, sílabas, palavras e letras, as descrições
seriam compostas pelos números 0, 1, 2 e 4, e assim
sucessivamente. Portanto, ele teria que se acostumar com
contagens regressivas ao invés de narrativas com clímax.
Paulo_de_Proença colocou o olho na visor da luneta e começou
a varrer com sua vista armada as descrições daquele lugar-
metafórico. Conseguiu "focar" um pequeno riacho a dez léguas
de distância que começava a descer a serra em direção à vila de
Cubatão. Foi então que Paulo_de_Proença percebeu como as
línguas são originadas pelas forças da natureza:

Uma fonte de água límpida desce em direção às ondas da


enseada verde. Após passar por um brejo, pede permissão para
a senhora das águas e se transforma num rio pedregoso. No
meio da montanha faz a curva num braço que, nos finais de
tarde, brilha como um rio de ouro. Neste trecho, escova os
cabelos d'água presos debaixo da ponte, e faz um rodamoinho
entre as pedras claras do fundo. Logo abaixo, quase no final do
trajeto, o rio passa por um pomar e vira um rio de mel. Na parte
final do trajeto a encosta fica mais abrupta e obriga a correnteza
a dar um salto numa bela e rumorejante cachoeira.

Antes de passar pela borda da vila de Cubatão, o rio bonito fica


mais raso, num ponto que transborda na época das enchentes e
oferece vau nas épocas mais secas. Pouco depois de margear o
perímetro da vila, o rio fica com a água ruim antes de atingir o
centro de Cubatão".

Paulo_de_Proença ajustou melhor o foco da luneta e leu a


mesma descrição, mas agora com uma grafia diferente, com
menos traços de português brasílico e mais traços de tupi:

"A ibura de iberaba desce rumo ao iapenú do iguatemi. Após a


ipojuca, pede permissão para Iara e vira itajaí. No meio da
montanha é ipiassaba que, no final da tarde brilha como itajuí.
Neste trecho, roça as igabas debaixo da igaçapapa nos ierês de
itamarati. Logo abaixo, é ibatuba e iraí.
No final da encosta pula de itu para ituporanga. Ao largo da vila,
o iporanga é itapetininga no inverno e iporuna no verão".

Paulo_de_Proença ajustou melhor o foco e, para sua surpresa,


notou uma alteração mais radical do texto:

"A 1bura de 1beraba desce rumo ao 1apenú de 1guatemi. Após


a 1pojuca, pede permissão para 1ara e vira 1tajaí. No meio da
montanha é 1piassaba que, no final da tarde brilha como 1tajuí.
Neste trecho, roça as 1gabas debaixo da 1gaçapapa nos 1erês
de 1tamarati. Logo abaixo, é 1batuba e 1raí. No final da encosta
pula de 1tu para uma 1tuporanga. Ao largo da vila, o 1poranga é
1tapetininga no inverno e 1poruna no verão."

Paulo_de_Proença ajustou mais o foco e o véu do enigma foi


subitamente levantado:

"A 1b0ra de 1beraba ao 10apen0 1g0atem1. 1p0juc1 e 1ara 0


1taja1. No 1pia00aba e 101taju1. As 1gabas 00 1ga0apa1a, e 1
1er1 em 1tamarat1. Logo 1bat0ba e 1ra1. De 1t0 para
1tup0rang1. Ao largo 1p0ranga e 1tapet1n1nga e 1p0runa".

E foi assim que compreendeu em seguida a verdade por trás da


"tabela da verdade", a única pedra monolítica de uma linguagem
de programação extinta chamada Assembler:

"1010 10001 010101 001010 010010 10001 01101 10000100


101001 010 1010 10100101 011100 1010 10100 001010
001101100 0101010 101010 10001 010101 001010 010010
10001 01101 10000100 101001 010 1010 10100101 10001
010101 001010 010010 10001 01101 10000100 101001 010
1010 10100101"
Paulo_de_Proença ainda teve tempo de "ouvir" a voz do vento
antes de ser invadido pelo "barulho" ensurdecedor da fábrica de
números binários do mainframe do CPD. O centro do cubo de
cobalto, constatou Paulo_de_Proença, era apenas um comedor
pantagruélico de uns e zeros. Um e zero. Zero e um. Um, um,
um, zero, um. Zero, um zero, zero, zero. Um, zero, zero, zero,
um, zero, um, um. Um, um, um, um, um, zero...

A primeira personalidade de Paulo_de_Proença, ou seja, a


personalidade principal de Wirmundo, constatou que realmente
as linguagens de programação tinham origem aritmética a partir
de uma técnica combinatória simples. Foi uma percepção tão
básica como sentir a aproximação da Morte, a entidade que
carrega consigo um bolo de aniversário com duas velas – uma
de um e outra de zero. Wirmundo sentiu como se tivesse
encontrado uma singularidade simbólica, ou o momento exato do
nascimento do universo dos objetos. Percebeu a inutilidade de
lutar contra o Partido que, apesar de não conhecer a linguagem
binária, presumia sua existência através do monossílabo "Io" da
língua Quiriri. Em todo o caso, o Bem-Estar Total e a proibição
de pronunciar sílabas estrangeiras eram mais que suficiente
para tocar o gado da humanidade dos dois brasiis. Não havia
mais uma confrontação entre várias formas de bem e de mal;
havia apenas uma cópula binária que, eventualmente, podia se
tornar mais violenta e animalesca.

Ao sair da frente do terminal-burro, Wirmundo se encaminhou


como um zumbi do mundo subumano até a porta de saída do
Pavilhão e planejou um abandono de emprego da vida.

Segundo algumas testemunhas que prestaram depoimento no


departamento de pessoas desaparecidas do Corpo de
Bombeiros, um homem baixo, com as mesmas características de
Wirmundo, havia sido visto caminhando sem direção ao largo do
memorial Patatiba do Açaré na noite do desaparecimento.
A concubina de Wirmundo não teve mais notícias daquele
amante que saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. Ela
não chegou a enlouquecer; por sorte, logo após ter dado parte
do desaparecimento de seu namorado, conheceu outro homem
que não temia assumir em público um compromisso aberto com
as mulheres.

Raimundo morreu de peste no mesmo dia em que o agente de


Ararí foi condecorado e os jornais da Capital mostraram uma
reportagem sobre a primeira pessoa curada pela nova fórmula
do Antioxidante-3000.

A pneumata do mestre estava agora em paz nos confins frios do


universo. O líder dos mendigos escritores finalmente havia
chegado aos domínios de Pleroma, no domínio onde a mente e
o espírito fazem um pacto de não-agressão e dividem, em
proporções iguais, o território dos corpos.

Fim

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