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Não sabia da existência da Fototerapia quando decidi compartilhar o prazer de fotografar com
pessoas que estavam atravessando um momento difícil da vida. Simplesmente era consciente da
transformação que ocorria dentro de mim sempre que saía carregando minha máquina fotográfica:
prestava mais atenção às coisas ao meu redor, as emoções ficavam mais intensas e criava-se um
tipo diferente de contato visual com as outras pessoas.
A idéia deste projeto teve origem em Natal, no Rio Grande do Norte, quando em 1995, realizava a
video-antologia “Um Dia – A Poesia”, em comemoração ao 14 de março, dia nacional da poesia. O
poeta visual, Doutor Franklin Capistrano, foi o primeiro a aceitar o convite a participar do video,
que foi rodado no seu local de trabalho: o manicômio da cidade.
Enquanto o psiquiatra recitava seus poemas visuais pelos corredores do hospital, reparei que os
pacientes nos observavam com curiosidade e que muitos deles queriam participar à performance.
Foi naquele período que comecei a imaginar como seria interessante realizar um percurso
fotográfico juntamente a pessoas com distúrbios mentais.
A oportunidade para concretizar aquela idéia se apresentou em 2001, na Itália, quando uma
amiga psicóloga, Rita Messi, falou sobre o meu trabalho à Loredana Chielli, diretora da casa
comunitária psiquiátrica “Il Filo di Arianna”, O Fio de Ariana que é administrada pela cooperativa
social ASS.COOP de Ancona.
Na minha primeira visita ao Fio de Ariana, fui recebido por um senhor muito elegante e atencioso
que escutou com interesse a proposta do projeto. Ao término da apresentação o senhor conduziu-
me gentilmente à sala da diretora. Somente então compreendi que não havia conversado com o
psiquiatra mas com um hóspede da comunidade.
No escritório, além da diretora, encontravam-se duas pessoas: um jovem que mastigava
nervosamente as pontas dos seus longos cabelos, e uma senhora muito maquiada, com cabelos
tingidos de um vermelho Ferrari e que tinha uma voz grave e fumava avidamente.
Por dois anos percorremos toda a cidade de Ancona fotografando e revelando os negativos,
imprimindo as imagens que mais tarde foram expostas em uma mostra que surpreendeu a todos
pela sua força e originalidade.
Esta experiência permitiu que compreendêssemos o quanto e em que modo os atos fotográficos
podiam ter um valor terapêutico.
Dado que a imagem fotográfica não é construída manualmente, mas sim capturada diretamente
do mundo exterior, o fotografo é obrigado a “sair” de dentro de si mesmo e estabelecer um contato
com a realidade e criar uma ligação entre o seu mundo interior com aquele que o circunda. Este
tipo de relação “dentro-fora”, intermediada por uma máquina fotográfica, dá ao fotógrafo um poder
de decisão dificilmente comparável a qualquer outra atividade. O fotógrafo é o único a decidir,
entre tantas possibilidades, aquilo que será “imortalizado”.
No decorrer deste percurso fotográfico, pude observar algumas pessoas, que eram
completamente absorvidas por suas preocupações, levantarem os olhos e começarem a olhar o
mundo simplesmente porque carregavam uma máquina fotográfica. Encontrei pessoas, com baixa
auto estima, mostrarem orgulhosamente ao público as fotos que tinham tirado e imprimido
autonomamente.
Uma vez perguntei a um hóspede de 50 anos, senhor F. D., que tinha vivido grande parte da sua
existência em instituições psiquiátricas, o porquê dele gostar tanto de fotografar e em que modo
ele pensava que a fotografia o estivesse ajudando. Ele contou que toda a sua vida foi
atormentada pela ânsia, mas quando saía para fotografar, era capaz de passar muito tempo
olhando através do visor e que, enquanto esperava o momento exato para capturar a imagem que
desejava, a sua ânsia desaparecia. “Sinto-me suspenso no tempo, como se não houvesse um
passado ou um futuro com o qual preocupar-me, mas somente o presente”.
O senhor F.D. revelou-se um fotógrafo muito original, com um senso de composição do tipo
geométrico. Nas suas fotos Ancona parecia uma cidade sempre vazia, sem habitantes.
Fiz a mesma pergunta a uma outra hóspede da comunidade, L.C., uma adolescente que tinha
saído de casa precocemente e que, apesar da sua jovem idade, havia acumulado muita
experiência de vida, nem sempre positiva. L.C. explicou-me que vivia em uma espécie de
simultaneidade, “a 360 graus”. “Sempre quis ver tudo, experimentar tudo e ao mesmo tempo”.
“Quando fotografo, porém, apesar de sentir-me livre para fotografar tudo aquilo que quero e como
quero; sou obrigada a escolher uma pequena porção do mundo por vez”. Esta limitação imposta
pela máquina fotográfica demonstrou-lhe que ela podia ser ela mesma e exprimir-se livremente
mesmo quando era obrigada a dialogar com restrições impostas por um instrumento, e por
extensão, por regras da sociedade. Enquanto os outros hóspedes escolheram mostrar uma
seleção de poucas fotos estampadas em tamanho grande, L.C. preferiu expor um grande número
de fotos de tamanho pequeno que juntas formavam grandes painéis.
F.D. e L.C. deixaram a comunidade logo após a mostra. L.C. concluiu o segundo grau e
matriculou-se ao DAMS da Universidade de Bolonha. Seu primeiro exame foi Fotografia. F.D. foi
morar sozinho no apartamento deixado pela sua mãe e conduz uma vida normal, dedicando-se ao
estudo e a viagens pela Europa.
Não afirmo certamente que a fotografia tenha sido a única responsável pelo desfecho positivo
destes dois casos, mas acredito que este percurso fotográfico tenha desempenhado um papel
importante no processo de cura de F.D. e L.C. .
Entre outros fatores que contribuíram para o bom êxito deste primeiro percurso, mencionaria três
que considero especialmente importantes:
Até que um dia L.C. convidou-me para assistir à aula de inauguração anual do curso de Fotografia
do DAMS da Universidade de Bolonha, com o professor Claudio Marra. Antes de partir para
Bolonha passei em uma livraria e comprei um livro do Professor Marra: Le Idee della Fotografia,
publicado pela Mondadori. Este livro recolhe uma centena de textos escritos por filósofos,
historiadores, estudiosos de comunicação e semiótica, artistas, poetas, escritores, sociólogos e
também psicólogos e psiquiatras. Participam a esta antologia alguns nomes famosos como:
Roland Barthes, Umberto Eco, Italo Calvino, Paul Valéry, Susan Sontag, Wim Wenders, Marshall
McLuhan, Philippe Dubois e André Bazin.
Entre os vários textos havia um fragmento do livro “Fototerapia e Diário Clínico” de Giusti e
Proietti, da editora Franco Angeli. Este livro, que não está mais em comércio, é um guia
introdutório ao uso da fotografia e da escritura de diário em um contexto psicoterapêutico.
Os autores do livro declaram de terem percorrido um caminho aberto anteriormente por duas
estudiosas: Linda Berman e Judy Weiser.
Linda Berman, psiquiatra inglesa, é autora do livro “Beyond the Smile: The Therapeutic Use of
Photography” que foi publicado na Itália pela Erickson Edizioni, em 1993, com o título “La
Fototerapia in Psicologia Clínica”. Neste livro a autora repercorre o seu itinerário de descoberta da
potencialidade do uso da fotografia na sua prática de psicoterapeuta. A autora relata suas
experiências e conduz suas reflexões baseada em numerosos casos clínicos.
Judy Weiser, psicóloga americana, é autora do livro “PhotoTherapy Technics – Exploring the
Secrets of Personal Snapshots and Family Albums” e coordenadora do site sobre a fototerapia do
phototherapy centre .
Esta nomenclatura não é universalmente aceita. Joe Spence e Rosy Martin, duas importantes
pioneiras neste campo, têm opinião diferente a respeito da definição de fototerapia. Para Joe
Spence fototerapia significa “literalmente, utilizar a fotografia para a cura de nós mesmos” e
observa que a “fototerapia deveria ser vista em um contesto mais amplo da psicoanálise, mas
sempre levando em consideração a possibilidade da TRANSFORMAÇÃO ATIVA”.
Esta obra foi-me útil para a elaboração do projeto “La Mente nel Mirino”, (A Mente no Visor),
realizado no Centro de Saúde Mental de Osimo, a partir de 2004.
Este segundo intervento foi caracterizado pelo trabalho de equipe, que era formada por dois
psiquiatras, um psicólogo, três enfermeiros e eu como animador sócio-cultural com experiência
em fotografia terapêutica.
A figura profissional do animador sócio-cultural é pouco conhecida e pouco utilizada. Esta nova
figura, que opera no social a favor do bem estar de indivíduos e de grupos, serve-se de
específicos instrumentos lúdicos, expressivos e de ativação cultural. Guido Contessa, pioneiro da
animação profissional na Itália, demonstra em seus trabalhos, como a animação possa participar
ao processo educativo, ao processo artístico ou a uma programação terapêutica mantendo a sua
específica modalidade de atuação. A redefinição do meu papel no trabalho de grupo, a
coordenação do psiquiatra responsável pela equipe, Doutor Vinicio Burattini, e os encontros
regulares de programação e avaliação permitiram-nos conduzir um intervento multidisciplinar mais
conscientemente organizado. O grupo era formado por pacientes entre 25 e 40 anos, com
distúrbios graves, que residiam com a família e frequentavam o CSM – Osimo para tratamento
ambulatorial. A principal atividade do projeto consistia na organização expedições fotográficas
que aconteciam nas cidades das Províncias de Ancona e Macerata e na elaboração do material
recolhido.
Esta experiência concluiu-se em Loreto, com a mostra-seminário “150 Anos de Fototerapia” que
reuniu profissionais de diversas áreas que apresentaram e discutiram várias iniciativas de
fototerapia na Região Le Marche. O evento recebeu o apoio do Assessores de Serviços Sociais e
da Cultura da prefeitura de Loreto, senhor Francisco Baldoni e senhora Maria Teresa Schiavoni.
Contamos com a experiência de organização da psicóloga do Centro de Saúde Mental de Ancona
Norte, doutora Assunta Lombardi que também coordenou os debates.
O Doutor Vinicio Burattini analisou vários aspectos do programa reabilitativo “A Mente no Visor –
Um Passeio pela Cidade” do Centro de Saúde Mental de Osimo.
Nesta ocasião, apresentei o livro “Il Volto e la Voce del Tempo” (O Rosto e a Voz do Tempo),
publicado pela Associazione BrasiLeMarche, 2005. Este livro relata várias experiências nas quais
a fotografia foi utilizada com o objetivo de construir pontes geracionais para aproximar pessoas de
idades diferentes. Em uma das iniciativas, alunos da escola do primeiro grau recebiam fotos de
idosos residentes em asilos e eram estimulados a escrever a biografia imaginária daquela pessoa
de quem conheciam apenas a fisionomia. Em um segundo momento, biógrafos e biografados se
encontram pessoalmente pela primeira vez, mas se sentem como velhos amigos.
Após o seminário, uma jovem psicóloga procurou-me para comentar a sua surpresa ao descobrir
que a fototerapia existia há tanto tempo e mal conseguia disfarçar o seu constrangimento em
constatar que não se tratava de uma sua invenção. Entendia muito bem o seu sentimento, pois eu
também o havia experimentado alguns anos antes. Acredito que, ainda hoje, muitos não saibam
que no dia 22 de maio de 1856, o doutor Hugh Welch Diamond, fotógrafo amador e psiquiatra do
manicômio de Surrey, fazia à Royal Society of Medicine de Londres uma palestra sobre as
possibilidades de aplicação da fotografia no tratamento de pacientes psiquiátricos, sendo portanto
o primeiro “inventor” da fototerapia. Hugh Diamond teve a idéia de utilizar o novo instrumento
tecnológico, a fotografia, para documentar com maior precisão os casos de patologias mentais. O
psiquiatra inglês percebeu que alguns pacientes reagiam de maneira nova ao observarem as
fotografias de si mesmos: tornavam-se mais conscientes da sua identidade corporal e passavam a
prestar maior atenção ao aspecto físico. A auto estima era reforçada cada vez que olhavam uma
foto na qual apareciam mais “bonitos”. Suas fotografias, seu discurso e os desenhos feitos a partir
de suas fotos foram publicados no livro “The Face of Madness”, organizado por Sander L. Gilman,
1977, The Citadel Press.
Espero porém que muitas outras pessoas, nos quatro cantos do planeta, continuem re-inventando
a fototerapia por muitos e muitos anos. É com este espírito que lanço este apelo:
fototerapiabrasil@gmail.com